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Linguagens em tempos inéditos: desafios praxiológicos da formação de


professoras/es de línguas

Book · November 2021

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4 authors, including:

Alex Egido Giuliana Castro Brossi


Universidade Estadual de Londrina Universidade Estadual de Goiás
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LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS:
DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO
DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS
•••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••

[ VOLUME UM ]
© Diálogos transdisciplinares
© da edição: Editora Scotti, Goiânia, 2021

Coordenação editorial: Luiz Carlos Scotti


Revisão: dos autores
Projeto gráfico: Cesar Oliveira

Organização:
Alex Alves Egido, Giuliana Castro Brossi
Valdilene Elisa da Silva, Valéria Rosa-da-Silva

Dados Internacionais de Catalogação na Fonte (CIP)


(Filipe Reis – CRB 1/3388)

L755 Linguagens em tempos inéditos : desafios praxiológicos da for-
mação de professoras/es de línguas / Alex Alves Egido ... [et al.]
(Organização). – Goiânia : Scotti, 2021.
360 p. ; 16 x 22,5 cm.
ISBN: 978-65-87090-43-6 (Papel)
ISBN: 978-65-87090-42-9 (Digital)
1. Educação linguística. 2. Formação docente em linguística. 3.
Linguística na infância. I. Egido, Alex Alves. II. Brossi, Giuliana Castro. III.
Elisa, Valdilene. IV. Rosa-da-Silva, Valéria.
CDU: 378

Direitos reservados à EDITORA SCOTTI


Av. República do Líbano, nº 2311 - CEP 74125-125 Goiânia-GO
(62) 98121-6148 - E-mail: contato@editorascotti.com
É proibida a reprodução total ou parcial da obra, de qualquer forma ou por qualquer
meio, sem a autorização prévia e por escrito dos autores e da editora.
A exatidão das referências, a revisão gramatical e as ideias expressas e/ou defen-
didas nos textos são de inteira responsabilidade dos autores.
Alex Alves Egido
Giuliana Castro Brossi
Valdilene Elisa da Silva
Valéria Rosa-da-Silva

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS:


DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO
DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS
•••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••

[ VOLUME UM ]

Goiânia | 2021
CONSELHO EDITORIAL
Adda Daniela Lima Figueiredo Echalar (UFG)
Andréa Kochhann (UEG)
Amado Batista Mainegra (Universidad de La Habana)
Artemisia Caldas (UFPI)
Cândido Oliveira Martins (UCP – Lisboa)
Carla Conti de Freitas (UEG)
Carlos Cardoso Silva (UFG)
Daniela da Costa Britto Pereira Lima (UFG)
Denise Silva Araújo (UFG)
Doris Pires Vargas Bolzan (UFSM)
Eleno Marques de Araujo (UNIFIMES)
Enilda Rodrigues de Almeida Bueno (UFT)
Odette Gonzalez Aportela (Universidad de La Habana)
Rafael Castro Rabelo (IFG)
Shirleide Silva Cruz (UnB)
Yara Fonseca de Oliveira e Silva (UEG)
PREFÁCIO

“ANDANDO À TOA” POR “SABIMENTOS”

Rosane Rocha Pessoa | Universidade Federal de Goiás (UFG)

E
u até pensei em falar, neste prefácio, de tempos inéditos, mas desse
tema já tratou nossa querida Clarissa Jordão, no posfácio intitu-
lado nada mais nada menos do que “O Tempo”. Também pensei
em focalizar linguagens, desafios, praxiologias e formação de pro-
fessoras/es de línguas, mas, inspirada pelo quintal de Manoel de Barros
e pelo flamboyant no quintal da UEG, mencionados na apresentação
desta obra, resolvi “[s]air andando à toa entre as plantas e os animais.
Ver as árvores verdes dos jardins. Lembrar das horas mais apagadas. Por
toda parte sentir o segredo das coisas vivas. Entrar por caminhos ignora-
dos, sair por caminhos ignorados” (BARROS, 2010). Andei livremente
pelos capítulos, me deixando seduzir por seus “sabimentos” (BARROS,
2010), suas cores, seus sabores e seus amores.

Comecei entre ipês e afetos, com Julma, Tânia, Valéria e Vivi, e


fiquei pensando nas “narrativivências” de professoras/es de línguas que
PREFÁCIO

podem dar lugar “ao pensamento cada vez mais decolonial”. Cheguei ao
“letramento afetivo”, com Barbra, que pode ser promovido por meio de
“uma ação transformadora prenhe de vida, de amorosidade e esperan-
ça”, à la Paulo Freire, em tempos adversos como estes. Me deparei com
“movimentos de objetificação e de humanização” de vidas perdidas para
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

a Covid-19 e um convite de Alex, Jhuliane e Valéria a um viver ético,


que só pode ser coletivo. “Inumeráveis” me inspirou a revisitar o me-
morial dedicado à história de cada uma das vítimas do coronavírus no
Brasil, criado porque “não há quem goste de ser número/ gente merece
existir em prosa”.

Em seguida, acessei o vídeo asfixiante sobre o que deve e o que


não deve fazer uma mulher, que se transforma em atividade de “escu-
ta empática” em uma sala de aula na escola pública. Sim, Matheus e
Cristiane, é mais do que passada a hora de dizer não aos discursos de
regulação de nossos corpos, corações e vidas. Did they say “be a lady”?
Damn them! Afinal, a agência não se relaciona dialeticamente com a
estrutura social, Denise? Ou seja, também transitei pelos conceitos
de agência interpretados a partir das falas de docentes. E, ainda, com
Victor, passeei por aulas críticas, em que o material didático são as/os
alunas/os e a/o professor/a e o que se almeja é a autorreflexão e não o
consenso.

Nesse caminhar, me deixei levar pela conversa sobre Língua, que


não é mesmo uma coisa só e não sei por que a palavra é singular, já
que diferentes repertórios linguísticos são “maneiras diferentes de ver o
mundo”, como pontua Rodrigo. E, quanto a “jogar fora o livro didá-
tico” e apostar em “professoras/es pesquisadoras/es”, concordo. Sei que
você pode se opor a essas últimas afirmações, mas vai concordar com
Fernanda e Taísa sobre a importância do letramento digital na formação
inicial de docentes. Não temos como fugir da tecnologia nestes tempos
inéditos e nos tempos que virão, mas é preciso produzi-la e não apenas
consumi-la. E é verdade, Arielli, que a escola tem sido um lugar conser-

6
PREFÁCIO

vador e não atrativo para as/os jovens – especialmente, para as pessoas


surdas – mas minha aposta seria conversar com essas/es jovens sobre
o que lhes é atrativo, sobre como usam as tecnologias (gostei de saber
dos avanços das novas tecnologias para a cultura surda!) e produzem
ou podem produzir conhecimento sobre elas. Não que eu discorde da

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


“mediação pedagógica digital” realizada pelas/os docentes!

Não puxei a cadeira e nem aceitei o café, Giu, Alex, Beatriz,


Palmyra e Thaís, pois estava no meio da caminhada, mas me envolvi em
outra conversa de professoras, atraídas por uma rede de emoção e de re-
-existência. Falavam de palhaços, princesas, piqueniques, cozinheiras na
educação linguística na infância durante este momento de pandemia.
Imagine uma festa virtual de cabelo maluco! Depois, me alinhei à ideia
de “educação linguística com crianças”, de Juliana e Cláudia, que precisa
envolver quem elas são e o que pensam sobre o mundo. E, ouvindo “O
Que é, o Que é?”, de Gonzaguinha, li atenta, Giu, Otto e Cintia, sobre
a preparação da produção de um vídeo musical realizado por crianças
de 7 a 9 anos. Amazing “tech-teachers”!

Gostei da reflexão, Thaís, sobre ir além de cores e números no en-


sino de Inglês para crianças e sobre o que dizer quando a tarde anoitece:
good afternoon or good evening? É possível “falar sobre tudo” em aulas de
Inglês e é isso: “uma coisa leva à outra” quando gente (grande ou miú-
da), vida, ensino e língua se encontram porque tudo se mistura mes-
mo. E se mistura de tal jeito, que educar é impossível, como bem disse
Freud, e não “há uma verdade sobre o ato de educar”. Ufa, Caroline e
Kely, caminho aberto para criarmos a educação! E podemos criar em
sala de aula e fora dela, nos eventos, nas parcerias entre escolas e uni-
versidades e entre universidades e secretarias, que podem se desdobrar
em decisões políticas como a de estabelecer o ensino de Inglês para os
anos iniciais do Ensino Fundamental I em Inhumas. Vale a pena jogar
pedrinhas no lago, Giu e Juliana!

7
PREFÁCIO

E foi assim esse meu livre andar pelos capítulos deste livro, que
é fruto de um grande evento que movimenta a educação linguística no
Estado de Goiás e promove o encontro de “sabimentos” de estudiosas/
os de todo o Brasil. Não quis facilitar a leitura da obra ou a contextuali-
zar, mas sim falar do que me interpelou e me encantou. Sei que podem
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

ter ficado ideias soltas, mas andar à toa tem dessas displicências. Afinal,
o que importa é que você também se ponha a caminhar...

REFERÊNCIAS
BARROS, Manoel de. Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010.

8
APRESENTAÇÃO

NOSSO QUINTAL É MAIOR DO QUE O MUNDO: FORMAÇÃO


DOCENTE E EDUCAÇÃO LINGUÍSTICA EM TEMPOS INÉDITOS

Meu quintal é maior do que o mundo.


[...]
Queria que a minha voz tivesse um formato de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios. 

“O apanhador de desperdícios”, Manoel de Barros, em Memórias inventadas


(2018).
APRESENTAÇÃO
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

Figura 1 – Flamboyant no “quintal” da UEG, Inhumas

Fonte: Arquivo pessoal das autoras1.

1 Neste texto ensaístico de apresentação, optamos pelo uso do gênero feminino.

10
APRESENTAÇÃO

Esta obra é fruto do XVI Encontro de Formação de Professoras/


es de Línguas (Enfople), evento que, há 16 anos, temos realizado em
auditórios cedidos pela prefeitura da cidade ou à sombra de nossos flam-
boyants floridos (Figura 1) na Universidade Estadual de Goiás (UEG),
em Inhumas. No ano de 2020, devido à pandemia de covid-19, nos

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


propusemos o desafio de realizar a primeira edição on-line, com o tema
Linguagens em tempos inéditos: desafios praxiológicos da formação de
professoras/es de línguas. Naqueles dias, e desde então, os “quintais” de
nossas casas, de nossos locais, em diferentes regiões, se misturaram, se
agigantaram e ficaram maiores do que o mundo, em alusão aos versos
do poeta pantaneiro Manoel de Barros (2018), que servem de inspira-
ção para este texto ensaístico.

Não encontraríamos uma ideia melhor para ressignificar quem


somos nós, professoras e professores: seres que vivemos, convivemos,
resistimos e reexistimos na “invencionática”, a arte de (re)inventar. De
repente, informática e invencionática se (con)fundem! O desafio de rea-
lizarmos esse evento virtualmente nos proporcionou experiências que
acrescentaram muito às nossas vidas profissionais e pessoais. Os espaços
físicos foram encurtados e a comunicação e o acesso a novos conheci-
mentos se tornaram mais fluidos. Porém, as situações de vulnerabili-
dade ficaram ainda mais aparentes. Nesse sentido, concordamos com
Boaventura de Sousa Santos (2021) ao dizer que as desigualdades e as
discriminações sociais, já tão presentes nas sociedades contemporâneas,
se intensificaram ainda mais neste contexto pandêmico e são visíveis
nos espaços educacionais, assim como fora deles. Nossas salas de aula
mediadas pelas tecnologias nos ajudaram a entender, por exemplo, que
muitas pessoas não têm acesso à internet, e que, em muitos casos, quan-
do têm, não é suficiente para atender às demandas educacionais.

Os tempos inéditos, a que nos referimos no título desta obra e na


temática do evento, são aqueles acarretados pelo momento pandêmico,
que nos fez chorar e nos distanciar, intensificar vulnerabilidades e des-

11
APRESENTAÇÃO

velar maldades e incredulidades, mas que também nos fez reconhecer


e valorizar o contato, mesmo que distante, que temos com os nossos
familiares, colegas de trabalho, alunas e alunos. É justamente nesta sin-
tonia dos tempos inéditos que nos propomos, e com este intuito convi-
damos as autoras e os autores, de diferentes locais do Brasil, a comparti-
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

lharem suas praxiologias sobre formação docente e educação linguística.

Organizamos esta coletânea em duas partes. Em ambas, os capí-


tulos apresentam discussões sobre formação docente e educação linguís-
tica, com ênfase na língua inglesa. No entanto, a Parte II é dedicada aos
estudos dessas áreas na infância, campo promissor que vem redesenhan-
do caminhos e plantando sementes na fertilidade do cerrado inhumen-
se. Convidamos a leitora a abrir as janelas e contemplar brevemente esse
quintal que abriga tantas moradas.

No primeiro capítulo, intitulado Entre ipês e afetos: formação


docente em floração na seca do Cerrado Central do Brasil, Julma Dalva
Vilarinho Pereira Borelli, Tânia Ferreira Rezende, Valéria Rosa-da-Silva
e Viviane Pires Viana Silvestre nos convidam a sentir-pensar a formação
docente como a floração de um ipê durante a árida seca no Cerrado
brasileiro. Nesse texto ensaístico, as autoras compartilham as histórias
que têm atravessado na formação de professoras de línguas no Cerrado
Central do Brasil.

No segundo capítulo, Now what?!: o dia em que a escola parou e


as reinvenções docentes em tempos de covid, Barbra Sabota busca revisitar
e problematizar como ela entende a educação e a responsabilidade do-
cente para a construção e a manutenção de uma sociedade mais justa e
igualitária. Em uma pesquisa autoetnográfica, a autora propõe retomar
duas ações que desenvolveu durante o primeiro ano da pandemia de
covid-19, ambas pensadas a partir das premissas da educação linguística
crítica. Por fim, ela apresenta ponderações sobre as contribuições das

12
APRESENTAÇÃO

ciências para o desenvolvimento social e para a amenização das reper-


cussões de crises, como a que vivemos na atualidade.

No terceiro capítulo, intitulado Inumeráveis e nomeáveis: quando


vidas viram números em tempos de covid-19, Alex Alves Egido, Jhuliane
Evelyn da Silva e Valéria Rosa-da-Silva buscam problematizar discursos

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


que coexistem em tempos de pandemia de covid-19 no que se refere
às vidas perdidas, e nos convidam a refletir sobre os usos da linguagem
para representar as vítimas da covid-19, que certos veículos de comuni-
cação e atores sociais transformam em números frios, mas que conhe-
cemos por nomes próprios. Para tanto, o autor e as autoras selecionam
diferentes textos das esferas artística, educacional, midiática e política,
para relacioná-los aos discursos da objetificação e da humanização. Por
fim, deixam um convite para uma ética de cuidado com o Outro.

No quarto capítulo, “Be a lady!, they said.”: uma abordagem acerca


das relações de gênero na sala de aula de inglês da escola pública, Matheus
Augusto Utim e Cristiane Rosa Lopes compartilham uma abordagem
crítica e questionadora a partir de duas aulas de língua inglesa em uma
turma de 9° ano do ensino fundamental de uma escola da rede pública.
A experiência teve como objetivo problematizar as relações de gênero
em um contexto de ensino e aprendizagem de língua inglesa. Diante
disso, o autor e a autora sugerem que o engajamento na perspectiva
crítica torna o processo de ensino e aprendizagem de língua inglesa mais
responsivo e responsável.

No quinto capítulo, intitulado Agência de professores de línguas sob


a ótica dos novos letramentos, Denise Silva Paes Landim discute sobre o
papel da agência na formação docente, em especial aquela que fomen-
te criticidade e aumento das possibilidades de ação transformadora no
contexto da prática pedagógica atual. Além disso, a autora reflete sobre
questões como globalização, neoliberalismo e decolonialidade do ser e
do saber, utilizando como lentes as teorias dos novos letramentos.

13
APRESENTAÇÃO

Em Movimentos de um professor de inglês em sua práxis crítica com


um livro didático, Victor Hugo Oliveira Magalhães reflete sobre as atitu-
des de um docente em sua práxis crítica de ensino de inglês como língua
adicional, com foco nos fluxos de submissão e subversão com um livro
didático. Segundo o autor, o professor participante da pesquisa pareceu
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

priorizar atividades de caráter crítico e problematizador fora do livro


didático, mesmo sendo submetido à demanda institucional de seu uso.

No sétimo capítulo, intitulado Aproximando autoetnografia e lín-


gua como discurso na formação de professores, Rodrigo Calatrone Paiva
apresenta um relato autoetnográfico em formato de diálogos fictícios
entre estudantes estagiários de Letras-Inglês e entre estes e seu profes-
sor orientador. O autor utiliza tais diálogos como pano de fundo para
levantar uma discussão sobre a concepção de língua como discurso e
possíveis aproximações com a abordagem de pesquisa denominada au-
toetnografia, com a finalidade de legitimar esta abordagem como sendo
um meio válido de produção e disseminação de conhecimento científi-
co na área de formação de professores de línguas.

No capítulo oito, intitulado A questão do letramento digital nos es-


tágios obrigatórios do curso de Letras durante a pandemia, Fernanda Silva
Veloso e Taísa Barbosa Robuste compartilham experiências de forma-
doras de professores dos cursos de licenciatura em Letras – Português,
Letras – Espanhol e Letras – Italiano da Universidade Federal do Paraná
ao longo de propostas que viabilizaram o estágio supervisionado obri-
gatório na modalidade remota. Como resultados parciais, as autoras
sugerem o grande envolvimento dos praticantes na oferta dos cursos
remotos, bem como possibilidades de inclusão de um novo “campo de
estágio” quando o calendário da universidade for retomado e as aulas
presenciais voltarem a ser ministradas.

No nono capítulo, intitulado Inclusão social/escolar do surdo: o pa-


pel do professor como mediador pedagógico das novas tecnologias, Arielli

14
APRESENTAÇÃO

Curado Andrade Bueno visa investigar a mediação pedagógica com en-


foque no uso das novas tecnologias para a inclusão social/escolar do
surdo. Além disso, a autora tem por objetivo refletir sobre o papel do
professor na promoção da inclusão do surdo nos ambientes físicos e
virtuais.

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


Inaugurando a Parte II, no capítulo 10, intitulado Com a pa-
lavra, você, professora de inglês para crianças: a escuta sensível como ato
ético em narrativas sobre experiências de des/re-aprendizagens durante a
pandemia, Giuliana Castro Brossi, Alex Alves Egido, Beatriz Borges,
Palmyra Baroni e Thaís Blasio Martins apresentam uma modalidade
de participação no Enfople realizado em 2020, que possibilitou espaço
de fala e escuta sensível entre/com professoras de Inglês de contextos
diversos: os painéis temáticos. Para elas e ele, as narrativas que emergi-
ram desse espaço de fala com professoras mostram que, além de com-
partilhar praxiologias insurgentes do cenário pandêmico, as discussões
levantadas a partir desses painéis contribuíram para a formação docente
coconstruída no contato entre as subjetividades, identidades, emoções e
na intersubjetividade associada com nossos corpos e emoções.

No capítulo 11, intitulado Tempos inéditos na formação de educa-


dores e educadoras de línguas na infância: e quando foi que os tempos foram
diferentes?, Juliana Reichert Assunção Tonelli e Cláudia Jotto Kawachi-
Furlan abrem possibilidades para reflexões acerca das praxiologias na
educação de professores e professoras de línguas para crianças e como
desejam romper com padrões, muitas vezes, difíceis de serem transpos-
tos nos cursos de Letras – Inglês. Essas reflexões levam as autoras a dis-
cutir acerca da urgência de rupturas na formação inicial, ao questionar
o que almejamos com a educação linguística com crianças, além da
relevância de construirmos, coletiva e colaborativamente, esse processo,
por meio da ampliação das narrativas de formação docente.

15
APRESENTAÇÃO

No capítulo 12, intitulado Criança que canta seus males espanta e


ainda aprende inglês: uma experiência musical durante o ensino remo-
to emergencial, Giuliana Castro Brossi, Otto Henrique Silva Ferreira
e Cintia Ribeiro Maniquinho apresentam uma das atividades realiza-
das na ação extensionista English for Kids da Universidade Estadual
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

de Goiás, Inhumas, como parte da programação do XVI Enfople em


2020. As professoras e o professor que relatam a experiência participa-
ram da ação e apontam desafios, esperanças e desdobramentos. Elas e
ele também destacam suas praxiologias, além de descreverem a expe-
riência de gravar o vídeo, de trabalhar relacionando música e inglês,
bem como motivações transdisciplinares, práticas translíngues e refle-
xões acerca dos impactos do vídeo na sala de aula virtual de IC nas
escolas de Inhumas.

No capítulo 13, Me deixando levar pela doce brincadeira do ensino


de inglês para crianças: vivências no espaço-tempo infantil, Thaís Blasio
Martins apresenta alguns resultados preliminares de sua pesquisa de
doutorado, os quais indicam a necessidade de novas discussões sobre a
conceituação de língua quando se leva em conta a prática de ensino de
inglês para crianças. Diante disso, a autora percebe, por meio da realiza-
ção de autoetnografia de sua prática docente como professora de escola
pública municipal de São Paulo, ser preciso relacionar a compreensão
do conceito de língua a contextos epistemológicos mais abrangentes,
que ultrapassariam as visões mais tradicionalmente consolidadas na
academia.

No capítulo 14, intitulado As contribuições da psicanálise para


a formação de professores de língua inglesa no fundamental I, Caroline
Martins dos Santos e Kely Cristina Silva sugerem uma possibilidade de
interlocução do campo do ensino de língua inglesa para crianças com
os estudos da psicanálise. Para as autoras, o saber inconsciente aliado
à formação inicial e continuada do professor de língua contribui para

16
APRESENTAÇÃO

uma prática docente que considera o caráter criativo e singular do su-


jeito professor.

No décimo quinto e último capítulo, Educação linguística em


inglês na infância em Inhumas: o encantamento com a educação e seus
desdobramentos em políticas, Giuliana Castro Brossi e Juliana Reichert

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


Assunção Tonelli discutem as políticas insurgentes que emergem dos
discursos de um grupo de professoras/es de língua inglesa para crianças.
As discussões foram realizadas no âmbito da ação extensionista English
for Kids da Universidade Estadual de Goiás. Nessa pesquisa qualitativa
crítica, as autoras argumentam que os movimentos locais partem de es-
forços e ações localizadas das/os professoras/es em seus microcontextos
e promovem transformações sociais e políticas. A discussão preliminar
das praxiologias das/os professoras/es em formação sugere estratégias,
atalhos e ações que ressignificam as políticas linguísticas no contexto
local e que as reverberam, materializadas em documentos que agem
diretamente na formação de professoras/es de línguas.

Esse quintal é nossa morada e, como a leitora irá perceber ao ca-


minhar por ele, é um quintal habitado por muitas árvores – araucárias,
ipês, caraíbas, jatobás, árvores pau-santo, oitis, sibipirunas, jequitibás,
pequizeiros, dentre outras de diferentes tamanhos e cores –, todas elas
acolhidas pelas lindas e majestosas flamboyants, que trouxemos no iní-
cio deste texto. Desejamos, assim, que a caminhada por nosso quintal
seja leve e colorida, mas que não deixe de despertar indignAção!

Alex Alves Egido

Giuliana Castro Brossi

Valdilene Elisa da Silva

Valéria Rosa-da-Silva

17
SUMÁRIO

SUMÁRIO
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

Prefácio
Apresentação

PARTE I
EDUCAÇÃO LINGUÍSTICA E FORMAÇÃO DE
PROFESSORAS/ES
1 Entre ipês e afetos: Formação docente em floração na seca do
cerrado do Brasil

2 Now what?! O dia em que a escola parou e as reinvenções


docentes em tempos de Covid

3 Inumeráveis e nomeáveis: quando vidas viram números em


tempos de Covid-19

4 “Be a lady!, They said.” Uma abordagem acerca das relações de


gênero na sala de aula de Inglês da escola pública

5 Agência de professores de línguas sob a ótica dos novos


letramentos

6 Movimentos de um professor de inglês em sua práxis crítica


com um livro didático

7 Aproximando autoetnografia e língua como discurso na


formação de professores

18
SUMÁRIO

8 A questão do letramento digital nos estágios obrigatórios do


curso de letras durante a pandemia

9 Inclusão social/escolar do surdo: o papel do professor como


mediador pedagógico das novas tecnologias

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


PARTE II
FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS PARA
CRIANÇAS E EDUCAÇÃO LINGUÍSTICA NA INFÂNCIA
10 Com a palavra, você, professora de inglês, para crianças: a escuta
sensível como ato ético em narrativas sobre experiências de des/
re-aprendizagens durante a pandemia

11 Tempos inéditos na formação de educadores e educadoras


de línguas na infância: e quando foi que os tempos foram
diferentes?

12 Criança que canta seus males espanta e ainda aprende inglês:


uma experiência musical durante o ensino remoto emergencial

13 Me deixando levar pela doce brincadeira do ensino de inglês


para crianças: vivências no espaço-tempo infantil

14 As contribuições da psicanálise para a formação de professores


de língua inglesa no fundamental I

15 Implementação da educação linguística na infância na escola


pública: uma história só “pra inglês ver”?

Posfácio
Autoras e autores

19
SUMÁRIO

20
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

21
SUMÁRIO

EDUCAÇÃO LINGUÍSTICA E FORMAÇÃO


DE PROFESSORAS/ES
PARTE I
22

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS
1.
ENTRE IPÊS E AFETOS: FORMAÇÃO
DOCENTE EM FLORAÇÃO NA SECA

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


DO CERRADO CENTRAL DO BRASIL

Julma Dalva Vilarinho Pereira Borelli


Universidade Federal de Rondonópolis (UFR)

Tânia Ferreira Rezende


Universidade Federal de Goiás (UFG)

Valéria Rosa-da-Silva
Universidade Estadual de Goiás (UEG, Inhumas)

Viviane Pires Viana Silvestre


Universidade Estadual de Goiás (UEG, Anápolis/CSEH)

A formação docente em uma região periférica de um país que


se preocupa em formar mão de obra, ao mesmo tempo, instrumental-
mente qualificada e barata, acrítica e obediente, é mais uma ameaça
do que um projeto de políticas públicas para a educação. Entretanto,
o desejo de superar esse projeto de nação e seus valores antiquados e o
esperançamento na educação transformadora sempre impulsionaram os
programas de formação docente. É desse modo que entendemos que a
formação de professoras, vista no planejamento geral da educação bra-
sileira, é como a floração do ipê durante a árida seca no Cerrado brasi-
leiro: um espetáculo que encanta e nos lembra do cuidado e do afeto da
natureza em tempos de dureza; mas também a promessa de dias sempre
melhores se respeitarmos e cuidarmos de nossas matri-raízes.

23
ENTRE IPÊS E AFETOS: Formação docente em floração na seca do cerrado central do brasil

Com essas ideias e com o coração cheio de afeto e esperançamen-


to, nos encontramos, mulheres formadoras de iniciantes e de outras
formadoras, e sem demora fizemos nosso ebó de itans, nossas narrativas
de nós mesmas, que são nossas e sobre as nossas: nossas narrativivên-
cias, que agora são nossas “escrevivências” (EVARISTO, 2020). Nossa
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

roda-floração2 de esperançamento aconteceu já em meio à secagem da


vida, para além do Cerrado, no Encontro de Formação de Professoras/
es de Línguas (Enfople), que em 2020 realizou a sua 16ª edição, en-
frentando, naquele momento, o desafio de ocorrer de forma remota.
Enfrentávamos mundialmente a pandemia de covid-19, que, até então,
já havia tirado a vida de mais de uma centena de milhar de brasilei-
ras e que havia afetado sobremaneira nossas vidas e nosso trabalho na
formação docente, assim como a vida e as atividades acadêmicas das
estudantes das universidades. Neste momento em que escrevivemos,
em junho de 2021, o Brasil atingiu a marca de meio milhão de mortes.
Esta secagem da vida no Brasil e no mundo é inigualável na história.

Foi por isso que, na roda de conversa que fizemos naquele mo-
mento, optamos por compartilhar nossas próprias narrativas, plurais e
coletivas, que são nossas e são das nossas, as que nos formaram, nos ins-
piraram e nos inspiram, evidenciando nossas histórias com a formação
de professoras de línguas e os modos como temos enfrentado os desafios
desses tempos inéditos de agora. Neste ensaio, nosso intento é sentir-
-pensar que histórias têm nos atravessado na formação de professoras de
línguas cá no Cerrado Central do Brasil.

A terra o céo, o infinito


Fallam de paz e de amor.

Duque Estrada.

2 XVI ENFOPLE Roda de Conversa 1: Formação de professoras/es de línguas.


Publicado por UEG TV. [S. l.: s. n.], 19 set. 2020. 1 vídeo (1 h 33 min 32 seg).
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=G2Q2ZohsHpY. Acesso
em: 05 set. 2021.

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ENTRE IPÊS E AFETOS: Formação docente em floração na seca do cerrado central do brasil

DESPERTA a natureza... Um claro sol dourado


Se mostra altivo e bello, às portas do levante.
Acorda, na floresta, o inquieto povo alado
E a brisa do sertão suspira farfalhante.

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


Floresce o lírio azul, na várzea, e, mais distante,
Na bruma, surge além o monte iluminado.
Vagueia, na planície, o manso gado errante
E a voz do camponez retumba, no vallado.

E enquanto a madre-silva o cálice desata


E vae a estrella d’Alva, aos poucos, descorando
Ao som cadencioso e brando da cascata,

Formosa roceirinha alegre, como aurora,


Levando a enxada ao hombro, esbelta, sae cantando
Uma canção de amor, pela campina afora.

“Manhã na roça”, Leodegária de Jesus, em Orchideas (2014)

Narrativivências e escrevivências sobre formação de docentes de


línguas a partir da polifonia transcultural das histórias comunitárias co-
letivizadas, ainda que pouco escutadas, histórias que são de todas nós,
exigem assumir a imensidão do Brasil e chamar muita gente diferente
para conversar junta. Num país decretado monolíngue, onde são fala-
das cerca de 300 línguas muito diferentes umas das outras, o enunciado
“ensino de língua” desperta questões complexas: quem ensina, a quem,
qual português, qual inglês, qual língua, com qual propósito?

Se assumirmos que, para grande parte da população brasileira, o


português falado no Brasil e, mais ainda, ensinado nas escolas, pode até

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ENTRE IPÊS E AFETOS: Formação docente em floração na seca do cerrado central do brasil

ser uma segunda língua, mas não a língua materna, começamos o deba-
te com honestidade sociolinguística e ética humanitária. Ainda assim,
não podemos nos esquecer porque falamos português neste país e em
quais circunstâncias o português se instaurou como língua oficial desta
nação. Se, nesse debate, tivermos a voz gutural do corpo ferido pelas do-
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

res da diferença colonial, para além da voz de quem fala sobre diferença
sem as marcas e as feridas da diferença colonial, e se essa voz for escuta-
da com respeito ético-étnico, então, caminharemos para a mudança dos
“termos da conversa” (MIGNOLO, 2009).

Mudar os termos da conversa é mudar, principalmente, a enun-


ciadora e as posições de quem participa da enunciação: elas, as não pes-
soas, entram para o intercâmbio eu-tu, as pessoas participantes do es-
paço da enunciação. Quando a não pessoa (não ser, não humana) entra
como pessoa, com direito a falar, no espaço da enunciação, esse espaço é
transformado, porque outra cosmopercepção de mundo (OYĚWÙMÍ,
2021), outra epistemologia, enfim, outro modo de pensar-perceber-
-sentir-dizer entra na enunciação.

Quando a própria pessoa marcada como diferente colonial fala o


que é e como é ser diferente colonial, sentindo a dor da ferida, isto é,
quando a pessoa que é “o outro” da colonialidade linguística fala sobre
a ferida do ensino de línguas, a educação linguística escolar supura e
expurga, fazendo com que as lágrimas se misturem ao suor, ao san-
gue e ao pus que ainda latejam no corpo que pulsa, impulsionando a
luta contracolonial (SANTOS, 2015), em uma sociedade, uma escola
e uma academia que só recentemente descobrem as possibilidades de
um pensar-agir decolonial. Em resumo, ser academicamente decolonial
no campo do ensino de línguas, para quem vem de uma luta contraco-
lonial histórica para manter a vida, faz diferença e essa diferença nem
sempre é percebida para além do incômodo que ela gera.

26
ENTRE IPÊS E AFETOS: Formação docente em floração na seca do cerrado central do brasil

O projeto escolar de ensino de português, nesse país de língua


oficial portuguesa, é, primeiro, convencer a subalternizada de que ela
não pode falar (SPIVAK, 2010) e, menos ainda, escrever, porque ela
não sabe sua própria língua. Depois, convencer essa subalternizada de
que ela só terá algum sucesso na escola e na vida se aprender as normas

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


prescritas pela gramática, por isso, a escola e as aulas de línguas são tão
importantes. Por fim, a subalternizada é convencida de que a escola e a
escrita não são para ela, então, só lhe resta, diante de seu fracasso indi-
vidual, a desistência, chamada de evasão, e a busca/espera de um lugar
no subemprego, mal remunerado (justificado pela pouca escolarização,
má instrumentalização linguística etc.).

O corpo feminino negro/preto, indígena, afro-indianizado,


herdou da colonização o direito de continuar onde suas antepassadas
sempre estiveram. Entretanto, se esse povo conseguiu sobreviver às
barbaridades da colonização e se consegue sobreviver às violências da
colonialidade, é porque dispensa a generosidade do colonizador e abre
mão de sua herança. Nossa herança é a luta, que nos foi legada por
nossas antepassadas. Não temos língua, temos linguagem e nossa língua
materna não é a língua oficial portuguesa, é a linguagem corpo-contra-
colonial que nos deixaram nossas antepassadas.

Resistir tal qual os ipês e caraíbas no cerrado seco,


florescendo como podem nos beirais de estradas empoeiradas,
a despeito de olhos displicentes.

Sim. Resistir florescendo nas gripas que se prolongam


de troncos tortuosos, galhos em desalinho, ásperos e imperfeitos.

Resistir na nuança pura da anilina solar


contrastada com o céu ao encobrir as estrelas
para que o dia aconteça no Hemisfério Sul.

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ENTRE IPÊS E AFETOS: Formação docente em floração na seca do cerrado central do brasil

Resistir...

Resistir enquanto o verbo se fizer conjugar na minha carne


humanamente falha.
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

Resistir.

“Resistência”, de Rúbia Garcia, em @rubiagarcia (2020).

A escrita de nós é uma forma de resistência, é mais uma história


que estamos contando e, cada vez que fazemos isso, estamos adiando o
fim do mundo (KRENAK, 2019). Contar histórias é uma coisa interes-
sante, podemos nos preparar, ensaiar, mas cada vez que tentamos recon-
tá-las temos uma versão um pouco diferente. A história escapa da gente!
O narrar se faz no e pelo próprio narrar. Quando pensamos, então, em
histórias com a formação docente, talvez a maior dificuldade seja a de
“aprisionar” no papel algo que é liberdade em movimento. Além disso,
na formação não há uma história completa nem única, ou não há com-
pletude nem unicidade nas histórias, porque a beleza – a floração – das
histórias está no movimento do narrar. É por isso que se pensarmos a
formação docente como algo a ser promovido em sua completude, fi-
camos diante de um projeto impossível – são as inspiradoras palavras de
Lopes e Borges (2015).

Dessa forma, podemos evitar “o perigo da história única”, um


alerta da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie (2009) sobre
o quanto nossa percepção pode ser injusta por focalizarmos apenas uma
parte da história, e, assim, reproduzirmos uma só versão sobre grupos
ou pessoas. De certo modo, ao desejarmos promover possibilidades de
formação, com base no pensamento decolonial, também nos envolve-
mos nesse processo de confrontar histórias únicas. Quando discutimos

28
ENTRE IPÊS E AFETOS: Formação docente em floração na seca do cerrado central do brasil

esse perigo em sala de aula, buscamos gerar reflexões sobre que histórias
únicas nós temos sobre a escola pública, sobre professoras de inglês,
sobre professoras de português, sobre as docentes e discentes de escola
pública ou privada e de que forma isso afeta as possibilidades do nosso
trabalho. Então, formar-se professora de língua(s) é também aprender

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


a confrontar histórias, a enfrentar suas próprias histórias únicas e a de-
safiar impossibilidades.

Outro aspecto que temos valorizado em nossas histórias com a


formação é a importância de visibilizarmos quem conta a história e de
pensarmos por que aquela história está sendo contada daquela maneira.
Privilegiar e invisibilizar histórias ainda é uma forma de gerar sofri-
mento, exclusão, de justificar explorações, abusos e mortes. Precisamos
reconhecer que “por quinhentos anos, a história universal foi contada
da perspectiva de uma história local, aquela da civilização ocidental,
uma aberração, de fato, que se constituiu como verdade” (MIGNOLO,
2012, p. ix).

Pensarmos sobre quem conta a história nos ajuda a visibilizar os


interesses que estão por trás da história contada. Além disso, nos impe-
le a buscar ouvir outras histórias, contadas pelas pessoas que ocupam
de fato outros locais. Trazendo isso para a formação, podemos pensar
em qual é a história comum da escola pública – um local onde o en-
sino é comprometido por diversas questões. Quem está contando essa
história? Se a gente faz essa pergunta para quem nos diz isso, a pessoa,
muitas vezes, responde: todas sabem disso. Todas quem? Quem deveria
e poderia contar as histórias da escola pública se não as pessoas que
estão lá diariamente? Quando as pessoas da escola são ouvidas, elas têm
muitas histórias boas para contar. Por que, então, o que “todas sabem”
é diferente? A quem essa história de fracasso favorece? Quem são as pes-
soas que continuam a ser excluídas nessas histórias? Em outras palavras,
que projeto de desvalorização da educação está sendo posto em prática
quando ouvimos tantos discursos desvalorizando a educação pública?

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ENTRE IPÊS E AFETOS: Formação docente em floração na seca do cerrado central do brasil

Ao pensarmos sobre o atual projeto de ensino de línguas no


Brasil, que com a implementação da Base Nacional Comum Curricular
institui e privilegia o ensino de inglês em detrimento de tantas outras
possibilidades, somos impelidas a questionar que histórias, ou seja, que
modos de ser, estar e tornar-se no e com o mundo, serão/estão sendo
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

privilegiadas e invisibilizadas em cada face dessa “moeda”? Como edu-


cadoras linguísticas, que narrativas permeiam nossas aulas de línguas?

Talvez as histórias – as narrativivências – estejam mais presentes


em nossas vidas de professoras do que tenhamos conseguido reconhe-
cer até agora, mas não se trata de uma história que reproduz e deve ser
contada da mesma forma até que se torne verdade. As histórias que nos
interessam são as histórias que confrontam, que desafiam, que buscam
olhar criticamente, que rompem, que permitem o pensamento cada vez
mais decolonial.

E por que dizemos “cada vez mais decolonial”? Na verdade, prefe-


riríamos dizer “radicalmente decolonial”, mas não somos capazes disso
estando imersas nessa estrutura de colonialidades. Talvez a radicalidade
nem seja tão interessante, já que as colonialidades, estas sim, estão as-
sentadas em radicalidades – principalmente em uma separação radical.
Ter consciência de qual projeto é reforçado com essas colonialidades, ou
seja, com essas separações radicais, nos ajuda muito a pensar a formação
docente.

Para quem estiver menos familiarizada com esses conceitos de


colonialidades, diferentes pensadoras da decolonialidade – Quijano
(2005, 2010), Maldonado-Torres (2007), Grosfoguel (2007, 2016),
Mignolo (2005, 2009, 2012), Walsh (2007, 2009) – têm discutido de
que forma essas separações são estabelecidas em diferentes esferas da
nossa vida. Ao discutirem as colonialidades do poder, do saber, do ser,
da linguagem, essas autoras vão nos mostrando que a diferença, as cons-
truções binárias do tipo homem/mulher, negro/branco, ciência/senso

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ENTRE IPÊS E AFETOS: Formação docente em floração na seca do cerrado central do brasil

comum, língua padrão/não padrão, não fazem simples separações, mas


sim hierarquizam, e tais hierarquias perpetuam relações de poder e de
exclusão (LUGONES, 2014; SEGATO, 2012).

Trazer esse pensamento para a formação nos faz almejar uma edu-
cação menos segregadora, que amplie as noções de conhecimento, com-

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


preendendo que tudo o que circula em nossas salas de aula e nas escolas
são conhecimentos importantes para a formação docente. Nos ajuda
também a pensar diferentemente sobre o significado de ensinar inglês,
sobre que inglês é esse e sobre como podemos confrontar diversos mi-
tos, dentre eles o da falante nativa e o de que existe um lugar “certo”
para se aprender uma língua estrangeira. E aqui é preciso dizer que
quando elegemos esse lugar como os cursos livres de línguas, também
estamos dizendo quem pode aprender essa língua, já que nem todas
podem arcar com um curso de idioma.

Enfim, trazer para a consciência todas essas questões como parte


da formação está alinhado ao que Paulo Freire (2013) nos ensinou: en-
sinar exige criticidade e comprometimento, ou seja, exige engajamento.
O ensino, como ato político, precisa ser pensado levando em considera-
ção a favor de quê e de quem está a nossa práxis. Essa mesma criticidade
acaba por nos levar para as nossas histórias de formação, para pensarmos
os caminhos que temos trilhado. A esse respeito, podemos dizer que as
histórias que têm nos atravessado são marcadas por colonialidades, mas
também por colaboração e afeto.

Olhar para as nossas histórias de formação nos remete a um in-


tenso processo de transformação pessoal e profissional. E nesse aspecto,
reconhecemos que a promoção de oportunidades de transformação é
também uma base importante que sempre orientou as nossas histórias
com a formação docente. Nesse caminho, estar entre pessoas que assu-
mem esse mesmo desafio em diferentes contextos de formação faz mui-
ta diferença. Assim, ao narrar nossas próprias histórias – ao narrativiver

31
ENTRE IPÊS E AFETOS: Formação docente em floração na seca do cerrado central do brasil

– nos des-re-construímos como professoras de professoras de línguas e


convidamos você que nos lê a tentar fazer o mesmo.

our souls
will not be soothed
by what we achieve
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

how we look
or all the hard work we do
even if we managed to
make all the money in the world
we’d be left feeling empty for something
our souls ache for community
our deepest being craves one another
we need to be connected
to feel alive

Rupi Kaur, em home body (2020).

Foi em busca dessas conexões que nos encontramos como podía-


mos e reunimos nossos afetos para contar nossas histórias. Nós, quatro
professoras de universidades públicas do Centro-Oeste, nos unimos vir-
tualmente, em uma manhã de setembro de 2020, mês árido em que flo-
rescem os imponentes e belos ipês no Cerrado, para conversarmos sobre
a formação de professoras/es de línguas. Naquele momento, estávamos
privadas do sol e do ar livre da manhã, bem como dos encontros e dos
abraços que sempre marcaram esses momentos de trabalho conjunto.
Além disso, em Goiânia – onde três de nós residimos –, estávamos há
mais de 100 dias sem chuva: o Cerrado, nosso velho avô, ardia em cha-
mas! A secura da natureza era sentida intensamente em nossos corpos
que desejavam o conforto do afeto tal como a natureza aguardava pela
chuva para renascer. Em maio-junho de 2021, com a seca começando

32
ENTRE IPÊS E AFETOS: Formação docente em floração na seca do cerrado central do brasil

seu novo ciclo cá no Cerrado Central do Brasil, nos reencontramos


– ainda virtualmente – para a escrita deste ensaio, com o intento de
coletivamente sentir-pensar as histórias que têm nos atravessado na for-
mação de professoras de línguas. Sentir-pensar essas histórias nos possi-
bilitou rever nosso lugar epistêmico – “um lugar de vida – que recusa a

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


universalidade abstrata” (WALSH, 2009, p. 25), ou seja, lugar de afetos
também.

Antes de finalizarmos, gostaríamos de dedicar este texto a cada


estudante, de qualquer que seja a instituição educacional, que perma-
nece neste momento pandêmico excluída de qualquer possibilidade de
seguir seus estudos. Mesmo sabendo que provavelmente não há inedi-
tismo nessa exclusão – por vezes essas pessoas são as mesmas que já são
excluídas dentro da própria escola – julgamos importante nos manter-
mos alertas para não acabarmos naturalizando esse processo tão injusto.

O compromisso e o engajamento com a formação que promo-


vemos devem ser permanentemente fortalecidos, ainda que inúmeras
situações adversas insistam em nos fazer desistir. Isso não significa espe-
rar que sejamos super-heroínas ou responsáveis por todas as mudanças
de que o mundo carece, mas, sim, despertar a sensibilidade localizada
(SILVESTRE, 2017) e corazonar (ARIAS, 2010; ROSA-DA-SILVA,
2021) nosso trabalho na formação crítica de professoras de línguas.

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ENTRE IPÊS E AFETOS: Formação docente em floração na seca do cerrado central do brasil

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ENTRE IPÊS E AFETOS: Formação docente em floração na seca do cerrado central do brasil

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LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS
NOW WHAT?! O DIA EM QUE A ESCOLA PAROU E as reinvenções docentes em tempos de Covid

2.
NOW WHAT?! O DIA EM QUE A
ESCOLA PAROU E AS REINVENÇÕES

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


DOCENTES EM TEMPOS DE COVID

Barbra Sabota | Universidade Estadual de Goiás (UEG, Anápolis/CSEH)

C
omo professora de inglês desde 1994, ao longo de minha carreira
já passei por diversos contextos (público, privado, ensino regular,
escolas de línguas, escolas e universidades), já lecionei para alunas
e alunos de todas as faixas etárias e diversas classes sociais. Em mi-
nha história, já vivenciei muito desafios, mas nenhum tão grande como
a reinvenção a que fomos expostas/os a partir de 16 de março de 2020
– o dia em que a escola parou! Neste capítulo, discuto como, a partir de
minhas praxiologias e posicionamentos ontoepistêmicos, ressignifiquei
meu papel como docente e pesquisadora na Universidade Estadual de
Goiás (UEG), em Anápolis, durante o primeiro ano da pandemia de
covid-19. Na primeira parte do texto, narrativizo o cenário tal como o
percebo, religando notícias, filmes, música e minhas impressões subjeti-
vas, prenhes do olhar da docente que sou. Na segunda parte, discuto a
mudança de contextos e conceitos de sala para além da adjetivação que
as acompanham. Na sequência, estendo o olhar reflexivo, teórico e críti-
co para relacionar como busquei alcançar minhas alunas e meus alunos
a partir de minhas praxiologias em um grupo de estudos. Por fim, trago
algumas considerações transitórias sobre as questões tratadas ao longo
do capítulo e as referências utilizadas para a construção do texto.

37
NOW WHAT?! O DIA EM QUE A ESCOLA PAROU E as reinvenções docentes em tempos de Covid

O objetivo deste relato de experiência reflexivo é evidenciar como


a práxis docente de uma educadora linguística crítica é imbricada de
afeto, teoria, vivências, responsabilidade social e agência. Nesse senti-
do, a discussão dos aspectos teóricos, por assim dizer, ocorre de modo
entretecido às experiências, possibilitando o entrelaçamento rizomati-
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

zado do que vivo, sinto e decido como docente pesquisadora de minha


própria prática.

Oriento-me na escrita deste capítulo por premissas da autoeto-


nografia narrativa (ou autoetnografia evocativa) a partir de Cheryl Le
Roux (2016), para quem esta modalidade pós-moderna de construir sa-
beres sobre o que se faz de modo reflexivo e contínuo traz contribuições
significativas tanto para quem as desenvolve quanto para quem as lê. A
partir de seu estudo sobre o rigor científico da autoetnografia – e após
estudar 52 pesquisas deste tipo –, a autora afirma que esta metodologia
faz ecoar a voz da experiência pessoal a fim de ampliar a compreensão
sociopolíticocultural de um episódio vivenciado. O desenvolvimento
da pesquisa parte de uma narrativa que acomoda subjetividade e emo-
ção, mas que é revisitada pelas epistemologias que orientam as ações e
decisões de quem narra, possibilitando que a pesquisa “ensine, informe
e inspire” (LE ROUX, 2016, p. 10), por isso considero-a apropriada
para esta escrita haja vista ser este o movimento que pretendo fazer.
Passo, portanto, à primeira seção deste estudo.

O DIA EM QUE A ESCOLA PAROU: INÍCIO DE UM PROCESSO DE


DOR E DE TOMADA DE CONSCIÊNCIA

O título desta seção foi proposto em analogia ao filme norte-a-


mericano “O dia em que a Terra parou” que foi filmado primeiramente
em 1951, como uma crítica ao clima pós-guerra e aos efeitos da Guerra
Fria. Posteriormente, a obra teve o roteiro adaptado, atualizado e foi
refilmado em 2008 com denúncias sobre problemas climáticos e formas

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NOW WHAT?! O DIA EM QUE A ESCOLA PAROU E as reinvenções docentes em tempos de Covid

truculentas de resolver conflitos. No Brasil, o roteiro de 1951 inspirou


o cantor e compositor Raul Seixas, que, em 1977, também contou a
versão brasileira desse cenário distópico, desta vez fazendo alusão às
trabalhadoras e aos trabalhadores e chefes-mandatários que observavam
atônitos ao evento. Nas três obras homônimas, um cenário de destrui-

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


ção e medo se desenvolve porque, apesar dos sinais que alertavam para
o agravamento da questão (uma invasão de um ser externo ao contexto
vivido), as autoridades políticas não acataram os conselhos e nem acei-
taram a mediação da ciência na resolução do problema.

Infelizmente, em 2020, a vida imitou a arte e uma pandemia


mundial foi declarada pela Organização Mundial de Saúde (OMS).
Um vírus entrava em nossas vidas e, a despeito das tentativas da ciência
de aconselhar sua contenção, nem todas as lideranças políticas se dispu-
seram a ouvir. A covid-19 mudou o cenário mundial, aproximando da
realidade o que antes só víamos em filmes e em músicas.

Foi assim que em 16 de março de 2020, em Goiás, assim como


em diversos estados do país, a escola parou. Retomando os versos de
Seixas na referida canção, “E o aluno não saiu para estudar, pois sabia,
o professor também não tava lá. E o professor não saiu pra lecionar.
Pois sabia que não tinha mais nada pra ensinar”. O currículo estático e
pré-definido com seu conteúdo fixo e enrijecido, carente de atualização
e transformação (SILVESTRE; RODRIGUES DA SILVA; SABOTA,
2019) continuava nos livros didáticos em que habita. Contudo, as de-
mandas de aprendizagem já eram outras, agora viam-se ampliadas e, por
isso, naquele momento, não havia nada a ensinar. Devido à persistência
de cientistas e pesquisadoras/es em várias áreas, fomos remontando o
cenário social e reaprendendo a cumprimentar (substituindo apertos
de mãos e abraços por “soquinhos”), mantendo o distanciamento social
adequado, a lavar as mãos (utilizando sabão e fazendo movimentos mais
complexos para a higienização), e a aprender/estudar/ensinar a partir de
nossas casas.

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NOW WHAT?! O DIA EM QUE A ESCOLA PAROU E as reinvenções docentes em tempos de Covid

Não pretendo me deter neste texto nas dificuldades advindas des-


sas questões. Ressalto que têm sido tempos difíceis para todos e todas,
desde então. A fome e o desemprego, dois inimigos que já estavam mais
afastados, voltaram com força total a assolar nosso país. A ignorância e o
negacionismo levantaram-se contra vacinas, e saberes científicos foram
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

ignorados e menosprezados no cenário nacional e internacional3. A de-


sigualdade e todas as formas de violência que a acompanham tomaram
conta das ruas e das redes sociais. No entanto, neste estudo, atenho-me
a falar sobre as repercussões já observadas na educação.

Desde março de 2020, as aulas em escolas e universidades públi-


cas de nosso estado estão acontecendo de maneira remota emergencial.
O retorno ao presencial deverá ocorrer após a imunização pela vacina
pela qual esperamos ansiosamente. A vacina produzida em território na-
cional, porém com insumos internacionais, foi desenvolvida em tempo
recorde graças ao esforço conjunto de pesquisadoras e pesquisadores de
todo o mundo, mesmo que em alguns países, como o nosso atualmente,
haja um descaso com a ciência alimentado pela onda de negacionismo
que se alastra a partir de desmandos governamentais e proliferação de
notícias falsas.

3 A título de ilustração do caos de nosso cenário político atual, trago essas infor-
mações como denúncia às políticas de morte exercidas pelo atual governante de
nosso país, estampadas em jornais nacionais e internacionais. Atualmente, há
uma comissão parlamentar de inquérito (CPI) em andamento a fim de esclarecer
desvios de verbas e má gestão na condução da proteção à população durante a
pandemia, como mostram as reportagens: BBC NEWS BRASIL. CPI da Co-
vid: Governo rejeitou três ofertas de vacina do Instituto Butantan em 2020,
diz Dimas Covas. BBC News Brasil, São Paulo, 27 maio 2021. Disponível em:
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-57272525. Acesso em: 30 set. 2021; e
REZENDE, Constança; LOPES, Raquel. Documentos do Planalto entregues
à CPI mostram 24 reuniões com atuação de ‘ministério paralelo’ na gestão da
pandemia. Folha de S. Paulo, São Paulo, 27 maio 2021. Disponível em: https://
www1.folha.uol.com.br/poder/2021/05/documentos-do-planalto-entregues-a-
-cpi-mostram-24-reunioes-com-atuacao-de-ministerio-paralelo-na-gestao-da-
-pandemia.shtml. Acesso em: 30 set. 2021.

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NOW WHAT?! O DIA EM QUE A ESCOLA PAROU E as reinvenções docentes em tempos de Covid

A recomendação da OMS é que fiquemos em casa, evitando


deslocamentos que ajudem o vírus a circular, e assim estamos (mui-
tos de nós), professoras/es e alunas/os, acatando tanto quanto possível
a orientação, ainda que sob ataques de pessoas que afirmam que nos
mantemos em casa por acomodação ou por não querermos voltar ao

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


trabalho. O fato é que estar em casa e estar à toa não são sinônimos, so-
bretudo para professoras; 81% das profissionais da educação básica são
mulheres4, que acumulam tarefas e desdobram-se para atender alunas/
os, familiares e gestoras/es, além de lidar com suas próprias demandas
domésticas e familiares. Se por um lado a gente entende que a melhor
coisa é ficar “em casa”, a fim de nos protegermos da contaminação pelo
vírus, por outro, nunca foi tão evidente o que este espaço representa
para cada uma/um de nós. Índices de violência doméstica aumentaram,
crianças e mulheres ficaram mais vulneráveis à ação de agressores e mais
expostas à fome.

A escola, para muitas famílias era sinônimo de segurança alimen-


tar durante o dia para as crianças. Com seu fechamento, foi preciso criar
meios para que os alimentos chegassem às famílias. As escolas e creches
passaram a ser local de distribuição de cestas básicas pelo governo e por
organizações não governamentais, e as salas das casas foram transforma-
das em salas de aula.

4 Um estudo do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais “Aní-


sio Teixeira” (Inep) sobre o perfil da/o educadora/educador da educação básica
em 2017 concluiu que “os professores típicos brasileiros em 2017 são mulheres
(81%), de raça cor branca (42%) ou parda (25,2%), com idade média de 41
anos, alocadas, prioritariamente, nas etapas iniciais da educação básica”. Dispo-
nível em: http://portal.inep.gov.br. Acesso em: 5 set. 2021.

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NOW WHAT?! O DIA EM QUE A ESCOLA PAROU E as reinvenções docentes em tempos de Covid

Figura 1 – O dia em que a escola parou


LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

Fonte: Mesa redonda do Enfople (2020).

Na mesa redonda que deu origem a este capítulo, problematizo


a questão da suspensão das aulas presenciais e as medidas emergenciais
tomadas à época, como registrado na Figura 2. Naquele momento, ain-
da não conhecíamos tanto do vírus e tampouco como os desdobramen-
tos da pandemia se dariam. Convém retomar o vídeo para recuperar o
momento histórico registrado (XVI ENFOPLE, 2020). Neste texto,
situo a questão tal como a vejo com os olhos de hoje, como trago na
sequência.

O QUE MUDA COM A MUDANÇA DA ADJETIVAÇÃO DA SALA

O espaço doméstico tem mobiliários que atendem convivência


familiar: camas, sofás, cadeiras, tamboretes, mesas. Cada casa, a seu jei-
to e de acordo com sua possibilidade, acolhe os membros das famílias.
Quando esse local de repente é transformado em uma sala de aula,
a falta de espaço e mobiliário adequado passa a ser mais uma forma

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NOW WHAT?! O DIA EM QUE A ESCOLA PAROU E as reinvenções docentes em tempos de Covid

de privar as camadas mais populares da oportunidade de estudar. Foi


constante em noticiários a romantização do esforço feito por crianças,
jovens e suas famílias para ter acesso às aulas. Pessoas de diferentes ida-
des tendo de se amontoar em frente a pequenas telas para estudar, sem
condições ergonômicas de manter postura adequada. Compartilhar te-

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


las de computadores, tablets e celulares também já era uma realidade.

A sala de aula, cada uma a sua maneira, cria uma ambientação


nas/os aprendizes de forma que, ao adentrarem o espaço, entendem
que: vão rever amigas/os, conversar nos intervalos, perguntar umas/uns
às/aos outras/os sobre questões da matéria estudada e interagir como
sugerido pela/o docente. Quando a sala de casa vira sala de aula, tudo
muda: a interação, a possiblidade de alcançar o outro, os horários, os
barulhos e as interrupções. Não é de se admirar que tantas/os alunas/os
reclamem sentir falta da escola.

A baixa qualidade da internet no Brasil, que já era denunciada


por autoras como Roxane Rojo e Vani Kenski desde 2013 (ROJO,
2013; KENSKI, 2013), agora foi evidenciada. Além da baixa qualidade
da internet banda larga, várias/os estudantes pelo Brasil5 dependiam de
pacotes de dados móveis para ter acesso às aulas enquanto revezavam-se
de frente às pequenas telas. Com pouco auxílio de agências governa-
mentais para gerir a situação, coube às/aos docentes ressignificar suas
práticas, sua compreensão sobre a mediação de saberes, sobre os obje-
tivos da educação e alcançar suas/seus alunas/os para não lhes permi-
tir desesperançar e desistir dos estudos (NÓVOA, 2020; GOEDERT;
ARNDT, 2020).

5 Dados disponíveis a partir de levantamentos do Instituto de Pesquisa Econômica


Aplica (Ipea), com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad)
contínua (ARAÚJO, Ana Lídia. Cerca de seis milhões de alunos brasileiros não
têm acesso à internet. Eu Estudante, Brasília, DF, 04 set. 2020. Disponível em:
https://www.correiobraziliense.com.br/euestudante/educacao-basica/2020/09/
4873174-cerca-de-seis-milhoes-de-alunos-brasileiros-nao-tem-acesso-a-inter-
net.html. Acesso em: 5 set. 2021.).

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NOW WHAT?! O DIA EM QUE A ESCOLA PAROU E as reinvenções docentes em tempos de Covid

Assim, como é possível perceber nesta breve argumentação, a


pandemia fez emergir muitas questões da desigualdade no cenário edu-
cacional que estavam ocultas até o momento, e certamente, teremos
um longo caminho pela frente até conseguirmos entender, refletir, para
só então reparar os danos causados por esses 15 meses (até junho de
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

2021) de afastamento das instituições públicas escolares. Essas reflexões


ajudam a entender que não há um ponto de retorno, pois não pode-
mos aspirar voltar a um dito normal que ocultava e silenciava tantas
questões, assim como penso também não ser o caso de sonhar com um
“novo normal” que possa homogeneizar as subjetividades e esquecer o
que vivemos e aprendemos (ou devíamos ter aprendido) a fim de evi-
tar que situações análogas aconteçam. Na seção seguinte, discuto como
busquei adaptar meu contato com minhas alunas e meus alunos sem
prescindir da colaboração, do afeto e do contato (ainda que remoto)
com suas subjetividades.

RESSIGNIFICANDO AFETOS E ESTUDOS DURANTE A PANDEMIA

Nesta seção teço considerações entrelaçando os saberes que têm


orientado minhas ações e reflexões nos últimos tempos e argumento
sobre como tenho mantido esforços para que a coerência entre minhas
ações e palavras ecoe minha ética docente e cidadã (SABOTA, 2018),
sobretudo nesses meses de ensino remoto emergencial. Desse modo,
busco apresentar reflexões sobre o que compõe (a partir do que leio –
de mundo e de teoria) e como desenvolvo (compreendo, interpreto e
traduzo em ações) minhas praxiologias.

O modo como me percebo docente e as responsabilidades que


abraço ao pensar minhas praxiologias relacionam-se diretamente com
o modo como concebo educação, a partir de Paulo Freire (1996, 2020,
2021): uma ação transformadora prenhe de vida, de amorosidade e
esperança, que possibilita a construção de sentidos e a percepção da

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NOW WHAT?! O DIA EM QUE A ESCOLA PAROU E as reinvenções docentes em tempos de Covid

humanidade que há nos sujeitos – em mim, como docente, e no ou-


tro, sujeitos históricos e políticos – que por meio da criticidade podem
transformar realidades desiguais. Esta concepção se faz necessária neste
ano de 2021, em que celebramos o centenário do nascimento do pa-
trono da educação brasileira, por todas as ameaças – sanitárias, econô-

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


micas, políticas – que temos sofrido e que têm, aos poucos, tentado
minar nossas forças de luta. É preciso entender as trocas que acontecem
durante aulas e encontros acadêmicos como momentos dialógicos de
construção de sentidos e desenvolvimento da consciência crítica por
meio da leitura de si, do mundo e do contexto a partir do qual se faz
tal leitura, ensejando possibilidades de transformação (FREIRE, 1996,
2020; MENEZES DE SOUZA, 2011).

A aula, como evento educativo, passa a ser um espaço dialógico


empático onde fala e escuta ocorrem em uma relação não hierarquizada
e retroalimentadora (SILVESTRE, 2017). Esta relação envolve inten-
cionalidade – algo equivalente a objetivos e metas, porém, sem a previ-
sibilidade prevista nesses, mas aberta às emergências contingenciais, tal
como explicitado em Sabota (2017) – e agência, entendida aqui como
a autonomia de assumir o protagonismo da ação, sem necessariamente
sobrepor-se a outrem, mas deixando que sua voz emerja de modo a ex-
pressar sua identidade/subjetividade e responsabilizando-se por sua par-
te no processo de educação linguística (SABOTA; OLIVEIRA, 2019).
Neste capítulo, porém, amplio esta noção de aula para momentos como
os encontros do grupo de estudos que problematizo aqui. Os espaços de
fala, propostos por Viviane Silvestre (2017), têm sido inseridos em mi-
nhas praxiologias como momentos de letramento afetivo em que a aco-
lhida das emoções é promovida nesses encontros de subjetividades, nos
quais aprendemos a escutar o outro e a nos relacionar com seu mundo
(suas questões, suas histórias de vida e de aprendizagem, suas dores e
alegrias), independentemente desses encontros se darem em aulas ou
em momentos de estudo, como o que problematizo a seguir.

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NOW WHAT?! O DIA EM QUE A ESCOLA PAROU E as reinvenções docentes em tempos de Covid

Tenho o privilégio de ter em meu ambiente de trabalho algumas/


alguns parceiras/os que compartilham das mesmas ideias sobre a edu-
cação e linguagem que eu, o que facilita muito transformar ideias em
ação. Assim, professora Viviane Silvestre, professor Ariovaldo Pereira,
professor Sostenes Lima6 e eu coordenamos7, desde 2018, o Grupo
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

de Estudos Integra – Perspectivas Críticas em Educação Linguística


e Letramento –, que reúne mensalmente alunas/os da graduação em
Letras, do mestrado e egressas/os para a leitura, problematização e dis-
cussão de textos. As problematizações ocorrem sob inspiração freiriana,
ou seja, uma pergunta ou um tema gerador se desenrola em momentos
de discussão, compartilhamento de vivências, ampliação de repertórios,
a fim de que os saberes avancem do senso comum sem reduzi-los a algo
menor ou pretextual (FREIRE, 2021).

Em 17 abril de 2020, retomamos o contato com as/os alunas/os


em dois movimentos: o primeiro de acolhida e reflexão sobre as subje-
tividades e emoções – portanto um movimento de interiorização – e o
segundo de ampliação do olhar para como os sentidos estavam sendo
expressos, ou seja, um olhar para fora, buscando, neste movimento du-
plo, construir sentidos dialogicamente sobre eu, nós e mundo. Nessa
dialogia, buscamos ampliar nossos repertórios de modo rizomático –
buscando alçar diferentes direções de modo alinear e não hierárqui-
co, favorecendo diferentes construções de sentido (CANAGARAJAH,
2018), em vez de nos portarmos como consumidoras/es passivos de
informações.

6 Professora e professores que pertencem à mesma linha de pesquisa (e ao mesmo


eixo temático) que eu no Programa de Pós-Graduação em Educação, Lingua-
gem e Tecnologias (UNIVERSIDADE ESTADUAL DE GOIÁS. [PPGIELT].
Docentes. Disponível em: http://www.ppgielt.ueg.br/conteudo/2079_docentes.
Acesso em: 5 set. 2021). Juntas/os mantemos este grupo de estudos desde 2018.
7 O uso da primeira pessoa do plural em alguns lugares desta seção se deve a ações
desenvolvidas em conjunto com outras/os professoras/es e/ou alunas/os.

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NOW WHAT?! O DIA EM QUE A ESCOLA PAROU E as reinvenções docentes em tempos de Covid

No primeiro movimento, buscamos saber como estavam se sen-


tindo, que dificuldades estavam enfrentando para lidar com os aconte-
cimentos, como estava a segurança financeira e alimentar de todas/os as/
os participantes do grupo que se dispuseram e/ou puderam responder.
Esses contatos foram feitos via aplicativo de mensagem (WhatsApp)

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


e logo montamos um grupo com os/as INTEGRAntes (como deno-
minamos as/os agentes do grupo de estudos Integra) e agendamos um
encontro virtual. Para esse encontro, que seria o movimento externo,
elaboramos um mural virtual, pela plataforma Padlet, e disponibiliza-
mos links com materiais digitais que circularam com produções de in-
telectuais de nosso tempo sobre a pandemia, como ilustrado na Figura
3. Solicitamos que os/as INTEGRAntes escolhessem o que e quanto ler
do material disponibilizado. Para se preparar para a discussão durante a
reunião, cada uma/um deveria selecionar um trecho de qualquer leitura
e postar no mural, com a fonte, para que no dia do encontro síncrono,
via plataforma Google Meet, pudéssemos retomar as leituras e proceder
com a discussão.
Figura 2 – Mural digital com material para leitura

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LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

Fonte: Arquivo pessoal (2021).

Esse foi um modo que encontramos de buscar ampliar o olhar


e construir sentidos sobre o que ocorria naquele momento em nossa
sociedade. As/Os INTEGRAntes de nosso grupo de estudos são pro-
fessoras/es em formação (universitária/inicial e/ou continuada) e, para
que sejam professoras/es críticos, é importante que tenham momentos
de troca e construção de sentidos em que exercitem sua criticidade a
partir de seu lugar no mundo (FREIRE, 1996). Essa atividade, com di-
versas fontes à escolha e sem impor uma ordem específica para a leitura
do material, auxilia na formação da/o leitora/leitor crítico multimo-
dal de nosso tempo, um momento em que nem o conhecimento, nem
a aprendizagem carecem de “uma lógica linear”, cabendo, portanto, a
nós docentes mediadoras/es promover encontros com saberes plurais
de modo a concorrer para “desenvolver hábitos de leitura apropriados
que formem cidadãos informados e críticos” (MONTE MÓR, 2012,
p. 37).

Para Walkyria Monte Mor (2012), é preciso atentar-se para o fato


de que os saberes não são fixos, mas dinâmicos, assim, quanto antes
percebermos a fluidez dessas relações, mais estaremos preparadas/os
para lidar com as mudanças. Apesar de esse texto de Monte Mór ter
sido escrito há nove anos, a facilidade com que se aplica à situação da

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NOW WHAT?! O DIA EM QUE A ESCOLA PAROU E as reinvenções docentes em tempos de Covid

pandemia demonstra sua atualidade. Durante a reunião daquele encon-


tro, pudemos perceber como a relação entre o que haviam destacado
dos textos e o que sentiam remontava a essa discussão de local/global
aventada pela autora. No espaço de fala criado no grupo de estudo,
os sentimentos eram acolhidos e ressignificados durante a discussão.

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


Perceber que outras pessoas também se sentiam inseguras e ansiosas as
conectava, possibilitando que apesar de distantes fisicamente, percebes-
sem-se próximas. Ouso afirmar que isso equivale a dizer que nem todo
contexto remoto remete à distância, haja vista que não é a localidade
física que determina a natureza do espaço de fala e escuta gerado, mas
sim a aproximação do foco/objetivo e o engajamento emocional que
são dispensados à interação (CANAGARAJAH, 2018).

O exercício de olhar para si, para nossa comunidade e para o todo


global fazia-nos perceber, a um só tempo, o lado bom e o ruim da glo-
balização. A partir desse movimento interior e exterior, construído pela
leitura, pelo debate, pelas postagens no mural digital, foi possível nos
reconectarmos com nossa subjetividade e redimensionar as repercussões
da globalização, do momento político e histórico que vivemos. Nossa
agência colaborativa foi evidenciada no modo como participamos da
construção da narrativa que contaremos daqui a alguns anos. Não nos
mantivemos acuadas/os, ao contrário, buscamos ser agentes de nossa
transformação, vivemos um momento educacional para além dos ima-
ginados em currículos.

Monte Mór (2012) argumenta que, em países ou comunidades


em desenvolvimento, como é o caso do Brasil e, podemos inferir, de
Goiás, o processo de modernização acabou por criar mais dependência
do que emancipação. A autora alerta que, como país, dependemos de
outras nações mais fortalecidas como os Estados Unidos e a China.
Porém, dentro de nossa própria nação, essas relações de dependência e
subalternidade são reproduzidas, fazendo com que estados mais próspe-
ros economicamente exerçam poder sobre estados periféricos. Durante

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NOW WHAT?! O DIA EM QUE A ESCOLA PAROU E as reinvenções docentes em tempos de Covid

a pandemia temos experimentado isso fortemente. Enquanto países ri-


cos têm vacina de sobra para barganhar com outros em troca de lealda-
de e vantagens, países que se colocam em relação de subserviência não
tem condição de produzir seus próprios insumos, ficando à mercê de
outros que exportem para que tenhamos vacina para nosso povo. Por
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

sua vez, internamente, temos apenas dois institutos (ambos no Sudeste


do país, note-se) capazes de manipular e distribuir as vacinas para um
país continental como o nosso. Entender o impacto político da globa-
lização pode fazer a diferença na hora de fazermos escolhas em nossa
vida. Para professoras/es de línguas, que são acostumadas/os a entender
que aprender inglês lhes habilita a viver em uma sociedade globalizada,
percebendo o idioma como um produto, um privilégio, pensar critica-
mente sobre a globalização e suas repercussões em um momento de cri-
se pode ser indispensável (MONTE MÓR, 2012). Para o nosso grupo,
a ação de acolhida e de reflexão nos ajudou a um só tempo a perceber
que outra academia é possível e que na coletividade fortalecemos nossa
argumentação, nosso espírito ativista.

Outra ação ligada ao grupo de estudos foi promovida nesse pri-


meiro ano de pandemia, a fim de manter as pessoas conectadas entre
si e ao mesmo tempo com o que acontecia no mundo acadêmico. Aos
moldes do que ocorreu em todo o país, o surgimento explosivo de li-
ves – transmissões on-line ao vivo com diferentes finalidades – também
atingiu a academia. Instituições de pesquisa, universidades e professo-
ras/es (independentes ou em grupo) não demoraram a proferir palestras
e transmitir eventos por uma popular plataforma de transmissão de da-
dos de áudio e vídeo, o YouTube.

Como apontam Lidiane Goedert e Klalter Arndt (2020), apesar


de ter se tornado um elemento central em nosso dia a dia, o digital ain-
da não promove um acesso democrático. Além das dificuldades com a
conexão e da questão de custear planos de banda larga e/ou pacotes de
dados compatíveis com as demandas, ainda enfrentamos um outro efei-

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NOW WHAT?! O DIA EM QUE A ESCOLA PAROU E as reinvenções docentes em tempos de Covid

to significativo, a meu ver, pouco explorado até então. A acessibilidade


ao conteúdo não garante a compreensão, nem o acolhimento nesses
eventos on-line. Ao acessar uma live de uma cantora ou um cantor, nem
sempre quem acompanha é percebido pela/o artista, mas ainda assim
é possível acompanhar a apresentação e se sentir bem. Por outro lado,

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


quando alguém se dispõe a acompanhar um evento acadêmico on-line
(ou uma aula remota) e não consegue produzir sentidos, a frustração
pode levar ao abandono da atividade. Não asseguro que tal frustração
seja responsável por abandonos de cursos, por exemplo, afinal, não rea-
lizei pesquisas que me permitam afirmar isso. Contudo, penso que após
algumas tentativas não bem-sucedidas de compreender os debates, ou
mesmo de tentar contribuir com ideias e perguntas nas caixas de diálo-
gos – chats – que são abertas nesses eventos e não obter qualquer retor-
no, o desinteresse comece a se instalar.

A partir dessa intuição, propus uma ação, a qual denominei


INTEGRAndo Lives. A proposta surgiu do interesse de discutir os te-
mas das palestras acadêmicas aproveitando a função de troca de men-
sagens síncronas que já havia sido criado para nosso grupo de estudos.
A ação foi proposta em colegiado com o objetivo específico de mediar
a (re)construção de sentidos a partir do que estava sendo discutido no
vídeo e problematizar questões expostas durante a apresentação das lives
acadêmicas, aproximando-as de nossa realidade e de nossas demandas.
O convite era postado no grupo de WhatsApp, junto com o link e as
informações de horário e data, e quem pudesse/quisesse começava a
interagir com quem estivesse sincronizado. Foi uma forma de construir
presença na ausência e aproximar a distância, possibilitando repensar os
conceitos de presencial e a distância, tal como propuseram Vilson Leffa
e Maximina Freire (2013) muito tempo antes de vivermos a distopia
que enfrentamos durante a pandemia.

Como discuto ao longo deste capítulo, as ciências trazem grandes


contribuições para a sociedade: as políticas podem nos ajudar a enten-

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NOW WHAT?! O DIA EM QUE A ESCOLA PAROU E as reinvenções docentes em tempos de Covid

der as escolhas que fazemos, pensar em políticas públicas adequadas


para atender as demandas comunitárias, propor meios de sustentar e de-
fender um regime de governo como a democracia; as biológicas podem
apresentar meios de prevenir, amenizar e tratar problemas de saúde; as
econômicas podem oferecer alternativas de apoio logístico financeiro
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

para as outras áreas, programas sociais paliativos para amenizar a fome


e a miséria, planos de recuperação do mercado e geração de empregos,
entre outras contribuições. Nesta seção, especificamente, dediquei-me
a mostrar como as ciências humanas são importantes para pensar na
manutenção da saúde mental e emocional, para o desenvolvimento da
intelectualidade, para a reconexão com a cidadania. Pesquisar (e apoiar
a pesquisa) é preparar-se para momentos de adversidades e talvez em
algumas situações antecipar e evitar o agravamento de situações pro-
blema. Muitos dos textos citados aqui haviam sido escritos antes de vi-
vermos esta crise de saúde pública mundial e ainda assim mostraram-se
relevantes para a compreensão do contexto e para fundamentar praxio-
logias recursivas para agir em tempos de crise. Passo agora às palavras
finais deste capítulo.

CONSIDERAÇÕES TRANSITÓRIAS

Produzir uma autoetnografia favorece um olhar cuidadoso sobre


nossas escolhas, atitudes e nossa identidade docente. Como dito por
Le Roux (2016), a narrativa evocativa autoetnográfica contribui para
a formação subjetiva, intelectual, acadêmica e profissional de quem
realiza e quem lê. Dessa forma, finalizo esta escrita reafirmando um
pouco do que eu aprendi até o momento diante dos desafios que me
foram impostos pela pandemia: primeiramente, ressalto que sem en-
gajamento (subjetivo, agentivo, afetivo) não é possível transformar a
realidade da educação. Desde o ano de 2020, temos vivido um cená-
rio inimaginável fora da ficção e foi a ciência que nos permitiu como
sociedade evitar que os problemas se agravassem ainda mais. Se hoje

52
NOW WHAT?! O DIA EM QUE A ESCOLA PAROU E as reinvenções docentes em tempos de Covid

temos vacinas no horizonte, se temos aulas acontecendo em contexto


remoto (a despeito de todas as adversidades) é porque pesquisadoras e
pesquisadores não se acomodaram e buscaram um modo de enfrentar
o problema. Ressalto, contudo, à guisa do que afirma Lorena Cabnal
(GOLDSMAN; CABNAL 2019), que recuperar a alegria foi possível

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


e é muito importante, mas não posso perder minha indignação diante
desta situação. No momento em que escrevo, o Brasil se aproxima da
triste marca de 480.000 mortos por uma doença que asfixia as/os pa-
cientes, mas também as famílias e as pessoas que se sensibilizam com a
vida humana.

Como professora-pesquisadora, busquei reencontrar minhas


alunas e meus alunos para que juntas/os pensássemos este momento e
maneiras de registrá-lo em nossas memórias, nossas vivências a fim de
reconhecer nossos privilégios e honrar as/os que dependem de nós neste
momento. Cada profissão tem seu modo de se responsabilizar e tentar
superar este momento, cuidando para que outras tragédias semelhantes
não se repitam.

Por meio dos espaços de fala e de escuta abertos no grupo de


estudos foi possível alcançar as pessoas e acolher suas subjetividades.
Aprendemos juntas/os – de modo alinear e não hierárquico – a ressigni-
ficar conceitos, ações e questões relevantes para nossa formação cidadã;
transcendendo as relações acadêmicas distantes, reinserimos o corpo,
os afetos, as demandas locais e pautamos o debate a partir de nossas
vivências crítico-reflexivas.

Foi a partir desse privilégio de ter acesso e conexão à banda larga,


em uma casa com alimento provido e protegida de uma maior exposi-
ção ao vírus que encontrei um ensinamento do líder do povo originário
e ativista Ailton Krenak. Para ele, “nosso tempo é especialista em criar
ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da ex-
periência da vida” (KRENAK, 2019, p. 13). Foi no dia em que a Terra

53
NOW WHAT?! O DIA EM QUE A ESCOLA PAROU E as reinvenções docentes em tempos de Covid

parou por causa de um vírus microscópico que vi o enorme sofrimento


humano tão de perto. Foi vendo a fome voltar a assolar o meu país e a
desigualdade social se ampliar ainda mais que percebi as ausências das
quais nos fala Krenak. Foi quando a escola parou que eu notei que as/
os professoras/as eram ainda mais necessárias/os, pois a despeito da falta
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

de políticas públicas eficazes, como lembrou Nóvoa (2020), muitas/os


de nós estendemos e precisaremos continuar a estender as mãos para
nossas/os aprendizes para encontrar cada uma/um em sua necessidade:
preparar e disponibilizar atividades para todas/os em diferentes mídias
e com diferentes recursos8, ajudar na distribuição de alimentos9, acolher
e entender o luto e as lutas de cada família10, entre outras tantas novas
demandas que surgiram e ainda surgirão.

Por isso, encerro o capítulo na intenção de ter inspirado leito-


ras/es a esperançar, agir na intenção de que as nossas praxiologias fa-
çam girar a episteme do ser e do saber, que por meio dos movimentos
reflexivos possamos nos conectar um pouco mais, na nossa essência,
com quem somos, com quem gostaríamos de ser, com a sociedade que
pretendemos construir. Enfim, que atuemos para construir um espaço
para a agência e a transformação a partir de nossas próprias praxiologias
juntamente como nossas/os aprendizes.

8 MEDEIROS, Tiago. O esforço dos professores para manter o aprendizado dos


alunos em meio à quarentena. Jornal do Campus, São Paulo, 27 jul. 2020. Dis-
ponível em: http://www.jornaldocampus.usp.br/index.php/2020/07/professo-
res-universidade-aulas-distancia/. Acesso em: 5 set. 2021.
9 ESTADO DE GOIÁS. Secretaria de Estado da Educação. Escolas distribuem
cestas básicas para famílias em vulnerabilidade social. Cidadania, Goiânia, 15
abr. 2020. Disponível em: https://site.educacao.go.gov.br/escolas-distribuem-
-cestas-basicas-para-familias-em-vulnerabilidade-social/. Acesso em: 5 set. 2021.
10 CALEJO, Marco. Luto na pandemia é tema de reunião virtual na Comissão da
Criança. Câmara Municipal de São Paulo, São Paulo, 07 maio 2020. Disponível
em: https://www.saopaulo.sp.leg.br/blog/luto-na-pandemia-e-tema-de-reuniao-
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NOW WHAT?! O DIA EM QUE A ESCOLA PAROU E as reinvenções docentes em tempos de Covid

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56
INUMERÁVEIS E NOMEÁVEIS: Quando vidas viram números em tempos de Covid-19

3.
INUMERÁVEIS E NOMEÁVEIS:
QUANDO VIDAS VIRAM NÚMEROS

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


EM TEMPOS DE COVID-1911

Alex Alves Egido | Universidade Estadual de Londrina (UEL)

Jhuliane Evelyn da Silva | Universidade Federal do Paraná (UFPR)

Valéria Rosa-da-Silva | Universidade Estadual de Goiás (UEG, Inhumas)

Se números frios não tocam a gente,


espero que nomes consigam tocar.

“Inumeráveis”, Bráulio Bessa e Chico César (INUMERÁVEIS, 2020).

O
título deste ensaio remete ao que temos assistido, desola-
dos, desoladas e inertes, em nossos meios de comunica-
ção cotidianamente: a morte de milhares de pessoas em
decorrência da pandemia de covid-19. O fato, contudo,
adquire contornos distintos quando resgatamos alguns discursos que
têm sido produzidos desde o início da pandemia e os efeitos que deles
decorrem.

11 Pensamos ser relevante mencionar que grande parte deste ensaio foi escrita no
final de 2020; por isso, ele retrata, de modo mais específico, acontecimentos que
nos afetaram nesse primeiro ano pandêmico.

57
INUMERÁVEIS E NOMEÁVEIS: Quando vidas viram números em tempos de Covid-19

Diante desta tônica, reiteramos, à la Mikhail Bakhtin (2016), que


afirma que os discursos e enunciados nunca são novos, mas, sim, estão
contaminados pelas palavras do Outro; como um elo, os discursos vão
se entrelaçando na cadeia de sentidos que ora retomam ora anunciam
o já-dito, e este ganha sentidos outros. Esses discursos são construídos
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

e validados por determinadas ordens discursivas e adquirem maior ou


menor valor de acordo com o espaço e o tempo em que circulam, refle-
tindo suas condições sócio-históricas de produção.

Nesse sentido, relembramos alguns enunciados “individuais” que


compõem o mosaico de movimentos que vão resultar na objetificação
de determinados corpos, o que ilustra, em nossa leitura, o que Achille
Mbembe (2018, p. 5) chama de necropolítica, ou seja, uma política em
que “matar ou deixar viver constituem os limites da soberania, seus atri-
butos fundamentais. Ser soberano é exercer controle sobre a mortalida-
de e definir a vida como a implantação e manifestação de poder”. Isto
é, alguns corpos viram subnotificação e são tratados como descartáveis;
outros, já não valem mais que números – dados que se transformam
em estatística de um problema que não se quer tratar em nível governa-
mental. Esses números parecem não mais assustar uma população anes-
tesiada por medo, dor, desespero, fome, desemprego e desamparo. Uma
vida vira um número, mas esse mesmo número não volta mais à vida.

Com essa cena em mente, situamos os primeiros rumores sobre o


vírus que se espalhava em uma cidade da China em dezembro de 2019.
Nenhuma ação preventiva contra o vírus foi motivada no Brasil, afinal
ainda era algo muito distante. No início de 2020, o vírus se espalhou
pelo mundo, atingindo fortemente a Europa. Diante do primeiro caso
no Brasil, o presidente Jair Messias Bolsonaro enunciou que o vírus
seria uma “fantasia” (SILVA; PASTI, 2020).

A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a doença


como uma pandemia em 11 de março de 2020 e advertiu sobre sua alta

58
INUMERÁVEIS E NOMEÁVEIS: Quando vidas viram números em tempos de Covid-19

taxa de contágio. Com o aumento dos casos, o presidente brasileiro ig-


norou toda e qualquer recomendação de saúde e multiplicou episódios
em que incentivava a aglomeração de pessoas sem os devidos cuida-
dos. Nessas ocasiões, tratou a doença como uma “gripezinha” (SILVA;
PASTI, 2020), que não seria capaz de afetar nem a si nem à população

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


brasileira e, ainda que o problema se agravasse, inexistiria “motivo para
pânico” (SILVA; PASTI, 2020).

Governadores e governadoras adotaram medidas de isolamento


social horizontal12 como forma de prevenção, aliadas às recomendações
da OMS, e tiveram de assistir a uma guerra contra o Governo Federal,
que discordou de suas ações e iniciou um contradiscurso de viés eco-
nômico, com o argumento de que “não podemos parar a economia”
(SILVA; PASTI, 2020) e de que as recomendações da referida organiza-
ção internacional, seguidas pelos estados, prejudicariam a economia do
Brasil e tenderiam a irromper uma crise. Em paralelo a esses enuncia-
dos, houve o incentivo ao uso da cloroquina – medicamento utilizado
no tratamento de malária – mesmo sem estudos que comprovassem sua
eficácia em casos de covid-19 até o momento, e a demissão recorrente
de ministros da saúde.

Foi somente quando o número de pessoas mortas aumentou e a


quantidade de leitos disponíveis em hospitais se mostrou escassa para
atender à demanda dos doentes, que as falas do presidente mudaram.
O discurso de “gripezinha” foi substituído pelas declarações de que não
havia mais controle sobre o vírus, como enunciado em “O vírus tá aí.
Vamos ter que enfrentá-lo, mas enfrentar como homem, não como um
moleque. [...] É a vida. Todos nós vamos morrer um dia”, isentando o
presidente de toda e qualquer responsabilidade pelo que ocorria, como

12 De acordo com a Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz, o termo “isolamento so-


cial horizontal” refere-se àquele em que “todos devem permanecer em casa. A
medida restringe ao máximo o contato entre as pessoas, evitando uma grande
propagação da doença” (FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ, 2020).

59
INUMERÁVEIS E NOMEÁVEIS: Quando vidas viram números em tempos de Covid-19

continuou em: “Não vão colocar no meu colo uma conta que não é
minha”. Soma-se a isso o tom jocoso com o qual tratou esses casos, que
só aumentaram nos meses seguintes. Nos pronunciamentos do presi-
dente, podia-se ouvir: “Eu não sou coveiro” ou ainda “E daí? Lamento.
Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre” (SILVA;
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

PASTI, 2020).

Ainda em março de 2020, uma luta travada entre o Executivo


federal e a mídia nacional e internacional fez-se mais nítida e só pio-
rou nos meses seguintes, evento já característico do presente governo
(PRADO, 2020). Em junho, o então secretário de Ciência e Tecnologia
estabeleceu outros critérios para a contagem de mortes, afirmando
que os dados divulgados até então eram “fantasiosos e manipulados”
(CANCIAN, 2020). A contagem diária de óbitos foi interrompida, e
o fato, noticiado internacionalmente (RODRIGUES, 2020). Como
resposta, surgiram enunciados de outras esferas – midiática, artística
e educacional – que vão fazer parte do mosaico mencionado anterior-
mente, sobre o qual pretendemos discutir.

Trouxemos essa breve retomada de enunciados “individuais” me-


nos para culpabilizar um sujeito – o presidente do Brasil – do que para
explorar os seus efeitos materiais, discursivos e sociais. O discurso do
presidente se une ao de outros milhares de brasileiros e brasileiras que o
apoiam; essas falas não estão isoladas, nem são características do Brasil.
Os enunciados de objetificação que circularam amplamente foram re-
petidos, reiterados e validados por certas comunidades de poder naque-
les tempos e espaços, e, de uma forma ou de outra, contribuíram para
as políticas que estão sendo pensadas como respostas às consequências
da pandemia, bem como para as práticas cotidianas dos brasileiros e das
brasileiras com relação às recomendações de saúde.

Imerso e imersas nesse contexto, nós, autor e autoras deste texto,


construímos, junto a um grupo de quatro professores, professoras e es-

60
INUMERÁVEIS E NOMEÁVEIS: Quando vidas viram números em tempos de Covid-19

tudantes, a oficina virtual “Episodes of everyday co(l/r)onialities: towards


radical hope through English language teaching”, que compôs o programa
do XVI Encontro de Formação de Professoras/es de Línguas – Enfople,
organizado pelo Gefople13, da Universidade Estadual de Goiás (UEG),
em parceria com a Associação dos Professores de Língua Inglesa do

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


Estado do Paraná (Apliepar). As inquietações e reflexões iniciais deste
ensaio são frutos dessa oficina, nosso lugar de encontro e de afeto.

Assim, é nesse emaranhado de discursos que situamos nosso tex-


to, no sentido de contribuir para a discussão sobre o lugar central da
linguagem nos espaços cotidianos imbuídos de poder em que nos ve-
mos diariamente. É, portanto, nosso objetivo problematizar os movi-
mentos de objetificação e de humanização que se acentuaram durante a
pandemia de covid-19 no que se refere às vidas perdidas. Para isso, nos
propomos a questioná-los de maneira a reconhecer seus efeitos sobre a
construção de nossas realidades como brasileiros e brasileiras.

As duas seções que seguem esta introdução lidam com o que de-
nominamos movimentos de objetificação e de humanização, e se de-
bruçam sobre as estratégias próprias de cada um e aos enunciados que as
materializam. Ressaltamos que, apesar de considerarmos somente dois
movimentos, compreendemos que eles são somente ilustrativos de vá-
rios outros que coexistem, os quais, em razão da extensão deste ensaio,
não puderam ser igualmente contemplados. Ao final do texto, trazemos
um gesto de esperança radical (LEAR, 2006) ao vozearmos a necessida-
de de uma ética de cuidado com o Outro.

13 Grupo de Pesquisa sobre Formação de Professoras/es de Línguas, cadastrado no


CNPq e coordenado pelas professoras Dra. Carla Conti de Freitas, Dra. Cristia-
ne Rosa Lopes e Ma. Michely Gomes Avelar.

61
INUMERÁVEIS E NOMEÁVEIS: Quando vidas viram números em tempos de Covid-19

MOVIMENTO DE OBJETIFICAÇÃO14

A nosso ver, um movimento de objetificação é sustentado por


duas estratégias principais, a da homogeneização e a do capital. A pri-
meira refere-se ao silenciamento das individualidades das vidas perdidas
em decorrência da pandemia de covid-19. A segunda, à lógica da neces-
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

sidade, quase que a qualquer custo, de garantir um sistema econômico


estável.

Alguns dados que nos parecem exemplificar a estratégia da ho-


mogeneização são: a) o modo quantitativo com que o número de casos
e de óbitos por covid-19 é veiculado nas diferentes esferas (citamos, a
título de ilustração, a leitura, em tempo real, da quantidade de casos
confirmados e de vidas perdidas no site da OMS15); b) a subnotificação
dos números oficiais de pessoas mortas por covid-19 (dentre outros mo-
tivos, pela insuficiência nas testagens que diagnosticam a doença16); c)
os enterros em caixões lacrados ou, até mesmo, em valas comuns, sem
oportunidade de realização de cerimônia de funeral, como ilustrado na
Figura 1.

14 Convidamos o leitor e a leitora a terem, constantemente, uma leitura crítica


sobre as razões que levam alguns canais da grande mídia a, neste momento, se
filiarem mais a um movimento que a outro. Em razão do foco e da extensão deste
ensaio, não ampliaremos esta discussão de modo explícito. 
15 Disponível em: https://covid19.who.int/region/amro/country/br. Acesso em: 6
set. 2021.
16 Para mais detalhes, sugerimos a leitura de Lemos e Barrucho (2020).

62
INUMERÁVEIS E NOMEÁVEIS: Quando vidas viram números em tempos de Covid-19

Figura 1 – Corpos de vítimas de covid-19 são enterrados em valas comuns, em Manaus

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


Fonte: Beatriz (2020).

Concordamos com o enunciado de Eliane Brum (2020), veicu-


lado na esfera midiática, de que “torna-se muito mais difícil fazer luto
quando esse luto não é reconhecido”. E, aqui, retomamos os enuncia-
dos de indiferença à gravidade da pandemia e ao sofrimento das pessoas
enlutadas, proferidos pelo Presidente da República, Jair Bolsonaro, já
apontados na introdução deste texto. Parece-nos ainda menos favorável
perceber que a naturalização da morte por covid-19 se estende a milha-
res de brasileiros e brasileiras que, a despeito de saberem que o distan-
ciamento físico é um dos principais meios de prevenção à doença (en-
quanto não há vacina disponível para todos e todas), em profundo gesto
de desrespeito à dor do Outro, escolhem sair às ruas e se aglomerar em
buzinaços politiqueiros, sem uso de máscaras e distanciamento físico,
contribuindo, assim, para a manutenção de uma necropolítica, que dita
“quem pode viver e quem deve morrer”, como assinala Mbembe (2018,
p. 5).

Recuperamos, com Brum (2020), um outro enunciado, de uma


mulher que perdeu o marido e assiste, com indignação, à indiferença
das pessoas nas ruas:

63
INUMERÁVEIS E NOMEÁVEIS: Quando vidas viram números em tempos de Covid-19

É atroz [...] assistir a esse espetáculo das ruas cheias.


Faz com que pareça que a morte do meu marido
não existiu. Onde está ele então, ele que eu deixei
no hospital e nunca mais vi? O que então é real?
As ruas cheias onde a pandemia é uma ‘gripezinha’
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

ou meus filhos e eu, perdidos numa casa onde ele


não está? Como as pessoas podem estar nas ruas
festejando enquanto uma parte da população está
morrendo?

O enunciado da esposa que perdeu o marido evidencia e sintetiza


a estratégia da homogeneização. A dor do luto da mulher e dos filhos se
contrasta com os festejos de pessoas que parecem negar a gravidade da
pandemia, invisibilizando, assim, o sofrimento das pessoas enlutadas e
a própria morte. Naturalizamos a morte a tal ponto de não nos solida-
rizarmos com a dor do Outro, de tantos Outros? Esse luto não deveria
ser coletivo? Quando se trata das vidas humanas perdidas por covid-19,
aquilo que é igualado demonstra não ser valorizado. Em outras pala-
vras, o enunciado da esposa retrata sua dor pessoal, que deveria, a nosso
ver, ser sentida pelos demais. O que notamos, no entanto, é que sua
dor é fundida à dos outros milhares de indivíduos que perderam seus
entes queridos e, assim, paradoxicalmente, desintensificada. A escolha
pela adoção desta estratégia nos parece ser deliberada, para sustentar um
movimento de objetificação que coexista com a estratégia do capital.

A estratégia do capital é aquela para a qual a economia é algo pelo


que se vale morrer. Esta lógica parece-nos estar tão naturalizada que
enunciados contrários são materializados somente por alguns sujeitos, e
os que se pretendem neutros tendem a contribuir para a manutenção de
um movimento de objetificação, ao se servirem da estratégia do capital.
Apresentamos alguns enunciados, compilados por Fonseca (2020), ma-
terializados pelo Presidente da República nessa direção:

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INUMERÁVEIS E NOMEÁVEIS: Quando vidas viram números em tempos de Covid-19

Você vai acabar com o comércio do Brasil, que em


grande parte é feito na informalidade. Vai ter um
caos muito maior do que pode ocasionar esse vírus
aqui no Brasil.
Essa é a preocupação que eu tenho. Se a economia

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


afundar, afunda o Brasil. E qual o interesse, em
parte, com toda certeza, dessas lideranças políticas?
Se acabar a economia, acaba qualquer governo.
Acaba o meu governo. É uma luta de poder.

Esses dois enunciados convivem com diversos outros que nos


parecem promover o mesmo efeito discursivo. Os dois supracitados,
originários na esfera política, não ficam circunscritos a esta esfera, tendo
em vista que identificamos discursos outros, na esfera midiática, que
nos parecem ser reverberações daqueles. A título de exemplo, apresen-
tamos, na Figura 2, o enunciado de um comerciante que foi infectado
e sobreviveu ao vírus.
Figura 2 – Exemplo de estratégia do capital

Fonte: Souza (2020).

Ao refletirmos sobre como este movimento incide sobre os cor-


pos daqueles falecidos por covid-19, notamos um apagamento de suas
faces, suas histórias de vida e, consequentemente, suas existências.
Concomitantemente, a estratégia do capital sinaliza a importância,

65
INUMERÁVEIS E NOMEÁVEIS: Quando vidas viram números em tempos de Covid-19

muitas vezes sobremaneira, da economia quando em relação ao risco


real das vidas que podem ser perdidas para a doença.

Contudo, os enunciados, bem como os movimentos que eles


constituem, não convivem harmonicamente. Em diálogo recente com
George Yancy para o jornal TruthOut sobre o luto como um ato polí-
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

tico, Judith Butler (2020) pondera que essa estratégia do capital é en-
ganosa, no sentido de que a reabertura do comércio e a retomada das
atividades comerciais não seriam garantia para o bom andamento da
economia. De fato, nos lembra Yancy, retornaríamos à antiga instabili-
dade econômica e às desigualdades já tão conhecidas por nós. De “saúde
da nação” para “saúde da economia”, temos assistido, cotidianamente,
ao deslocamento das prioridades governamentais no que diz respeito à
vida da população, do bem-estar social para a economia. Isso corrobora
e fortalece os interesses neoliberais no setor público e invisibiliza a par-
cela da população que é lida como gasto, não mais produtiva e, por isso,
descartável17. No enunciado da autora, “[p]ara a ‘saúde’ da economia, o
vírus se espalha e prejudica a saúde da população, especialmente daque-
les em condições precárias e com maior risco de morrer” (BUTLER,
2020).

Sinalizamos ainda outro enunciado que se configura como um


contradiscurso, de Ailton Krenak. O autor afirma que:

17 Essa fala ressoa mais alto para nós quando, ainda em pandemia, há espaço para
discussão sobre uma possível privatização do Sistema Único de Saúde (SUS).
Ver, por exemplo, a matéria “Bolsonaro vai privatizar o SUS?”, assinada por
Brasil Econômico. (BRASIL ECONÔMICO. Bolsonaro vai privatizar o SUS?
Entenda o decreto que permite parcerias. IG Economia, São Paulo, 28 out. 2020.
Disponível em: https://economia.ig.com.br/2020-10-28/bolsonaro-vai-priva-
tizar-o-sus-entenda-o-decreto-que-permite-parcerias.html. Acesso em: 6 set.
2021.).

66
INUMERÁVEIS E NOMEÁVEIS: Quando vidas viram números em tempos de Covid-19

[...] a economia é uma atividade que os humanos


inventaram e que depende de nós. Se os huma-
nos estão em risco, qualquer atividade econômica
deixa de ter importância. Dizer que a economia é
mais importante é como dizer que o navio importa

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


mais que a tripulação. Coisa de quem acha que a
vida é baseada em meritocracia e luta por poder
(KRENAK, 2020, p. 86).

A analogia de Krenak (2020) nos mostra, justamente, a inver-


são da importância dada a certos elementos constitutivos da reali-
dade; inversão esta que buscamos sinalizar como discursivamente
construída por diversos enunciados, originários de diferentes esfe-
ras. Ainda nessa esteira, Foucault (1972, 2014) nos alerta que um
discurso nunca existe solitariamente, mas, sim, convive, ou melhor,
luta, com outros. É sobre esse embate discursivo que discutiremos
em seguida.

MOVIMENTO DE HUMANIZAÇÃO

É em relação a esta realidade discursivamente construída que no-


tamos não a emergência, mas a intensificação de um movimento que
compreendemos como sendo da humanização. Embora os enunciados
de que dispomos nesta seção possam ser interpretados como respostas
aos apresentados nas seções acima, eles também possuem efeitos dis-
cursivos que lhes são próprios. Em síntese, a valorização da vida não
precisa, necessariamente, ser somente uma resposta às ameaças a ela.

Por meio de nossa leitura, observamos que este movimento é


sustentado pela estratégia da singularização, para a qual expomos três
enunciados como ilustração. Em um deles, presente na esfera midiáti-
ca, notamos a singularização das vidas falecidas por covid-19 por meio

67
INUMERÁVEIS E NOMEÁVEIS: Quando vidas viram números em tempos de Covid-19

da representação imagética de seus rostos; estratégia esta que tem sido


empregada por alguns canais de comunicação, como, por exemplo, um
telejornal de cobertura nacional (ver Figura 3). Embora a estratégia da
singularização já tenha sido empregada na grande mídia antes do perío-
do pandêmico, agora notamos a existência de uma continuidade desse
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

método para ratificar o movimento em foco. Além da representação


imagética, retomamos um trecho da fala do apresentador do telejornal,
William Bonner, ao explicar o porquê da mudança do cenário.

[...] talvez a melhor forma de fazer isso [informar


os brasileiros sobre o que está acontecendo] seja
lembrar o tempo todo que nós estamos falando de
vidas, de cidadãos, de pessoas. Por isso, a partir de
hoje, aquela imagem do inimigo número um vai
sair do nosso painel. Em todos os momentos em
que o Jornal Nacional estiver tratando da pande-
mia vão estar lá atrás os rostos de brasileiros que
ele nos tirou. Esses sorrisos e olhares dos brasileiros
que nós perdemos podem nos ajudar a fortalecer a
mensagem que importa de verdade: a necessidade
de proteger vidas (Jornal Nacional, exibido dia 14
de maio de 2020)18.

Nesse enunciado da esfera midiática, os elementos verbais e ima-


géticos que compõem o conteúdo multissemiótico se entrelaçam e, ao
utilizar-se a estratégia da singularização, ressignificam a urgência de se
olhar para os óbitos em sua unicidade, de modo que se promova um
chamado a um luto coletivo, a um olhar diferente do que tem sido
propagado pelos enunciados hegemônicos, proferidos pelo presidente,

18 JORNAL Nacional. Distribuição: Rede Globo. Globoplay: Rio de Janeiro, 14


maio 2020. 1 vídeo. (1h 7 min 12 seg). Disponível em: https://globoplay.globo.
com/v/8554917/programa/. Acesso em: 10 set. 2021.

68
INUMERÁVEIS E NOMEÁVEIS: Quando vidas viram números em tempos de Covid-19

por exemplo. É fato que esse enunciado da esfera midiática reverbera os


já-ditos e antecipa tantos outros que o sucederam, em diferentes mídias,
como resposta às ações levadas a cabo pela gestão. Mais: esse enunciado
parece vir à tona justamente quando da exacerbação de um movimento
de objetificação, o que reitera a copresença (não-harmônica e produti-

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


va) dos diferentes enunciados e de seus efeitos distintos para diferentes
parcelas da população.
Figura 3 – Pano de fundo de telejornal com rostos das vidas acometidas

Fonte: Globoplay (COVID, 2020).

Outro enunciado, circunscrito à esfera artística, que exem-


plifica esta estratégia é o poema “Inumeráveis”, de Bráulio Bessa
(INUMERÁVEIS, 2020), musicado por Chico César, da qual o tre-
cho abaixo faz parte:

André Cavalcante era professor


amigo de todos e pai de Pedrinho
O Bruno Campelo seguiu se caminho
Tornou-se enfermeiro por puro amor
Já Carlos Antônio, era cobrador

69
INUMERÁVEIS E NOMEÁVEIS: Quando vidas viram números em tempos de Covid-19

Estava ansioso pra se aposentar


A Diva Thereza amava tocar
Seu belo piano de forma eloquente
Se números frios não tocam a gente
Espero que nomes consigam tocar [...]
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

“Inumeráveis”, Bráulio Bessa e Chico César (INUMERÁVEIS, 2020).

Nesse enunciado, a estratégia da singularização é empregada ao se


nomear as vidas perdidas para a pandemia. Sensível ao fato de que cada
nome representa uma história de vida, o compositor do poema também
evidencia as profissões e os sonhos de “gente como a gente”, que, infe-
lizmente, tornou-se estatística.

Outro enunciado que consideramos nesse movimento de huma-


nização é oriundo da esfera educacional. Conforme indicamos na intro-
dução deste ensaio, nossas reflexões iniciais são graças à nossa participa-
ção na elaboração e no desenvolvimento da oficina “Episodes of everyday
co(l/r)onialities: towards radical hope through English language teaching”,
atividade do XVI Encontro de Formação de Professoras/es de Línguas –
Enfople, que aconteceu em formato remoto, no dia 12 de setembro de
2020. Assim, tomamos a oficina19 também como um enunciado.

Esse enunciado, especificamente, foi planejado por semanas antes


de ser materializado na esfera educacional. Nosso objetivo, naquela oca-
sião, era sensibilizar os professores e as professoras que participavam da
oficina para o momento pandêmico que ainda estamos vivendo, bem
como encaminhar uma proposta de esperança radical, fundamentada

19 Organizamos a oficina em quatro movimentos diferentes. Aqui, discutiremos


apenas um desses movimentos, por estar mais relacionado aos objetivos des-
te ensaio, já que não é nosso intuito esgotar as praxiologias desenvolvidas na
atividade.

70
INUMERÁVEIS E NOMEÁVEIS: Quando vidas viram números em tempos de Covid-19

em Jonathan Lear (2006). Um dos materiais que utilizamos foi, jus-


tamente, a versão musicalizada do poema “Inumeráveis”, que suscitou
diversos sentimentos de empatia e sensibilização nos professores e nas
professoras participantes e em nós.

Com a criação dessa oficina, abraçamos o convite feito por Krenak

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


para refletirmos sobre o que é ser humano e se a dor do luto é capaz de
nos auxiliar nesse processo de revisão, questionamento e vulnerabiliza-
ção do eu (KRENAK, 2020). A partir da oficina, por termos trazido
esses episódios à tona, já nos posicionamos em meio a uma relação que
não pode se fazer indiferente à dor do Outro. Dito de outro modo,
reconhecemos a perda de milhares de pessoas ao redor do mundo, que
existiram em seu próprio direito, que possuíam nome e sobrenome,
rostos e contornos, corpos, credos e profissões e que faziam parte de
famílias e de comunidades específicas.

Entendemos que este enunciado (i.e. a oficina) foi constituído de


vários outros enunciados, como, por exemplo, a música “Inumeráveis”,
o número atualizado de vidas perdidas por covid-19 e manchetes de no-
tícias sobre a pandemia, nacionais e internacionais, discutidas na oca-
sião. Refletimos que talvez o contato esporádico com esses enunciados
não tivesse o efeito discursivo que tiveram quando nós os aproximamos
durante a oficina, momento no qual percebemos a sensibilização dos e
das participantes para a temática das vidas perdidas.

POR UMA ÉTICA DE CUIDADO COM O OUTRO

Diante do que discutimos nas seções anteriores, compreendemos


que um movimento de objetificação percebe o Outro com um valor uti-
litarista, como um meio para, o que remonta ao capital. Em contrapo-
sição, um movimento de humanização percebe o Outro como um fim
em si mesmo, ou seja, somos construídos por meio do Outro e, em certo

71
INUMERÁVEIS E NOMEÁVEIS: Quando vidas viram números em tempos de Covid-19

sentido, somos sempre o Outro de alguém. Nessa direção, convidando-


-nos a ter um olhar mais sensível ao Outro, está a seguinte afirmação de
Bakhtin (1984, p. 287):

Ser significa ser para o outro, e, através do outro,


LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

para si mesmo. Uma pessoa não possui território in-


terno soberano, ela está inteiramente e sempre na
fronteira; olhando para dentro de si mesma, olha
‘dentro dos olhos do outro com os olhos do outro’.

Na sua filosofia do ato responsável, o autor russo nos convoca a


existirmos de um outro modo, responsável e responsivo (ou responsável
porque responsivo?), lembrando-nos de nossa singularidade no mundo
e do chamado para respondermos ao apelo do Outro a partir do lugar
único que ocupamos (BAKHTIN, 2017). Essa unicidade, em vez de
nos fazer cultivar nosso modo egológico (centrado no eu) de ser no
mundo (LÉVINAS, 1980), nos convida a uma abertura tal que nos
ajude a nos perceber como outro do Outro, isto é, em relação de alteri-
dade conosco mesmos e com o Outro e, por essa razão, em uma relação
constitutiva e constituinte de ligação com o universo (que entendemos
incluir os seres humanos e não humanos). É na relação que existimos;
não há como negar nossa existência compartilhada neste mundo: eu só
existo porque você existe; somos vulneráveis uns aos outros. Nos termos
de Butler (2020):

Os seres humanos compartilham o ar entre si e


com os animais; eles compartilham as superfícies
do mundo. Eles tocam o que os outros tocaram e
se tocam. Esses modos de compartilhamento recí-
procos e materiais descrevem uma dimensão cru-
cial de nossa vulnerabilidade, entrelaçamento e in-

72
INUMERÁVEIS E NOMEÁVEIS: Quando vidas viram números em tempos de Covid-19

terdependência de nossa vida social corporificada.

Escolhemos trazer à tona essa noção de interdependência entre


humanos e não humanos e essa condição compartilhada da vida em
sociedade porque, por mais óbvio que isso possa parecer para algumas

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


pessoas, o movimento de objetificação nos leva a questionar nosso sen-
so de coletividade e de humanidade. Nesse sentido, ecoando Foucault,
Krenak (2020) nos lembra de que vivemos em uma sociedade capita-
lista, em que só tem valor quem é capaz de produzir. Nas palavras do
líder indígena e escritor brasileiro (2020, p. 85), “quando o indivíduo
para de produzir, passa a ser uma despesa. Ou você produz as condições
para se manter vivo ou produz as condições para morrer”. A pandemia
de covid-19 evidenciou que essas condições de viver ou morrer, por um
lado, podem até estar relacionadas à vulnerabilidade de nossos corpos,
já acometidos por outras comorbidades, o que nos coloca no temido
grupo de risco. Por outro lado, a pandemia escancarou uma crise já
existente em nosso país: a da desigualdade socioeconômica, o que nos
leva a argumentar que viver ou morrer está intrinsecamente relaciona-
do à classe social e, no caso do Brasil, também à cor da pele20. Nesse
sentido, parece-nos que as pessoas que podem morrer (e que, de fato,
morreram) em decorrência de covid-19 são as mesmas que já há algum
tempo, antes da pandemia, não mereciam viver, uma consequência da

20 Segundo pesquisa recente intitulada “Evolução da prevalência de infecção por


covid-19 no Brasil: estudo de base populacional”, a maior já realizada sobre a
circulação do Sars-Cov-2 no país, financiada pelo próprio Ministério da Saúde,
no que se refere ao nível socioeconômico, “nas três fases da pesquisa, houve uma
tendência linear de maior proporção da população com anticorpos conforme di-
minui o nível socioeconômico. Além disso, a diferença entre os 20% mais pobres
e os 20% mais ricos aumentou de 1,1 ponto percentual na primeira fase, para
2,0 pontos percentuais na segunda fase e 2,3 pontos percentuais na terceira fase”.
Em relação à cor da pele, o estudo mostrou que “a população que se autodecla-
rou branca foi a que apresentou menor proporção de exposição ao vírus”. Mais
detalhes sobre o estudo estão disponíveis em: https://www.bio.fiocruz.br/index.
php/br/noticias/1865-maior-estudo-sobre-covid-19-analisou-proporcao-de-an-
ticorpos-da-populacao-brasileira. Acesso em: 6 set. 2021.

73
INUMERÁVEIS E NOMEÁVEIS: Quando vidas viram números em tempos de Covid-19

necropolítica (MBEMBE, 2018) que assola nosso país. Quem, portan-


to, merece viver? Whose lives matter?21.

Essa indagação política sobre quais vidas importam não nos pas-
sou despercebida. Somos professor e professoras, e argumentamos, com
o mestre Paulo Freire (2013), que somos gente lidando com gente e que
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

é preciso reconhecer que estamos implicados no Outro, somos vulnerá-


veis às ações do Outro. Foi nessa atmosfera de nos deixar afetar pela dor
do Outro que, coletivamente, construímos a oficina que mencionamos
e elaboramos este ensaio. Não poderíamos nos esquivar do papel polí-
tico de, por meio da educação, reconhecer as violências, aparentes ou
não, nas realidades que estamos vivendo – que algumas pessoas insistem
em chamar de “novo normal” –, com o intuito de interrogá-las, bus-
cando, então, interrompê-las e imaginar realidades outras (MENEZES
DE SOUZA, 2019a). Diferentemente da ideia de novo normal, em um
gesto de esperança radical, compreendida não como algo que temos,
mas como algo que fazemos (LEAR, 2006), acreditamos que precisa-
mos construir (estamos construindo?) um mundo outro, alicerçado na
ética do cuidado com o Outro e na coletividade.

O ato responsável, assim, envolve sentimento, pensamento e prá-


ticas que não se pretendem universalizantes, mas situadas, emergenciais
e contingentes. Envolve, ainda, uma postura que não seja paternalis-
ta, apolítica ou egoísta (ANDREOTTI et al., 2018), bem como uma
escuta ativa e um exercício constante de tradução (MENEZES DE
SOUZA, 2019a, 2019b, 2020), que olhe para a necessidade do Outro,
para a dignidade de sua existência e de suas verdades, não o reduzindo
à nossa semelhança e ao nosso mundo, e que aceite a responsabilidade
que somente nós, localizados em um aqui e um agora, encontramos

21 “Whose lives matter?” foi o tema geral do IV English Immersion Program for Tea-
chers da UEG, Inhumas, que integrou o XVI Enfople. Nesse programa de imer-
são, foram desenvolvidas três oficinas, sendo uma delas tomada como enunciado
neste texto.

74
INUMERÁVEIS E NOMEÁVEIS: Quando vidas viram números em tempos de Covid-19

diante dele (BAKHTIN, 2017). Em outras palavras, o ato responsável


exige de nós que ajamos criticamente em nossos espaços, sempre re-
flexivamente, sem esquecer que nossas verdades são também verdades
situadas, algumas vezes mais validadas e outras não. Esse nosso agir com
e para o outro não pode ser para “nos sentirmos bem”, para “ajudarmos”

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


quem precisa, mas deve existir porque é nosso dever último, é nosso
viver ético.

Nessas linhas, concordamos com Krenak (2020, p. 104) quan-


do afirma que “quando eu percebo que sozinho não faço a diferença,
me abro para outras perspectivas. É dessa afetação pelos outros que
pode sair uma outra compreensão sobre a vida na Terra”. Por isso, nosso
desejo é que “não voltemos à normalidade, pois, se voltarmos, é por-
que não valeu nada a morte de milhares de pessoas no mundo inteiro”
(KRENAK, 2020, p. 91).

Chegamos ao término da escrita deste capítulo com mais de


494.00022 vidas perdidas, só no Brasil, para a pandemia de covid-19.
Para algumas pessoas, números frios, mas, para nós, nomes que nos
afetam: André Cavalcante, Bruno Campelo, Carlos Antônio, Diva
Thereza, Elaine Cristina, Felipe Pedrosa, Gastão Dias Junior, Horácia
Coutinho, Iramar Carneiro, Joana Maria, Katia Cilene, Lenita Maria,
Margarida Veras, Norberto Eugênio, Olinda Menezes, Pasqual Stefano,
Quitéria Melo, Raimundo dos Santos, Salvador José, Terezinha Maia,
Vanessa dos Santos, Wilma Bassetti, Yvonne Martins, Zulmira de
Sousa23 e tantos outros nomes que não nos seria possível mencionar

22 Número aproximado de mortes em 17 de junho de 2021. Ressaltamos que, de


dezembro de 2020 – quando a primeira versão deste ensaio foi concluída – até a
presente data, o número de óbitos por covid-19 mais que dobrou. Destacamos,
ainda, que graças à ciência em favor da vida e ao SUS, público e gratuito, hoje
temos vacinas, apesar da negligência do atual presidente.
23 Nomes citados na música “Inumeráveis”, composta por Chico César, a partir do
poema de Bráulio Bessa (2020). Esses nomes foram compilados de um memorial
criado para homenagear as pessoas mortas por covid-19.

75
INUMERÁVEIS E NOMEÁVEIS: Quando vidas viram números em tempos de Covid-19

aqui; portanto, infelizmente, deixaremos ao leitor e à leitora a dolorosa


tarefa de seguir completando.
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

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LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

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SOUZA, Felipe. ‘Quase morri de covid-19, mas comércio precisa reabrir para povo
não morrer de fome’, diz comerciante de SP. BBC News Brasil, São Paulo, 10 jun.
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78
“BE A LADY!, THEY SAID.”:

4.
“BE A LADY!, THEY SAID.”:
UMA ABORDAGEM ACERCA DAS

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


RELAÇÕES DE GÊNERO NA SALA
DE AULA DE INGLÊS DA ESCOLA
PÚBLICA

Matheus Augusto Utim | Universidade Estadual de Goiás (UEG, POSLLI)

Cristiane Rosa Lopes | Universidade Estadual de Goiás (UEG, POSLLI)

L
eituras e perspectivas que temos priorizado (MATTOS, 2018;
PESSOA, 2013, 2019) em nossas trajetórias como professor e
professora de Língua Inglesa têm nos impulsionado a direcionar
nossas praxiologias24, acreditando na potencialidade de um pro-
cesso de educação linguística em que, segundo essas autoras, não há
neutralidade, tendo em vista que, conscientemente ou não, materializa-
mos questões críticas mesmo sob a égide de uma abordagem que tome a
língua como um bloco homogêneo e abstrato de regras. Nesse sentido,
se estamos fazendo algo quando falamos, segundo Austin (1990), e se a
educação linguística não é neutra, ao ensinarmos e aprendermos línguas

24 Pessoa e Hoelzle (2017) utilizam essa terminologia, tendo em vista que não con-
cebem teoria e prática apartadas, já que, na perspectiva das autoras, “não há uma
prática que não esteja fundamentada em uma teoria e nem uma teoria que não
seja motivada por uma prática” (PESSOA; HOELZLE, 2017, p. 787).

79
uma abordagem acerca das relações de gênero na sala de aula de inglês da escola pública

estamos ensinando e aprendendo aspectos sociais, políticos, identitários


e ideológicos (MASTRELLA-DE-ANDRADE, 2018).

Mesmo situadas/os em uma conjuntura social/política e rodea-


das/os de pessoas que acreditam em “ideologia de gênero” (MISKOLCI;
CAMPANA, 2017), “kit gay”, e que associam a abordagem de questões
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

críticas com “doutrinação”, partimos do pressuposto de que a sala de


aula não está blindada do que acontece fora dos muros da escola e isso
significa entender que não há como estarmos apartadas/os ou alheias/os
às questões exteriores ao sistema linguístico em nossas práticas. A sala
de aula é palco da imprevisibilidade, assim, outros discursos, para além
do processo de educação linguística, acabam emergindo (PESSOA,
2013, 2019).

Em meio à irrupção desses processos, uma abordagem crítica


(PESSOA; SILVESTRE; MONTE MÓR, 2018) tem se apresentado
como uma possibilidade viável e que tem fortalecido nossas práticas na
busca por uma educação linguística sob uma ótica mais humanitária
e que visa a fortalecer não a língua, mas as pessoas que a utilizam nos
mais diversos âmbitos e espaços pelos quais transitam na vida contem-
porânea (PESSOA; HOELZLE, 2017). Assim, neste texto, narramos
uma abordagem acerca das relações de gênero a partir de duas aulas de
Língua Inglesa em uma turma de educação básica de uma escola públi-
ca do interior do estado de Goiás25, onde um dos autores deste texto
atua como professor, uma vez que, na oportunidade, discutíamos sobre
os princípios que subsidiaram e o porquê celebramos o dia 8 de março,
o International Women’s Day.

As reflexões que tecemos a seguir se referem às nossas práticas,


logo, não sabemos se funcionariam em outras localidades, a depen-
der do contexto de atuação das/os professoras/es, das/os alunas/os, das

25 Optamos por não explicitar o nome da instituição em que o estudo foi realizado,
por questões éticas.

80
uma abordagem acerca das relações de gênero na sala de aula de inglês da escola pública

demandas, repertórios linguísticos/comunicativos das/os agentes en-


volvidas/os no processo de educação linguística etc. Acreditamos ser
importante ressaltar tal aspecto, posto que buscamos nos esquivar de
universalismos, crendo que as práticas são locais e situadas, não sendo
aplicadas ao cosmos (MENEZES DE SOUZA, 2011).

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


Sendo assim, na primeira seção, tecemos um diálogo com teo-
rizações sobre performatividade linguística e gênero (AUSTIN, 1990;
BUTLER, 2017), como também sobre o que se tem chamado de
perspectivas críticas de educação linguística (PESSOA; SILVESTRE;
MONTE MÓR, 2018). Após, explicitamos os procedimentos metodo-
lógicos adotados, para, por fim, discutirmos as praxiologias que emergi-
ram, concretizadas no material empírico gerado nas aulas.

PERFORMATIVIDADE LINGUÍSTICA E GÊNERO

Na seara dos estudos linguísticos, quem chama a atenção para


os efeitos discursivos concretos e engendrados via um dizer que faz
é Austin (1990), com a célebre publicação de How to do things with
words. Nessa obra, o autor argumenta em direção ao fato de que utili-
zamos a linguagem “não para descrever ou relatar algo, mas para fazer
algo” (AUSTIN, 1990, p. 12, grifo do autor).

Diante disso, estamos criando a realidade por meio do que Austin


chama de atos linguísticos performativos. Nesse sentido, “Fale como
homem, rapaz!” (PINTO, 2007, p. 2) é um dos vários exemplos que
poderiam ser aqui lançados para ilustrar o poder da língua(gem), já que,
de tão repetido, tal sintagma traz à realidade o fato linguisticamente
enunciado, homens falando conforme padrões de masculinidade hege-
mônica sedimentados na sociedade (BUTLER, 2017).

Contudo, não estamos o tempo todo repetindo, mecanicamente,


enunciados linguísticos que podem apenas reforçar normas e regras so-

81
uma abordagem acerca das relações de gênero na sala de aula de inglês da escola pública

ciais estabelecidas por grupos hegemônicos. São repetições que têm, se-
gundo Derrida (1991), um caráter subversivo. O que o autor chama de
iterabilidade representa justamente “um sopro de esperança, afirmando
as possibilidades de ruptura e mudança que as nossas performances lin-
guísticas” (URZÊDA-FREITAS, 2018, p. 39) podem trazer à tona em
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

nossas vidas no dia a dia.

Enunciados linguísticos que antes circulavam conjurando e im-


pingindo dor a determinados corpos e sujeitos estão agora sendo ressig-
nificados, isto é, tais repertórios linguísticos estão sendo tensionados.
Como pode ser analisado na pesquisa realizada por Utim (2021), o
professor colaborador do estudo afirma que expressões como “gay” e
“viado”, que antes lhe causavam constrangimentos (dentro e fora da
sala de aula), hoje o empoderam, o libertam: “Não é uma coisa ofensiva
mais” (UTIM, 2021, p. 92).

Seguindo, por seu turno, quem rearticula ambos os autores,


Austin (1990) e Derrida (1991), é a filósofa norte-americana Judith
Butler (2016, p. 154, grifos da autora), para quem “a performatividade
deve ser compreendida não como um ‘ato’ singular deliberado, mas, em
vez disso, como a prática reiterativa e citacional pela qual o discurso pro-
duz os efeitos que ele nomeia”. Intencionalmente, destacamos os itens
lexicais na citação com o intuito de marcar explicitamente os rastros
das teorizações seguidos por Butler na elaboração da sua seminal teoria
da performatividade de gênero. Na esteira das proposições da autora, a
identidade de gênero é tomada como “um conjunto de atos [linguísti-
cos e corporais] repetidos no interior de uma estrutura reguladora al-
tamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência
de uma substância” (BUTLER, 2017, p. 69), que nos são impostos por
meio do que chama de inteligibilidade cultural de gênero.

Assim, refeitas tais trajetórias e rearticulações, tendo como ân-


cora essas/es autoras/es, compreendemos que as normas culturais e as

82
uma abordagem acerca das relações de gênero na sala de aula de inglês da escola pública

próprias identidades são fruto de convenções sociais, pactos históricos


que, constantemente reiterados em nossas performances corpóreo-dis-
cursivas diárias, acabam produzindo o fato, homens que falam “igual
homem” e que não podem chorar; mulheres que “naturalmente” são
“belas, recatadas e do lar” (SANTOS; FIGUEIRA-BORGES, 2019).

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


É certo que tais padrões e normas podem causar sofrimento àque-
las/es que não se conformam a eles. Podemos afirmar com segurança
que tais papéis não são dados ou fixos, por isso acreditamos, como pro-
fessor e professora de línguas, ser imperativo trazer à baila tais refle-
xões, pois, primeiramente, entendemos que “os contextos educacionais
são microcosmos de ordem social mais ampla e as relações de poder
do mundo externo são reproduzidas dentro da sala de aula” (PESSOA,
2013, p. 300). Também sabemos que as práticas discursivas que são te-
cidas na sala de aula podem reforçar, bem como podem ser o vetor para
hackear o sistema e as normas que oprimem quem se atreve a desviá-las,
já que “todo sistema de educação é uma maneira política de manter e/
ou modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e poderes que
eles trazem consigo” (FOUCAULT, 2014, p. 41).

Não por acaso, aqui apresentamos uma tentativa de modificar


a apropriação de discursos que acabam segregando corpos e subjetivi-
dades com os saberes e poderes por eles engendrados através da ordem
discursiva (FOUCAULT, 2014), que está sendo reforçada no que tan-
gencia as questões de gênero em nossa sociedade. Uma das rotas perse-
guidas para tentar cumprir esse desafio é a educação linguística em sua
perspectiva crítica, assunto da próxima seção.

SOBRE A PERSPECTIVA CRÍTICA DE EDUCAÇÃO LINGUÍSTICA

Pensar a educação linguística em uma perspectiva crítica acar-


reta tomar o trabalho com a língua(gem) para além da mera descrição

83
uma abordagem acerca das relações de gênero na sala de aula de inglês da escola pública

do que vemos. É prática social. Conforme explicado anteriormente, se


fazemos algo quando dizemos (AUSTIN, 1990), acreditamos que as
nossas práticas linguístico-discursivas – na sala de aula ou não – podem
reforçar, interditar e/ou provocar mudanças sociais (FAIRCLOUGH,
2016). Ora, se “[a] linguagem é uma forma de ação: ao dizermos, faze-
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

mos o mundo e a realidade à nossa volta” (URZÊDA-FREITAS, 2018,


p. 39); logo, não podemos tomá-la como uma simples descrição da rea-
lidade, dado que “fazer uso de linguagem está intimamente relacionado
com agir no mundo” (MASTRELLA-DE-ANDRADE, 2018, p. 151).

Nesse sentido, o discurso da neutralidade se esvai, cai por terra.


Como fizemos questão de remarcar no início deste capítulo, hoje en-
tendemos que, mesmo se conscientemente vislumbrássemos uma abor-
dagem com o ensino-aprendizagem de língua(s) sob a égide do discurso
da neutralidade, estaríamos, também, concretizando aspectos culturais
e políticos, pois, segundo Mattos (2018), estaríamos materializando
uma noção de língua, de identidade, de povo e de nação, mesmo sendo
por meio de uma abordagem que se diz “isenta” de posicionamentos.

Se o mundo está sob processo de mudança paradigmática


(FREIRE; LEFFA, 2013), urge repensarmos modelos tradicionalistas,
homogêneos e lineares de ensino-aprendizagem de línguas, tendo em
vista que as salas de aulas se constituem pela multiplicidade de trânsitos
identitários e culturais das/os agentes que ali se movimentam, cujos
repertórios linguístico-comunicativos são, por consequência, hetero-
gêneos e emergem durante os processos de interação nesse contexto
(URZÊDA-FREITAS, 2018); e é o contexto que vai dizer sobre a abor-
dagem de educação linguística, tomando, assim, o local e o situado na
construção do conhecimento (MENEZES DE SOUZA, 2011).

Logo, pacotes engessados e discursos de salvação que oferecem


receitas prontas para solucionar problemas sociais são falaciosos frente
à imprevisibilidade concernente aos processos relacionados à vida na

84
uma abordagem acerca das relações de gênero na sala de aula de inglês da escola pública

contemporaneidade. Pensar em educação linguística sob uma perspec-


tiva crítica em relação a tais apontamentos requer tomarmos as línguas
para além de pacotes de regras fixos, fechados, abstratos e universais,
aplicáveis a quaisquer contextos. É pensar em ação e práticas locais e
situadas de língua(gem), é

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


1) colocar em crise os discursos cristalizados; 2)
questionar as ligações entre representação e ver-
dade; 3) problematizar as relações entre produ-
ções de sentido e constituição da subjetividade
dos interlocutores; 4) compreender a construção
das relações de poder legitimadas; e 5) descrever
as relações intricadas entre língua, poder, subje-
tividade, comunicação, justiça social, violências
e mobilidades (SILVA, 2018, p. 214).

Ao refletir sobre os processos que atravessam o ensino-apren-


dizagem de línguas sob tais moldes, através de tais posicionamentos,
impossível não tomar a sala de aula como uma arena, “um lugar de
lutas sociais, que se manifestam discursivamente, [pois] é por meio
dos discursos que construímos nossas identidades sociais” (PESSOA,
2019, p. 39). Ora, a nosso ver, um simples diálogo, se não for devida-
mente problematizado, reitera normas sociais hegemônicas (PESSOA;
HOELZLE, 2017), como pode ser analisado no exemplo da Figura 1,
extraído do livro didático de língua inglesa My Way, adotado na escola:

85
uma abordagem acerca das relações de gênero na sala de aula de inglês da escola pública

Figura 1 – She lives in my neighborhood


LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

Fonte: Amos, Prescher e Pasqualin (2005, p. 66).

O que aparentemente foi planejado para ilustrar e contextualizar


o estudo do simple present tense em uma das unidades do livro didático
de Amos, Prescher e Pasqualin (2005) nos dá uma “brecha” (DUBOC,
2014) para irmos além no trabalho com a norma linguística e ques-
tionar papéis que normalmente são atribuídos segundo as relações de
gênero cristalizadas na cultura (PESSOA; HOELZLE, 2017).

Afinal, por que Don fica surpreso ao saber que Daryl joga no
time de futebol da escola e trabalha em uma oficina no contraturno?

86
uma abordagem acerca das relações de gênero na sala de aula de inglês da escola pública

Por que ser “linda” e consertar motocicletas “é demais” para uma ga-
rota? São perguntas que desestabilizam o clima da sala de aula, bem
como as normas que embasam os papéis de gênero cristalizados em nos-
sa sociedade, são questionamentos que nos permitem colocar em xeque
o clássico “bela, recatada e do lar” (SANTOS; FIGUEIRA-BORGES,

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


2019) que estrutura o processo de generificação dos corpos femininos.

Se a sala de aula é espaço de construção identitária e se tais pro-


cessos vêm à tona discursivamente, urge, na esteira dos preceitos da
perspectiva crítica elencados, questionar determinadas construções dis-
cursivas que são constantemente reiteradas, como é o caso aqui pro-
blematizado acerca das relações de gênero. Segundo Connell e Pearse
(2015, p. 121), é sobre essas questões que “uma teoria de gênero preci-
sar tratar: instituição da família, divisões do trabalho segundo o gênero,
ideologias sobre o ser mulher, estratégias de mudança nas relações de
gênero”.

Logo, é nessa linha de pensamento que temos buscado alinhavar


e dar direcionamento às nossas aulas, pois temos tomado o trabalho
com a língua(gem) aliado às proposições, como as de Pessoa e Hoelzle
(2017) e Connell e Pearse (2015), para pensar estratégias que suscitem
a desestabilização de discursos que sustentam relações assimétricas de
gênero, uma vez que,

[a] ideia das línguas enquanto código e estrutura


fechados em si mesmos é apenas aparente, sendo
bastante diferente na vida social. Na prática dos
usos, as línguas vazam, isto é, elas mostram as in-
fluências de outras línguas em sua constituição, elas
são usadas por diferentes identidades em diferentes
contextos, elas podem ser espaços de contestação
e ressignificação (MASTRELA-DE-ANDRADE,
2018, p. 153, grifo dos autores).

87
uma abordagem acerca das relações de gênero na sala de aula de inglês da escola pública

Portanto, com este texto, expomos, descrevemos e relatamos uma


experiência, uma tentativa de fazer uma abordagem de ensino-aprendi-
zagem de língua inglesa que suscite reflexões que desestabilizem certas
verdades sobre ser, estar e se mover nesse mundo pensando em questões
de gênero. Dito isto, antes de partir para as análises, explicamos o con-
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

texto e os procedimentos metodológicos utilizados para a geração do


material empírico.

SOBRE O CONTEXTO E OS PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

No dia 28 de fevereiro de 2020, a revista Girls Girls Girls lançou


um vídeo26, interpretado pela atriz Cynthia Nixon, intitulado: “Be a
lady!, they said.”, uma narrativa visual composta e encenada por figuras
famosas do universo feminino advindas de diferentes segmentos e âm-
bitos sociais, a saber: da literatura, da moda, da política, da indústria
musical e cinematográfica etc.(Figura 2).
Figura 2 – Cenas do vídeo: Be a lady!, they said.

Fonte: Girls Girls Girs Magazine (S. d.).

26 Disponível em: https://girlsgirlsgirlsmag.com/. Acesso em: 6 set. 2021.

88
uma abordagem acerca das relações de gênero na sala de aula de inglês da escola pública

Através de uma sacada genial, no vídeo, Nixon performa/repete


determinadas construções discursivas que são direcionadas e incidem
sobre os corpos das mulheres na tentativa de regulá-los, segundo nor-
mas sociais sedimentadas que ditam o que significa “ser uma dama”.
Nota-se que o processo de regulação se dá justamente por meio de crí-

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


ticas às vestimentas, tipos de alimentação, shape, aparência física e esté-
tica, peso, idade, o que “os homens gostam” etc.

Com o intuito de fazer uma abordagem que engajasse as/os es-


tudantes em um processo de reflexão sobre o dia da mulher para além
do meramente celebrativo e, inspiradas/os pelo vídeo que viralizou na
internet poucos dias antes do feriado mundial, buscamos engajá-las/os
de forma crítica em uma problematização sobre questões de gênero a
partir do International Women’s Day, comemorado no dia 8 de março.

Logo, o material empírico sobre o qual nos debruçamos nas aná-


lises é decorrente de duas aulas de Língua Inglesa ministradas em uma
turma do ensino fundamental de uma escola pública no interior de
Goiás, composta por 30 alunas/os. sobre o International Women’s Day,
que, naquele momento, se apresentou como uma “brecha” (DUBOC,
2014) que oportunizou o enfoque sobre questões de gênero. Dito isto,
a seguir apresentamos e discutimos os desdobramentos do trabalho
desenvolvido.

SOBRE A ABORDAGEM

Demos início à aula através da exposição da seguinte pergunta


no quadro “Have you ever heard one of these expressions before?” [“Você
já ouviu alguma dessas expressões anteriormente?”] e, então, através de
slides (Figura 3), optamos por expor cerca de 35 das frases narradas por
Nixon no vídeo “Be a lady!, they said.”. Em seguida, solicitamos que,
conforme a exposição e problematização de cada expressão, todas/os as/

89
uma abordagem acerca das relações de gênero na sala de aula de inglês da escola pública

os alunas/os fizessem uma marcação de itens (✓) em seus cadernos, caso


a expressão exposta lhes tivesse sido diretamente direcionada alguma
vez na vida. Ao final faríamos a contagem e comparação das marcações.
Figura 3 – Print do slide com as expressões do vídeo “Be a lady!, they said.”
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

Fonte: Material empírico do presente estudo.

Com esse exercício, buscamos fazer com que as/os alunas/os


voltassem para si, por meio de um “ler, se lendo” (MENEZES DE
SOUZA, 2011, p. 296), e refletissem sobre o que significa ser e estar
em um mundo, cujas expectativas são construídas de forma assimétrica,
segundo os corpos e os arranjos de gêneros sedimentados em nossa cul-
tura. Diante disso, entendemos que “gênero diz respeito ao jeito com
que as sociedades humanas lidam com os corpos humanos e sua con-
tinuidade e com as consequências desse ‘lidar’ pessoais e nosso destino
coletivo” (CONNELL; PEARSE, 2015, p. 48).

Após ler, explicar e discutir as expressões expostas, pedimos para


que cada aluna/o contabilizasse os números de itens assinalados em seu

90
uma abordagem acerca das relações de gênero na sala de aula de inglês da escola pública

caderno. Apesar de parecer um exercício trivial, quando confrontados,


os números falaram por si! Ficou explícito que o total de itens marcados
por parte das meninas era muito maior – variando entre 11 e 29, sendo
que o número de marcações dos meninos variou entre 2 e 10. O Gráfico
1, a seguir, ilustra a quantificação de itens marcados pelas meninas e

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


pelos meninos em relação às 35 expressões problematizadas e expostas
nos slides durante a aula.
Gráfico 1 – Quantidade de itens marcados

Fonte: Material empírico da presente pesquisa (2021).

Os números evidenciados são expressivos e comprovam que as


expectativas e cobranças em relação aos corpos são reforçadas de forma
assimétrica entre meninas e meninos. Na esteira de Connell e Pearse
(2015), compreendemos gênero como uma estrutura social, cuja manu-
tenção de padrões é reforçada e legitimada privilegiando determinado
gênero em detrimento de outro.

O “Be a lady!” não apenas descreve o perfil de feminilidade ao


qual as meninas precisam aspirar para serem “belas, recatadas e do lar”

91
uma abordagem acerca das relações de gênero na sala de aula de inglês da escola pública

(SANTOS; FIGUEIRA-BORGES, 2019), mas é um ato linguísti-


co que é performativo, um dizer que, portanto, faz (AUSTIN, 1990;
BUTLER, 2017), ou seja, é um dizer/fazer que incide sobre os corpos
femininos e os regula através do processo de generificação, alinhando
sexo-gênero-sexualidade, segundo a de inteligibilidade cultural de gêne-
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

ro (BUTLER, 2017).

Após confrontar os números, emergiram narrativas pessoais de


alunas explicitando: assédio, situações de constrangimento, violência
verbal que vivenciaram na rua, em casa etc. Esse espaço de escuta em-
pática (REZENDE, 2017) foi importante, pois trouxe à baila vivências
que oportunizaram várias construções de sentidos, pois ali irromperam
histórias de vida sobre as quais as/os alunas/os e o próprio professor
regente não têm lugar de fala (RIBEIRO, 2017). À guisa de exemplo,
trazemos a seguir um texto escrito pela própria aluna e enviado após a
discussão problematizada em sala de aula:

They say that I need to put on weight to look more


healthy and beautiful. They frequently make jokes
about my body and my weight like “you look like a
skeleton” “you are just bones”. They say I need to have
more curves. They use excuses like “I’m just worried
about you being healthy” and always ask “do you eat
enough?” or “don’t you think that maybe you have a
problem? You should see a doctor”27 (Mariah Collins28, 2020).

27 “Elas/eles dizem que preciso engordar para parecer mais saudável e bonita. Eles
frequentemente fazem piadas sobre meu corpo e meu peso, como: ‘você parece
um esqueleto’, ‘você é apenas ossos’. Dizem que preciso de mais curvas. Eles usam
desculpas como ‘Estou apenas preocupado com sua saúde’ e sempre perguntam
‘você come o suficiente?’ ou ‘você não acha que talvez tenha um problema? Você
deveria consultar um médico’.” (Mariah Collins, 2020, tradução nossa).
28 Pseudônimo escolhido pela aluna.

92
uma abordagem acerca das relações de gênero na sala de aula de inglês da escola pública

Como pode ser analisado, Mariah Collins é uma garota cujas


práticas discursivas estão atravessadas de interpelações remarcadas por
uma cordialidade que mascara a perversidade e a violência do processo
de generificação a que os corpos femininos estão submetidos (PINTO,
2007). “You look like an skeleton” ou “You are just bones”, não são me-

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


ros enunciados descritivos, “a linguagem não é, aqui, descritiva, ela age
na vida social construindo vidas e corpos, ferindo pessoas” (MELO;
ROCHA, 2015, p. 115).

Mariah Collins convive com questionamentos que se referem ao


seu corpo, piadas que, ora apelam para seu peso, ora cobram “mais cur-
vas” ou a interpelam com “desculpas” seguidas de perguntas maliciosas
e “preocupadas” com a sua saúde. Obviamente, outras histórias foram
contadas, outras vivências narradas, cuja oportunidade não nos dá espa-
ço para compartilhar. Acreditamos que esse enfoque narrativo é muito
pertinente, pois, na esteira de hooks (2017, p. 198), compreendemos
que “o ato de partilhar narrativas pessoais, ligando esse conhecimento
à informação acadêmica, realmente aumenta nossa capacidade de co-
nhecer. Quando alguém fala desde o ponto de vista de suas experiências
imediatas, algo se cria”.

E, claro, emergiram perguntas do tipo: “Teacher, por que não te-


mos o dia dos homens, hein?” feita por um aluno em tom irônico. Diante
disso, mediar o debate frente à pluralidade de repertórios que emergem
e que fazem parte de suas respectivas formações sociais e ideológicas,
em articulação com outras instituições e círculos que frequentam com
a família, amigos etc., pode parecer impossível, contudo, com base em
Urzêda-Freitas (2018, p. 156) (nos) questionamos: “é possível controlar
práticas cuja força motriz é a instabilidade?”.

93
uma abordagem acerca das relações de gênero na sala de aula de inglês da escola pública

(IN)CONCLUSÕES

Neste texto, expomos, descrevemos e relatamos uma experiência,


uma tentativa de fazer uma abordagem crítica de educação linguística
(PESSOA; SILVESTRE; MONTE MÓR, 2018). O “Be a lady!, they
said.”, assim como todos os outros enunciados representados no vídeo
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

e retratados para problematização em sala, são atos linguísticos perfor-


mativos (AUSTIN, 1991; BUTLER, 2017), isto é, agem e operam na
vida social, interpelando e regulando os corpos, os corações e as vidas
de garotas e mulheres que estão transitando pelas mais diversas esferas
da vida contemporânea.

Tendo em vista que é pelo discurso que as nossas identidades são


forjadas e as nossas realidades construídas, por consequência, é pelo dis-
curso que o movimento de mudança (FAIRCHLOUGH, 2016) pode
ser desencadeado, viabilizando a re/des/construção de determinados
repertórios e verdades constantemente reiteradas nas práticas linguís-
ticas cotidianas às quais estivemos endereçadas/os. Orientadas/os pela
perspectiva crítica, a sala de aula assim se apresenta para nós: como uma
oportunidade de suscitar questionamentos sobre determinadas verda-
des que acabam causando sofrimento humano (ROCHA, 2013).

Se as nossas práticas linguístico-discursivas nunca são neu-


tras e revelam os posicionamentos ideológicos e políticos que adota-
mos de forma (in)consciente (FABRÍCIO, 2006), urge questioná-las
(MASTRELLA-DE-ANDRADE, 2018), pois tais estruturas sociais
não são fixas, mas se transformam conforme a dinâmica histórica, so-
cial e política, atravessadas por discursos balizados por relações de poder
(ADICHIE, 2019).

Mesmo que insistamos, não tem como apartar questões de or-


dem social, política e cultural dos processos que envolvem o ensi-
no-aprendizagem de línguas. O posicionamento que se diz isento,
já é, em si, uma tomada de partido. Nesse sentido, propostas como

94
uma abordagem acerca das relações de gênero na sala de aula de inglês da escola pública

o Escola Sem Partido29 são controversas e falaciosas, pois, através do


discurso “não-partidário” e “neutro”, sabemos que há uma tentativa as-
tuta de engendrar discursos salvacionistas que, na verdade, viabilizam o
controle das massas (RAJAGOPALAN, 2003).

Para nos engajarmos em uma perspectiva crítica de educação

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


linguística, precisamos, antes, sermos críticas/os, ou como nos lembra
Mastrella-de-Andrade (2018), “autocríticas/os”, e ser (auto)crítica/o é
uma construção que não se dá em um clique, mas através de muita
leitura, empatia e questionamento de verdades e relações de poder ins-
tituídas e que causam sofrimento humano (ROCHA, 2013). Assim,
estas são (in)conclusões, pois os questionamentos continuam uma vez
que nunca estamos completas/os, sempre em movimento, sempre em
construção,

[...] entendendo que linguagem é performativa,


que as regras não são estados ontológicos anterio-
res às práticas e que a diferença é o padrão, uma
aula de inglês não pode ser concebida como um
momento de artificial suspensão temporária das
performances relacionadas ao mundo contempo-
râneo movente (ROCHA, 2014, p. 133, grifos dos
autores).

29 O Escola Sem Partido é um movimento proposto pela bancada evangélica-con-


servadora na tentativa de minar a liberdade de expressão e discussões sobre a
diversidade no contexto escolar. Felizmente, o Supremo Tribunal Federal (STF)
reconheceu tal proposta como inconstitucional, tendo em vista que, em sua deci-
são, coloca tais debates como indispensáveis para uma formação humana íntegra
e crítica. Disponível em: https://cpers.com.br/em-nova-decisao-stf-reafirma-in-
constitucionalidade-do-projeto-escola-sem-partido/. Acesso em: 6 set. 2021.

95
uma abordagem acerca das relações de gênero na sala de aula de inglês da escola pública

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AGÊNCIA DE PROFESSORES DE LÍNGUAS SOB A ÓTICA DOS NOVOS LETRAMENTOS

5
AGÊNCIA DE PROFESSORES DE
LÍNGUAS SOB A ÓTICA DOS NOVOS

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


LETRAMENTOS

Denise Silva Paes Landim | Universidade Federal do Tocantins (UFT)

D
esde a década de 1980, muito se tem debatido acerca da necessidade
de uma formação de professores reflexivos de sua própria prática
profissional (SCHÖN, 1999; PIMENTA, 1999; ZEICHNER,
2008), questionando uma tradição tecnicista que separa práticas
pedagógicas de teorias. Contudo, segundo Kumaravadivelu (2003) e
Zeichner (2008), o movimento pela formação de professores reflexivos
encontra limitações por estar concentrado no professor como um agen-
te individualizado, com a reflexão sendo considerada como um proces-
so introspectivo que não envolve a interlocução com outros agentes,
tais como estudantes, colegas, gestores, comunidade escolar etc. Além
disso, o movimento focaliza a reflexão sobre o processo em sala de aula,
desconsiderando fatores sociopolíticos que impactam a prática reflexi-
va, tendo tido pouco resultado na mudança da tradição de dependência
dos professores em relação aos conhecimentos teóricos de especialistas.

Para promover uma contextualização sociopolítica à formação


de professores, inicia-se, influenciado pelos trabalhos de Paulo Freire,
um movimento de professores baseado em uma racionalidade crítica
(DINIZ-PEREIRA, 2014), alicerçada em uma postura problematiza-
dora e transformadora da prática educacional, das visões sobre edu-

99
AGÊNCIA DE PROFESSORES DE LÍNGUAS SOB A ÓTICA DOS NOVOS LETRAMENTOS

cação, dos valores educacionais e das estruturas sociais e institucio-


nais que dão base às práticas pedagógicas, que envolvem não apenas
professores, mas todos os atores implicados na comunidade educativa
(KUMARAVADIVELU, 2003).

Dentro da racionalidade crítica da docência, insere-se a propos-


LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

ta da formação docente para a agência (MARTINEZ, 2007; BIESTA;


PRIESTLEY; ROBINSON, 2015; LANDIM, 2020), respondendo à
crescente demanda pela formação de sujeitos críticos e ativos diante
das mudanças sociais interligadas às novas organizações econômicas,
culturais, sociais e políticas decorrentes do advento da globalização e
das tecnologias digitais. Dessa forma, articula-se a formação de alunos
como sujeitos críticos e atuantes à formação de professores que favore-
ça o desenvolvimento de sua agência. Nesse sentido, a premência pela
formação de cidadãos críticos encontra respaldo em políticas públicas
educacionais no Brasil e no mundo, referências para a implementação
de planos de ação de formação de educandos e currículo na educação
básica.

Conforme Gray e Block (2012), acerca da pesquisa sobre agência


docente e discente em Linguística Aplicada, é necessária a crítica per-
manente às tentativas de entender agência como sinônimo de respon-
sabilização dos sujeitos por condições sobre as quais eles não têm con-
trole, sobretudo aliando essa responsabilidade a discursos de eficiência
e sucesso, que dão sustentação à agenda neoliberal. Em contraposição a
esse posicionamento acrítico e neoliberal da noção de agência, susten-
to que seu desenvolvimento ocorre de forma emergente e contingente,
construído na relação entre os indivíduos e suas comunidades, institui-
ções e culturas das quais fazem parte.

Isso posto, este capítulo, fruto de uma pesquisa de doutoramento


(LANDIM, 2020), tem como objetivo discutir as perspectivas indi-
viduais, discursivas, culturais e institucionais sob as quais professores

100
AGÊNCIA DE PROFESSORES DE LÍNGUAS SOB A ÓTICA DOS NOVOS LETRAMENTOS

em formação inicial e continuada, conceituam e justificam a sua agên-


cia. Utilizarei como lentes teóricas os estudos de agência desenvolvi-
dos por Giddens (2003), os conceitos de agência ecológica (BIESTA;
PRIESTLEY; ROBINSON, 2015) e os estudos dos novos letramen-
tos (MENEZES DE SOUZA, 2011; MARTINEZ, 2007; JORDÃO,

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


2013, 2014).

Organizo este texto dividindo-o em cinco partes. A primeira par-


te é a introdução. Na segunda, discuto conceitos de agência e letramen-
tos que fundamentam o trabalho. Na terceira parte, faço apontamentos
metodológicos. Na quarta, faço a apresentação e a discussão dos dados
gerados durante a pesquisa de doutoramento. Por fim, na última parte
teço algumas considerações finais.

SOBRE AGÊNCIA E LETRAMENTOS

A agência humana é um construto teórico desenvolvido em varia-


dos campos científicos, como a antropologia da linguagem (AHEARN,
2001), a filosofia (ARENDT, 2007), a psicologia (BANDURA, 2006)
e a sociologia (BOURDIEU, 1983; EMIRBAYER; MISCHE, 1998;
GIDDENS, 2003; ARCHER, 2004). Um denominador comum entre
as variadas abordagens à agência humana é a discussão sobre a natureza
da relação entre o sujeito e a estrutura social. Tal associação é compreen-
dida, em alguns campos, como uma dicotomia, enquanto para outros é
vista de forma integrada.

Define-se agência de acordo com a cultura e a sociedade em que


atuam os sujeitos, portanto não há uma definição universal de agência
(AHEARN, 2001). A definição provisional de agência oferecida por
Ahearn (2001, p. 28) e que nos ajuda a compreender agência neste
trabalho é de “capacidade socialmente mediada de agir”. Trata-se de
um elemento subjetivo que contrasta com as condições objetivas rela-

101
AGÊNCIA DE PROFESSORES DE LÍNGUAS SOB A ÓTICA DOS NOVOS LETRAMENTOS

cionadas com a estrutura. A relação entre subjetividade e objetividade


tem sido estabelecida por teorias integrativas que concebem a interde-
pendência dialética entre a realidade objetiva e a subjetiva (BUZATO,
2013). Uma teoria desse tipo é a teoria da estruturação de Anthony
Giddens.
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

A teoria da estruturação (GIDDENS, 2003) articula sujeitos à


estrutura por meio de práticas sociais vividas no tempo e no espaço.
De acordo com a teoria da estruturação, as práticas humanas são re-
cursivas, ou seja, não são criadas pelos sujeitos, mas continuamente re-
criadas por eles por meio de regras e recursos que compõe a estrutura
social. Desse modo, os agentes reproduzem as condições que tornam
sua agência possível, mas que também contém a possibilidade de trans-
formação. Para exemplificar o caráter recursivo das práticas humanas,
o autor menciona o uso da língua por parte dos agentes para se expres-
sarem: eles precisam obedecer a regras lexicais e gramaticais para serem
compreendidos por outras pessoas, mas, ao mesmo tempo, atualizam as
regras gramaticais toda vez que as utilizam. A agência se insere também
como uma relação de poder, uma vez que ser capaz de agir diferente
diante de algo carrega a capacidade de intervenção no mundo ou ser
isento, já que até mesmo quando não age, o agente pode influenciar o
processo ou um estado particular.

Segundo Biesta, Prestley e Robinson (2015), a agência é um con-


ceito transdisciplinar, por lidar com as ações de sujeitos frente a algo,
nunca de forma isolada. Esses autores fornecem a abordagem ecológica
de agência, na qual se compreende a agência como uma variável e uma
categoria de análise da ação social que emerge da variedade de contex-
tos, sendo relacional – uma vez que os seres humanos operam por meio
de seus contextos sociais e materiais – e temporal – baseada no passado
(dimensão iterativa), orientada para o futuro (dimensão projetiva), mas
localizada no presente (dimensão prático-avaliativa).

102
AGÊNCIA DE PROFESSORES DE LÍNGUAS SOB A ÓTICA DOS NOVOS LETRAMENTOS

Na área da Linguística Aplicada, concentrada nas ressiginifica-


ções sociais do fenômeno da linguagem no mundo contemporâneo
(MOITA LOPES, 1996), bem como nos estudos de letramentos inves-
tigativos das questões sobre a língua como prática social contextualizada
e plural, o estudo da agência tem sido interligado ao tema da constru-

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


ção de sentidos e suas consequências para a participação democrática.
Nesse âmbito, uma pedagogia da agência (MARTINEZ, 2007) surge
como resposta à necessidade de professores de línguas de enfrentar os
desafios da sociedade digital e global. Em uma perspectiva crítica de
formação de professores de línguas, a pedagogia da agência acrescenta a
perspectiva educacional dos novos estudos de letramentos, cuja base é
pós-estruturalista, isto é, a linguagem é entendida como o lugar onde a
realidade é construída pelos sujeitos. Desse ponto de vista, a agência é
fundada criticamente em práticas discursivas de interpretação. Assim, o
papel do professor agentivo é dar aos alunos a oportunidade de exercitar
sua agência como cidadãos, reconhecendo-se como sujeitos, uma vez
que a escola é uma arena para construção e desconstrução do conheci-
mento (MARTINEZ, 2007).

Os novos estudos de letramentos consideram as implicações das


mudanças na comunicação e práticas de letramentos resultantes das
tecnologias digitais. Consequentemente, as diferenças linguísticas são
disputadas e negociadas, assim como os significados e discursos. Os
novos estudos de letramentos contemplam a diversidade e a pluralidade
de interpretações que constituem as práticas sociais em que os signifi-
cados são produzidos, assumindo o desenvolvimento de agência como
fundamental para seus objetivos educacionais. Por um lado, as oportu-
nidades de desenvolvimento de agência aumentam porque há mais pos-
sibilidades de engajamento na construção de sentidos da nova mídia,
baseadas na maior variedade de recursos semióticos. Por outro lado, os
letramentos críticos favorecem a ampliação da leitura do mundo social,
conduzindo um fio investigativo sobre o posicionamento dos sujeitos

103
AGÊNCIA DE PROFESSORES DE LÍNGUAS SOB A ÓTICA DOS NOVOS LETRAMENTOS

na sociedade e se esses sujeitos desejam permanecer ou sair desses po-


sicionamentos. Nessas leituras, o leitor não é apenas o autor de uma
determinada interpretação, mas também o protagonista de si próprio
em relação ao mundo, cumprindo-se assim o objetivo educacional de
sujeitificação, conforme Biesta (2013).
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

PERCURSO METODOLÓGICO E
CONTEXTUALIZAÇÃO DA PESQUISA

No intento de investigar a emergência e a conceituação de agên-


cia entre professores de língua inglesa em formação inicial e continuada,
em seu contexto de prática pedagógica, elaborei um projeto de pesquisa
qualitativa de cunho etnográfico para geração e análise de dados empíri-
cos. A pesquisa qualitativa se insere, de acordo com Mason (2002, p. 4)
em uma fundamentação filosófica interpretativista, pois está interessada
em como o mundo social é interpretado, compreendido, experimenta-
do ou constituído. Além disso, ainda conforme Mason (2002), o méto-
do para geração de dados é sensível ao contexto social em que eles são
produzidos, tendo como método de análise, explicação e argumentação
a compreensão situada, que leva em consideração as nuanças, riquezas
e peculiaridades do contexto em questão, tornando visíveis as ecologias
de elementos nos quais ele está inserido. A descrição dessa ecologia de
elementos em uma trama cultural complexa refere-se ao que Geertz
(1973) conceitua como descrição densa (thick description) ao propor
o objetivo de uma pesquisa interpretativisita. Neste mesmo autor en-
contra-se a noção de que as ações humanas são inscritas em um sistema
semiótico que compõe uma cultura que nos convida à interpretação.

O cunho etnográfico da pesquisa se deve ao fato de ter se apoia-


do em uma construção teórica baseada em observação de campo sis-
temática, com registros e análises de práticas de uma comunidade de
investigação, utilizando-se ferramentas características dessa abordagem,

104
AGÊNCIA DE PROFESSORES DE LÍNGUAS SOB A ÓTICA DOS NOVOS LETRAMENTOS

tais como o trabalho de campo, a observação participante, a entrevista


intensiva e a análise de documentos (ANDRÉ, 2009, p. 28).

Os dados foram gerados ao longo dos meses de junho a outu-


bro de 2017 nas atividades da disciplina de Estágio Supervisionado de
Língua Inglesa e suas Literaturas VI, ministrada por mim em uma uni-

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


versidade pública do Norte do Brasil. Foram investigados três grupos
de participantes, que denomino grupo 1, grupo 2 e grupo 3. O grupo 1
é composto pelos nove estudantes estagiários matriculados na discipli-
na mencionada. O grupo 2 é formado por dois professores das escolas
campo que receberam estudantes estagiários nas atividades de observa-
ção e regência da disciplina. Por fim, o grupo 3 é constituído por uma
professora formadora, docente da universidade participante, que fez
parte do grupo focal que encerrou a disciplina e que visou a discutir as
experiências da disciplina. Além da professora formadora que compôs o
grupo 3, um dos professores do grupo 2 também esteve presente.

Nos cinco meses da fase de observação de campo, os alunos es-


tagiários leram e discutiram textos sobre o desenvolvimento de agência
em uma abordagem ecológica (BIESTA; PRIESTLEY; ROBINSON,
2015), sendo convidados, portanto a pensarem a sua formação de for-
ma colaborativa, relacional e interconectada com os fatores situacio-
nais e demais atores da comunidade escolar. A seção a seguir traz as
conceituações de agência feitas pelos participantes da pesquisa durante
entrevistas individuais.

CONCEITUAR AGÊNCIA: UM EXERCÍCIO SITUADO

Conceituar agência não é um exercício teórico que ocorre de ma-


neira isolada, dada a natureza relacional da agência. Isto é, a agência é
algo rumo a algo (towards something), por meio do qual seus sujeitos
se relacionam com pessoas, locais, sentidos e eventos (EMIRBAYER;

105
AGÊNCIA DE PROFESSORES DE LÍNGUAS SOB A ÓTICA DOS NOVOS LETRAMENTOS

MISCHE, 1998, p. 973). Desse modo, neste trabalho, o conceito de


agência será definido a partir das leituras que os participantes da pes-
quisa têm em relação ao papel do professor de inglês no exercício de sua
profissão. Por sua vez, a definição do papel do professor igualmente não
ocorre em isolado, mas também se articula à reflexão sobre o papel da
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

escola, da educação, do projeto de sociedade para o qual essa escola e


esse tipo de educação colaboram para construir. Consequentemente, a
conceitualização de agência nos leva a compreender o exercício da do-
cência, a escola, a educação e a sociedade. Em outras palavras, o concei-
to de agência é um micro que nos fornece lentes para enxergar o macro.

Friso, portanto, que a conceitualização de agência se funda numa


práxis, como aquela sugerida por Freire (1987), em que a palavra trans-
forma a realidade, isto é, o ato de existir e pronunciar o mundo verda-
deiramente se converte dialeticamente em uma prática de transforma-
ção do mundo. Isso quer dizer que não há uma prática transformadora
sem uma teoria transformadora, pois elas fundamentam a reflexão que
impulsiona a ação, segundo o pensamento de Freire (1987). Acredito,
portanto, que o próprio convite aos professores para que elaborassem
seus conceitos de agência com base em sua prática de formação profis-
sional é uma opção transformadora, dando-lhes vez e voz para refleti-
rem sobre suas vivências profissionais e oportunizando a articulação das
três dimensões temporais da agência: dimensão iterativa – ou experiên-
cias vividas no passado –, dimensão projetiva – as aspirações para o fu-
turo – e a dimensão prático-avaliativa – a avaliação sobre dada situação
do presente.

Isso posto, nesta seção seleciono as contribuições dos participan-


tes para conceitualizar agência de acordo com suas vivências, avaliações,
projeções e leituras de mundo. Focalizarei três concepções que se distin-
guiram nos dados analisados, a saber: a agência do professor técnico, a
agência do professor herói e a agência do professor crítico.

106
AGÊNCIA DE PROFESSORES DE LÍNGUAS SOB A ÓTICA DOS NOVOS LETRAMENTOS

A primeira conceituação de agência está imbricada em uma pers-


pectiva tecnicista de agência docente, levando em conta uma tradição
de formação de professores embasada na racionalidade técnica. De base
positivista, a racionalidade técnica assume que conhecimento antecede
os sujeitos, sendo um elemento abstrato, controlável, generalizável e

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


transferível de um local para outro sem uma personalização dos sujeitos
que o desenvolvem. A partir disso, a racionalidade técnica desponta em
uma formação de professores materializada em treinamentos, isto é, em
uma formação que compreende que o conhecimento de um especialista
se transfere ao professor de forma impessoal. Tal compreensão resulta
na restrição da prática do professor à aplicação de teorias ou técnicas
elaboradas previamente por um corpo teórico estabelecido de modo a
antecipar e a controlar os resultados práticos, como se sinaliza abaixo na
fala de Fernanda, participante do grupo 1:

Agência seria o desenvolvimento, o desempenho


que você tem durante o curso. Os passos que você
dá dentro das coisas que são requeridas para você
realizar. Eu acho que, de acordo com a minha ex-
periência pessoal, nós recebemos muito input,
muita orientação, recebemos muita teoria, muita
coisa prática também, e nós temos muito respaldo
para fazer bem o curso e... Só no primeiro estágio
que eu achei a professora mais distante pelo jeito
dela de ensinar, que ela deixava a gente mais livre.
Nessa hora a gente quer o professor mais perto.
“Não sei. Nunca fiz, e agora?”. A gente sempre vai
precisar estar falando, né. De como tá o estágio,
está enfrentando no estágio, na escola. Comenta-
ram da necessidade da gente ter um psicólogo. Eu
acho que não tem necessidade disso. Acho que a
necessidade é a gente ter mais tempo com profes-

107
AGÊNCIA DE PROFESSORES DE LÍNGUAS SOB A ÓTICA DOS NOVOS LETRAMENTOS

sor de estágio, e vai poder ouvir todo mundo. Em


duas horas de tempo a gente não pode conversar,
tirar as dúvidas. Professor, aconteceu isso, qual é
a ideia que você dá para a gente? É um tempo de
reciclagem, de renovar as forças. Eu acho que tem
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

que ser mais focado. Junto. Não precisa de psicólo-


go, nem de hospital (Entrevista, Fernanda, trecho
1, 25 ago. 2017).

Altamente vinculadas ao vocabulário tecnicista e neoliberal, as


palavras-chave desempenho, input e reciclagem vinculam, no discurso
da aluna a respeito de sua formação, uma relação já denunciada por
Freire (1987) como educação bancária, aquela em que o professor de-
posita conteúdos em seus alunos, que então os demonstram em pro-
vas e outros exames, os instrumentos de avaliação de desempenho e
suposto controle do conhecimento. A educação bancária é calcada na
racionalidade técnica, que enfatiza que o professor é um transmissor
de conteúdos preestabelecidos, medidos e controlados. Nessa visão, a
prática docente se centraliza em verificar e medir o desempenho quanto
aos conteúdos e aprendizagens, assim como dos processos educativos
para que haja uma maior probabilidade de manutenção de resultados
alinhados com o status de ideologia neoliberal dominante.

Sobre a segunda palavra-chave, input, vejo-a como os insumos


ou conteúdos de entrada compreendidos ou absorvidos para o exercício
da profissão docente. No campo da Linguística Aplicada, segundo a
explanação de Paiva (2014) sobre a hipótese do input para aquisição de
segunda língua, desenvolvida por Krashen (1985 apud PAIVA, 2014),
o input é central, pois só é possível adquirir a segunda língua ao com-
preender mensagens orais ou escritas. Fernanda pode ter adaptado esse
conceito para descrever a sua formação na universidade, o que me leva
a interpretar que agência, em sua visão, é o output, ou, nas palavras da
aluna, o desempenho emergente de sua formação. Em minha leitura,

108
AGÊNCIA DE PROFESSORES DE LÍNGUAS SOB A ÓTICA DOS NOVOS LETRAMENTOS

essa visão diminui a agência do professor, pois o coloca em posição de


pouca ou nenhuma transformação advinda de processos de tradução
das aprendizagens, experiências ou insumos teóricos vinculados à sua
formação, uma vez que o foco é a eficácia do insumo.

Alinhada à noção de desempenho, a palavra reciclagem é empre-

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


gada no setor empresarial para se referir a cursos e atualizações de prá-
ticas profissionais, o que tem também ressoado no setor educacional.
Outro sentido possível é o processo de tratamento e reaproveitamento
de resíduos. Em ambas as possibilidades, o termo descreve uma noção
que diminui a agência humana porque desconsideram o papel ativo do
sujeito em seu processo de formação.

Sobre os demais aspectos desse excerto, destaco as expectativas


de Fernanda sobre sua relação com as professoras formadoras na dis-
ciplina de Estágio Supervisionado, reafirmando o caráter relacional da
construção da agência reconhecido pela abordagem ecológica de agên-
cia (BIESTA; PRIESTLEY; ROBINSON, 2015). Nessa abordagem, a
dimensão das relações sociais e profissionais experimentadas por pro-
fessores é conhecida como estruturas sociais. As implicações disso são
que poder e confiança são propriedades que emergem dessas estruturas
sociais. No caso de Fernanda, a confiança para sua prática pedagógica se
constrói parcialmente em decorrência de sua relação de supervisão com
as professoras formadoras, mais experientes.

Uma segunda conceitualização de agência emergente do trabalho


é aquele que atribui ao professor o papel de herói, analogia romantizada
sobre aquele que enfrenta os desafios a despeito dos condicionamentos
da estrutura social. Nesse papel, o professor age de forma isolada resol-
vendo problemas presentes em variados âmbitos da vida educacional e
social. Trago o excerto da fala de Karine, participante do grupo 1, ao
definir agência dessa forma em seu contexto de prática pedagógica:

109
AGÊNCIA DE PROFESSORES DE LÍNGUAS SOB A ÓTICA DOS NOVOS LETRAMENTOS

Para mim, agência, quando falou agência eu não


imaginei absolutamente nada nada nada fora da
sala de aula. Para mim eu vi a agência dentro da
sala de aula com o recurso que eu tenho e com os
alunos que eu tenho que trabalhar. Eu não imagi-
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

nei diretor, coordenador, não pensei no ambiente


escolar. Eu pensei na sala de aula. Pensei nos alu-
nos e pensei como estratégia mesmo de passar um
determinado conteúdo para aqueles alunos, 30,
40 com o que eu tenho de recurso. Para mim isso
foi agência (Entrevista, Karine, trecho 2, 24 ago.
2017).

A fala de Karine ressalta aspectos da estrutura verificados em


muitas escolas públicas brasileiras: salas de aula cheias, falta de recursos
e isolamento dos professores. Nessas condições, agência é entendida
como a medida de enfrentamento dessa realidade, contornando a pre-
cariedade de seu trabalho. Afinal, o trabalho precisa ser feito sem maio-
res problematizações. Nessa concepção de agência, portanto, os cida-
dãos se educam apesar da precariedade do trabalho docente e da escola.
Trata-se de uma visão que reforça a ideologia neoliberal que preconiza a
ação individual do professor, sem problematizar a instituição escolar, o
sistema educacional e a sociedade em que esses se inserem.

Outro excerto alinhado ao conceito de agência como heroísmo


do professor é encontrado na fala de Regina, participante do grupo 1,
conforme se segue:

Agência de professor, então, é como eu falei an-


tes, no pouco tempo que eu conheci sobre o tema
sobre agenciamento sobre professor agenciador eu
acredito pelo pouquinho que eu li, foi muito pou-

110
AGÊNCIA DE PROFESSORES DE LÍNGUAS SOB A ÓTICA DOS NOVOS LETRAMENTOS

co, que é um professor transformador. É um pro-


fessor que tenta transformar o meio, o aluno, mas
existe muita coisa que pode atrapalhar ou que pode
contribuir para isso. Ele é transformador no senti-
do de que ele vai transformar o aluno, ele vai mu-

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


dar o aluno para que o aluno seja mais crítico, mais
reflexivo porque o professor que é o agenciador, ele
tem que atuar, não é isso? Ele tem que modificar o
meio do aluno com que ele trabalha. Ele pode en-
frentar muitas coisas para que isso aconteça. Uma
das coisas talvez seja o que eu falei antes, ele pode
ter problemas por causa da sala cheia (Entrevista,
Regina, trecho 3, 24 set. 2017).

Regina afirma que o professor agenciador tem a capacidade de


transformar o meio, ou seja, a estrutura na qual o aluno vive. Do ponto
de vista prático, isso me parece impossível. Do ponto de vista metafóri-
co, porém, Regina pode estar fazendo menção a uma mudança indivi-
dual do estudante, possibilitada pela prática docente que apresenta um
objetivo crítico e reflexivo em relação a ele. Essa transformação ocorre
por meio do enfrentamento a uma situação imposta pela estrutura da
qual o professor participa, como o problema das salas de aulas cheias.
Esse objetivo crítico nos leva à terceira noção observada entre os parti-
cipantes: a agência do professor crítico.

O terceiro conceito de agência se explicita de forma articulada


à criticidade. Para Shor (1999), assentado nos estudos de letramento
crítico, a criticidade abrange a leitura e a escrita de textos em processos
de nos tornamos cientes da experiência historicamente situada em re-
lações de poder. Jordão (2013) acrescenta a perspectiva de que a escola
contribui para o confronto de processos interpretativos favorecedores
do questionamento e problematização de estruturas sociais que hierar-
quizam sujeitos e saberes, indagando sobre os significados do mundo

111
AGÊNCIA DE PROFESSORES DE LÍNGUAS SOB A ÓTICA DOS NOVOS LETRAMENTOS

e seus procedimentos de produção, compartilhamento e renovação.


Adiciono a esses pressupostos o conceito de letramento crítico como
genealogia, proposto por Menezes de Souza (2011) baseado em Freire,
como exercício de criticidade a fim de compreender por que pensamos
como pensamos, inseridos em nossas comunidades linguísticas, histó-
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

ricas e sociais.

Tendo essas noções em mente, trago o excerto da entrevista de


Carmen, participante do grupo 1, que aproxima a reflexão da criticidade:

Eu acho, como a menina falou um dia desses, é


agir. Eu acho que é agir antes de tudo, você primei-
ro saber analisar as suas ações, saber parar e refletir
o que você está fazendo. Refletir traz criticidade.
Questiona o que é que está bom o que que está
ruim o que que pode ser alterado e alterar isso. Eu
acredito que seja a parte final do seu repensar do
rever suas atitudes e as suas falas como pessoa e
como profissional. Eu não trago isso só para o pro-
fessor não porque eu acho que a gente como pessoa
para trazer um mundo melhor a gente tem que re-
fletir as nossas ações. Ver o que que está bom o que
que a gente pode melhorar. A gente sempre pode
melhorar como a pessoa, a gente tem que ver que
o mundo está tão difícil hoje e que se a gente não
se policiar a gente vai pensar que é normal tudo de
ruim que está acontecendo no mundo (Entrevista,
Carmen, trecho 4, 21 set. 2017).

Para Carmen, a prática reflexiva fomenta a prática crítica, apri-


morando o trabalho do professor tanto no âmbito pessoal como no
profissional. Carmen também argumenta que a sala de aula está no

112
AGÊNCIA DE PROFESSORES DE LÍNGUAS SOB A ÓTICA DOS NOVOS LETRAMENTOS

mundo, salientando que a prática reflexiva não deve ter um fim em si


mesma, mas refratar temas que transcendem os muros da escola. Os
desafios e temas do mundo, nesta visão, devem estar presentes na sala
de aula, nem que sejam de forma a não os naturalizar/normalizar, carac-
terizando uma ação de desconstrução de interpretações, conforme ex-

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


plana Jordão (2013). A não normalização/naturalização pode ser obtida
pelo exercício genealógico de letramento crítico proposto por Menezes
de Souza (2011) ao advogar uma prática que busca a compreensão de
significados inseridos nas comunidades interpretativas de que fazemos
parte, ou seja, o exercício de “ler-se lendo”, compreender por que pen-
samos como pensamos dentro de uma coletividade.

Esse exercício pode se expandir tanto a questões externas à co-


munidade escolar quanto a temas debatidos no âmbito global, como o
bairro, a cidade, o país, o continente ou o planeta. Enfrentar os desafios
nas variadas esferas, tratando a escola como parte do mundo, refere-
-se a uma prática crítica de posicionar professores, alunos e os demais
sujeitos da comunidade escolar, como agentes do mundo em que vi-
vem, convidados a pensá-lo, repensá-lo, debatê-lo, problematizá-lo e
transformá-lo.

Em consonância com o sentido crítico de agência, o professor


Flávio, participante do grupo 2, conceitua agência como poder, corro-
borando a formulação de Giddens (2003) na qual se entende que toda
ação de um sujeito engloba poder no senso de capacidade transforma-
dora dos indivíduos, o que é associado à sua intenção. Flávio prossegue
sua formulação de agência como poder compartilhado, empregando o
termo “empoderar” como sinônimo de exercício de agência docente:

Pesquisadora: Flávio, então o que é agência do pro-


fessor na sua visão?
Flávio: Poder.
Pesquisadora: Como você desenvolve agência?

113
AGÊNCIA DE PROFESSORES DE LÍNGUAS SOB A ÓTICA DOS NOVOS LETRAMENTOS

Flávio: Como eu falei. É... Mostrando para ele que


nenhuma teoria vem do nada, nenhuma teoria ser-
ve para nada. É o que eu faço na educação básica,
(você tem na) formação de professor. Empoderar
um aluno significa exatamente dar condições para
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

ele escolher que tipo de professor ele quer ser. Mas


é consciente. Ele quer ser tradicional? Seja! Eu te-
nho o mesmo nível de formação que você, eu sou
um par, seria antiético se eu dissesse que isso está
errado. O meu problema não é com o professor
que dá aula tradicional entre aspas. Agora ele tem
que saber que aquilo é tradicional e porque ele está
fazendo aquilo. A que interesse ele está servindo,
que tipo de coisa e implicações aquilo tem para o
aluno dele. Eu acho que ensinar um aluno é pro-
vocar ele. Mostrar que não existe nada que vem no
vácuo (Entrevista, Flávio, trecho 5, 4 nov. 2017,
grifos do autor).

O exercício de agência, a partir desta leitura, se baseia no pressu-


posto de que o professor formador fornece subsídios ao professor em
formação para que este tenha consciência crítica sobre as suas esco-
lhas de atuação, o que também acontece na relação entre o professor
já atuante na educação básica e seus estudantes. Essa relação precisa ser
salientada, uma vez que se assenta no caráter relacional da agência e
porque se aproxima dos postulados da Pedagogia Crítica, fundada em
uma visão de linguagem como ideologia (JORDÃO, 2013). Tal visão
de linguagem não permite uma construção de conceitos, mas um des-
cortinamento da verdade, que já existia aprioristicamente. Como con-
sequência, o professor, enquanto um membro empoderado e ocupante
de uma posição social de ensino, teria o conhecimento da verdade e,
portanto, a competência para transmiti-la a seus alunos. Em minha lei-

114
AGÊNCIA DE PROFESSORES DE LÍNGUAS SOB A ÓTICA DOS NOVOS LETRAMENTOS

tura, tal prática, ainda que em bases críticas, se aproxima, em sua forma,
de uma pedagogia transmissiva, na qual o professor transmite o con-
teúdo da verdade ao aluno. Em teorias de letramento crítico, fundadas
na construção sociocultural dos sujeitos e da realidade, cabem questio-
namentos a propósito de quem são os sujeitos empoderadores e quem

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


são os empoderados, quem decide o que é verdade e quem a aceita,
com base em quais epistemologias e com quais objetivos (MARTINEZ,
2007; JORDÃO, 2013).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste texto discuti a conceituação de agência humana traduzida


na formação de professores de línguas em um contexto de formação ini-
cial e continuada. A agência aqui discutida é compreendida como um
fenômeno contingente e emergente, ou seja, articula a esfera individual
dos sujeitos e sua capacidade de transformação das experiências vividas
aos fatores condicionantes presentes na estrutura social.

Além disso, defino agência de forma situada ao contexto investi-


gado, uma vez que agência é um construto transdisciplinar e relacional,
sempre vinculada a algo, condizente portanto com uma visão situada
de língua e discurso nas quais se inserem relações sociais, institucionais,
culturais e políticas. Em outras palavras, agência é um construto micro
que nos ajuda a compreender um macro de relações.

Concentrei a discussão sobre as concepções de agência emergen-


tes dos dados gerados em três vertentes: a agência do professor técnico,
a agência do professor herói e a agência do professor crítico. Na primei-
ra noção, bastante presente nos moldes tradicionais de educação, o pro-
fessor tem sua atuação limitada a se desempenhar conforme a sua for-
mação lhe subsidiou, ou seja, replicar teorias e experiências de formação
sem, no entanto, exercer um papel de autoria de suas próprias práticas.

115
AGÊNCIA DE PROFESSORES DE LÍNGUAS SOB A ÓTICA DOS NOVOS LETRAMENTOS

Na segunda concepção, o professor tem a expectativa de atuar


sozinho, transpondo todas as dificuldades de seu entorno. Isto é, uma
visão romantizada que costuma mascarar os problemas das estruturas
sociais sobre as quais se apoia o trabalho do professor, que atua de forma
acrítica e reprodutora.
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

Já a terceira concepção se concentra no papel fundamental do


professor como um agente crítico, que atua a partir da reflexão sobre
suas práticas e busca trazer para a sala de aula questões sociais presentes
no mundo. Esse papel leva em conta a centralidade da agência como
poder, porém trago questionamentos sobre qual epistemologia dá base a
esse poder, uma vez que se pode confundir o papel de agenciador como
uma pedagogia tradicional, transmissiva, na qual o professor possui o
conhecimento da verdade e transfere aos alunos os seus conhecimentos.

À guisa de conclusão, saliento a agência como um elemento a ser


desenvolvido nas práticas de formação inicial e continuada de profes-
sores de línguas, sempre entendido de forma contextualizada e relacio-
nada às condições sobre as quais se apoia este trabalho. Corroborando
a visão ecológica de agência (BIESTA; PRIESTLEY; ROBINSON,
2015), penso que a atuação transformadora de professores ocorre a par-
tir do trabalho em comunidades de prática que superam o isolamento
profissional e abrangem a interlocução com os vários participantes da
comunidade escolar, o que inclui a perspectiva para uma formação de
educandos para uma sociedade global. Essa atuação nunca ocorre em
isolado, mas se propõe a atender necessidades e demandas locais da co-
munidade, com base em experiências já vividas, mas projetando novas
ações críticas e problematizadoras na sociedade global, que permitam
novas leituras de mundo que resultem em novos posicionamentos, mais
plurais, democráticos e igualitários.

116
AGÊNCIA DE PROFESSORES DE LÍNGUAS SOB A ÓTICA DOS NOVOS LETRAMENTOS

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AGÊNCIA DE PROFESSORES DE LÍNGUAS SOB A ÓTICA DOS NOVOS LETRAMENTOS

120
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS
MOVIMENTOS DE UM PROFESSOR DE INGLÊS EM SUA PRÁXIS CRÍTICA COM UM LIVRO DIDÁTICO

6.
MOVIMENTOS DE UM PROFESSOR
DE INGLÊS EM SUA PRÁXIS CRÍTICA

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


COM UM LIVRO DIDÁTICO

Victor Hugo Oliveira Magalhães | Instituto Federal Goiano (IFG, campus Urutaí)

N
a minha experiência e na de muitas/os outras/os professoras/es30
de línguas, a práxis pedagógica da/do professora/professor pode
estar submetida, querendo ela/ele ou não, ao conteúdo e à forma
de trabalhar proposta pelo livro didático. Isso parece suceder tan-
to no cenário do ensino regular, na escola pública ou particular, quanto
no cenário das escolas de línguas. Essa situação é dilemática para mui-
tas/os, em especial para aquelas/es que buscam realizar um trabalho do-
cente dentro de perspectivas críticas, visto que muitos dos temas, e até
mesmo a forma como a própria língua é tratada, se alinham a visões que
fogem de muitos dos preceitos da criticidade. Pensando nisso, escrevi
minha dissertação, da qual extraio alguns pontos para este texto, tendo
em mente a pergunta: como se dá o uso do livro didático na práxis do-
cente crítica de um professor de Inglês como língua adicional de uma
escola livre de idiomas?

Os recortes empíricos apresentados aqui são de um estudo de


caso realizado em uma turma de Inglês Intermediário de uma escola
de idiomas de Goiânia. Entre as/os participantes, figura o professor de

30 Neste texto opto por referenciar primeiro ao gênero feminino nos momentos em
que falo sobre pessoas de modo generalizado.

121
MOVIMENTOS DE UM PROFESSOR DE INGLÊS EM SUA PRÁXIS CRÍTICA COM UM LIVRO DIDÁTICO

pseudônimo Joaquim. Na época da geração de material empírico, ele


havia trabalhado há dez anos como professor de inglês como língua
adicional, majoritariamente na escola onde a pesquisa foi realizada. Em
um questionário inicial, ele definiu sua práxis docente como crítica e
relatou gostar do livro didático correspondente ao da turma observada.
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

Joaquim também respondeu a uma entrevista semiestruturada, realiza-


da ao fim do processo de geração de material empírico. Além do profes-
sor, participaram do estudo seis alunas/os, sendo a maioria delas/es de
gênero masculino e maiores de idade. Neste texto, suas falas, retiradas
a partir das observações e gravações de quatro aulas, serão reproduzidas
com os devidos pseudônimos a fim de ilustrar algumas das reflexões
propostas aqui.

O livro didático em questão é o New Framework 3, da editora


Richmond, autorado por Bem Goldstein e Leanne Gray e lançado em
2009. O New Framework 3 é de nível intermediário (referencial B2 no
Quadro Comum Europeu de Referência para Línguas) e traz 12 unida-
des com diferentes temas e conteúdos linguísticos. A primeira unidade,
que é a trabalhada pelo professor nas aulas observadas, trata da questão
de gênero, enquanto as demais tocam nos temas de moradia, corpo,
tabus, escola, cinema, crime, política, desigualdade, choque cultural,
personalidades célebres e sonhos. O livro é focado principalmente em
atividades de fala e discussão, com questões de gramática formal apa-
recendo mais como coadjuvantes do que como protagonistas. Essa é
uma possível razão pela qual Joaquim alegou gostar do material, mas
poderemos julgar isso melhor mais à frente no texto.

A seguir, exploro algumas discussões referentes ao livro didático e


sua relação com a práxis docente, em especial a crítica. Logo após, passo
à apresentação de alguns dos movimentos do professor Joaquim nesse
contexto. Ao fim, traço algumas considerações e ponderações finais a
fim de provocar mais reflexões sobre o assunto trazido aqui.

122
MOVIMENTOS DE UM PROFESSOR DE INGLÊS EM SUA PRÁXIS CRÍTICA COM UM LIVRO DIDÁTICO

O LIVRO DIDÁTICO E A PRÁXIS DOCENTE CRÍTICA

Parece ser senso comum que o livro didático é um recurso cos-


tumeiro dentro do contexto escolar. Para aquelas/es que tiveram seu
contato com esse contexto nas últimas décadas, basta um rápido acesso
à memória para se lembrar de sua presença. Essa constância em nossas

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


memórias e na realidade em que elas figuram tem motivado diversas/
os pesquisadoras/es a estudar suas implicações para a educação tanto
em sentido micro (na sala de aula e escola) quanto em sentido macro
(projetos e documentos nacionais de educação). Mas como tal objeto se
tornou tão importante e presente no contexto educacional?

Paiva (2009) traça uma breve história do livro didático no con-


texto da educação linguística de inglês. O livro em si, como o conhe-
cemos hoje, é um artefato ocidental do século II d.C., “socializado”,
inicialmente às elites, a partir da invenção da imprensa, estabelecen-
do-se assim a cultura letrada. O livro didático, mais precisamente, se
resumiu por anos ao conteúdo gramatical, sendo inclusive chamado
familiarmente de “gramática” (PAIVA, 2009, p. 19). Essas “gramáticas”
se restringiam a explicações de estruturas gramaticais da língua e exer-
cícios de tradução, não raramente reflexos dos preconceitos e intolerân-
cias da época. Frases a serem traduzidas como “a minha prima vendeu
seu escravo”, “that negress has very good teeth”31 e “a European is generally
more civilized than an African”32 são exemplos grotescos disso (PAIVA,
2009, p. 23). Conforme o tempo passou, Paiva (2009) aponta, meto-
dologia e conteúdo foram mudando, recebendo uma roupagem mais
comunicativa e se tornando mais progressista, ainda que não ao ponto
de eliminar muitos outros resquícios problemáticos.

31 No original: “aquela negra (pejorativo) tem dentes muito bons” (tradução livre).
32 No original: “um europeu é geralmente mais civilizado que um africano” (tradu-
ção livre).

123
MOVIMENTOS DE UM PROFESSOR DE INGLÊS EM SUA PRÁXIS CRÍTICA COM UM LIVRO DIDÁTICO

A questão das representações de mundo através dos textos, tarefas


e ilustrações do livro didático é um dos pontos que mais são discuti-
dos sobre o artefato (REES, 2009; SIQUEIRA, 2010; TOMLINSON;
MASUHARA, 2013; BLOCK, 2017; LOPES; SANTOS, 2021). Essas
representações geralmente refletem um caminho de informação e de po-
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

der unilateral, mostrando o mundo, a língua e aspectos culturais já esta-


belecidos como uma realidade (REES, 2009). A globalização como trans-
parece no livro didático, concluem Tomlinson e Masuhara (2013, p. 42),
acaba por se resumir em “propaganda para valores ocidentais, capitalistas
e materialistas”, assim como neoliberais (BLOCK, 2017). Nesse sentido,
o livro didático (em particular o de inglês) é quase sempre propagador de
uma bolha de realidade onde todas/os se preocupam apenas com elas/es
mesmas/os e com seu lazer (hobbies, viagens, aquisições etc.), raramente
se importando com o bem-estar alheio ou os conflitos sociais reais de
raça, gênero e sexualidade da sociedade (LOPES; SANTOS, 2021). O re-
sultado disso é “a neutralidade insossa e higienizada dos materiais comer-
cialmente publicados” (TOMLINSON; MASUHARA, 2013, p. 40), o
“mundo plástico” do livro didático (SIQUEIRA, 2010), ou o potencial
de reforçar e manter resquícios coloniais que privilegiam as hegemonias
que “detêm” autoridade sobre a língua (REES, 2009).

Autoras/es como Xavier e Urio (2006), Tilio (2012), Duboc


(2014), Silva, Parreiras e Fernandes (2015) e Lopes e Santos (2021)
escrevem sobre as discrepâncias entre as crescentes discussões sobre
perspectivas críticas no campo do ensino de língua adicional e a lenta
adaptação por parte dos materiais didáticos em relação a isso. Parece
ainda não haver, integradas ao livro didático, atividades e debates so-
bre questões históricas, sociais e culturais de modo a instigar a reflexão
sobre as realidades a serem problematizadas no mundo. Daí que, pela
comodidade que o livro didático pode oferecer no planejamento e exe-
cução de uma aula, sendo ele “o currículo em si a ser ministrado, di-
tando conteúdo e atividades, e até mesmo maneiras de avaliar” (SILVA;

124
MOVIMENTOS DE UM PROFESSOR DE INGLÊS EM SUA PRÁXIS CRÍTICA COM UM LIVRO DIDÁTICO

PARREIRAS; FERNANDES, 2015, p. 356), ou ainda, o “sol” ao redor


do qual os outros elementos da educação linguística giram, o livro di-
dático acaba “irradiando” valores hegemônicos problemáticos através
de suas páginas.

Levando em consideração essa distância temática e os vícios me-

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


todológicos que, cultivadas pelo livro didático, esvaziam sua função so-
cial e política na escola (ou o melhor talvez seria dizer, prezam por uma
bastante específica e hegemônica), o que parece ser razoável concluir é
que ele jamais abarcará em sua totalidade os interesses e necessidades
dos indivíduos que fazem uso dele (XAVIER; URIO, 2006). No entan-
to, há tentativas de encurtar essa distância entre o livro didático e esses
interesses e necessidades por meio do processo de avaliação rigorosa
do livro didático, como no caso do Programa Nacional do Livro e do
Material Didático (PNLD), por exemplo. O PNLD enseja aproximar
o corpo pedagógico das escolas públicas ao processo de seleção de seus
livros didáticos, possibilitando que professoras(es) trabalhem com um
material mais crítico e condizente com suas realidades. Silva, Parreiras
e Fernandes (2015) discutem os processos de seleção de livros didáticos
de inglês do PNLD, traçando valiosas considerações sobre os critérios
para a adoção do material, ao mesmo tempo que reconhecem a ação da/
do professora/professor como elemento essencial na utilização do livro
didático em sala de aula.

Nesse sentido, além de Silva, Parreiras e Fernandes (2015), au-


toras/es como Tilio (2012), Duboc (2014) e Lopes e Santos (2021)
afirmam que cabe à/ao professora/professor o papel de implementar e
adequar qualquer material para um fim problematizador crítico. Tilio
(2012) defende que mesmo atividades que não tragam discussões crí-
ticas e reflexivas podem ser usadas como ponto de partida para discus-
sões acerca dos conteúdos apresentados; Duboc (2014), por sua vez,
incentiva a ação nas “brechas”, ou seja, o uso do material didático de
forma a aproveitar espaços e momentos na aula para atividades de per-

125
MOVIMENTOS DE UM PROFESSOR DE INGLÊS EM SUA PRÁXIS CRÍTICA COM UM LIVRO DIDÁTICO

sonalização que tragam discussões relevantes para a sala de aula. Lopes e


Santos (2021) coadunam com as ideias das/os autoras/es citadas/os e re-
forçam a necessidade da problematização e suplementação do material.
De toda forma, um ponto em que todas/os concordam em seus textos é
que a/o professora/professor deve estar atenta/o sobre suas concepções
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

com relação ao que é, de fato, educar criticamente.

Há também aquelas/es que discutem uma ruptura mais profun-


da no uso do livro didático, como é o caso de Magno e Silva (2009),
Kumaravadivelu (2016) e Lima-Neto (2021). Kumaravadivelu (2016,
p. 75) é bastante franco ao defender que a suplementação do material
em si não cumpre com uma educação linguística em perspectiva crítica
e decolonial:

Acho divertidos esses argumentos [sobre a adap-


tação do material didático] porque eu não vejo
como “leituras opositivas” ou rabiscos marginais
podem fazer alguma diferença na bonança comer-
cial, agenda ideológica ou agência dominadora das
indústrias de livro didático com bases no centro.
Afinal, mesmo se eles forem submetidos a um uso
subversivo, os livros didáticos têm que ser indica-
dos pelos professores e comprados pelos aprendizes
em primeiro lugar. Quando eles fazem isso, é “mis-
são cumprida” para a indústria da publicação.33

33 No original: “I am amused by these arguments because I do not see how ‘oppositional


readings’ or marginal doodles can make any difference to the commercial bonanza or
the ideological agenda or the dominating agency of center-based textbook industries.
After all, even if they are put to subversive use, textbooks have to be prescribed by
teachers and bought by learners in the first place. When they do that, it is ‘mission
accomplished’ for the publication industry.”

126
MOVIMENTOS DE UM PROFESSOR DE INGLÊS EM SUA PRÁXIS CRÍTICA COM UM LIVRO DIDÁTICO

Tendo esse quadro em vista, Magno e Silva (2009) recomenda


que professoras/es e alunas/os se engajem em um processo de autono-
mização, ou em outras palavras, independência intelectual, para que o
livro didático seja finalmente posto de lado. Lima-Neto (2021) reforça
a mesma necessidade, mirando em uma progressiva minimização da

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


dependência como meio de se estabelecer uma ruptura epistêmica con-
creta com o livro didático. Estabelecer uma prática pedagógica sem o
artefato, segundo a autora, é possível, mas, assim como no cenário de
uma prática pedagógica com ele, para que essa prática se adentre em um
parâmetro crítico, uma grande porção da responsabilidade recai sobre a
figura da/o professora/professor.

Escolhas pedagógicas sobre o desenvolvimento de currículo,


conteúdo, materiais, processos de sala de aula, e uso da língua são, de
fato, inerentemente ideológicas por natureza (PENNYCOOK, 1999).
Assim, é inevitável reconhecer professoras/es como seres com subjetivi-
dades e intencionalidades únicas, imbuídas/os de suas marcas sociais e
histórias de vida. Essas características, naturalmente, vazam para a sala
de aula. Estendendo essa constatação também às/aos alunas/os, pode-se
dizer que a sala de aula de língua adicional se torna um ambiente de
compartilhamento (e embates) de distintas visões e experiências. O en-
sino de língua adicional dentro de uma perspectiva crítica aprecia esse
fator e se vale dele como base para a problematização das relações no
mundo afora.

Ao se considerar as relações entre os discursos em sala de aula,


pode-se entender que um certo nível de imprevisibilidade é reservado às
práticas enunciativas na sala de aula. Tendo dito isso, uma práxis crítica,
segundo Ellsworth (1989, p. 323), deve se preocupar em ser “profunda-
mente contextual (histórica) e interdependente (social)”, ou seja, jamais
fixa e sempre situada. Dessa maneira, um modelo definido de práxis é
impossível, pois sujeitos e discursos são demasiadamente plurais para
isso. O que parece ser mais útil é uma preocupação ética em contexto

127
MOVIMENTOS DE UM PROFESSOR DE INGLÊS EM SUA PRÁXIS CRÍTICA COM UM LIVRO DIDÁTICO

educacional, onde as dimensões sociais, históricas, políticas, ontológi-


cas e afetivas são consideradas para a ação em inesperados momentos
críticos (PENNYCOOK, 2004), onde questões críticas emergem sem
prévio aviso e uma atitude rápida é exigida à/ao professora/professor e
demais indivíduos envolvidos.
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

Retornando à questão do livro didático, a/o professora/professor,


a partir do entendimento de práxis crítica exposto aqui, escolhe, adicio-
na e remove, na medida do possível, o que lhe parece mais condizente
no momento, guiada/o, esperançosamente, por uma noção de práxis
docente que localiza, acima de tudo, a preservação ética do eu e do
outro. Essa preservação, como espero ter elaborado bem aqui, não é
garantida por uma ideia rija do que seja uma práxis crítica, mas sim pela
atenção, autorreflexão e atitude empática sobre a realidade que se mos-
tra. A seguir, apresento como Joaquim, nosso professor participante,
movimenta-se em sua práxis docente crítica com o livro didático com o
qual (precisa) trabalha(r).

ENTRE SUBMISSÕES E SUBVERSÕES

Durante o processo de geração do material empírico, momentos


de uso e não uso do livro didático por Joaquim foram se apresentando,
abrindo margem para a interpretação de algumas das razões que mo-
veram o professor a usar ou não o livro didático na sua práxis docente
crítica. Tomo a liberdade de usar aqui as palavras “submissão” e “sub-
versão” por acreditar que elas caracterizam bem as relações entre o pro-
fessor Joaquim e o livro didático em diferentes momentos. Comecemos
pela primeira delas, “submissão”.

O primeiro aspecto a se destacar é a questão de a imposição insti-


tucional do livro didático agir tanto sobre o professor quanto sobre as/
os alunas/os. Ao fim da segunda aula observada, por exemplo, Joaquim

128
MOVIMENTOS DE UM PROFESSOR DE INGLÊS EM SUA PRÁXIS CRÍTICA COM UM LIVRO DIDÁTICO

questiona um aluno na frente do restante da sala sobre o fato de ele


ainda não possuir o livro. Após propor uma atividade para casa com o
material, o aluno responde ainda não ter o livro, pois comprou outro
por engano. Joaquim reage com surpresa dizendo:

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


Joaquim: You don’t have the book yet?34
(Aluno diz que não, que tem o livro errado)35
Joaquim: Ah, you bought the wrong book, right?
What have you done about it?
(Aluno explica que pediu a troca para a livraria que
lhe vendeu o livro errado)
Joaquim: Have you called them?
(Excerto 1 de aula observada).

Neste ponto, o aluno afirma que sim e que insistirá em uma tro-
ca, e a conversa se encerra, sem uma resposta de Joaquim. Em um outro
episódio, desta vez no início da terceira aula, Joaquim observa os livros
das/os alunas/os e percebe que um aluno tinha um livro usado com as
respostas da/o antiga/o dona/o. Ao reparar nisso, diz:

Joaquim: Have you erased your book?


(O aluno ri)
Joaquim: Please!
(Excerto 2 de aula observada).

34 Opto por manter os excertos de falas das aulas observadas nas línguas em que
foram produzidas, a fim de reproduzir possíveis nuances da comunicação no
contexto.
35 Este aluno em particular não se voluntariou a participar da pesquisa, e, por-
tanto, teve suas falas resumidas por mim para que não se perdesse o sentido da
interação.

129
MOVIMENTOS DE UM PROFESSOR DE INGLÊS EM SUA PRÁXIS CRÍTICA COM UM LIVRO DIDÁTICO

Como ficará evidente mais à frente nas discussões desta seção,


essa exigência não condiz com a forma com a qual Joaquim usa o livro
didático em suas aulas. Isto é, dada a pouca ou nenhuma interferência
das respostas no livro didático nas atividades que de fato o envolvem,
resta concluir que a exigência brota em sua maior parte de uma motiva-
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

ção/imposição institucional.

Como a realidade de Joaquim se põe, no entanto, resta-lhe, a meu


ver, que aja entre a autonomia relativa/intermediária (LIMA-NETO,
2021) que lhe resta (e que lhe é possível dentro da escola em que tra-
balha) e as prescrições impostas. Para “fugir” do uso restrito do livro
didático, Joaquim deve ser criativo na adaptação do material. Esse tipo
de ação é próximo ao que Duboc (2014) caracteriza como “agir nas bre-
chas”, ou aproveitar espaços e lacunas no currículo para a realização de
um trabalho mais crítico. Coaduno com essa ideia na medida em que
recomenda uma forma de práxis docente que, ainda que não comple-
tamente transgressora e radical, objetiva revolucionar gradativamente,
dentro dos cerceamentos que infelizmente existem.

Tais “brechas” aparecem muitas vezes nas aulas observadas do


professor Joaquim. Uma instância dessa ação fora do esperado do uso
livro didático é, por exemplo, a primeira “aparição” do recurso, que só
ocorreu no final da segunda aula observada, e ainda assim, como tarefa
de casa:

Joaquim: Alright, people, for next class, we’re gonna


work on the unit 6, the gender gap, ok? So that’s why
teacher Joaquim was constructing all of this conversa-
tion before, because we’re gonna go into this chapter to
talk about gender, the gender gap. So I want you to do
these exercises, read the steps, ok? I want a volunteer to
explain this text to us. Who wants to?
Alunas/os: (murmuros, um dos alunos levanta a

130
MOVIMENTOS DE UM PROFESSOR DE INGLÊS EM SUA PRÁXIS CRÍTICA COM UM LIVRO DIDÁTICO

mão e se voluntaria)
Joaquim: I want you to read this and do the exercises
on jobs, ok? One, two, three, four and five. Because
we’re gonna go over it, but if you do this before we’re
gonna construct the class faster.

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


(Excerto 3 de aula observada).

No excerto acima, Joaquim explica que as/os alunas/os deverão


fazer certos exercícios do livro didático e ler um texto como tarefa de
casa. No livro em questão, esse não era o procedimento esperado para a
realização dessas atividades. Logo nos primeiros “usos” do livro didático
nas aulas de Joaquim, é perceptível que o professor se sente à vontade
para adaptar o conteúdo trazido de forma que se encaixe melhor na
maneira como deseja conduzir suas aulas.

O próprio tema em voga, gênero, que é previsto pelo livro, não é


trabalhado diretamente a partir da obra, mas trazido pelo professor na
primeira aula através de outras atividades que não envolvem o material.
Quando Joaquim afirma que ele estava construindo toda a conversa so-
bre o tema por causa do capítulo sobre o qual iriam trabalhar, o que se
nota é justamente que o diálogo veio antes do livro, ainda que influen-
ciado pelo último. Nesse sentido, o livro didático pareceu funcionar
como um recurso que serviu de suporte para o diálogo que já estava
ocorrendo em sala de aula. Seu uso por Joaquim cumpriu uma exigên-
cia institucional, ao mesmo tempo em que contemplou uma prática
docente mais particular do professor.

Das quatro aulas observadas, a quarta e última foi a aula na qual


Joaquim fez mais uso do livro didático. Logo no começo da aula, o pro-
fessor adapta uma das tarefas do livro como atividade de aquecimento:

Joaquim: So, I’m gonna show you some names and


professions and I want you to describe this profession

131
MOVIMENTOS DE UM PROFESSOR DE INGLÊS EM SUA PRÁXIS CRÍTICA COM UM LIVRO DIDÁTICO

to the others so the others will guess. So group 1 and


group 2, this is a competition!
(Excerto 4 de aula observada).

Ao comparar o exercício no livro com o tipo de atividade propos-


LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

ta por Joaquim, percebe-se que o professor aproveitou apenas os itens


de vocabulário dispostos. De fato, o exercício original não previa uma
atividade extensa ou promovedora de discussão, ao passo que o uso que
Joaquim faz da atividade, dado o teor das aulas até este ponto, acaba
possibilitando que alguns momentos críticos aconteçam:

Gabriel: (descrevendo uma profissão) He needs to


study a lot, to… improve your own knowledge.
Joaquim: His! His own knowledge.
Gabriel: His knowledge.
Joaquim: So, when we’re using generically a person,
ok? A person in Portuguese is female. You use the fe-
male gender. And in English? Like, he’s talking gener-
ically of a person. How can I solve this problem?
Pirrex: This person…
Joaquim: Yeah, but you need to use his/her…
Alunas/os: (dando palpites)
Joaquim: His? Why his?
(Excerto 5 de aula observada).

Aqui inicia-se uma longa discussão sobre expressão de gênero em


inglês. Ao ouvir “his” como opção para tal, Joaquim questiona o termo
e inicia uma problematização do uso do gênero masculino como for-
ma padrão para se expressar gênero de forma generalizada. O professor
aproveita a oportunidade que surge da realização da atividade e cons-
trói a partir disso um momento de discussão. Esse momento crítico,
definido por Pennycook (2004, p. 330) como “momentos quando nós

132
MOVIMENTOS DE UM PROFESSOR DE INGLÊS EM SUA PRÁXIS CRÍTICA COM UM LIVRO DIDÁTICO

aproveitamos a chance de fazer algo diferente, quando nós percebemos


que algum novo entendimento está acontecendo”36, não passou desper-
cebido por Joaquim porque este mantém uma postura crítica proble-
matizadora em sua práxis docente. Ele explica na entrevista semiestru-
turada final:

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


[...] porque quando eu saio depois daquela discus-
são, assim, quando eu já entro para aquela discus-
são eu penso assim: esses alunos estão dentro da
minha sala, eles representam o mundo deles quan-
do estão lá dentro. E o mundo que a gente vive,
tem esse pensamento, esse (outro) pensamento e
esse (outro) pensamento majoritário. Então essas
coisas vão suscitar. E eu, né, eu provoco isso, esse
suscitar. Eu provoco no sentido também de ouvir,
de saber fazer eles chegarem no ponto. Tipo, “ai,
não concordo” ou “ai, eu concordo”. Por quê? Mes-
mo que “ai, teacher, eu concordo com você”, ok,
por quê?
(Excerto 1 de entrevista).

A discussão exposta com certeza não estava prevista pelo material


didático, e aparece justamente devido às ações e subjetividades dos su-
jeitos presentes. Nesse sentido, parece possível dizer que o uso adaptado
do livro didático pode ajudar a trazer à superfície questões relevantes da
experiência tanto da/do professora/professor quanto das/dos alunas/os
para serem problematizadas. Recorro a Magno e Silva (2009) e Pessoa
e Hoezle (2017) para reforçar que, não importa quão restrita seja a co-
brança institucional em cima do livro didático, esse material será sem-
pre refletido e refratado pelos sujeitos que de fato o usam.
36 No original: “those critical moments when we seize the chance to do something dif-
ferent, when we realize that some new understanding is coming about”.

133
MOVIMENTOS DE UM PROFESSOR DE INGLÊS EM SUA PRÁXIS CRÍTICA COM UM LIVRO DIDÁTICO

Passamos agora às instâncias de não uso do livro didático, as quais


chamo de “subversões” aqui, que foram muito mais recorrentes que as
de uso ou adaptação do material. A subversão de Joaquim quanto ao
uso do livro ficou nítida logo nos momentos iniciais da primeira aula
observada. O professor, em vez de introduzir o tópico de gênero através
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

do livro ou de uma atividade adaptada dele, acaba por dedicar toda a


aula à discussão de uma canção: a “If I Were A Boy”, de Beyoncé. A
letra da canção, em linhas gerais, é sobre uma voz feminina que narra
como agiria se fosse do gênero oposto, apontando as diferenças nas
relações de poder entre feminino e masculino. Aproveitando-se disso,
Joaquim usa a letra da canção como pontapé para uma discussão em
sala de aula, perguntando às/aos suas/seus alunas/os se concordavam ou
não com alguns dos versos. O resultado foi uma aula inteira de discus-
são, de onde saíram interações como a seguinte:

Pirrex (sobre homens): Generally, they want to sup-


port one each other.
Joaquim: Women don’t?
Pirrex: They don’t. They fight each other.
Joaquim: What do they fight over?
Pirrex: I can’t understand.
(O professor repete a pergunta)
Alguns alunos (homens): Boys? (rindo)
Pirrex: I can’t say… attention. The others’ attention.
They want to be the most beautiful, the most intelli-
gent, and they… fight.
Joaquim: Boys never fight?
Pirrex: Hmm… it’s rare. Boys are more united than
women.
Joaquim: Boys are more united. What do you mean
by union?
(Excerto 6 de aula observada).

134
MOVIMENTOS DE UM PROFESSOR DE INGLÊS EM SUA PRÁXIS CRÍTICA COM UM LIVRO DIDÁTICO

Os dois excertos acima mostram partes das discussões realizadas


sobre as diferenças entre homens e mulheres, instigadas pela letra da
música. Atendo-se primeiramente às pessoas que enunciavam, pode-
mos ver que as vozes do professor Joaquim e do aluno Pirrex são as que
predominam na discussão. Nessa aula em específico, Pirrex foi o alu-

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


no que mais participou, mostrando-se muito à vontade com o tópico.
Pirrex é um aluno do gênero masculino, e suas ideias parecem refletir
algumas opiniões sobre gênero consideradas defasadas ou ultrapassa-
das. O’Loughlin (2001, p. 38) explica que “é importante reconhecer
que nossos aprendizes trazem comportamentos de (e concepções sobre)
gênero de suas culturas prévias nas quais eles viveram”37. Isso talvez jus-
tifique o porquê de Pirrex possuir tanto repertório sobre o tópico em
questão, e o compartilhar de forma tão direta.

O tipo de prática demonstrada por Joaquim parece se aproximar


da prática problematizadora de Pennycook (2001). Segundo o autor,
a prática problematizadora seria uma postura de insistência no lança-
mento de dúvidas em detrimento da adoção de verdades, ou seja, um
loop constante de questionamentos e problematizações que buscam
compreensões temporárias da realidade posta. Na entrevista final, algo
semelhante é exposto por Joaquim como sendo descritivo de sua prática
pedagógica:

Eu sempre tento fazer da aula um espaço para dis-


cussões. Se trabalho comida, por exemplo, tento
fazer com (que) discutamos algo em torno. Acredi-
to, ultimamente, que a minha forma de trabalhar
com a crítica não está de forma alguma imputada,
isto é, de mim para a turma. Mas, a gente discute
as coisas sem a necessidade de se chegar a um acor-

37 No original: “it is important to acknowledge that our learners bring gendered behav-
ior from the previous cultures in which they have lived”.

135
MOVIMENTOS DE UM PROFESSOR DE INGLÊS EM SUA PRÁXIS CRÍTICA COM UM LIVRO DIDÁTICO

do. É óbvio que eu adoraria que depois das dis-


cussões eles/elas concordassem com o que foi dito
por mim. Mas, não acho que é minha função isso.
Penso que trabalho dentro de uma perspectiva me-
tapragmática. Isto é, ao invés de propor visões do
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

mundo numa abordagem direta, imputada, eu in-


cito que falem o que pensam e quando falam faço
perguntas para que tenham que (re)calibrar o que
foi dito. Fazer a turma repensar o mundo é aquilo
que acredito dentro de um ensino não bancário e
performativo.
(Excerto 2 de entrevista).

O objetivo da educação linguística dentro dessa perspectiva críti-


ca nunca é o de incentivar, ingenuamente, o congraçamento geral entre
as visões de mundo. Isso pode significar que nunca haja uma concilia-
ção definitiva no diálogo, e que professoras/es e alunas/os, assim como
todos nós fora do âmbito da sala de aula, estaremos sempre enunciando
nossas opiniões sem “a necessidade de se chegar a um acordo”, como
enunciado por Joaquim. Quando Joaquim se engaja na sua prática pro-
blematizadora com Pirrex, portanto, creio que ele está ciente disso, e
não espera que seus questionamentos a Pirrex o desconvençam magica-
mente de seus valores, mas sim que o incitem a entrar em um processo
de autorreflexão.

Na contrapartida da dinâmica entre Joaquim e Pirrex, seguindo a


análise da primeira aula, um ponto interessante sobre os diferentes tipos
de vozes que existem em sala de aula pode ser levantado a partir de dois
episódios com uma aluna, Daniella:

Daniella (descrevendo o vídeo da apresentação ao


vivo da canção trabalhada): Aggressive.

136
MOVIMENTOS DE UM PROFESSOR DE INGLÊS EM SUA PRÁXIS CRÍTICA COM UM LIVRO DIDÁTICO

Joaquim: What is aggressive?


Daniella: The performance.
Joaquim: How do you see aggressiveness?
(Silêncio)
Joaquim (a todas/os): Did you find it aggressive?

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


Why was it aggressive?
(Silêncio)
(Excerto 7 de aula observada).

Joaquim: Being a boy in India, is it the same as being


a boy in Brazil?
(Alunas/os em silêncio)
Joaquim: And you, GIRL?
Daniella: Yes, teacher, I agree with you (baixo).
(Excerto 8 de aula observada).

A aluna em questão, nos dois momentos representados pelos ex-


certos, recuou das discussões e se mostrou visivelmente desconfortá-
vel. Joaquim, apesar de tentar instigar a aluna a argumentar (“and you,
GIRL?”, “and do you like that?”, “why don’t you tell?”), não obteve êxito.
Na entrevista final o professor desabafa sobre o fato:

Então eu aprendi muito com o tempo sobre parti-


cipação e demanda de aluno, demanda de voz, né?
Tem aluno que tem a perspectiva de ouvir mesmo.
Mas isso não significa que não está acontecendo
alguma coisa. Está acontecendo alguma coisa. Só
que... [o aluno] prefere não falar. Os alunos que
geralmente participam são... naquela turma espe-
cífica e no geral também são homens. Existia um
tratamento, você pode ver que os homens falavam
mais. E... a Mariana falava mais. Aquela loira, que

137
MOVIMENTOS DE UM PROFESSOR DE INGLÊS EM SUA PRÁXIS CRÍTICA COM UM LIVRO DIDÁTICO

era casada, falava mais também, mas ela tem um


background da psicologia, porque ela é psicóloga.
Então eu acho que aquilo motivava ela. A outra
aluna, que eu já não lembro o nome [Daniella],
ela tinha uma perspectiva de ser calada em todas
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

as aulas. E naquela aula que eu acho que suscitava,


isso uma interpretação minha, coisas mais fora do
domínio dela, ela tinha mais dificuldade... E assim,
uma outra dificuldade de falar, é de saber como o
teacher Joaquim vai reagir, né?
(Excerto 3 de entrevista).

Joaquim levanta um interessante ponto referente à própria ques-


tão de gênero quando diz que “os alunos que geralmente participam
são... naquela turma específica e no geral também são homens”. Isso
aponta que, para além do tratamento do tópico em questão como pon-
to base para sua aula, Joaquim pensa o tema dentro de um escopo maior
de relações entre as/os próprias/os alunas/os e si mesmo.

Outro entendimento da experiência e formação de Joaquim que


julgo que ele trouxe é o de relações de poder entre professora/professor
e alunas/os. Joaquim admite que as/os alunas/os podem se sentir inti-
midados pela reação que ele pode apresentar sobre seus enunciados, e
que na cabeça dessas/es alunas/os passam pensamentos como “ai, o que
será que o teacher Joaquim quer ouvir?” ou “ah, mas eu não concor-
do com esse pensamento”. Perante essa questão, Joaquim reconhece o
silenciamento que sua autoridade pode exercer sobre as/os alunas/os,
engajando-se em um processo autorreflexivo (ELLSWORTH, 1989;
PENNYCOOK, 2001) sobre sua prática na sala de aula. Essa autorre-
flexão o faz entender sua própria influência sobre as/os alunas/os e, ao
invés de naturalizá-la, ele a problematiza considerando o que pode ou
não ser feito a respeito.

138
MOVIMENTOS DE UM PROFESSOR DE INGLÊS EM SUA PRÁXIS CRÍTICA COM UM LIVRO DIDÁTICO

Percebe-se que várias questões importantes sobre o professor e


a sala de aula foram suscitadas sem que o livro didático fosse trazi-
do à cena. Nessa primeira aula, o maior material utilizado, à parte da
canção, foram as/os próprias/os alunas/os e o professor. Entender-nos
como materiais valiosos dentro de um contexto educacional pode ser

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


uma alternativa para a (aparente) necessidade de ter um material pro-
duzido por outros para apoio pedagógico. Nessa perspectiva, estaríamos
agindo de forma mais proativa do que reativa, partindo de nós mes-
mos em oposição ao que nos é apresentado pelo “outro” hegemônico
(KUMARAVADIVELU, 2016).

Joaquim foi de fato bastante proativo na terceira e quarta aulas


ao procurar outros materiais que se adequassem ao tipo de discussão
sobre gênero que estava havendo em suas aulas: um deles veio de uma
formação continuada que fez, ou seja, é um material especializado no
tópico de gênero (e sexualidade) com o qual o professor teve conta-
to em sua vivência, e o outro foi um e-mail do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE). Ambos os materiais estavam em por-
tuguês. A partir dessa busca de Joaquim por materiais mais autênticos
e significativos para suas aulas, sua práxis docente crítica se desenhou
de forma a ocupar uma posição mais importante na aula do que um
material produzido por um outro hegemônico. Isso é transparente em
falas como a seguinte:

Joaquim: Ok, I’m using this because I couldn’t find


any good material in English. And I couldn’t just give
you the words and say “ok, let’s go!”, ‘cause there are
lots of confusion and so on.
(Excerto 9 de aula observada).

Logo no início do excerto, Joaquim demonstra que, em vez de


desistir e se limitar ao que o livro trazia, optou por ampliar sua busca e

139
MOVIMENTOS DE UM PROFESSOR DE INGLÊS EM SUA PRÁXIS CRÍTICA COM UM LIVRO DIDÁTICO

ir à procura de materiais também em língua portuguesa. Essa atitude é


justificada pelo professor pelo fato de que ele não poderia apenas “dar as
palavras e dizer ‘vamos lá!’”, ou seja, Joaquim se preocupou também em
como os discursos provenientes da discussão do tema do gênero seriam
refletidos e refratados (PESSOA; HOEZLE, 2017) pelas/os alunas/os,
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

de modo a não promover uma discussão vazia e cheia de achismos ou


opiniões de senso comum.

Aqui entendo que, um/uma professora/professor que enxerga sua


sala de aula na plenitude de seu jogo discursivo dá a cada material e
enunciado trazido para dentro da sala de aula o peso devido de suas
responsabilidades na reflexão e refração de ideias e constituição de iden-
tidades. Igualmente importante também é sua condução na sala de aula
pelos sujeitos envolvidos. Tal consciência esbarra na própria responsa-
bilidade da/do professora/professor (e, de fato, de todos nós enquanto
sujeitos) sobre suas decisões em sala de aula.

Joaquim parece compreender que “não há como ser ‘apenas um


professor de Inglês’” (PENNYCOOK; PESSOA; SILVESTRE, 2016,
p. 615), isto é, não há como ser apenas transmissor de conhecimentos
estruturais linguísticos. Nessa posição, a/o professora/professor de lín-
guas precisa manter um cuidado crítico com o que é trazido ao ambien-
te da sala de aula. Por causa desse cuidado que Joaquim mantém em
sua práxis docente, o livro didático foi um recurso que só foi usado se
considerado em seu potencial de problematizador de discursos. Ou seja,
Joaquim usa o material à medida que este corrobora com uma práxis
crítica almejada por ele no contexto em que se insere. A partir dessa
conclusão vemos que o espaço que o recurso vai ocupar na sala de aula
parece residir, ao fim, nos indivíduos que vão de fato utilizá-lo.

140
MOVIMENTOS DE UM PROFESSOR DE INGLÊS EM SUA PRÁXIS CRÍTICA COM UM LIVRO DIDÁTICO

CONSIDERAÇÕES E PONDERAÇÕES FINAIS

Na empreitada de responder à pergunta nuclear desta pesquisa,


“como se dá o uso do livro didático na práxis docente crítica de um
professor de Inglês como língua adicional de uma escola livre de idio-
mas?”, passeamos por movimentos de submissão, adaptação e subversão

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


do livro didático. Um dos primeiros pontos levantados foi referente às
ações de Joaquim dentro de sua instituição para a manutenção do livro
didático no espaço da sala de aula. Essas ações, como pretendi expor no
texto, derivaram de imposições institucionais. A/o professora/profes-
sor de língua adicional deve, portanto, primeiramente reconhecer essas
imposições e constrições, ao mesmo tempo em que, reconhecendo sua
autonomia relativa/intermediária (LIMA-NETO, 2021), vislumbrar
meios de agir nas “brechas” (DUBOC, 2014). É preciso, como aponta
Pennycook em Pennycook, Pessoa e Silvestre (2015, p. 619):

[...] trabalhar politicamente e, eu acho, estrategica-


mente às vezes. Se você disser: “não, eu vou insistir
nessa versão”, você pode chegar a lugar nenhum.
Você tem que pensar “ok, o que vai funcionar?
Quão longe posso ir?”. [...] Você tem que operar
com muitas restrições pragmáticas.38

Partindo do que foi apresentado, percebe-se que Joaquim agiu


nos limiares das possibilidades e impossibilidades para garantir que não
apenas sua posição de professor fosse preservada (não nos esqueçamos
que muitas vezes somos substituíveis aos olhos das instituições para as
quais trabalhamos), mas também sua integridade pedagógica, por assim
dizer. Em outras palavras, entre submissões e subversões, Joaquim foi
38 No original: “you do have to work politically, I think, strategically at times. If you
say: “no, I’ve got to stick to this version”, you may not get anywhere. You’ve got to think
“Okay, what’s going to work? How far can we go?” […] You have to operate with a
lot of pragmatic constraints”.

141
MOVIMENTOS DE UM PROFESSOR DE INGLÊS EM SUA PRÁXIS CRÍTICA COM UM LIVRO DIDÁTICO

construindo sua práxis pedagógica crítica dentro do que lhe era possível
no momento

É bem verdade que a práxis de Joaquim pareceu se revelar mais


crítica à medida que o livro didático ia sendo deixado de lado. Isso não é
dizer, todavia, que para toda/o professora/professor essa será uma máxi-
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

ma verdadeira. No caso de Joaquim esse afastamento pareceu impulsio-


ná-lo a tornar suas aulas mais próprias e, daí, mais próximas de uma ex-
pectativa de trabalho crítico. O que funciona para um/uma professora/
professor, deduzo, pode não funcionar para outro, e o que vai desenhar
todas essas variáveis é um conjunto complexo de contingências.

Nesse sentido, concordo com Lima-Neto (2021) quando ele pro-


põe que professoras/es sejam profissionais responsivos e intelectuais or-
gânicos. Isso implica que sejamos profissionais preparados para respon-
der com e aos nossos discursos, tornando-nos responsáveis por aquilo
que trazemos para a sala de aula, ao mesmo tempo que nos esforçando
pela transformação das condições subalternas de existência. Retomando
a questão do livro didático, para amarrar as reflexões aqui postas, reitero
que não há como se propor maneiras descontextualizadas de uso dele
dentro de uma perspectiva crítica e nem prescrever o seu abandono
imediato. Em vez dessas prescrições, lanço mão das reflexões feitas até
aqui para contribuir na formação da experiência da/do leitor/a deste
texto, a fim de que reflita por sua conta sobre os aportes que essa leitura
possa ter-lhe trazido.

REFERÊNCIAS
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señanza de la lenagua inglesa: un análisis crítco. Ruta Maestra, Bogotá, n. 21, p. 4-15,
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142
MOVIMENTOS DE UM PROFESSOR DE INGLÊS EM SUA PRÁXIS CRÍTICA COM UM LIVRO DIDÁTICO

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LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


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MOVIMENTOS DE UM PROFESSOR DE INGLÊS EM SUA PRÁXIS CRÍTICA COM UM LIVRO DIDÁTICO

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144
APROXIMANDO AUTOETNOGRAFIA E LÍNGUA COMO DISCURSO NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

7.
APROXIMANDO AUTOETNOGRAFIA
E LÍNGUA COMO DISCURSO NA

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


FORMAÇÃO DE PROFESSORES

Rodrigo Calatrone-Paiva
Universidade Estadual do Paraná (Unespar, campus Campo Mourão)

— Como vocês estão entendendo essa proposta do professor


de estágio de trabalhar a língua como “discurso” na nossa regência de
inglês?

— Eu não entendi nada, Anne. Que coisa mais complicada! Olha


isso aqui: “Conceber língua como discurso, dentro desta visão, significa
perceber as estruturas de poder que permeiam a língua; significa con-
ceber o conhecimento como determinado social e lingüisticamente”39.
Vou reprovar desse jeito! Não vou me formar esse ano!

— Calma, Victoria, não é assim também, a gente está só come-


çando, nem preparamos as aulas ainda e o professor está aí pra orientar
a gente...

— Não, Marcus, você sabe que eu tenho dificuldade em inglês e


agora, além disso, vou ter que dar aula desse jeito que eu nem entendo?!

— O Marcus está certo, Victoria, não é pra tanto. Pra entender


melhor, acho que a gente tem que comparar com o que está no começo

39 Jordão (2006, p. 6).

145
APROXIMANDO AUTOETNOGRAFIA E LÍNGUA COMO DISCURSO NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

do texto, quando fala sobre a língua como código, segundo o estru-


turalismo, que eu acho que é a maneira mais comum que a gente vê
por aí de se trabalhar com o ensino de inglês.

— Estruturalismo tem a ver com Saussure40, né? Que a gente viu


muito nas aulas de linguística.
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

— Não gosto nem de lembrar!

— A gente sabe que você gosta mais das aulas de literatura,


Victoria. Eu até que gostava das aulas de linguística, das dicotomias...

— É isso mesmo, Marcus, tem tudo a ver com Saussure. No es-


truturalismo a gente vê a língua como um sistema fechado...

— Que que é isso?

— É tipo... nada entra e nada sai... a língua não muda... por isso
que a autora fala em língua como código a ser decifrado. Se a gente
entende a língua assim, só precisamos saber todos os elementos, quer
dizer, todos os sons, todas as regras de gramática e as palavras e daí a
gente sabe a língua.

— Igual nos livros didáticos que a gente vê por aí, em geral, nos
cursos de idiomas, né? Está tudo separadinho: como pronunciar os sons
do inglês, quais são as palavras mais comuns, a gramática, começando
com os pronomes pessoais, I, you, he, she, it, we, they... o verbo to be,
que não larga a gente... depois o simple present, na afirmativa, negativa e
interrogativa, até chegar nos perfects da vida... e tudo tem as explicações
e respostas certas no manual do professor.

— Eu ainda não entendi esse maldito present perfect!

— Mas porque é tão importante pra você entender isso agora?

40 Cf. Saussure (2006).

146
APROXIMANDO AUTOETNOGRAFIA E LÍNGUA COMO DISCURSO NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

— Ué, como é que eu vou dar aula de inglês sem saber o present
perfect? E se os alunos me perguntarem? Morro de medo de não saber
responder o que os alunos me perguntarem...

— Você acha que alguma professora sabe responder tudo o que


os alunos perguntam?

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


— Claro! Se é uma boa professora, sim!

— Olha, pelo que você está dizendo, você está entendendo a lín-
gua exatamente como está aqui no texto na parte que a gente estava
conversando: como código. Pensando assim, nós, e os nossos futuros
alunos, só precisamos entender, saber fazer as atividades, decorar tudo
que está na lição e em cada lição sucessivamente, até terminar o curso
para saber a língua, a língua “toda”. Mas, daí, o que a gente faz com as
variações? Com aquilo que foge às regras que estão no livro didático e
nos livros de gramática?

— Variações tipo inglês americano e inglês britânico?

— Hum... é um começo... um comecinho... pelo menos mostra


que tem alguma diferença dentro de uma “mesma língua”... mas mesmo
assim fica parecendo que “inglês americano” é uma coisa só e aí cai na
mesma situação de só precisar “estudar” uma coleção inteira de livros
didáticos de “inglês americano”, geralmente em um curso dividido do
nível básico ao avançado, pra conseguir saber a língua “toda”.

— E não é assim?

— Entendendo a língua como código, de uma maneira estrutu-


ralista, sim... mas vocês já ouviram alguém falar que estudaram em um
curso de inglês e quando foram assistir a um filme ou a uma série ou
então foram conversar com alguma pessoa em inglês, era tudo muito
diferente do que viram nas aulas?

— Sim, muitas vezes.

147
APROXIMANDO AUTOETNOGRAFIA E LÍNGUA COMO DISCURSO NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

— Essa é só uma das consequências de se pensar a língua como


código, é fácil ver que língua não é estática, ela muda, é dinâmica, é
viva.

— Que chique! Falou bonito, hein?


LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

— Deixa de gracinha. A gente pode pensar isso no português


que a gente fala também: veja quantas maneiras de falar “porta aberta”
a gente ouve por aí. Ou as eternas discussões sobre se é “biscoito” ou
“bolacha”. Meu tio uma vez perguntou em uma padaria se eles tinham
sanduíche e o atendente disse que não, aí viu o cardápio e descobriu
que eles serviam X-salada. Ele cobrou do atendente, que respondeu que
aquilo era “lanche” e não “sanduíche”.

— Engraçado!

— E tem mais, veja o caso do slogan da Caixa Econômica Federal:


“Vem pra Caixa, você também! Vem!”. Isso está “errado” segundo os li-
vros de gramática, para concordar deveria ser “venha para a Caixa, você
também”. Mas o povo fala do jeito “errado” mesmo, só que errado, nes-
se caso, é só nos livros de gramática, fora deles é só mais uma maneira
diferente de concordar sujeito e verbo.

— Essas variações, a gente viu nas aulas de língua portuguesa e


sociolinguística, né? Preconceito linguístico, variações sintáticas, mor-
fológicas, lexicais, fonéticas41...

— Sim! E essas variações acontecem em todas as línguas.

— Hum... por isso que muita gente faz um curso de inglês e vai
lá na “vida real” e é diferente...?

— Essa parece ser uma das razões. Mas o buraco é mais embaixo.
Muito mais embaixo. De novo, nessa visão de língua como código,

41 Cf. Possenti (1996); Bagno (1999); Faraco (2007); Calatrone Paiva (2018a).

148
APROXIMANDO AUTOETNOGRAFIA E LÍNGUA COMO DISCURSO NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

como eu entendo do texto que a gente leu, a língua está “lá fora” e é
uma “coisa” completa, para as pessoas decifrarem aos poucos, até sabe-
rem “tudo”. É uma coisa só, como está nos livros de gramática normati-
va e didáticos, em geral, que mostram a língua como ela supostamente
é, que não muda de pessoa para pessoa ou de situação para situação, ou

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


muda muito pouco, sendo que essas mudanças são consideradas exce-
ções a regras. Assim, só precisamos internalizá-la, “pegando” essa língua
“lá fora”. Mas como a gente viu, a língua não é uma coisa só, pelo con-
trário, se ela varia, são muitas “coisas”. Mas essas muitas coisas não são
só os sons, as palavras, as concordâncias, como a gente falou aqui, mas
são, principalmente, maneiras diferentes de ver o mundo. E é isso que
eu acho a maior novidade nessa forma de ver a língua.

— Calma, respira!

— Desculpa, às vezes me empolgo quando falo desse assunto.


Mas continuando... agora, a gente volta para aquela parte que a Victoria
achou complicada, da língua como discurso, segundo o pós-estrutura-
lismo foucaultiano, como a autora coloca. Do jeito que eu entendi, as
pessoas trazem suas visões de mundo para a língua quando interagem
por meio dela, quando conversam, leem, escrevem. Por isso que tantas
vezes entendemos o que ouvimos ou lemos de maneiras diferentes que
outras pessoas.

— É tipo como quando as pessoas falam “não foi isso que eu quis
dizer” ou “eu entendi esse texto de outro jeito”, né?

— É! Mas do jeito que a gente está acostumado a lidar com a


língua, como código, quando isso acontece, a explicação é que teve um
“ruído” na comunicação que atrapalhou o entendimento. E esse ruído
pode ser desde um barulho mesmo, quando estamos conversando, ou
uma distração, até o pouco conhecimento sobre determinado assunto
de um texto que a pessoa está lendo.

149
APROXIMANDO AUTOETNOGRAFIA E LÍNGUA COMO DISCURSO NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

— Aí, a pessoa está mais longe da “realidade” ou da “verdade”


como diz o texto, né?

— Em uma visão estruturalista, acredito que sim. Mas na vi-


são de língua como discurso, as pessoas entendem as coisas, quer di-
zer, constroem os entendimentos e, consequentemente, entendem ou
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

constroem a realidade, na língua, conforme suas visões de mundo, seus


conhecimentos, que são, voltando lá no começo da nossa conversa, de-
terminados social e linguisticamente. Isso quer dizer que cada um é
diferente porque viveu e cresceu em comunidades ou sociedades dife-
rentes, e se somos diferentes, cada um de nós tem histórias diferentes,
teve experiências diferentes, leu coisas diferentes, que fizeram a gente
ter maneiras diferentes de ver o mundo. Assim, cada um percebe, ou
melhor, constrói, a realidade de maneira diferente, e faz isso na língua,
quando tenta entender os outros e a si mesmo, seja conversando, escu-
tando, lendo, pensando42... ai, desculpa, gente, me empolguei de novo!

— Como você sabe essas coisas?

— Mas é uma CDF, mesmo!

— O termo que você está procurando é “mais inteligente que


você”.

— Ai, sua...!!!

— Ei, ei! Vamos deixar pra brigar depois! Agora, eu quero enten-
der essa tal de língua como discurso, estou até curtindo.

— Desculpa, vi uma tirinha com essa frase aí e achei um sarro!


Não resisti.

— Tá bom...

42 Jordão (2006, 2013); Calatrone Paiva (2020).

150
APROXIMANDO AUTOETNOGRAFIA E LÍNGUA COMO DISCURSO NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

— Respondendo à pergunta, estou lendo muito sobre isso na


minha iniciação científica, minha orientadora trabalha com pesquisa
sobre ensino-aprendizagem de línguas e formação de professores nessa
linha da língua como discurso.

— Então você pode me explicar melhor o que raios quer dizer

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


essa parte do texto que diz:

Os pressupostos sobre o que seja a realidade nesta


concepção de mundo são examinados a partir das
relações de poder estabelecidas pela nossa percep-
ção da realidade. Aqui, a realidade não pode ser
separada de quem a observa, ou constrói. E quem
a constrói nunca o faz sozinho, mas sim coletiva-
mente nas relações sociais. Não existe, nessa con-
cepção, a possibilidade de acesso a uma realidade
objetiva, neutra, independente da subjetividade
que a forma: nós podemos apenas interpretar a
realidade a partir de nossa experiência dela (ou da
experiência de outros com que tenhamos conta-
to). As interpretações que construímos nunca são
neutras, nunca estão em maior ou menor grau de
distância em relação a uma determinada realidade
externa objetiva, porque a realidade não é dada,
não tem existência independente de quem pensa
sobre ela ou a experimenta.43

— Me diga você o que entendeu disso. Você é inteligente também.

— Sei. Tá bom, deixa eu ver o que entendi... é tudo aquilo que


você falou, só entendemos as coisas, a realidade, a partir do jeito que a

43 Jordão (2006, p. 4).

151
APROXIMANDO AUTOETNOGRAFIA E LÍNGUA COMO DISCURSO NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

gente vê o mundo... e a gente vê o mundo conforme nossas vivências e


interações com outras pessoas que a gente encontra onde a gente vive,
estuda, trabalha, na nossa família, igreja e assim por diante... e tam-
bém pessoas que a gente “lê” e “escuta” e “assiste”, né? Tipo, em livros,
vídeos, filmes e tal... por isso construímos a realidade “coletivamente”.
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

E fazemos isso na língua... conversando, lendo, pensando... então não


podemos falar em uma realidade, mas sim em muitas realidades, já que
cada um percebe as coisas de jeitos diferentes... e por isso não tem como
capturar uma realidade objetiva... me lembro das aulas de metodologia
científica... mas lá diziam que tinha que ser objetivo, não subjetivo,
não dar muita opinião, se ater aos “fatos”... só que aqui, a gente só
compreende as coisas a partir do nosso ponto de vista... nenhuma inter-
pretação é neutra porque sempre é influenciada por quem está interpre-
tando, quem está “olhando” para o mundo, né? Em qualquer conversa,
texto... não dá pra tirar as pessoas da conversa, do texto que está sendo
lido... e daí, pensando em “língua”, não dá pra separá-la, como se ela
estivesse “voando” por aí, sem ninguém interagindo... ops! Agora fui eu
que me empolguei!

— Olha só a CDF que estava falando da outra....

— Deixa de ser bobo! Voltando ao texto: é mais ou menos assim?

— Acho que entendi por aí mesmo.

— Mas e aquele negócio lá de “relações de poder”?

— Deixa eu falar como entendo isso. Estou lendo uns textos so-
bre esse assunto na iniciação científica. Vamos pensar na língua, já que
a usamos pra falar da realidade ou das realidades, né? Como diz no
texto, da perspectiva da língua como discurso, não tem como estar mais
próximo ou mais distante de uma realidade objetiva, uma realidade que
estaria fora das cabeças das pessoas, por assim dizer, do mesmo jeito,
também não dá pra considerar que uma língua ou uma forma de “falar”

152
APROXIMANDO AUTOETNOGRAFIA E LÍNGUA COMO DISCURSO NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

uma língua é mais certa que outra, quer dizer, não é a língua em si que é
certa ou errada. O que acontece é que determinadas pessoas, ou grupos
de pessoas, legitimam algumas formas como certas e outras como erra-
das. E é aí, a meu ver, que entram as tais relações de poder.

— Hum... pode explicar um pouco melhor?

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


— Assim... determinados grupos de pessoas exercem poder a fim
de normalizar ou naturalizar44 formas particulares como certas e ou-
tras como erradas, e isso não só em relação à língua, mas em relação a
qualquer conhecimento. Aí se torna natural considerar que “fulano fala
tudo errado”, por exemplo, mesmo que tenha muitas pessoas que falem
muito parecido com esse fulano, ou seja, mesmo que essa forma de falar
seja sistemática, no sentido de que ela se repete, mesmo que essa “lín-
gua” não seja de maneira alguma limitada, já que as pessoas se comu-
nicam através dela, igual a qualquer outra língua considerada “certa”.

— Que interessante! Quando li e quando pensava em poder, eu


achava que era alguma coisa do tipo a polícia, o governo, as pessoas da
escola, tipo as diretoras, as pedagogas, as professoras mandando nas pes-
soas, senão sofreriam as consequências, iriam levar balas de borracha,
iriam presas ou pra diretoria, por exemplo.

— Esses são exemplos extremos das relações de poder nessa pers-


pectiva foucaultiana que a autora traz no texto, que também aconte-
cem. Mas vejam essa anotação que fiz aqui sobre o poder normalizador:
“o poder é frequentemente invisível na medida em que repetidas vezes
naturaliza eventos e práticas de maneiras ‘normais’ para membros de
uma comunidade”45. Então, dessa perspectiva, a gente pode perceber
o poder em muitas e muitas disputas de forças em pequenas lutas, por

44 Foucault (1998); Jordão (2006).


45 No original: “[...] power is often invisible in that it frequently naturalizes events
and practices in ways that come to be seen as ‘normal’ to members of a commu-
nity” (NORTON, 2013, p. 14, tradução nossa).

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APROXIMANDO AUTOETNOGRAFIA E LÍNGUA COMO DISCURSO NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

assim dizer, em toda a sociedade e a toda hora, como, por exemplo,


entre um homem e uma mulher, entre um pai e um filho46 e entre uma
professora e os alunos.

— E aí esse exercício de poder não é sempre destrutivo ou mau,


né? Igual a autora fala no texto. Ele pode ser produtivo porque a gente
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

pode resistir.

— Sim! E esse texto é tipo um convite pra essa resistência, não é


mesmo? Na sala de aula, a gente pode resistir a essa maneira “normal”
de ver uma ou algumas maneiras de tratar a língua como sendo as úni-
cas “certas”.

— E se a gente for pensar no inglês que a gente vai ensinar, não é


só o “americano” ou “britânico” que tem, né? Tem o indiano, o sul-afri-
cano, o jamaicano...

— O brasileiro também! Já que falamos inglês, oras! E mesmo o


inglês dito “britânico” ou qualquer um desses, não é uma coisa só, né? É
só a gente pensar no que a gente falou do português e todas as variações.
E se a gente pensar em todas as visões de mundo que aparecem em cada
conversa ou leitura, então...

— Mas, peraí... agora me veio uma dúvida aqui... nas nossas au-
las, a gente vai aceitar tudo, então?

— Ah, é muito comum a gente chegar a essa conclusão. Mas,


não, não vale tudo. Sabe por quê? Por causa daquilo que a gente falou
da normalização que é formada ou construída nas sociedades, comuni-
dades, grupos de pessoas, quer dizer, já existem maneiras de considerar
algumas formas, vamos dizer, melhores do que outras, e se a gente dis-
cordar, a gente pode lutar por outra visão e aceitar as consequências. E
acho que aceitar as consequências também de não lutar por essas outras
visões, acho que é isso que a autora fala sobre nos responsabilizar pelas
46 Foucault (2006).

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APROXIMANDO AUTOETNOGRAFIA E LÍNGUA COMO DISCURSO NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

nossas escolhas. Mas, de qualquer forma, a gente está limitado no que a


gente pode fazer ou entender ou interpretar, limitado pela sociedade e
pela história dessa sociedade47.

— Legal! Mas o livro didático, a gente joga fora quando for pos-
sível, né?

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


— Não necessariamente. A gente pode “resistir”, né? Ter em
mente que as respostas e interpretações que estão no manual do pro-
fessor podem sempre ser diferentes e dizer isso pros alunos. Podemos
trazer alternativas ao livro didático que mostrem maneiras diferentes de
“usar” a língua.

— Mas isso dá um trabalhão, não dá?

— É, tenho que admitir que sim. No meu caso, estou tentando


me formar aqui, fazendo iniciação científica e quando vou dar aulas
no curso de idiomas em que trabalho, o livro didático me ajuda mui-
to nesse sentido, não tenho tempo de preparar materiais alternativos...
também, a escola não dá muita abertura pra isso... mas sempre dá pra
fazer comentários sobre as respostas e interpretações do livro durante
as aulas. Contar estórias, também, sobre pessoas que “falam diferente”.
Enfim, dá pra resistir!

— E tem alguns livros didáticos que também tentam trazer “va-


riações”, né?

— É verdade. Tem o Programa Nacional do Livro e do Material


Didático (PNLD), que traz critérios relacionados à variação linguísti-
ca48, por exemplo.

47 Usher e Edwards (1994); Menezes de Souza (2011).


48 Brasil (2019).

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APROXIMANDO AUTOETNOGRAFIA E LÍNGUA COMO DISCURSO NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

— E quando tivermos mais tempo, I know, I’m a dreamer, a gente


pode fazer umas aulas mais “fora” do livro didático49, como por meio de
projetos de aprendizagem50.

— Legal! Seja repensando o livro didático ou ensinando dessas


outras maneiras, acho que a gente consegue fazer nossa regência do jeito
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

que o professor está propondo, né?

— Acredito que sim. Aí, a gente pode fazer da aula de inglês


um lugar “onde se estabelece o contato com formas de entendimento
diferentes daquelas legitimadas pela cultura nacional, [...] um espaço
de encontro com diferentes procedimentos de construção da realidade,
de confronto entre maneiras de produzir sentidos e de se perceber no
mundo não características daquelas que a língua materna nos apresen-
ta”51, como diz no texto, né?

— Oi, pessoal! Tudo bem?

— Oi, professor!

— Tudo certo!

— Tudo bem, prof!

— Sobre o que vocês estão conversando tão empolgados aí? Não


me digam que é sobre língua como discurso!

— Claro, né, professor? Não é pra falar sobre isso que você mar-
cou essa reunião?

— Foi mesmo. E aí, o que acharam da ideia?

— Olha, não é fácil, não, mas parece fazer sentido.

49 Bieski Franco (2021).


50 Calatrone Paiva (2017, 2018b, 2019a).
51 Jordão (2006, p. 7).

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APROXIMANDO AUTOETNOGRAFIA E LÍNGUA COMO DISCURSO NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

— Talvez pareça difícil porque estamos mais acostumados a pen-


sar a língua de outra maneira. Ficamos mais no automático. Mas pode-
mos e devemos questionar tudo, né?

— Ai, prof! Esse texto me deu até dor de cabeça!

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


— Estamos aí pra isso.

— Credo, professor! Que horror!

— Brincadeira. Mas pensar dói mesmo, de certa forma. E pensar


muito diferente dói mais ainda. Isso me leva a outra questão, que é o
relatório de estágio que vocês terão que apresentar no final do ano. Já
que vocês já sabem tudo sobre língua como discurso, tenho uma ideia
para vocês fazerem o relatório, uma ideia que acho tem tudo a ver com
essa concepção de língua.

— Olha ele, que engraçado, “sabem tudo sobre língua como


discurso”.

— Lá vem ele com as ideias “diferentonas” dele. Pra doer minha


cabeça.

— Fico feliz com a receptividade de vocês para com as minhas


ideias. Então, a ideia é vocês elaborarem seus relatórios de maneira
autoetnográfica.

— É o quê?!

— Calma, vou passar uns textos pra vocês sobre isso, sobre a
abordagem de pesquisa chamada autoetnografia.

— Mas, professor, a gente vai fazer estágio, não pesquisa.

— Então, o estágio é uma forma de pesquisa, ou um momento


para se fazer pesquisa, já que vocês fazem o estágio para refletir sobre a
prática na sala de aula. Os professores têm que ser investigadores dos

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APROXIMANDO AUTOETNOGRAFIA E LÍNGUA COMO DISCURSO NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

seus contextos52, senão vão ser apenas repetidores de métodos e técnicas


que leem nesses manuais escritos por especialistas. Vocês devem refletir
sobre como e porque ensinam da maneira como ensinam53 e é isso que
eu espero de vocês e quero ver nos relatórios.

— Tá bom, professor, tá bom. Então diga aí, o que essa tal de au-
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

toetnografia tem tanto a ver com a concepção de língua como discurso.

— Bom, em primeiro lugar, a autoetnografia parte de questio-


namentos pós-estruturalistas, assim como a concepção de língua como
discurso, e também pós-modernos. Esses questionamentos começaram
a surgir nos anos de 1970 e 1980 na chamada “Crise de Representação”
no campo das Humanidades54, quando pesquisadores questionaram
exatamente a possibilidade de se distinguir entre o que está em nossas
mentes e o que está “lá fora” no mundo55.

— Nossa, isso é bem parecido com o que a gente estava conver-


sando sobre língua como discurso, mesmo.

— Que bom que vocês pegaram essa ideia. Além disso, nessa cri-
se, questionaram a capacidade dos investigadores de representar outras
culturas56.

— Como assim, representar outras culturas, professor?

— Assim... se somente podemos compreender a realidade a partir


da nossa própria perspectiva, que é construída a partir da nossa própria
cultura, como poderíamos, de certa forma, falar pelos outros? Falar so-

52 Moita Lopes (1996); Gimenez (1998); Burns (2009); Borg (2010).


53 Moita Lopes (1996); Von Hoene (2008); Borg (2010).
54 Adams, Jones e Ellis (2015); Calatrone Paiva (2019c).
55 Ellis e Bochner (2000).
56 Clifford (1986); Flaherty (2002).

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APROXIMANDO AUTOETNOGRAFIA E LÍNGUA COMO DISCURSO NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

bre como pessoas de outras culturas diferentes da nossa veem o mundo,


pensam, interpretam, sentem, etc.?

— É mesmo, né? É bem questionável.

— Sim, muito. Outra questão que levantaram é que, já que exis-

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


tem várias realidades, conforme as diferentes visões de mundo das pes-
soas, fica impossível se buscar verdades universais e produzir afirmações
de conhecimento estáveis e seguras a respeito de seres humanos, relacio-
namentos, experiências e outros aspectos relacionados a essas questões57.

— Aí, cai por terra aquela questão de tentar buscar ser objetivo e
de tentar generalizar os resultados de uma pesquisa para outras pesqui-
sas e contextos, né, professor?

— Nessa perspectiva, sim. Até porque o conhecimento local e


as identidades sociais dos investigadores e dos participantes sempre in-
fluenciam a pesquisa58.

— Bem que você disse que o professor vinha com outra ideia
“diferentona”...

— Peraí, que tem mais. Esse povo em crise aí perguntou também


por que é que não se pode contar estórias e demonstrar afeto e emoção
nos textos resultantes das pesquisas, quer dizer, porque esses aspectos
não são considerados importantes nos resultados, por que não são con-
siderados como fontes válidas de conhecimento?59

— Pois, é, por que não, né? Como se um texto sem emoção,


“seco”, fosse mais verdadeiro, mais próximo da “realidade”.

— Acho que você pegou o espírito da coisa.

57 Adams, Jones e Ellis (2015).


58 Adams, Jones e Ellis (2015).
59 Adams, Jones e Ellis (2015).

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APROXIMANDO AUTOETNOGRAFIA E LÍNGUA COMO DISCURSO NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

— Tá bom, prof, acho que você conseguiu convencer a gente de


que essa autoetnografia tem muita coisa parecida com a língua tratada
como discurso. Mas, o que é, exatamente, a autoetnografia?

— Exatamente, exatamente, não tem como dizer, até porque,


diante disso tudo que a gente conversou, seria meio contraditório dizer
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

que tem uma definição fixa e estável dessa abordagem. Mas posso fazer
uma tentativa de definição, falando sobre algumas características que
aparecem em relatos autoetnográficos.

— Pelo menos isso...

— Gosto de pensar nas partes do nome da abordagem: auto, etno


e grafia.

— Auto tem a ver consigo mesmo?

Adams, Jones e Ellis (2015) Isso. Então quem faz a autoetnografia rea-
liza a pesquisa a partir do seu próprio ponto de vista, estuda sua própria
experiência ou as experiências de sua própria comunidade60.

— No nosso caso, não tem muito como fugir disso, né? Já que
vamos tratar do nosso próprio estágio.

— É verdade. Mas em outros contextos faria sentido, também, se


pensarmos que entendemos a realidade a partir da nossa própria pers-
pectiva. No fim das contas, sempre estamos falando sobre nós mesmos,
de certa forma. Sem esquecer que “nós mesmos” somos formados na
coletividade.

— Vamos lembrar sim, professor.

— Continuando, então, o próximo pedaço do nome da aborda-


gem é etno, que se refere, grosso modo, à cultura, e tem tudo a ver com
o que acabamos de falar, vejam: a pesquisa autoetnográfica ter por ob-

60 Reed-Danahay (1997); Canagarajah (2012).

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APROXIMANDO AUTOETNOGRAFIA E LÍNGUA COMO DISCURSO NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

jetivo evidenciar a forma como a cultura molda e é moldada ao mesmo


tempo pelo pessoal. Então, não dá pra separar a cultura do pesquisador,
em uma tentativa de ser neutro, objetivo. Pelo contrário, é aí, na cultu-
ra, que o conhecimento é sempre construído61. Mas, a essa altura, vocês
já estão carecas de saber disso.

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


— O único careca aqui é você, professor. Ops, escapuliu!

— Isso é uma tentativa de tornar as relações de poder aqui mais


horizontais?

— Não sei o que é isso, mas se você está dizendo, quem sou eu
pra discordar?

— Tá certo. Retomando, a última parte é grafia, que se refere à


escrita, com ênfase em seus recursos criativos62.

— O que isso quer dizer?

— Quer dizer que, em textos autoetnográficos, vamos encontrar


características literárias, olha só Victoria.

— Até você, prof?

— É que seus olhinhos brilham quando falamos essa palavra:


literatura.

— Ai, tá bom, gosto mesmo.

— Veja a oportunidade aí, os textos autoetnográficos são geral-


mente escritos em primeira pessoa e aparecem nos mais variados gêne-
ros como contos, poesia, ficção, romances, ensaios fotográficos, ensaios
pessoais, diários...63

61 Reed-Danahay (1997); Canagarajah (2012).


62 Reed-Danahay (1997); Canagarajah (2012).
63 Ellis e Bochner (2000); Méndez (2013).

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APROXIMANDO AUTOETNOGRAFIA E LÍNGUA COMO DISCURSO NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

— Legal, professor. Aí não ficam aqueles textos acadêmicos


chaaaatooos!

— Isso também... mas vamos pensar naquela questão de que uma


suposta linguagem “objetiva” não é garantia de se estar mais perto da
realidade, ou da verdade. Acho que escrevendo pesquisa dessa maneira,
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

se escancara essa noção de que o conhecimento é construído subjetiva-


mente e socialmente e que não se pode separar realidade da percepção64,
ainda mais se levarmos em conta que os autores, também, eventual-
mente mesclam, nos seus textos, cenas ficcionais com cenas etnográfi-
cas, além de até inventarem personagens! Esses personagens podem ser
composições de várias pessoas com quem o autor teve contato. Toda
essa criatividade tem por objetivo expressar o que os autores observa-
ram, sentiram e aprenderam do contexto que investigam65. Acho que
não encontramos esta característica frequentemente em textos acadêmi-
cos, não é verdade?

— Não, professor, muito raro.

— E acredito que essa característica da grafia é a que a nossa área


que estuda a linguagem pode mais contribuir para o desenvolvimento
desta abordagem de pesquisa, já que é a nossa especialidade, né? A gente
pode ajudar a legitimar esse tipo de pesquisa, escrevendo dessa maneira
“diferentona”, como dizem vocês, e nos embasando em teorias e con-
cepções como a da língua como discurso, por exemplo.

— Legal, professor, mas eu não sou lá muito criativo para escre-


ver textos literários.

— Não tem problema. A gente não precisa necessariamente sem-


pre “meter o pé na porta” desse jeito. O importante nessa perspectiva
é ter em mente que mesmo os textos com “cara” mais acadêmica são

64 Calatrone Paiva (2018b; 2019b, 2019c).


65 Ellis; Bochner (2000); Méndez (2013).

162
APROXIMANDO AUTOETNOGRAFIA E LÍNGUA COMO DISCURSO NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

também estórias contadas, não estando mais perto da realidade do que


outros textos mais “literários”, que têm também por objetivo a dissemi-
nação de pesquisas.

— OK, professor, entendi.

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


— É claro que quanto mais a sua narrativa trouxer emoções,
quanto mais ela causar empatia nos leitores a partir das situações relata-
das, mais perto você chega de atingir o propósito deste tipo de pesquisa.

— Causar empatia?

— Sim. Por exemplo, outros professores em formação poderão


estar passando ou ter passado por situações semelhantes e vendo como
vocês lidaram com elas, poderão se importar também com as mesmas
coisas e agir em seus próprios contextos.

— Muito interessante, prof! Então no nosso relatório, a gente


pode escrever de uma maneira mais emocional, também mais literária,
por assim dizer, sobre nossas orientações, visitas na escola, contato com
a professora supervisora, observações de aula, regência e tal?

— Isso. Vocês podem começar refletindo sobre o texto que le-


ram a respeito da língua como discurso. Podem fazer isso em forma de
diálogo, retomando as questões que vocês discutiram, incluindo suas
dúvidas, seus anseios, suas experiências e estórias, suas dificuldades, sua
dor de cabeça e talvez colocar uma pitada de ficção, adicionando perso-
nagens e mudando nomes... que tal?

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A QUESTÃO DO LETRAMENTO DIGITAL NOS ESTÁGIOS OBRIGATÓRIOS DO CURSO DE LETRAS DURANTE A PANDEMIA

8.
A QUESTÃO DO LETRAMENTO
DIGITAL NOS ESTÁGIOS

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


OBRIGATÓRIOS DO CURSO DE
LETRAS DURANTE A PANDEMIA

Fernanda Silva Veloso | Universidade Federal do Paraná (UFPR)

Taísa Barbosa Robuste | Universidade Federal do Paraná (UFPR)

E
ntre todos os desafios que professores e alunos precisaram enfren-
tar em 2020, estava o de realizar estágio obrigatório na modalida-
de remota. Com a pandemia do coronavírus e, por consequência,
a interrupção do calendário acadêmico nas universidades, foi pre-
ciso repensar as atividades em um novo formato. Por ser um compo-
nente obrigatório dos cursos de formação de professores, essa unidade
didática também foi contemplada, mesmo que tardiamente, pelas por-
tarias emitidas pelo Governo Federal.

A primeira a contemplar o estágio foi a de n° 544, publicada em


16 de junho de 2020. Tal documento autorizou às instituições de ensi-
no superior, em caráter excepcional, a substituição das disciplinas e dos
estágios obrigatórios por atividades letivas que utilizassem recursos edu-
cacionais digitais, tecnologias de informação e comunicação ou outros
meios convencionais, por instituição de educação superior.

Antes disso, outras portarias já haviam sido publicadas, mas todas


elas vedavam o estágio obrigatório dos cursos de graduação. A Portaria

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A QUESTÃO DO LETRAMENTO DIGITAL NOS ESTÁGIOS OBRIGATÓRIOS DO CURSO DE LETRAS DURANTE A PANDEMIA

n° 343, de 17 de março de 2020, foi a primeira a ser publicada pelo


Ministério da Educação (MEC) e sequer mencionava o estágio, o que
gerou aflição nos alunos estagiários e docentes responsáveis por esse
componente curricular. Apenas dois dias depois, o MEC alterou o texto
e publicou a Portaria n° 345, de 19 de março de 2020, que “vedava a
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

aplicação da substituição de que trata o caput às práticas profissionais


de estágios e de laboratório”. Tal veto, ao longo do primeiro semestre de
2020, foi sendo flexibilizado aos poucos e acabou sendo abandonado
com a publicação da Portaria n° 544.

Embora aprovado oficialmente, o estágio nas licenciaturas, e todas


as suas especificidades, não foi discutido nas portarias publicadas pelo
MEC. Assim, coube às instituições de ensino superior (IES) planejar e
implementar o estágio na modalidade remota, a partir de possibilidades
alternativas acordadas entre docentes e praticantes e referenciadas pelo
Conselho Nacional de Educação (CNE), por meio do Parecer CNE/
CP 05/2020, específico para a realização de atividades pedagógicas não
presenciais durante o curso da pandemia.

Na Universidade Federal do Paraná (UFPR), nosso local de


fala, os estágios obrigatórios dos cursos de Letras foram prontamen-
te retomados em junho de 2020, após a publicação do Parecer CNE/
CP 05/2020 e da Resolução n° 44/2020, aprovada pelo Conselho de
Ensino, Pesquisa e Extensão da UFPR (Cepe), que regulamenta, em
caráter excepcional, as atividades didáticas das disciplinas que são ofer-
tadas nas modalidades EaD ou parcialmente EaD e de estágio obriga-
tório, estágio não obrigatório e estágio de formação pedagógica, dos
cursos de educação superior, profissional e tecnológica da UFPR du-
rante a suspensão do calendário acadêmico do primeiro semestre letivo
de 2020. Na sequência, e com respaldo na Resolução n° 44/2020, foi
adotado o conceito de “ensino remoto emergencial” (ERE), uma “so-
lução temporária e estratégica” que permite, “no contexto da Pandemia
de Covid-19, proporcionar à comunidade acadêmica a possibilidade

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A QUESTÃO DO LETRAMENTO DIGITAL NOS ESTÁGIOS OBRIGATÓRIOS DO CURSO DE LETRAS DURANTE A PANDEMIA

de manter, dentro das circunstâncias possíveis, as atividades de ensino”


(UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ – UFPR, 2020, n. p.).

As perguntas que surgiram durante a retomada do estágio esta-


vam todas, de alguma maneira, ligadas às novas tecnologias digitais de
comunicação e informação (NTDCIs) na sala de aula. Do dia para a

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


noite, foi preciso formar professores para o contexto de ensino remoto.
É claro que tivemos de iniciar o nosso trabalho na modalidade remota
sem antes termos planejado todo o passo a passo para a sua implemen-
tação. Mas, para além de saber utilizar essa modalidade, coube a nós,
professoras formadoras, preparar nossos alunos para, também, encara-
rem o desafio em plena pandemia.

O novo contexto social vivenciado por toda a população brasilei-


ra trouxe à tona uma das maiores fragilidades do campo educacional: o
pouco, ou nenhum, uso das NTDCIs em sala de aula. É claro que não
basta conhecer as ferramentas digitais para implementá-las, é preciso,
também, “buscar alternativas pedagógicas que integrem essas ferramen-
tas no processo de ensino e aprendizagem” (SOUZA; MURTA, 2019).

Com base nesses pressupostos, desenvolvemos esta pesquisa na


UFPR com alunos das disciplinas Prática de Docência de Línguas
Estrangeiras Modernas Neolatinas II e Prática de Docência de Língua
Portuguesa II, oferecidas pelo Departamento de Teoria e Prática de
Ensino ao curso de Letras no período de calendário especial de 2020.
Com o propósito de averiguar as percepções dos alunos dessas duas dis-
ciplinas sobre os estágios desenvolvidos na modalidade remota, a me-
todologia adotada é de base híbrida (quantitativa e qualitativa). Nesse
sentido, elaboramos e aplicamos um questionário aos nossos estagiários
com perguntas que visam identificar questões mais subjetivas, como os
aspectos mais gratificantes no estágio, até questões menos subjetivas,
como a identificação de dificuldades durante o estágio.

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A QUESTÃO DO LETRAMENTO DIGITAL NOS ESTÁGIOS OBRIGATÓRIOS DO CURSO DE LETRAS DURANTE A PANDEMIA

Assumimos como objetivo principal deste capítulo abordar a


questão do letramento digital a partir da apresentação das experiên-
cias, e, mais especificamente, da descrição dos desafios enfrentados,
das decisões assumidas, e, especialmente, da discussão das percepções
dos praticantes. Sendo assim, inicialmente vamos apresentar a forma
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

como o estágio é tradicionalmente empreendido na universidade; em


seguida, detalharemos os campos de estágio, os desafios enfrentados e
as estratégias adotadas durante o período de isolamento social; na seção
seguinte, abordaremos a questão do letramento digital dos professores
em formação; finalmente, nos valeremos das percepções dos discentes e
das docentes quanto ao desenvolvimento da competência digital.

O ESTÁGIO OBRIGATÓRIO NOS CURSOS DE FORMAÇÃO DE


PROFESSORES DE LÍNGUAS DA UFPR

Na UFPR, o estágio de formação pedagógica é obrigatório para


os alunos do curso de Licenciatura em Letras e é parte de um conjunto
de estudos e atividades desenvolvidas sob a forma de “práticas de do-
cência”. Com envolvimento da orientação direta docente em ações que
vão desde a intermediação no acordo de colaboração entre a UFPR e os
estabelecimentos de ensino até o acompanhamento sistemático e pro-
cessual do planejamento, da execução e da avaliação de materiais elabo-
rados e de atividades desenvolvidas pelos licenciandos, o estágio requer
o contato contínuo e presencial do professor nos diferentes campos e,
consequentemente, a limitação de 15 alunos por turma.

Os campos de estágio, preferencialmente, são aqueles inseridos na


educação básica (ensino fundamental II e ensino médio), como consta
nos documentos legais, em especial, a sala de aula, para o exercício da
observação e da regência. Nem sempre é possível, no entanto, realizar
observação e regência nesses contextos. No caso das línguas minoritá-
rias, por exemplo, os estágios são geralmente realizados em cursos livres

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A QUESTÃO DO LETRAMENTO DIGITAL NOS ESTÁGIOS OBRIGATÓRIOS DO CURSO DE LETRAS DURANTE A PANDEMIA

de idiomas, dado que tais componentes não fazem parte do currículo


da escola.

As disciplinas que possuem carga horária de estágio obrigatório


de formação pedagógica nos cursos de Letras são duas, a saber: Prática
de Docência 1 e Prática de Docência 2. Embora possuam uma carga

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


horária de 105 e 90 horas, respectivamente, os estágios em sala de aula
são realizados em 30 horas-aula. As demais horas que compõem a carga
horária são utilizadas pelo docente para propor discussões e orientar a
elaboração de planos de aula, de material didático, dentre outros.

OS CAMPOS DE ESTÁGIO DURANTE O ISOLAMENTO SOCIAL

Com as medidas restritivas sanitárias e de preservação da vida, por


conta da pandemia, tivemos mais um motivo para abdicar do estágio
na escola pública de educação básica. Assim, a realização das práticas de
estágio nas disciplinas de Prática de Docência de Línguas Estrangeiras
Modernas Neolatinas II e de Língua Portuguesa II, amparadas pela
Resolução Cepe n° 44/2020, aconteceu em cursos especialmente cria-
dos para servirem de campos de estágio aos alunos praticantes.

Fizeram parte desse campo alternativo de estágio 10 estagiários


de línguas neolatinas e 10 de língua portuguesa, que tiveram a função
de elaborar, preparar e ministrar suas aulas em cursos que foram pro-
postos e aprovados na UFPR na modalidade remota, entre os meses
de junho e setembro de 2020. Para atender a uma demanda do curso
de Pós-Graduação em Educação da UFPR, foram abertas duas turmas
de Língua Espanhola, com 15 vagas cada, com carga horária total de
48 horas-aula. Optamos por ministrar aulas de Espanhol Básico para
alunos da pós-graduação que tivessem interesse em prestar provas de
proficiência nessa língua. A carga horária semanal do curso foi de 6
horas-aula, e cada praticante realizou em torno de 10 horas-aula de

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A QUESTÃO DO LETRAMENTO DIGITAL NOS ESTÁGIOS OBRIGATÓRIOS DO CURSO DE LETRAS DURANTE A PANDEMIA

regência. No caso do curso de Italiano, também vinculado ao projeto


Formação de Idiomas para a Vida Universitária (Fivu), tivemos duas
praticantes e dois voluntários na condição de professores. A turma foi
aberta para 15 alunos e a carga horária total do curso foi de 30 horas (4
horas-aula semanais).
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

No estágio de língua materna, os praticantes dividiram-se em 3


grandes grupos, dos quais 2 consistiam em atividades assíncronas, com
gravações de videoaulas e sem interação com os alunos, e um com ati-
vidade síncrona e interação com alunos. Neste artigo será contempla-
do apenas este último grupo, composto por 10 alunos que ofertaram
um curso de Redação para a comunidade externa, com foco em habi-
lidades e competências de escrita avaliadas pelo Exame Nacional do
Ensino Médio (Enem). O curso contou com 600 inscrições e foram
selecionados 30 participantes de escolas públicas de Curitiba e Região
Metropolitana, conforme critérios definidos em edital. A carga horária
semanal do curso foi de 6 horas-aula divididas em 2 horas de regência
e 4 horas de atendimento individual para feedback das correções das
produções textuais. Os praticantes dividiram-se em duplas que ficaram
responsáveis por 2 horas de regência cada. Para os atendimentos indi-
viduais, cada praticante ficou responsável pelo acompanhamento de 3
alunos, fazendo correções dos textos e sanando as dúvidas em encontros
síncronos semanais. Ao todo, a carga horária do curso foi de 30 horas
(6 horas-aula semanais).

Guardadas as particularidades de cada curso oferecido, nas duas


disciplinas os praticantes ficaram responsáveis por elaborar unidades
temáticas/didáticas com objetivos sociointeracionais e sociodiscursivos
e linguísticos/normativos. Todo o processo de elaboração do material
foi acompanhado de perto pelas professoras orientadoras, que regular-
mente se reuniam sincronicamente com os praticantes – em grupo, em
dupla ou individualmente – para discutir a organização do material,
ajudar na definição de objetivos e seleção de estratégias metodológi-

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A QUESTÃO DO LETRAMENTO DIGITAL NOS ESTÁGIOS OBRIGATÓRIOS DO CURSO DE LETRAS DURANTE A PANDEMIA

cas e recursos digitais empregados conforme objetivos de aprendizagem


definidos.

Para a elaboração dos materiais didáticos utilizados nos cursos


ofertados, os praticantes se viram diante da necessidade de inserir ati-
vidades envolvendo recursos digitais, de modo a proporcionar e incen-

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


tivar a interação entre eles e os alunos. De forma unânime, as unida-
des didáticas apresentaram caráter multimodal, com textos interativos
e colaborativos; transgressores das relações de poder estabelecidas na
aula remota; e híbridos (ROJO; MOURA, 2012). Essa nova dinâmica
é representativa da afirmação de Lemke (2010 apud ROJO; MOURA,
2012), para quem as novas tecnologias de informação podem transfor-
mar não só nossos hábitos de aprender, mas também de ensinar.

O uso de tecnologias como meio de garantir aulas on-line em


diferentes níveis de ensino, durante a suspensão das atividades letivas
presenciais, vem sendo criticado por se limitar, muitas vezes, a um ins-
trumento para a reprodução de metodologias e de práticas de um ensi-
no apenas transmissivo (MOREIRA; HENRIQUES; BARROS, 2020,
p. 352). Evitar isso foi uma das preocupações das orientadoras e, como
indicamos, uma tarefa dos praticantes, que tiveram de ofertar uma edu-
cação de base digital com qualidade.

Esse contexto atípico e desafiador foi marcado por uma transição


rápida de papel, pois, em um curto espaço de tempo, os participantes,
recém iniciados na modalidade remota como alunos, passaram a atuar
como praticantes também nessa modalidade. Assim, em um mês, ti-
veram de se habituar a um novo ambiente virtual de encontros com
as professoras para definir os planos de trabalho e participar das aulas
remotas, e em seguida, transitaram para a tarefa de conduzir os cursos
no papel de praticantes. Nos dois cenários, foi feito uso da plataforma
Microsoft Teams, do Pacote Office 365, um ambiente virtual seguro

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A QUESTÃO DO LETRAMENTO DIGITAL NOS ESTÁGIOS OBRIGATÓRIOS DO CURSO DE LETRAS DURANTE A PANDEMIA

para os participantes e interações, já que esse é o sistema adotado pela


UFPR.

O ambiente virtual elegido permitiu a participação da comunida-


de externa, como convidados, no projeto Fivu; e como alunos, no cur-
so Redação na Prática. Garantir o uso efetivo da plataforma Microsoft
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

Teams por esses participantes foi um obstáculo a ser vencido, tendo


em vista a pouca familiaridade de alguns deles com essa tecnologia. As
tarefas de oferecer possibilidades de resolução de problemas técnicos e
de orientar os praticantes do curso quanto ao uso de recursos digitais
foram assumidas pelos praticantes, que, acompanhados de perto pelas
professoras, assumiram papel protagonista.

A QUESTÃO DO LETRAMENTO DIGITAL


DOS PROFESSORES EM FORMAÇÃO

Parece bastante oportuno falar em letramento digital dos (futu-


ros) professores de línguas durante o contexto pandêmico. Afinal, foi
nesse momento que tivemos escancaradas todas as fragilidades da edu-
cação brasileira, dentre elas a falta de preparo dos professores para lidar
com as tecnologias exigidas pelo ensino remoto (RIBEIRO, 2021). No
entanto, o termo não é recente e vem sendo utilizado há mais de vinte
anos pelos pesquisadores da área.

Neste capítulo, adotamos a definição de letramento digital cunha-


da por Xavier (2011, p. 6), que afirma que:

[...] significa o domínio pelo indivíduo de funções


e ações necessárias à utilização eficiente e rápida de
equipamentos dotados de tecnologia digital, tais
como computadores pessoais, telefones celulares,
caixas-eletrônicos de banco, tocadores e gravadores

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A QUESTÃO DO LETRAMENTO DIGITAL NOS ESTÁGIOS OBRIGATÓRIOS DO CURSO DE LETRAS DURANTE A PANDEMIA

digitais, manuseio de filmadoras e afins. O letrado


digital exige do sujeito modos específicos de ler e
escrever os códigos e sinais verbais e não-verbais.
Ele utiliza com facilidade os recursos expressivos
como imagens, desenhos, vídeos para interagir

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


com outros sujeitos. Trata-se de novas práticas lec-
to-escritas e interacionais efetuadas em ambiente
digital com intenso uso de hipertextos on e off-
-line (Xavier, 2009), bem como se caracteriza por
uma intensa prática de comunicação por meio dos
novos gêneros digitais mediados por aparelhos tec-
nológicos. Ligar o computador, digitar um texto,
acessar correio-eletrônico na web, navegar explo-
rativamente por informações disponíveis na Inter-
net, usufruir dos recursos multimídia de celular,
jogar on-line com parceiros localizados dentro e
fora de seu país de origem são habilidades encon-
tradas no sujeito que já adquiriu o letramento di-
gital em diversos graus. Em uma palavra, o grau de
letramento digital do sujeito cresce à medida que
aumenta o domínio dos dispositivos tecnológicos
que ele emprega em suas ações cotidianas.

Ao lermos a definição de Xavier (2011), somos levados a acreditar


que as novas gerações de professores sabem já utilizar com propriedade
as NTDICs em sala de aula. Os chamados “nativos digitais” (PRENSKY,
2001), da geração Z, pessoas nascidas entre meados dos anos 1990, foram
os primeiros a crescer com celulares, acessando a internet, compartilhando
arquivos e assim por diante. Soma-se a isso a observação de que as mídias
digitais (como Facebook, Instagram e Google+, por exemplo) ampliaram
o processo de comunicação com diferentes ferramentas disponíveis na
internet, especificamente na Web 2.0, que possibilitam a construção do

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A QUESTÃO DO LETRAMENTO DIGITAL NOS ESTÁGIOS OBRIGATÓRIOS DO CURSO DE LETRAS DURANTE A PANDEMIA

conhecimento coletivo. Ao menos em tese, esses novos professores, ou


professores novos, já possuem intimidade com as mídias digitais. No con-
texto de formação de professores, a definição de Xavier (2011) pode ser
relacionada a práticas do chamado ensino híbrido, e, mais diretamente,
à modalidade remota de ensino, uma vez que esta só se concretiza com a
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

utilização de plataformas e ferramentas digitais pedagógicas que possibi-


litem o ensino de determinado conteúdo.

Ainda cabe dizer que, para alguns autores, o letramento digital


é uma habilidade que possibilita “acessar os conteúdos midiáticos de
forma crítica para se comunicar de maneira eficiente em diferentes con-
textos”. Por outro lado, o uso mais operacional, “crítico e confiante das
tecnologias de informação e comunicação para o emprego, aprendiza-
do, autodesenvolvimento e participação na sociedade” é denominado
competência tecnológica (ALA-MUTKA; PUNIE; REDECKER, 2008,
p. 1 apud SILVA, 2016).

Outros pesquisadores, por sua vez, tomam os dois termos como


intercambiáveis e, sendo assim, algumas definições de competência digi-
tal, como a de Krunsvik (2011), já apresentam o uso da tecnologia em
contexto de ensino aliado ao julgamento didático pedagógico adequado
e consciência de suas implicações para a aprendizagem de estratégias e
para a educação e formação digital dos aprendizes. Para Silva (2016, n.
p.), nessa definição,

Há uma dimensão dupla na competência do pro-


fessor: eles devem saber usar e saber ensinar como
se usa, de forma alinhada à concepção educacional.
O professor deve se mostrar digitalmente confian-
te e, continuamente, fazer julgamentos didático-
-pedagógicos, com foco nos recursos tecnológicos,
para a expansão das possibilidades de aprendiza-
gem dos alunos.

176
A QUESTÃO DO LETRAMENTO DIGITAL NOS ESTÁGIOS OBRIGATÓRIOS DO CURSO DE LETRAS DURANTE A PANDEMIA

Quanto a isso, a questão que colocamos é: como desenvolver a


competência digital ou tecnológica do professor levando em conta as
três frentes propostas por Krumsvik (2011)? Se o professor precisa sa-
ber usar, saber ensinar como se usa e ainda saber alinhar a tecnologia à
concepção educacional, é preciso que em sua formação pré-serviço essa

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


preparação já tenha início.

Nesse sentido, destacamos que, embora a orientação referente ao


uso das novas tecnologias em sala de aula esteja presente em grande
parte dos referenciais pedagógicos, ela ainda não é posta em prática.
Conforme apontado por Souza e Murta (2019), os currículos de for-
mação inicial de professores ainda não contemplam disciplinas com en-
foque no letramento digital, consequentemente, tampouco a reflexão
sobre o seu uso é alcançada nos currículos dos cursos Brasil afora.

O que notamos no contexto de ensino remoto foi a necessidade


de acionamento de múltiplas habilidades, dentre elas a do letramen-
to digital, o que também torna o professor um polidocente. A noção
de “conhecimento tecnológico pedagógico de conteúdo”, definida por
Mishra e Koehler (2006 apud MILL; SILVA, 2010) como TPACK (que
é a sigla para a expressão, em inglês, “Technological Pedagogical Content
Knowledge”), é, a nosso ver, um conhecimento que os professores do
ensino remoto também precisam adquirir. Afinal, a utilização de ferra-
mentas digitais, seja no ensino presencial ou não, requer do professor
a elaboração de critérios de escolha que estão totalmente relacionados
tanto ao conhecimento do conteúdo a ser ensinado quanto ao conheci-
mento tecnológico para didatizar esse conteúdo.

AS PERCEPÇÕES DOS PRATICANTES


SOBRE O LETRAMENTO DIGITAL

Para identificar as percepções dos praticantes, que já haviam ini-


ciado e/ou finalizado o estágio, acerca do letramento digital na prática

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A QUESTÃO DO LETRAMENTO DIGITAL NOS ESTÁGIOS OBRIGATÓRIOS DO CURSO DE LETRAS DURANTE A PANDEMIA

docente, as professoras formadoras elaboraram um questionário com


10 questões, em que o anonimato foi garantido, mas com a possibi-
lidade de emprego de pseudônimos que serão utilizados aqui. Das 10
perguntas, selecionamos as respostas de 4 que versavam mais explici-
tamente sobre a experiência dos praticantes com o uso da tecnologia
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

durante o estágio na modalidade remota. Em linhas gerais, as perguntas


resumiram-se a identificar a percepção dos praticantes com relação (1) à
possibilidade de contribuição dos recursos tecnológicos para as práticas
pedagógicas (do ensino presencial); (2) às expectativas de utilização da
tecnologia em sala de aula; (3) à contribuição do estágio para o apro-
fundamento sobre letramentos digitais; (4) à aptidão para atuação no
ensino a distância.

Quanto à necessidade de inserção da tecnologia em sala de aula,


os alunos acreditam que qualquer prática docente que simplesmente
exclua as tecnologias digitais está obsoleta. Para 75% dos praticantes
de Línguas Estrangeiras Neolatinas e 100% dos praticantes de Língua
Portuguesa II, as tecnologias precisam estar inseridas na rotina escolar;
para os outros 25%, as tecnologias deveriam ser inseridas em apenas
algumas disciplinas.

Embora sejam totalmente favoráveis à inserção da tecnologia na


sala de aula, para os entrevistados há a necessidade de se preparar o
professor para sua aplicação nas aulas. Muitos, inclusive, sentem neces-
sidade de aprimorar o uso dessas tecnologias em suas práticas. Dentre os
praticantes de Línguas Estrangeiras Neolatinas, (a) 40% se consideram
entusiastas da tecnologia emergente e afirmam procurar adequar suas
práticas pedagógicas às novas tecnologias; (b) 30% expressam desejo
de utilizar a tecnologia em sala de aula, mas nem sempre sabem qual o
caminho seguir; (c) 20% gostariam de usar as novas tecnologias em suas
aulas, mas não possuem formação adequada à construção de práticas
pedagógicas digitais; e (d) 10% afirmam conviver com a tecnologia,
mas acreditam não dependerem dela para desenvolver a aula de forma

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A QUESTÃO DO LETRAMENTO DIGITAL NOS ESTÁGIOS OBRIGATÓRIOS DO CURSO DE LETRAS DURANTE A PANDEMIA

produtiva. Dentre os praticantes da língua materna, o percentual re-


ferente a essas mesmas questões foi de, respectivamente, (a) 50%; (b)
25%; (c) 12,5%; (d) 12,5% – valores muito próximos aos do grupo de
praticantes de Línguas Estrangeiras Neolatinas, o que pode ser justifi-
cado pela proximidade de características e desafios dos cursos ofertados

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


pelos dois grupos, na modalidade remota.

No tocante ao aprimoramento da competência digital/tecnológi-


ca, todos os estagiários declararam terem desenvolvido essa competên-
cia ao longo do estágio, conforme indicam duas respostas transcritas a
seguir:

Sara: Com certeza! Pude conhecer e testar novas


plataformas e aplicativos, o que considero muito
significativo para a minha formação e prática do-
cente.
Bey: Com certeza! Consegui aprender alguns re-
cursos com a própria apresentação da professora
e além disso saí totalmente da zona de conforto e
procurei muitos outros recursos.

A postura dos participantes da pesquisa, futuros professores,


mostra que eles têm consciência do uso da tecnologia, o que é conside-
rado por Silva (2016) “um estágio inicial preponderante no processo de
desenvolvimento da competência tecnológica e de adoção da tecnolo-
gia na sala de aula”. No entanto, ainda que concordem que as práticas
pedagógicas tradicionais não são melhores do que aquelas práticas que
foram desenvolvidas durante o período de pandemia, boa parte deles
não se considera um professor totalmente preparado para lidar com as
práticas pedagógicas digitais.

Questionados sobre estarem preparados para atuar como profes-


sores no ensino a distância, os professores-praticantes preferiram não ser

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A QUESTÃO DO LETRAMENTO DIGITAL NOS ESTÁGIOS OBRIGATÓRIOS DO CURSO DE LETRAS DURANTE A PANDEMIA

categóricos. A maioria diz acreditar que está se preparando para atuar


nesse novo contexto de ensino. Assim, parece que esses praticantes já
superaram a “jornada mental de competência tecnológica”, proposta
por Krumsvik (2011). Esse nível mais básico, segundo Silva (2016, n.
p.), “é a total falta de consciência e despreparo do professor para adotar
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

os recursos digitais na sala de aula”.

Para eles, o pontapé inicial já foi dado durante a Prática de


Docência II, mas há muito que precisa ser melhorado:

X: “Estar preparado” é algo muito definitivo, então


penso que sou capaz de dar aulas a distância de ma-
neira satisfatória, mas ainda existem vários pontos
a serem melhorados.
Bey: Acredito que estou capacitada para entrar nes-
se universo, mas ainda há muito o que ser aprendi-
do em todo esse meio.

Diante do exposto até aqui, a pergunta que devemos fazer é se


o professor possui letramento digital para realizar determinadas ações,
e não simplesmente para exercer a profissão. As falas que trouxemos
discutem, de maneira muito tímida, as percepções dos praticantes nes-
se momento de excepcionalidade pelo qual estamos todos passando.
Estudos mais detalhados e com outros instrumentos de coleta de dados
poderiam traçar de maneira mais assertiva o papel da competência tec-
nológica na formação dos futuros professores.

AS PERCEPÇÕES DAS PROFESSORAS


SOBRE O LETRAMENTO DIGITAL

O papel de formador de professores de línguas exigiu de nós,


professoras formadoras em contexto pandêmico, preparação psicoló-

180
A QUESTÃO DO LETRAMENTO DIGITAL NOS ESTÁGIOS OBRIGATÓRIOS DO CURSO DE LETRAS DURANTE A PANDEMIA

gica, pedagógica e técnica que demandou muitas horas de pesquisa,


estudo e planejamento. Embora nos considerássemos docentes digital-
mente letradas, o ensino remoto trouxe consigo uma altíssima necessi-
dade de desenvolvimento de habilidades informacionais, operacionais
e autorais de letramento digital, que até então desconhecíamos. Como

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


apontado por Ortiz e Calurando (2006, p. 214), “é necessário transcen-
der o enfoque utilitarista, hoje predominante, centrado exclusivamente
no desenvolvimento de habilidades operacionais no uso das TICs, algo
necessário, mas não suficiente”. Ao fazer o que é sugerido por Ortiz e
Calurando (2006), somos levados a adotar uma abordagem conceitual-
-crítica que de algum modo facilite a integração dos alunos enquanto
sujeitos ativos e críticos, e não mais como simples consumidores de
tecnologia.

Adotando o modelo ideológico de letramento digital (ALMEIDA;


ALVES, 2020), tivemos que ir além da simples escolha de uma fer-
ramenta digital para ser utilizada pelos praticantes em seus estágios.
Foi necessário, por exemplo, encontrarmos maneiras de proporcionar a
participação dos alunos na produção e na distribuição dos conteúdos.
Em um primeiro momento, acreditávamos que os discentes se engaja-
riam nas atividades síncronas feitas no grande grupo. Foi preciso muita
observação e reflexão para entendermos que isso só aconteceria se as
atividades fossem colaborativas e se o fluxo comunicacional se tornas-
se bidirecional. Para isso, criamos na própria aula síncrona on-line os
pequenos grupos de discentes, cada um deles monitorado por um pra-
ticante. Diante de todas as dificuldades enfrentadas e superadas, perce-
bemos-nos como mais bem preparadas para atuar como educadoras na
“era digital”, compreendendo de forma mais clara qual o real papel e
impacto das NTDICs no ensino-aprendizagem de línguas.

Finalmente, reconhecemos que assumir o papel de professoras


formadoras no sistema remoto, tendo de desbravar um caminho novo e,
ao mesmo tempo, apresentá-lo como trilha possível aos nossos alunos,

181
A QUESTÃO DO LETRAMENTO DIGITAL NOS ESTÁGIOS OBRIGATÓRIOS DO CURSO DE LETRAS DURANTE A PANDEMIA

foi possível por termos como bússola princípios básicos sobre ensino-
-aprendizagem de línguas estrangeiras e língua materna. Sob essa pers-
pectiva, as tecnologias foram usadas para colocar em prática os objetivos
de formação docente, ultrapassando o caráter de mero instrumento de
interação ou de reprodução de um ensino tradicional e vertical a que ge-
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

ralmente são associadas. Aprender e ensinar foi, de fato, um movimento


horizontal e retroativo, em que nossa prática docente refletiu na prática
dos nossos alunos, e em que a prática dos nossos alunos nos fez refletir
sobre o papel do letramento digital nessa modalidade de ensino.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

À guisa de conclusão, uma pergunta final que se coloca é: as dis-


ciplinas de estágio obrigatório deverão se encarregar de incluir a tecno-
logia em seus conteúdos? A partir do que apresentamos até aqui e em
consonância com SILVA (2016), a experiência que tivemos nos indica
que o professor em formação deve vivenciar a condição de discente
virtual, de forma contextualizada e integrada, tendo a tecnologia como
um meio para atingir os objetivos propostos para a aula, promovendo
interações e tarefas pertinentes.

Como afirmado por Barreto e Rocha (2020), o atual contexto


nos mostrou que os professores são mais consumidores da tecnologia
do que produtores e isso se deve ao modelo de formação inicial que
tiveram. Nesse sentido, é preciso que repensemos essa formação, que
precisa, ainda mais, ser adaptada para a contemporaneidade.

Finalmente, cabe dizer que a experiência de estágio remoto e,


especialmente, as percepções dos nossos alunos com relação a essa mo-
dalidade, nos levam a advogar a favor de uma formação mais sólida
quando se consideram os letramentos digitais para que os licenciandos
possam atuar em contextos presenciais e, também, remotos. Passa, en-

182
A QUESTÃO DO LETRAMENTO DIGITAL NOS ESTÁGIOS OBRIGATÓRIOS DO CURSO DE LETRAS DURANTE A PANDEMIA

tão, a ser pauta das nossas discussões a possibilidade de inclusão desse


novo “campo de estágio” na já citada universidade, quando o calendário
for retomado e as aulas presenciais voltarem a ser ministradas.

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


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183
A QUESTÃO DO LETRAMENTO DIGITAL NOS ESTÁGIOS OBRIGATÓRIOS DO CURSO DE LETRAS DURANTE A PANDEMIA

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LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

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Regulamenta, em caráter excepcional, as atividades didáticas das disciplinas que são
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184
INCLUSÃO SOCIAL/ESCOLAR DO SURDO: O papel do professor como mediador pedagógico das novas tecnologias

9.
INCLUSÃO SOCIAL/ESCOLAR DO
SURDO: O PAPEL DO PROFESSOR

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


COMO MEDIADOR PEDAGÓGICO DAS
NOVAS TECNOLOGIAS

Arielli Curado Andrade Bueno


Secretaria Municipal de Educação (Semec Bela Vista de Goiás)

A
s novas tecnologias, anteriormente ao isolamento social devido
à pandemia de covid-19, já haviam alterado o cotidiano social e
consequentemente, os comportamentos sociais, políticos e eco-
nômicos dos cidadãos. No ciberespaço, encontram-se informa-
ções aleatórias dentro das rotas de navegações que incluem ou segregam
o indivíduo da cultura digital. Sabe-se que essa busca de informações
sem a devida criticidade e autonomia tende à superficialidade do conhe-
cimento dos fatos ou gera situações inverídicas.

Entretanto, os aparatos tecnológicos, quando utilizados através


do trabalho orientador do professor, promovem o desenvolvimento do
conhecimento e a inclusão social, inclusive de indivíduos com necessi-
dades educacionais específicas, como os surdos. As interfaces amigáveis
e com intérpretes 3D instigam o estudante surdo a participar da ciber-
cultura, a demonstrar a visão dele sobre os acontecimentos globais e a
compartilhar a cultura surda em blogs, aplicativos, entre outros.

185
INCLUSÃO SOCIAL/ESCOLAR DO SURDO: O papel do professor como mediador pedagógico das novas tecnologias

Nesse sentido, questiona-se: qual o papel do professor na promo-


ção educacional e na inclusão social dos indivíduos surdos e ouvintes
no ciberespaço? O professor é o mediador do conhecimento dentro de
todos os espaços que o estudante frequenta. O trabalho norteador e
questionador do professor enriquece as informações oferecidas no cibe-
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

respaço e promove a reflexão e o desenvolvimento educacional crítico


do estudante surdo e ouvinte ao utilizar os aparatos tecnológicos para a
busca de informações.

O presente capítulo visa refletir sobre o papel do professor no


desenvolvimento escolar pleno e na promoção da inclusão social do
estudante surdo nos ambientes escolares e virtuais como sujeito pos-
suidor de uma própria língua e cultura, em prol de aliar os conteúdos
programáticos do currículo escolar com as interações que o ciberespaço
contextualizou na contemporaneidade.

Para este estudo, relatórios foram realizados no período de agosto


de 2020 a janeiro de 2021, em um grupo de estudo, conduzido pelo
Google Meet, sobre os surdos, ensino de Língua Brasileira de Sinais
(Libras) e formação de professores, com um total de 16 professores es-
tudantes (11 ouvintes e 5 surdos) – que ministram aulas na educação
infantil, na EJA, no ensino fundamental e na educação inclusiva –, na
cidade de Goiânia. A discussão se deu dentro de um diálogo com os
professores formadores e professores estudantes sobre a relação das no-
vas tecnologias com as práticas pedagógicas para a inclusão social e edu-
cacional do estudante surdo no ciberespaço.

O PROFESSOR: MEDIADOR DAS NOVAS TECNOLOGIAS

É inegável a percepção da alteração dos comportamentos cultu-


rais e econômicos da sociedade contemporânea, face ao avanço do uso
e à integração das diferentes tecnologias no cotidiano. Vivencia-se um

186
INCLUSÃO SOCIAL/ESCOLAR DO SURDO: O papel do professor como mediador pedagógico das novas tecnologias

período diferenciado nas relações humanas, onde rápidas mudanças fo-


ram necessárias para a realização de atividades cotidianas, o que estabe-
leceu uma urgência na inclusão do indivíduo no ciberespaço para ele
estar presente e se sentir incluso nos acontecimentos globais.

Sabe-se que o ciberespaço propicia distintas rotas de navegação,

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


em que o cidadão pode obter e oferecer informações. Conforme Lévy,
ele é:

[...] o novo meio de comunicação que surge da in-


terconexão mundial dos computadores. O termo
especifica não apenas a infraestrutura material da
comunicação digital, mas também o universo oceâ-
nico de informações que ela abriga, assim como
os seres humanos que navegam e alimentam esse
universo. Quanto ao neologismo “cibercultura”,
especifica aqui o conjunto de técnicas (materiais e
intelectuais), de práticas, de atitudes, de modos de
pensamento e de valores que se desenvolvem junta-
mente com o crescimento do ciberespaço (LÉVY,
1999, p. 17).

Os indivíduos incorporam essa inter-relação com o ciberespaço


como prática cotidiana e o utilizam nos espaços que convivem. A inter-
net oferece um extenso volume de informações armazenadas em sites,
blogs e redes sociais que são produzidas e oferecidas por qualquer indi-
víduo que utilize as novas tecnologias.

A sociedade relacionou com as vivências cotidianas que os profes-


sores, os livros e as apostilas não são os únicos que oferecem informa-
ções. Abreu (2009, p. 44) expõe que “[c]omo decorrência desse estado
de coisas, as informações tendem a ficar superficiais. Não há tempo para

187
INCLUSÃO SOCIAL/ESCOLAR DO SURDO: O papel do professor como mediador pedagógico das novas tecnologias

um aprofundamento, para se digerir a quantidade de dados, nem para


a fixação desses dados”.

Essa superficialidade repercute na formação do indivíduo e nas


relações sociais, inclusive nos ambientes escolares. Os estudantes pos-
suem uma gama variada de informações, entretanto não as utilizam
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

criticamente. Observa-se que o apego e o uso indiscriminado das novas


tecnologias tornaram-se prática corriqueira dos estudantes. Devido à
rapidez da circulação das informações, há uma necessidade de acessar e
compartilhar no ciberespaço informações sobre todos os atos que jul-
gam verdadeiros.

Esse acesso a informações, sem um processo de produção do


conhecimento crítico, torna-se irrelevante. Abreu (2009, p. 49) com-
plementa que “as informações e os conhecimentos veiculados na rede
necessitam ser dimensionados e contextualizados”. O professor deve
se atentar a este contexto contemporâneo, a fim de compreender as
mudanças criticamente e contextualizá-las ao universo acadêmico e à
realidade em que o estudante está inserido, pois ele é o mediador do
conhecimento dentro e fora do ciberespaço.

É imprescindível que a escola e os professores repensem sobre a


integração atual das novas tecnologias nas práticas pedagógicas e se per-
cebam como articuladores de conhecimentos específicos, pedagógicos e
tecnológicos dentro da sala de aula, pois ela tem

[...] sido normalmente um espaço conservador,


tornando-se, por isso, pouco atrativa para os mais
jovens. As suas portas têm de ser abertas ao pro-
fessor visionário capaz de pôr a sua imaginação ao
serviço do desenho, teste e adoção – ou abandono
– de novos métodos ou novas tecnologias (GO-
MES, 2014, p. 13).

188
INCLUSÃO SOCIAL/ESCOLAR DO SURDO: O papel do professor como mediador pedagógico das novas tecnologias

O ambiente de mediação pedagógica no ciberespaço deve ser


aprazível para a prática do ensino-aprendizagem, revendo conceitos
tradicionais e lineares tão corriqueiros no ensino presencial. A escola,
juntamente com os professores, deve propiciar aos estudantes estímulos
que os tornem participativos e autônomos na produção do conheci-

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


mento nos ambientes virtuais, nos momentos síncronos e assíncronos
das aulas.

As novas tecnologias podem propiciar ao professor, juntamente


com os estudantes, ambientes de diálogo dentro do ciberespaço e da
escola, tornando a sala de aula um ambiente envolvente, onde ambos se
identificam com a produção de conhecimento. É necessária uma cons-
cientização das escolas sobre a real necessidade da inserção nos currí-
culos escolares de práticas pedagógicas que conciliam a Base Nacional
Comum Curricular (BNCC) e as mudanças sociais que as novas tecno-
logias trouxeram para a vivência escolar.

A mediação pedagógica deve ser revista em benefício das mudan-


ças educacionais em geral, inclusive das alterações sociais que as novas
tecnologias impuseram à comunidade escolar. Ela deverá ser concomi-
tante ao cotidiano tecnológico mundial, que introduziu aos estudantes
uma perspectiva diferente de obtenção de informação, que não condiz
com as práticas tradicionais de ensino. Ela ocorrerá por meio de recons-
truções do contexto educacional e pelo letramento digital, que promo-
verá a incorporação das novas tecnologias com as práticas pedagógicas,
objetivos curriculares e o cotidiano mundial.

Verifica-se que uma das potencialidades que as novas tecnologias


promoveram na comunidade escolar foi a inclusão no ensino regular de
estudantes com necessidades educacionais específicas, como os surdos.
Apesar dos aparatos tecnológicos (celular, tablets, notebooks) não serem
produzidos prioritariamente para os estudantes surdos, eles contribuem
para a comunicação escrita e visual, o que instiga o estudante a se co-

189
INCLUSÃO SOCIAL/ESCOLAR DO SURDO: O papel do professor como mediador pedagógico das novas tecnologias

municar com os demais colegas de classe e com os professores. Através


do uso direcionado e mediado pelo professor de aplicativos como o
WhatsApp e Facebook, os estudantes surdos e ouvintes se comunicam
pela escrita ou em Libras, promovendo a inclusão social do estudante
surdo no ensino regular, o (re)conhecimento da cultura surda e a vivên-
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

cia ouvinte-surda.

Entende-se que a cultura surda envolve a visão e a compreensão


do surdo sobre a sociedade e da interação dele como sujeito participa-
tivo das decisões comunitárias. Através das percepções visuais, o surdo
modifica o mundo, tornando-o acessível. Isto corrobora o desenvolvi-
mento da identidade surda, da língua, das perspectivas, valores e hábi-
tos do povo surdo (STROBEL, 2008).

As novas tecnologias podem favorecer e contribuir para os profes-


sores e estudantes ouvintes compreenderem e respeitarem a diversidade
da cultura surda, identificando os surdos como sujeitos passíveis de di-
reitos que possuem uma língua própria, valores e costumes. Quadros e
Massutti (2007, p. 260) complementam: “As pessoas que sabem sobre
as pessoas surdas e sua língua podem ser capazes de perceber o mundo
em outra perspectiva, na perspectiva surda”. Ou seja, o professor, ao
compreender os surdos e as singularidades deles, promoverá a inclusão
dos estudantes, compreendendo-os no contexto social surdo, e os auxi-
liará na obtenção do conhecimento. Dessa forma, não será imposta ao
surdo a língua oralizada, e a inclusão social deles no regime de aulas não
presenciais (Reanp) ocorrerá com o auxílio dos profissionais da educa-
ção tanto no ciberespaço quanto na escola.

A INCLUSÃO SOCIAL DO SURDO

Ao analisar o contexto histórico mundial, verifica-se que a edu-


cação para os surdos percorreu um longo trajeto de lutas e reivindica-

190
INCLUSÃO SOCIAL/ESCOLAR DO SURDO: O papel do professor como mediador pedagógico das novas tecnologias

ções. Havia um sentimento generalizado de inferiorização, proteção ou


rejeição em relação aos surdos nos ambientes escolares. Eles eram vistos
como sujeitos que deveriam se adaptar ao mundo dos ouvintes, pri-
vando-os do conhecimento da língua de sinais e da própria cultura. Os
estudantes surdos deveriam se apropriar do conhecimento, através da

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


mediação oral, numa escola que não o acolhia dentro de suas peculiari-
dades e não o reconhecia como sujeito com direitos de aprendizagem.

A filosofia oralista e as práticas ouvintistas reproduziam o este-


reótipo de que os surdos eram deficientes mentais ou com a faculdade
mental afetada, e isso contribuiu para que os surdos saíssem da escola
subeducados e, consequentemente, no mundo de trabalho, as ativida-
des e ofícios que os surdos normalmente exerciam eram de atendentes
ou auxiliares de ouvintes (BARBOSA, 2011; SKLIAR, 2001). Diversas
escolas não ofereciam a mediação pedagógica gestual-visual, além de
não oportunizar condições de ensino-aprendizagem que valorizassem a
diversidade e a inclusão. Isso tornou os estudantes surdos dependentes
de familiares ou amigos para interpretá-los, ou seja, eram dependentes
de outros para se enunciarem na sociedade (STROBEL, 2008).

Devido a práticas de ensino oralistas, a assimilação dos conteú-


dos curriculares e a aprendizagem pelos estudantes surdos sofriam gra-
ves consequências no desenvolvimento dos cidadãos. De acordo com
Quadros e Massutti (2007, p. 257): “A escola desconhece os surdos e
sua língua. Então, quando esta criança precisa ir à escola, ela se sente
fora de seu mundo, ela não tem uma relação de pertencimento com
aquele espaço”.

Como muitos estudantes surdos não conseguiam fazer a leitura


labial do professor ouvinte, e, por conseguinte, não compreendiam ple-
namente o conteúdo mediado, eles se sentiam estrangeiros no ambiente
escolar oralista. Diversos estudantes surdos eram incompreendidos e
impostos a aceitar uma outra cultura, que desrespeitava a cultura surda.

191
INCLUSÃO SOCIAL/ESCOLAR DO SURDO: O papel do professor como mediador pedagógico das novas tecnologias

Isso dificultava o convívio social dos surdos dentro da escola, tornan-


do-os indivíduos receosos e estereotipados como impacientes, nervosos
etc.

Quadros e Massutti (2007, p. 242) justificam que isso ocorria


porque “[o] processo educacional sempre privilegiou o uso da língua
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

portuguesa, conferindo um status aos seus falantes, política essa que


continua a trazer consequências negativas para a vida dos surdos”.
Logo, eles finalizavam a educação básica sem o domínio necessário da
linguagem oral e escrita e da língua de sinais.

Ao relacionar que as práticas pedagógicas que primavam a língua


falada não contribuíam necessariamente para a formação acadêmica dos
estudantes surdos, a comunidade escolar, juntamente com associações,
pais e surdos, iniciou discussões acadêmicas sobre a real necessidade
das práticas oralistas de ensino e as peculiaridades do estudante surdo.
Conforme afirma Barbosa (2011, p. 174), essa preocupação com o co-
nhecimento acadêmico e social do surdo ocorreu “[s]omente a partir do
século passado, [quando] alguns pesquisadores começaram a se preocu-
par com a língua de sinais dentro das comunidades surdas e nos espaços
escolares”.

Essas questões repercutiram inclusive no Brasil, na década de


1960, na tentativa de demonstrar a naturalidade da língua de sinais.
Entretanto, as pesquisas e os estudos sobre a língua de sinais se inten-
sificaram nas décadas de 1980 e 1990, enriquecendo as diferenças e
similaridades da Libras com o português (QUADROS, 2009).

Verificou-se a importância dentro das escolas de se conhecer o


estudante surdo e como ocorre seu processo de ensino e aprendizagem.
A comunidade escolar correlacionou que a linguagem de sinais oferecia
ao estudante surdo o acesso pleno ao conhecimento curricular e sua
inclusão social.

192
INCLUSÃO SOCIAL/ESCOLAR DO SURDO: O papel do professor como mediador pedagógico das novas tecnologias

Devido a um extenso histórico de reivindicações de lutas das ins-


tituições, associações e profissionais de educação pelos direitos educa-
cionais dos surdos, aprovou-se a Lei n. 10.436, de 24 de abril de 2002,
regulamentada pelo Decreto n. 5.626, de 22 de dezembro de 2005, que
também regulamenta o artigo 18 da Lei n. 10.098, de 19 de dezembro

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


de 2000, decreto assinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva
(BARBOSA, 2011; BRASIL, 2005). Esta lei reconhece a Libras como
língua materna dos surdos e assegura-os o direito de utilizá-la nos am-
bientes de ensino regular, sendo o português oral-escrito considerado
como segunda língua. Dessa forma, as escolas de ensino regular de-
vem oferecer aos estudantes surdos a educação bilíngue, pois, conforme
Stumpf justifica:

Educação Bilíngue é vista não apenas como uma


necessidade para os alunos surdos, mas sim como
um direito, tendo sempre como base o pressuposto
de que as Línguas de Sinais são patrimônios da hu-
manidade e que expressam as culturas das comuni-
dades Surdas (STUMPF, 2009, p. 426).

Isso contribuirá para que o estudante surdo obtenha o acesso ao


conteúdo curricular da escola, além de promover a inclusão social e o
acesso à cultura dele aos demais estudantes ouvintes e profissionais da
educação. É indiscutível que a escola e os professores devem conhecer
o histórico de lutas e conquistas da educação para os surdos, para assim
então promover a inclusão social deles no ambiente escolar e a constru-
ção do conhecimento.

Sabe-se que na realidade atual ainda há preconceitos a serem ven-


cidos para que essa inclusão ocorra. Entretanto, é papel social da escola
e do professor desenvolver cidadãos autônomos e críticos em todos os
espaços reais ou virtuais.

193
INCLUSÃO SOCIAL/ESCOLAR DO SURDO: O papel do professor como mediador pedagógico das novas tecnologias

AS NOVAS TECNOLOGIAS: A INCLUSÃO


SOCIAL E EDUCACIONAL DO SURDO

Observa-se que as novas tecnologias apresentam um papel admi-


rável na educação e estão presentes no cotidiano escolar, incluindo ou
segregando os indivíduos que convivem no ciberespaço. Principalmente
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

após a democratização do acesso à internet nos anos 1990, os aparatos


tecnológicos como celulares, tablets e notebook se tornaram comuns no
cotidiano escolar contemporâneo, atraindo todas as classes sociais que
desejam a obtenção do conhecimento, alterando-se os processos de en-
sino-aprendizagem (ABREU, 2009).

As comodidades logísticas da internet e o design inovador dos sites


e dos blogs instigam o indivíduo a conhecer e participar do ambiente
virtual de educação. A cibercultura impõe parâmetros virtuais e reais à
sociedade, que oportunizam a adoção de um determinado estilo de vida
em que o estudante surdo tem a disponibilidade de incorporá-las ou
não às suas interações no processo de ensino-aprendizagem. Ao correla-
cionar essas demandas sociais da atualidade, observou-se um aumento
no investimento publicitário e financeiro nas interfaces dos sites educa-
cionais e aplicativos de comunicação virtual que visam a inclusão social
do surdo.

Vídeos musicais e filmes em Libras foram disponibilizados no


YouTube, jogos interativos e aplicativos foram desenvolvidos com in-
terfaces amigáveis que podem estar presentes em sites e/ou ser baixados
nos aparatos tecnológicos. No ciberespaço existem aplicativos como o
Hand Talk, Vlibras e o Librazuca, que disponibilizam em suas interfa-
ces avatars (ou synthesized signers ou personal digital signers) de intérpre-
tes virtuais em animações 3D que traduzem textos e voz para a Libras,
dicionários, e módulos teóricos (alfabeto, números e gramática).

O estudante insere ou fala determinada palavra no aplicativo e


o intérprete 3D sinalizará as palavras em Libras. Também há a possi-

194
INCLUSÃO SOCIAL/ESCOLAR DO SURDO: O papel do professor como mediador pedagógico das novas tecnologias

bilidade de ele digitar pequenos textos nos aplicativos, que automa-


ticamente os traduzirão para a linguagem de sinais, com expressões,
sinálarios e vocabulários simples. Essas animações contribuem para a
comunicação entre ouvintes e surdos, uma vez que um intérprete hu-
mano pode não estar presente em todos os momentos do cotidiano

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


do surdo (STUMPF, 2010). Esses aplicativos podem colaborar para a
autonomia do estudante surdo nos ambientes sociais e escolares.

As interfaces expostas nos sites e aplicativos exigem do surdo um


grande conhecimento da leitura e escrita da língua portuguesa, pois
são passíveis de erros nos softwares ou má interpretação dos sinais do
intérprete 3D. Uma vez que os avatars não possuem expressões faciais e
nem interpretam o contexto do texto digitado, concerne-se ao professor
um trabalho norteador na comunidade escolar sobre o real domínio da
língua portuguesa em modalidade escrita e da utilização das novas tec-
nologias como ferramentas auxiliares na aprendizagem dos estudantes
surdos, além da ênfase na importância do acompanhamento do surdo
pelo intérprete humano, garantido no Decreto n. 5.626, de 22 de de-
zembro de 2005.

O professor deve-se atentar a essas questões funcionais ao elabo-


rar atividades e materiais que utilizem as interfaces de sites e aplicati-
vos e realizar um estudo prévio das funcionalidades pedagógicas deles.
Valentini (2013, p. 245) retrata que, “[c]om os avanços das novas tec-
nologias da informação e da comunicação, encontramos campos novos
a serem trilhados como o apoio para a educação de surdos, bem como
para refletirmos sobre as concepções dos próprios surdos com relação a
surdez”.

Feita uma análise dos avanços das novas tecnologias e sua relação
com a cultura surda, o professor corroborará com o desenvolvimento
da criticidade do estudante ao utilizar as ferramentas oferecidas no ci-
berespaço, incluindo-as aos conteúdos curriculares e selecionando as

195
INCLUSÃO SOCIAL/ESCOLAR DO SURDO: O papel do professor como mediador pedagógico das novas tecnologias

informações que serão significativas para o processo de ensino-apren-


dizagem. Ou seja, ele deve elaborar atividades e materiais que auxiliem
os estudantes surdos ou ouvintes a não utilizarem as novas tecnologias
superficialmente.

Diante de reflexões e estudos sobre as novas tecnologias, o profes-


LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

sor correlacionará as atividades que contemplem o currículo escolar com


as alterações e as comodidades que a cibercultura trouxe à comunidade
escolar. Conforme Stumpf (2010, p. 3) expõe, o professor promoverá
“[...] o acesso a uma língua plena, aliada ao uso das novas tecnologias,
[e apontará] para reais possibilidades de um grande salto de qualidade
nessa educação, cujo principal objetivo é a inclusão do sujeito surdo na
escola e na sociedade”.

Cabe ao professor observar o desenvolvimento pedagógico do es-


tudante surdo e oportunizar relações de conhecimento por intermédio
de uma educação libertária que contribua para o desenvolvimento da
consciência autônoma e nas interações entre estudantes (surdos e ou-
vintes). Assim, haverá a contemplação de uma mediação pedagógica
dialógica do professor, baseada na reflexão e observação do contexto
escolar.

Os processos de ensinar e aprender, dentro de uma escola inclu-


siva, são dinâmicos e não restritos a ambientes físicos e virtuais ou na
passividade dos alunos. O êxito nesses processos ocorre quando a escola
se propõe a práticas pedagógicas de inclusão a todos os estudantes, in-
dependente de características físicas, orgânicas, psicossociais, culturais,
étnicas ou econômicas (CARVALHO, 2005).

A educação digital dentro de uma escola inclusiva proporciona


aos indivíduos surdos segurança e liberdade para que eles desempe-
nhem a cidadania dentro de todos os ambientes que frequentam. Para
Prado (2006, p. 2) o ciberespaço, quando guiado

196
INCLUSÃO SOCIAL/ESCOLAR DO SURDO: O papel do professor como mediador pedagógico das novas tecnologias

[...] por uma concepção educacional que privile-


gia a autoria do aluno, a reflexão, a re-elaboração
e (re) construção do conhecimento, apresenta uma
configuração aberta e flexível, permitindo o plane-
jamento e a re-estruturação do curso durante sua

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


realização.

Ou seja, o ciberespaço produz informações em suas interfaces que


permitem o acesso e a interferência do estudante surdo e a inclusão da
cultura surda nos acontecimentos globais.

Durante o planejamento das aulas que utilizem as novas tecnolo-


gias, o professor se comprometerá com o acompanhamento reflexivo da
própria prática pedagógica, do desenvolvimento escolar dos estudantes
ouvintes e surdos e buscará conteúdos pedagógicos instigantes e inclusi-
vos, que provoquem no estudante a criatividade e a pesquisa verídica de
informações. Dessa forma, o professor não reproduzirá métodos avalia-
tivos permissivos ou reprovativos, tampouco feedbacks que contribuam
para a evasão escolar ou aumentem o sentimento de isolamento dos
estudantes surdos na escola.

O acesso pleno ao conhecimento pelos estudantes ocorre quan-


do as instituições escolares valorizam o estar junto virtual, o acompa-
nhamento pedagógico do professor em relação aos materiais didáticos
utilizados e às atividades realizadas pelos estudantes, e, também, opor-
tunizam uma avaliação mediadora, dialógica e reflexiva através do fee-
dback positivo e orientador (HOFFMANN, 2000; ABREU-E-LIMA;
ALVES, 2011).

Isto ocorrerá através de uma linguagem acessível ao estudante sur-


do, que o inclua num ambiente virtual humanizado e acolhedor a fim
de desenvolver, juntamente com o professor, interações com as vivên-
cias anteriores e o ensino-aprendizagem. As alterações que o ciberespaço
impôs aos comportamentos sociais e ao cotidiano escolar refizeram a

197
INCLUSÃO SOCIAL/ESCOLAR DO SURDO: O papel do professor como mediador pedagógico das novas tecnologias

visão dos processos ensino e aprendizagem e nos demonstraram que,


apesar de os estudantes terem acesso a uma infinidade de conteúdos
interativos, belos e de design arrojado, somente o trabalho orientador
do professor colaborará para a transformação da informação presente
no ciberespaço em conhecimento efetivo.
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

METODOLOGIA DA PESQUISA

Este trabalho tem como base um estudo qualitativo de cunho


bibliográfico. Tal procedimento metodológico permitirá uma maior e
melhor compreensão, não só sobre os acontecimentos educacionais,
mas também sobre a importância do papel do professor como orien-
tador e mediador do conhecimento no contexto escolar e na inclusão
social do surdo de forma positiva, tendo como ponto fundamental a
perspectiva de que o professor é aquele que contribui para o desenvol-
vimento crítico e autônomo dos educandos.

Dessa forma, buscou-se uma análise detalhada sobre o assunto,


através das observações e relatórios do contexto escolar atual e de leitu-
ras. Trata-se de um estudo bibliográfico, constituído a partir de material
já publicado, como livros e artigos. Produzimos uma pesquisa qualitati-
va em um grupo de estudo sobre os surdos, ensino de Libras e formação
de professores, baseada em relatórios de observação de quatro encontros
no Google Meet e nos relatos de professores sobre a utilidade das novas
tecnologias na escola e a inclusão social e educacional dos surdos, ve-
rificando-se os acontecimentos da sociedade atual, suas alterações, seus
significados, seus valores e suas ações.

O público-alvo são professores que ministram aulas no municí-


pio de Goiânia, em prol de uma educação digital crítica e um ensino
de qualidade. Para a coleta de dados, utilizou-se um relatório de obser-

198
INCLUSÃO SOCIAL/ESCOLAR DO SURDO: O papel do professor como mediador pedagógico das novas tecnologias

vação do pesquisador, com relatos de experiências vividas no contexto


escolar.

ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


A pesquisa baseou-se em relatórios e observações do uso das no-
vas tecnologias pelos professores-formadores do Grupo de Ensino de
Libras para Professores e Formação de Professores Surdos e Ouvintes,
durante o período de agosto de 2020 a janeiro de 2021. Nesse grupo
se discutiram temas, textos e atividades escolares nos ambientes vir-
tuais (Google Meet e Telegram) referentes ao bilinguismo e ao ensino
de Libras e de Português na modalidade discursiva. Foram observados
quatro encontros on-line e a interação no ciberespaço entre os profes-
sores-estudantes, intérpretes e os professores-formadores, no intuito de
pesquisar as práticas pedagógicas aplicadas às novas tecnologias, cultura
e a inclusão social do surdo.

No primeiro encontro, explicou-se aos presentes que haveria ati-


vidades síncronas e assíncronas, que seriam realizadas no Google Sala
de Aula. Solicitou-se que todos se apresentassem e fizessem o sinal refe-
rente ao seu nome. Os professores-estudantes que não possuíam o sinal
pediram aos surdos que sugerissem um sinal que os representassem.

Através do compartilhamento de tela, o professor-formador C.


apresentou aos professores-estudantes os videoclipes em língua de sinais
que também estão disponíveis no YouTube das músicas Tua Palavra e
Si no estais aqui. No primeiro clipe, trechos da canção são enunciados
em Libras, já no segundo, os trechos são enunciados em língua de sinais
espanhola.

No primeiro momento, apresentou-se as músicas apenas com as


imagens. O professor-formador C. questionou aos estudantes ouvintes
se compreendiam as músicas apenas observando a língua de sinais. A

199
INCLUSÃO SOCIAL/ESCOLAR DO SURDO: O papel do professor como mediador pedagógico das novas tecnologias

maioria dos estudantes ouvintes não-bilíngues compreenderam o teor


das músicas através da análise das expressões faciais dos personagens.
Indagou-se aos professores surdos se as músicas foram compreendidas
em sua totalidade, e eles explicaram que pequenos trechos que utiliza-
vam a língua de sinais tanto em português quanto em espanhol foram
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

compreendidos devido à similaridade dos gestos e da expressão facial


dos personagens.

Percebe-se que a distinção de sentimentos e posturas de perso-


nagens é ponto comum entre os estudantes ouvintes e surdos, e que
a compreensão de um fato pode ocorrer no campo gestual-visual.
Entretanto, ao disponibilizar os vídeos com som e legenda, oportuni-
zou-se a compreensão geral da história contada pelos personagens para
ouvintes e surdos. Os estudantes ouvintes retrataram que se sentiram
como os surdos quando assistiram aos clipes sem som ou legendas.

As novas tecnologias utilizadas pelo professor-formador C. possi-


bilitaram que os sujeitos ouvintes e surdos passassem pela mesma expe-
riência, se colocassem na perspectiva e na identidade surda e refletissem
sobre o tipo de educação aplicada nas escolas para os estudantes surdos.
A análise dos videoclipes trouxe aos professores-estudantes a perspectiva
surda de que ser diferente é ser ouvinte.

Observou-se que a expressão “educação especial” é vista como a


patologização do estudante surdo, o que impõe sua inserção numa ca-
tegoria de “estudante especial” dentro da escola. Nessa visão, qualquer
estudante pode estar presente na sala de aula, porém segregado do con-
texto escolar e virtual de aprendizagem. Não há o reconhecimento dos
recortes das identidades múltiplas dos estudantes surdos, definindo-os
sob pressupostos negativos ou mascarados sobre a nomenclatura de di-
versidade e diferença (SKLIAR, 2011).

Para o segundo encontro, o professor formador P. solicitou an-


teriormente que os participantes do grupo assistissem ao filme Black

200
INCLUSÃO SOCIAL/ESCOLAR DO SURDO: O papel do professor como mediador pedagógico das novas tecnologias

(2005), disponível no YouTube, e que enviassem as considerações do


filme para o e-mail do grupo. Esse filme retrata o desafio de um profes-
sor com uma estudante surda e cega, para que a mesma se comunique e
posteriormente se forme.

Realizou-se uma roda de conversa no Google Meet sobre as difi-

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


culdades dos surdos em concluírem a educação básica com qualidade.
Discutiu-se quais motivos geram o fracasso escolar do estudante surdo
e o porquê de o estudante abandonar a educação básica. Dentre eles,
foram apontados a falta de domínio do professor da Libras, que gera
o subentendimento do estudante surdo do português na modalidade
escrita, o uso da língua de sinais e aparato tecnológicos apenas para
bate-papo e o repasse da mediação do conhecimento para o intérprete.

Verificou-se que o fracasso educacional do estudante surdo ocorre


após uma série de “subfracassos” ligados à falta de conhecimento da
língua de sinais e de identificação como sujeito surdo, reconhecimento
de direitos linguísticos e de cidadania e teorias de aprendizagem que
considerem as condições cognitivas do surdo (SKLIAR, 2011). Ou seja,
o estudante surdo pode não desejar concluir a educação básica por se
sentir isolado dos demais e sem acesso pleno ao conhecimento. Cabe ao
professor o reconhecimento das particularidades deste estudante para
incluí-lo educacionalmente na escola e no ciberespaço, na perspectiva
de formar um cidadão consciente de seus direitos e deveres dentro da
sociedade.

O grupo relatou que atualmente há canais no YouTube e páginas


nas redes sociais que oferecem a opção de legendas escritas para progra-
mas televisivos e filmes, além da existência de aplicativos de Libras nos
celulares que professores e intérpretes utilizam para se comunicar com
os surdos e vice-versa. A internet exerce um grande fascínio neles devido
aos apelos visuais que os instigam a se comunicar e a expor opiniões e
pensamentos no universo virtual.

201
INCLUSÃO SOCIAL/ESCOLAR DO SURDO: O papel do professor como mediador pedagógico das novas tecnologias

Conforme Valentini (2013, p. 233) retrata, “[a]s novas tecnolo-


gias são compreendidas aqui, como novas formas de interagir, aprender
e socializar que acarretam mudanças na forma de pensar e viver”. Logo,
as interfaces das novas tecnologias modificaram a interação do estu-
dante surdo com os estudantes ouvintes. Elas podem contribuir para a
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

inclusão social dos surdos nas escolas, uma vez que a comunicação entre
ouvintes e surdos é facilitada pela escrita no ciberespaço ou por aplica-
tivos que demonstram sinais em Libras. Além de elas promoverem ao
estudante surdo a possibilidade de interagir e participar dos eventos
globais e da comunidade escolar como grupos de estudo nos aplicativos
como WhatsApp e demais redes sociais, expondo sua cultura e identi-
dade surda na cibercultura.

Lévy expõe que o ciberespaço não é neutro e suas ações reper-


cutem na sociedade. Nele, há vários espaços que se aproximam e nos
tornam nômades na busca de informações (LÉVY, 1999). Logo, o pro-
fessor deve se atentar para o fato de que os aplicativos não mediam o co-
nhecimento e nem substituem o intérprete em sala de aula. É necessário
o trabalho norteador do professor para que o ciberespaço seja utilizado
para fins pedagógicos e para a produção e conhecimento da língua por-
tuguesa na modalidade escrita. Assim, esses recursos contribuirão para
o sucesso educacional dos estudantes e a para a inclusão social e digital
dos estudantes surdos.

No terceiro encontro, os professores formadores S. e C. realiza-


ram a apresentação do Google Sala de Aula como ambiente de intera-
ção. Solicitou-se aos professores estudantes que pesquisassem e compar-
tilhassem artigos, vídeos e links para a discussão sobre a educação para
o sujeito surdo e os inserissem no ambiente.

Havia vários professores que necessitavam do auxílio dos profes-


sores formadores e intérpretes para compreenderem a ferramenta ou
para acessarem a página e conteúdos pedagógicos na internet. Essa difi-

202
INCLUSÃO SOCIAL/ESCOLAR DO SURDO: O papel do professor como mediador pedagógico das novas tecnologias

culdade do professor com as novas tecnologias se estende na mediação


do conhecimento na sala de aula e nas interações acadêmicas e sociais
entre profissionais da educação e na relação professor/estudante no
ciberespaço.

As escolas presenciam estudantes surdos e ouvintes inquietos, de-

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


satentos e com elevados conhecimentos digitais e das funcionalidades
dos aparatos tecnológicos, enquanto os professores são constantemente
desafiados a utilizarem as novas tecnologias pedagogicamente e con-
ciliá-las com as mudanças comportamentais e sociais dos estudantes
(ABREU, 2009). Isto é, em um cotidiano submetido às ações e reações
da cibercultura, concerne ao professor a busca dos multiletramentos
digitais e a investigação avaliativa das interfaces da internet que favore-
çam a troca de experiências, e projetos pedagógicos entre profissionais
da educação que promovam uma mediação dialógica em sala de aula e
o desenvolvimento da escrita e da língua de sinais do cidadão surdo nos
ambientes físicos e virtuais.

Os avanços da tecnologia estendem-se para outras áreas de aqui-


sição da escrita como projetos interdisciplinares de níveis diversos que
permitem a interação dos interlocutores surdos e ouvintes que se in-
teragem e compartilham informações em língua de sinais ou escrita
(VALENTINI, 2013). Esses projetos interdisciplinares viabilizam a in-
teração em sala de aula e promovem inclusão educacional e social do
surdo no contexto escolar, além de apresentarem à escola a oportunida-
de de se conhecer a cultura e a identidade surda.

Valentini (2013) dialoga que nos primeiros contatos dos sur-


dos com o ambiente virtual a escrita poderá apresentar fragmentação.
Entretanto, à medida que o estudante surdo interage com outros colegas
de classe surdos ou ouvintes, está escrita torna-se significativa, havendo
a apropriação do estudante surdo da língua portuguesa na modalidade
escrita.

203
INCLUSÃO SOCIAL/ESCOLAR DO SURDO: O papel do professor como mediador pedagógico das novas tecnologias

Essas ações possibilitaram ao professor um maior acompanha-


mento do estudante surdo e do estudante ouvinte. Ele observa em to-
dos os momentos possíveis os resultados individuais dos estudantes,
refletindo e dialogando com a prática pedagógica em benefício de uma
avaliação mediadora que não reproduza métodos permissivos ou abu-
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

sivos e que seja significativa e aprofundada sobre o conteúdo curricular


(HOFFMAN, 2000).

Por intermédio do letramento digital, o professor verificará que


as novas tecnologias oferecem interfaces amigáveis, com conteúdos vi-
suais que, quando norteados por ações pedagógicas dentro de projetos
interdisciplinares, possibilitam ao estudante surdo maior compreensão
do conteúdo mediado em sala de aula e maior interação entre ouvintes
e surdos.

No quarto encontro, o professor formador P. solicitou previa-


mente aos professores estudantes que pesquisassem no YouTube vídeos
em Libras de músicas contemporâneas selecionadas por ele para apre-
sentação em sala de aula. A turma se dividiu em cinco grupos mistos
e realizou a pesquisa nos celulares, em computadores oferecidos pela
instituição ou em aparelhos particulares. Os professores-estudantes dis-
cutiram os sinais enunciados nas músicas presencialmente e/ou através
dos aplicativos de tradução com intérpretes 3D e grupos de conversação
nas redes sociais.

A discussão entre os professores-estudantes, dos sinais que seriam


apresentados, intencionou esclarecer se os softwares de Libras e portu-
guês na modalidade escrita, disponíveis para download, são adequados
aos objetivos curriculares e à aquisição do estudante surdo ou ouvinte
da Libras e do português modalidade escrita. Distinguiu-se que o apro-
veitamento dos aplicativos e recursos das novas tecnologias depende do
letramento digital dos professores e da avaliação prévia dos programas
educacionais que serão incluídos nos planos de aula. Por conseguinte,

204
INCLUSÃO SOCIAL/ESCOLAR DO SURDO: O papel do professor como mediador pedagógico das novas tecnologias

correlacionou-se que a seleção eliminatória de interfaces que são atrati-


vas, mas que condicionam e desestimulam a aprendizagem do estudan-
te surdo, é essencial na mediação pedagógica atual (STUMPF, 2010).

Uma vez que o contexto educacional é um ambiente singular


para o desenvolvimento do conhecimento, necessita-se da superação da

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


superficialidade presente no ciberespaço com o propósito de promover
práticas que conciliem a realidade digital vivida pelos estudantes surdos
e ouvintes e o contexto escolar. O trabalho orientador do professor no
uso das novas tecnologias instiga o intelecto dos estudantes surdos ou
ouvintes e possibilita dentro do ciberespaço a formação de grupos de
alunos que trabalham juntamente com o professor em sistemas com-
partilhados para o desenvolvimento exponencial do conhecimento por
intermédio de tecnologias que amplificam e exteriorizam o cognitivo
dos estudantes (LÉVY, 1999).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considera-se que, na atualidade, o contexto da sala de aula é in-


fluenciado pelas informações encontradas nas interfaces do ciberespaço.
A disposição do professor em buscar o multiletramento digital supera
preconceitos sobre a utilização das novas tecnologias nos planos de aula.
O professor que se familiariza com a cibercultura e as modificações que
ela impôs à sociedade promove uma mediação que contempla a realida-
de vivida pelos estudantes surdos e ouvintes, que visa o desenvolvimen-
to deles de maneira a se tornarem cidadãos críticos e responsáveis nas
ações realizadas no ciberespaço.

Verificou-se que ainda persiste na mediação do conhecimento a


visão dos ouvintes. Entretanto, essa realidade está se alterando devi-
do ao reconhecimento do surdo como um sujeito que demanda ações

205
INCLUSÃO SOCIAL/ESCOLAR DO SURDO: O papel do professor como mediador pedagógico das novas tecnologias

igualitárias que objetivam o respeito e a legitimação como um grupo


linguístico cultural diferenciado (STROBEL, 2008).

Para que isso ocorra, é fundamental que o professor conheça e


oportunize aos estudantes o conhecimento da cultura e da identidade
surda, o que diferencia e aproxima o estudante surdo dos demais, como
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

um sujeito participativo da comunidade escolar. O conhecimento de


Libras pelos profissionais da educação possibilita a compreensão do es-
tudante surdo sobre o conteúdo, flexibiliza o processo ensino-aprendi-
zagem e promove a inclusão social dele.

Por fim, podemos afirmar que os grupos de estudo sobre os


surdos, ensino de Libras e formação de professores desenvolveram nos
profissionais a conscientização da importância da mediação pedagógica
digital que proporciona ao estudante surdo a autonomia e a criticidade
nos espaços virtuais e reais, compreendendo a necessidade da inclusão
digital e social do surdo nos ambientes escolares, a fim de minimizar o
fracasso escolar.

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Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2010. Disponível em: http://
www.libras.ufsc.br/colecaoLetrasLibras/eixoFormacaoPedagogico/educacaoDeSurdo-
sENovasTecnologias/assets/719/TextoEduTecnologia1_Texto_base_Atualizado_1_.
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surdos. In: VALENTINI, Carla Beatris (org.). Atualidade da educação bilíngue para
surdos: processos e projetos pedagógicos. 4. ed. Porto Alegre: Editora Mediação, 2013.
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208
INCLUSÃO SOCIAL/ESCOLAR DO SURDO: O papel do professor como mediador pedagógico das novas tecnologias

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


PARTE II
FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE
LÍNGUAS PARA CRIANÇAS E EDUCAÇÃO
LINGUÍSTICA NA INFÂNCIA

209
INCLUSÃO SOCIAL/ESCOLAR DO SURDO: O papel do professor como mediador pedagógico das novas tecnologias
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

210
COM A PALAVRA, VOCÊ, PROFESSORA DE INGLÊS PARA CRIANÇAS:

10.
COM A PALAVRA, VOCÊ,
PROFESSORA DE INGLÊS PARA

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


CRIANÇAS:
A ESCUTA SENSÍVEL COMO ATO
ÉTICO EM NARRATIVAS SOBRE
EXPERIÊNCIAS DE DES/RE-
APRENDIZAGENS DURANTE A
PANDEMIA

Giuliana Castro Brossi | Universidade Estadual de Goiás (UEG, Inhumas)

Alex Alves Egido | Universidade Estadual de Londrina (UEL)

Beatriz Borges | Universidade Estadual de Goiás (UEG, Inhumas)

Palmyra Baroni | Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro (SME-RJ)

Thaís Blasio Martins | Universidade de São Paulo (USP)

C
ara/o leitora/leitor: Seja bem-vinda/o à nossa conversa. Iniciamos
esse preâmbulo com o intuito de alertá-la/lo quanto à nossa ten-
tativa de subverter o cânone do gênero capítulo científico, de-
sestabilizando o que se espera de uma escrita formal, distante,
padrão e estabelecida como conhecimento válido no ambiente colo-
nizador da academia (JORDÃO, 2015). Ao mesmo tempo, buscamos

211
Aescutasensívelcomoatoéticoemnarrativassobreexperiênciasdedes/re-aprendizagensduranteapandemia

nos aproximar de professoras/es de línguas que têm lidado com o con-


texto de ensino remoto emergencial, por meio desta conversa tecida a
partir de cinco perspectivas (i.e. três professoras, uma moderadora e um
moderador) e das inúmeras vozes que nos constituem. Neste capítulo,
nós, as/os professoras/es que organizamos e participamos da modalida-
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

de Painéis Temáticos no XVI Encontro de Formação de Professoras/


es de Línguas (Enfople), narramos nossas experiências e exercitamos
nossa escuta sensível, compreendendo o caráter de resistência e reexis-
tência que nos move.

Assim, convidamos você a puxar uma cadeira, pegar um café e


mergulhar conosco nesta conversa sobre a complexidade do “ser pro-
fessor em 2020” por meio das narrativas da Palmyra, da Beatriz e da
Thaís; mulheres, professoras e seres sentipensantes, cujas vivências expe-
rienciadas nas salas de aula de ensino remoto com o inglês para crianças
nos fazem (re)pensar os sentidos da profissão docente. A conversa que
se desenrola neste capítulo traz para o centro da discussão as narrativas
cingidas de emoções das professoras coautoras. Escolhemos o uso da 1ª
pessoa do singular para marcar cada corpo que se dirige a você, desta-
cando as praxiologias e as emoções das professoras, por meio da escuta
sensível e do reconhecimento da existência do outro (TODD, 2003;
LEVINAS, 2020; EGIDO, no prelo).

COMEÇANDO A CONVERSA

Situações-limites, colocadas pela realidade imedia-


ta, podem imobilizar os sujeitos. Nesse momento,
as chances para isso são inúmeras, uma vez que não
há experiências anteriores com situações como a
colocada pela covid-19. Nosso despreparo frente a
isso parece gerar a sensação de total inutilidade e

212
Aescutasensívelcomoatoéticoemnarrativassobreexperiênciasdedes/re-aprendizagensduranteapandemia

inevitável fracasso ou destruição. Contudo, a pro-


posta de Freire (1970/1987) sobre o inédito viável
vai justamente nos oferecer uma outra perspectiva.
Em nosso tempo, nunca foi tão mandatório pensar
em possibilidades para ir além daquilo que conhe-

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


cemos, daquilo que já vivemos, daquilo que pode
ser repetido sem reflexão. A situação que vivemos
exige que nos coloquemos frente ao contexto com
nossa história como uma ferramenta para criar o
possível (LIBERALI, 2020, p. 14).

[Giuliana] Para começarmos esta conversa, recordo o contexto


que me motivou a convidar Beatriz, Palmyra, Thaís e Alex, juntamente
com outras66 12 professoras, para vivenciarem a experiência de partilha
que vocês, caras leitoras, passam a conhecer neste capítulo. Quem diria
que o convite para compartilhar experiências, emoções, dores e alegrias,
des/re-aprendizagens, desafios e superações nesse caos que foi o início de
2020 renderia tantas emoções, ressignificações e muito companheiris-
mo? Quando que eu podia imaginar que o grupo de professoras falando
de suas experiências, logo no início da pandemia de covid-19 que vem
assolando o planeta e as vidas que temporariamente ainda o habitam,
provocaria a potência sentida nos 16 relatos dos 4 painéis temáticos que
constituíram essa modalidade de encontro e conversa?

Pautando-nos nas palavras de Liberali (2020), intuímos que as


histórias de cada uma das participantes se tornaram as “ferramentas
para criar o possível”, nesse cenário inédito que estamos vivenciando. A
angústia que fez morada em nós, seres forma(ta)dos para planejar e agir
conforme o planejamento, nessa situação-limite da realidade de 2020,
nos imobilizou temporariamente diante da inexperiência com situações

66 Escolhemos usar o gênero feminino primeiro para destacar a presença da mulher


nessa geocorpo política, a agência e atuação das professoras, e sair do obscuran-
tismo do estilo neutro ou usual masculino, dito “padrão” no gênero acadêmico.

213
Aescutasensívelcomoatoéticoemnarrativassobreexperiênciasdedes/re-aprendizagensduranteapandemia

semelhantes. Entretanto, escolhemos “pensar em possibilidades para


além daquilo que conhecemos”, convidando as professoras de Inglês
na educação básica para compartilharem conosco i) como as aulas em
contexto remoto emergencial on-line estavam ocorrendo em suas expe-
riências, ii) o que estavam fazendo com as salas de aula invadindo suas
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

casas e suas rotinas e iii) suas impressões e emoções nessa experiência


com o ensino remoto emergencial. Nossa ferramenta para criar o pos-
sível diante do cenário inédito? A escuta sensível (SILVESTRE, 2017;
REZENDE, 2017) e o acolhimento das alegrias e das dores das profes-
soras que aceitaram relatar, repensar, ressignificar, des/re-aprender suas
vivências de seres sentipensantes (FALS BORDA, 2015).

[Alex] Realmente, Giuliana. Quem diria que um encontro vir-


tual, mas caloroso, resultaria em um espaço de tanta troca. Lembrando-
me retrospectivamente da ocasião e vendo você mobilizar o termo “es-
cuta sensível” recordo-me prontamente da discussão que Todd (2003)
promove sobre nossa responsabilidade ética de attend às angústias, in-
certezas e tensões que muitas sentem, mas poucos externalizam por não
encontrarem quem escutá-las. Nesse sentido, entendo que ouvir é, em
si, um ato ético.

[Giuliana] Concordo, Alex. Criamos espaço para ser esta escuta


sensível e, agora vejo, ética. Uma das premissas que temos abraçado é de
destaque para as praxiologias já desenvolvidas nas escolas (CADILHE;
LEROY, 2020; ROSA-DA-SILVA, 2021; para citar alguns). O olhar
atento às (não)metodologias que são descritas por Beatriz, Palmyra e
Thaís nos mostram realidades diversas em regiões diferentes do Brasil,
e vivências que se aproximam muito do que Liberali (2020) chama de
inédito viável, relembrando o termo freiriano (FREIRE, 1992, 1996,
2011).

214
Aescutasensívelcomoatoéticoemnarrativassobreexperiênciasdedes/re-aprendizagensduranteapandemia

[Alex] Antes de avançarmos nesta conversa, penso que precisamos


dar um ou dois passos para trás e contar, para quem nos lê, o histórico
dos painéis temáticos, que tal? Vai lá, conta para elas/eles.

[Giuliana] Nós, da equipe do projeto de extensão English for


Kids concebemos, em 2019, a modalidade Painéis Temáticos, que foi
67,

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


pensada para oportunizar uma conversa informal entre professoras, ges-
toras, graduandas e outras atrizes envolvidas na educação, que atuam
em diversos contextos, regiões, prioritariamente voltadas à educação
linguística na infância. Na primeira edição dos Painéis, em 2019, du-
rante a XV edição do evento de extensão Enfople, trouxemos à baila as
políticas locais de ensino de inglês para crianças, em uma conversa com
as representantes da Secretaria de Educação do Município de Inhumas
e da Secretaria de Educação do Estado de Goiás.

[Alex] E já nesta primeira edição os Painéis foram um suces-


so! Lembro-me que aconteceu em um final de tarde, na biblioteca da
UEG-Inhumas, cuja porta nos leva diretamente para um belo pé de
flamboyant da cor do fogaréu – que já aprendi e senti ser a inspiração
de muitas praxiologias locais de Inhumas e região. Na ocasião, recor-
do que, enquanto ouvinte, aprendi sobre a elaboração do Documento
Curricular do estado de Goiás (DC-GO) fundamentado na Base
Nacional Comum Curricular (doravante BNCC) no estado de Goiás e
suas (re)leituras para salas de aula no município. E como foi a idealiza-
ção da segunda edição dos Painéis?

[Giuliana] Em 2020, buscamos exercitar a escuta sensível


(SILVESTRE, 2017; REZENDE, 2017) e acolher as professoras de
inglês em suas emoções, suas lágrimas, seus medos, suas dores, seus
desafios, enfim, em suas narrativas acerca das experiências com ensi-

67 English for Kids é um projeto de extensão coordenado pela primeira coautora,


desenvolvido pela UEG Inhumas. O projeto, iniciado em 2016, tem promovido
ações de educação linguística na infância e de educação docente para professoras/
es que atuam na educação linguística na infância em âmbito local e nacional.

215
Aescutasensívelcomoatoéticoemnarrativassobreexperiênciasdedes/re-aprendizagensduranteapandemia

no remoto emergencial no início da pandemia. Esse acolhimento nos


remete ao conceito de corazonar (ARIAS, 2010), que Rosa-da-Silva
(2021) adota em sua pesquisa doutoral e que nos é tão familiar, uma
vez que nossas práxis estão interconectadas por essa busca em “descen-
trar, deslocar, fraturar o centro hegemônico da razão” (ARIAS, 2010,
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

p. 89 apud ROSA-DA-SILVA, 2021). Após o fechamento das esco-


las e o início do ensino por meio de plataformas virtuais (WhatsApp,
Google Meet, Zoom), com áudios e vídeos, ora gravados, ora ao vivo,
correção de atividades gravadas pelas crianças, aproximação dos pais
para acompanharem as tarefas, enfim, o inédito viável (FREIRE, 1992;
LIBERALI, 2020) acontecendo, ali diante dos nossos olhos, em nossos
lares, corazonamos. Em muitas narrativas, as dificuldades e os desafios
foram similares, incluindo a busca por conhecer essa nova realidade
temporária (mas que ainda permanece durante a escrita desta conversa)
no momento em que ela ocorria. Um discurso é unânime em todos os
relatos: ninguém estava preparado.

Foi nesse cenário que a UEG-Inhumas realizou o XVI Enfople,


que, em 2020, aconteceu de forma remota, e recebeu o título de
“Linguagens em tempos inéditos: desafios praxiológicos da formação
de professoras/es de línguas”. A segunda edição dos Painéis teve como
foco e título “Memórias e experiências na Pandemia: com a palavra,
você, professor/a!”. Acreditamos que os Painéis, em 2020, foram ge-
nuinamente espaços de fala (SILVESTRE, 2017), nas palavras da au-
tora, “tempo e lugar de emersão e escuta atenta de distintos saberes
na construção de saberes outros, fundamentados em uma lógica plural
e dialógica de construção de conhecimentos” (SILVESTRE, 2017, p.
253-254).

Essa atividade, programada no formato virtual do Enfople, foi


acessível para muitas professoras de línguas para crianças, que têm se

216
Aescutasensívelcomoatoéticoemnarrativassobreexperiênciasdedes/re-aprendizagensduranteapandemia

fortalecido nessa rede68 criada nas relações entre pesquisadoras com esse
campo de atuação em comum, entre professoras de línguas na infância,
entre seres humanos conscientes da força da agência na comunidade lo-
cal, preocupados com a educação linguística na infância, em contextos
diversos.

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


Os Painéis reuniram 18 professoras e 2 professores69, convidadas/
os e divididas/os em 4 sessões de 90 minutos, na plataforma Zoom.
Em cada sessão, 4 professoras e uma mediadora fizeram um relato ini-
cial de emoções, angústias, vivências, dores, medos e, é claro, alegrias,
também, superação e esperanças. O critério para escolha das profes-
soras para relatarem suas vivências foi o de atuação com a educação
linguística na infância. A maioria já fazia parte da rede de professoras de
educação linguística na infância, e algumas foram convidadas por in-
termédio do grupo de pesquisa Felice. As participantes do XVI Enfople
se inscreveram e receberam o link para a atividade por e-mail. Ao todo,
participaram 82 professoras, licenciandas, pesquisadoras, como ouvin-
tes, distribuídas nas 4 sessões.

Para falar sobre as praxiologias desenvolvidas por essas professo-


ras, escolhemos o formato de narrativas. Nos reunimos alguns meses
antes do evento para nos conhecermos, apresentarmos a proposta e ou-
virmos as reflexões e as sugestões das professoras a partir do convite ofi-
cial para o evento. Em esforços para diminuir a assimetria nas relações

68 Concebemos “rede” nesta conversa como um grupo de indivíduos de diversos


contextos educacionais, interessadas/os na educação linguística na e para a in-
fância, que se reúnem a partir de relações tecidas em torno dessa área do conhe-
cimento, iniciadas nas ações de extensão relacionadas ao English for Kids e ao
grupo de pesquisa Formação de Professores e Ensino de Línguas para Crianças
(Felice – Capes/CNPq), ao Grupo de Estudos de Formação de Professores de
Línguas Estrangeiras (Gefople) e à Rede Cerrado de Formação Crítica de Profes-
soras/es de Línguas.
69 As professoras e os professores convidados atuam nos estados de Goiás (8), Para-
ná (4), São Paulo (1), Rio de Janeiro (1), Espírito Santo (1) e em São Francisco,
na Califórnia (EUA) (1).

217
Aescutasensívelcomoatoéticoemnarrativassobreexperiênciasdedes/re-aprendizagensduranteapandemia

de poder naturalizadas entre professoras da universidade e professoras


da educação básica, temos destacado suas falas e suas vozes (BROSSI,
no prelo; ROSA-DA-SILVA, 2021; BORELLI; MASTRELLA-DE-
ANDRADE; BROSSI, 2021), a agência que constrói ações que mo-
vimentam micropolíticas locais e a urgência de se pensar o coletivo de
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

professoras de línguas estrangeiras na infância, em tentativas de trazer


ao centro da práxis as vivências e as reexistências (WALSH, 2017) que
emergem dos discursos e das ações desse coletivo. Para esta conversa,
nos baseamos nas discussões que partem das falas de cada participan-
te e das coautoras a respeito dos significados do compartilhamento
de experiências e emoções, nas apresentações no dia 17 de setembro
de 2020, em formato virtual, por meio da plataforma Zoom. Nós, as
quatro coautoras e o coautor, vivenciamos uma experiência de escuta
sensível (SILVESTRE, 2017; REZENDE, 2017) e, ao mesmo tempo,
encontramos sentido em sermos escutadas. Ali, naquele momento de
apresentações nos Painéis, conquistamos não apenas esse espaço de fala,
mas especialmente de escuta.

[Alex] E aquele espaço, não físico, mas de afetos, laços e emo-


ções permitiu que todas se expressassem, revelando incertezas, dores,
medos e, consequentemente, se mostrassem diferentes. E é justamente
em tempos como esses que queremos ser diferentes, conforme Rezende
(2020) nos adverte:

Ser diferente também é uma deficiência, porque o


mundo é para os iguais, os destros, os videntes, os
ouvintes, os andantes. Aqueles poderiam se sentar
à direita do Pai. Mas, o mais grave é pensar diferen-
te. Isso não tem perdão. É loucura grave! Porque
o mundo é para os medianos e para os medíocres
(REZENDE, 2020, p. 2).

218
Aescutasensívelcomoatoéticoemnarrativassobreexperiênciasdedes/re-aprendizagensduranteapandemia

Em suma, nos Painéis fomos todas um pouco loucas, porque ou-


samos pensar diferente.

[Giuliana] Dito isso, convidamos você a conhecer e se aconche-


gar, descansar suas dores, seus medos, sua voz e seu corpo na nossa
rede. Ela se constitui de pequenos fios/pequenas fibras que se juntam

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


para resistir às intempéries do espaço-tempo, conectados em relações
afetivas que vão muito além de parcerias e coautorias em projetos e pes-
quisas acadêmicas. E é por meio dessas relações que a rede se multiplica
e se fortalece. Queremos reexistir, corazonar (ARIAS, 2010; ROSA-
DA-SILVA, 2021), longe dessa terrível sensação descrita por Rezende
(2020), “com a morte rondando a casa, assobiando na rua, ecoando nas
serras…” que nos afeta (em maior ou menor grau).

[Alex] Para as/os leitoras/es que participam conosco desta conver-


sa, penso ser muito esclarecedor conhecer as interações, as motivações
e as contribuições que diferentes agentes tiveram para que os Painéis
fossem materializados. Antes de conhecermos as narrativas de Beatriz,
Palmyra e Thais, penso que precisamos conversar um pouco sobre o que
entendemos por narrativas:

[São] instrumentos que usamos para construir


sentidos do mundo a nossa volta, desempenhan-
do papel central no modo como aprendemos a
construir a vida social, mediada pelo discurso aqui
compreendido como práticas sociais que, simboli-
camente, dispõem o mundo em significações, pro-
duzindo saberes, poderes, assimetrias, descrições
e classificações do mundo social (ZOLIN-VESZ,
2016, p. 60).

Essas narrativas, construídas com base nas experiências da his-


tória de cada professora daqueles Painéis, foram se emaranhando de

219
Aescutasensívelcomoatoéticoemnarrativassobreexperiênciasdedes/re-aprendizagensduranteapandemia

tal forma umas nas outras que seus sentidos potencializaram nossas
emoções numa prática social de forma remota completamente inédita.
Gostaríamos então de compartilhar essa rede de memórias, sentidos e
emoções com você. Antes das narrativas, porém, cada coautora se apre-
senta, de forma que você, leitor/a, conheça um pouco das histórias às
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

quais nos emaranhamos. Sem mais delongas, apresente-se e narre para


nós sua experiência e tudo que você carrega nela, Beatriz.

[Beatriz] Bem, eu a intitulei “Reinventando-se em tempos pan-


dêmicos”. Vamos lá:

Sou a Bia, nome com que gosto de ser chamada, na identidade


está Beatriz. De tantos significados para o nome Bia, gosto
do termo “peregrina”, gosto mesmo é de caminhar, observar
olhares que brilham, vozes que encantam, descobrir e refazer
o caminho! Aprendi a escrever esse pequeno nome, antes mes-
mo de entrar na escola, no rótulo de um refrigerante: “B-i-a,
minha filha!”. Minha mãe diz que eu nunca “dei trabalho”
na escola, não precisava se preocupar comigo, eu já chegava e
colocava tudo em ordem. Algo que não esqueço foi quando a
diretora chamou minha mãe na escola e disse que eu precisava
prender e pentear meu cabelo. Que situação! Agora, depois de
quase duas décadas, estamos – minha mãe e eu – em processo
de transição capilar, queremos de volta os cachinhos que ten-
taram nos tirar.

Minha mãe é professora e sempre foi/é minha inspiração. Hoje,


falando sobre mim, não consigo deixar de pensar nela, sou
quase uma cópia da Rita Maria. Em tempos pandêmicos,
dividimos o cômodo, o celular, o computador, o quadro, as
vozes que se entrelaçavam durante as aulas, vídeos, áudios,
mas sorríamos durante o fim do dia, na possibilidade de espe-
rança, como é dito por Paulo Freire. Tive o prazer de ensinar

220
Aescutasensívelcomoatoéticoemnarrativassobreexperiênciasdedes/re-aprendizagensduranteapandemia

Dona Rita a utilizar todos os meios tecnológicos, nessa troca de


duas professoras apaixonadas pela vida, “conseguimos”, cada
uma dentro de sua realidade. Ela em uma escola pública e eu
em uma escola da rede privada, ambas da Região Noroeste de
Goiânia.

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


Carrego tanto sentimento na minha profissão, porque ensino
crianças e sei da minha extrema responsabilidade nessa escolha
e de como posso afetar esse público: não estamos só ensinando
uma disciplina, mas também formando cidadãs/ãos. Há cin-
co anos trabalho na educação infantil e fundamental 1 e 2,
imersa nesse universo incrível que é aprender/ensinar constan-
temente. Minha formação acadêmica é Letras – Português e
Inglês, e sou pós-graduada em Língua(gem), Cultura e Ensino
pela UEG – campus Inhumas, a faculdade com o flamboyant
mais florido e belo que os meus olhos já viram. Nessa univer-
sidade, há professoras incríveis, que nos olham por completo,
nos fazem refletir, transformar e transgredir – um dos motivos
de eu estar nesse espaço.

“Nos movemos pela educação”: frase forte para mim, que sem-
pre busquei trazer sentido ao ensino e aprendizagem com mi-
nhas alunas. O ano de 2020 veio com muitas surpresas e, de
imediato, já começamos em parceria com colegas e escola, para
continuar nosso trabalho. Algo que pensávamos que acabaria
em 15 dias se perpetua até o momento deste relato. De início,
elaboramos atividades, enviamos via e-mail, no site do colé-
gio e, de repente, percebemos que os dias iriam se prorrogar e
que teríamos de fazer da nossa casa uma extensão da escola.
O sentimento foi, de fato, desesperador: ansiedade, falta de
preparo. Contamos com as colegas de profissão, ligamos umas
para as outras, pedimos ajuda. De atividades impressas, co-
meçamos a gravar vídeos para o YouTube, a criatividade não

221
Aescutasensívelcomoatoéticoemnarrativassobreexperiênciasdedes/re-aprendizagensduranteapandemia

faltava! Contudo, no processo, percebemos que muitas alunas


não conseguiam acompanhar. Outras colegas da profissão não
suportaram, não souberam se adaptar à nova realidade e, nesse
processo, muitas desistiram.

Mudamos a plataforma e começamos a fazer ao vivo no


LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

Instagram. Sim, essas mudanças constantes, nos adaptando


a cada novo decreto! Contudo, não conseguimos acompa-
nhar as alunas, e nos permitimos, mais uma vez, a mudança.
Encontramos o Zoom, ferramenta com que podemos ter maior
interação com as turmas, ver os rostinhos, ouvir! Foi de fato
um alívio. No entanto, tivemos que explorar nossa criativida-
de como profissionais da educação, afinal! Nossas alunas não
usavam o computador para assistir aulas, mas sim para jogar,
assistir a filmes e navegar na internet! De princesa a palhaço,
festa à fantasia, piqueniques, festa de cabelo maluco, receitas
ao vivo – toda aula era uma fantasia, as atividades foram
centradas no principal para o desenvolvimento da turma, di-
minuímos a carga horária e reformulamos a forma de avaliar.

De fato, a pandemia escancarou as desigualdades presentes na


sociedade brasileira: eu relato meus avanços na pandemia, sa-
bendo que esse privilégio não é para todas. Contudo, acredito
que podemos nos adaptar à nossa realidade! Ser resistência, re-
flexiva, crítica e como professora de crianças: criativa. Precisa-
se acreditar neste mundo e buscar transformação. Conseguimos
100% de êxito? Não! Como já mencionado, perdemos colegas
de profissão que não conseguiram se adaptar ao novo tempo,
mergulhamos na ansiedade, no sentimento de incapacidade –
paramos. Perdemos também estudantes pelos mesmos motivos.
Eu, professora, ainda estou em pé, mas não é fácil, e, na ver-
dade, nunca foi.

222
Aescutasensívelcomoatoéticoemnarrativassobreexperiênciasdedes/re-aprendizagensduranteapandemia

Nossa profissão é sempre reinventar-se e escutar umas às ou-


tras, lutar pelos nossos direitos é fato essencial. Participar dos
Painéis foi saber que, como profissionais da educação, não es-
tamos passando por desafetos sozinhas, é ter consciência do seu
lugar de falar, e saber que, embora a professora tenha voz, ela

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


não é escutada! Nos Painéis, tivemos a ousadia de falar, derra-
mar lágrimas e sorrir com as experiências relatadas. Vivemos
em uma sociedade em que decidem por nós! E de fato, se não
ousarmos na esperança de dias melhores, perecemos. Nós, nos-
sas alunas e nossos alunos, e toda a sociedade brasileira.

[Alex] Para mim, Beatriz, sua narrativa é tão forte e tão sensível
ao mesmo tempo. É fácil perceber o quanto você se reinventou nesse
contexto, pois ninguém contou às professoras de Inglês que virariam
bailarinas, palhaças, cozinheiras, tech-teachers e se adaptariam a cada
novo decreto do governo.

[Giuliana] Parte da singularidade das narrativas dos Painéis é a


surpreendente gama de possibilidades que cada uma das professoras
reinventou. Cada uma das mulheres que narra essa vivência aqui tem
sua história, se constitui na unicidade de existir em seu espaço-tempo e
ter vivido as experiências que seu caminho trouxe. Vamos conhecer um
pouco da história da Palmyra, que ousou, reagiu e tem uma vivência
muito significativa para nos contar, não é?

[Palmyra] Eu sou a Palmyra, mãe da Júlia, uma adolescente


de 16 anos, e da Laura, de 3 aninhos; duas meninas que me
trazem alegrias e desafios o tempo todo. Sempre fui apaixona-
da por dança e, mesmo depois de adulta, resolvi me arriscar
a fazer balé, pois era meu sonho de infância. Sou professora
há vinte e seis anos da Secretaria Municipal de Educação do
Rio de Janeiro, onde está concentrada a maior parte da mi-
nha experiência no magistério, que é trabalhar com crianças

223
Aescutasensívelcomoatoéticoemnarrativassobreexperiênciasdedes/re-aprendizagensduranteapandemia

e adolescentes. Atualmente, sou coordenadora pedagógica de


uma escola de 1º ao 5º ano, na Zona Oeste da minha ci-
dade. Assumi essa função por gostar muito de trabalhar com
estudantes dessa faixa etária e de propor projetos trazendo
novas possibilidades de ensinar e aprender. Sou formada em
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

Letras – Inglês e Literaturas pela UERJ70, possuo mestrado


em Linguística Aplicada pela UFF71 e sou pós-graduanda em
Literatura Infantil e Juvenil pela UCAM72. O que me fascina
no magistério, mais do que ensinar, é a possibilidade de ser
uma eterna aprendiz! Chamei minha experiência de “O pod-
cast It is Story Time e o ensino de inglês por meio de histórias
infantis”.

O ano de 2020 trouxe um grande desafio para professoras e


professores do mundo inteiro e, comigo, não foi diferente. Com
a pandemia, tive que aprender a lidar com novas tecnologias
e com formas diferentes de trabalhar com as estudantes, a fim
de garantir, além de um vínculo emocional, uma educação
de qualidade, mesmo que a distância. Diante desse cenário,
refleti bastante sobre o trabalho que outras professoras estavam
tendo em realizar suas aulas com a obrigação de apropriar-se
de todo tipo de ferramenta para lidar com a nova e inusitada
realidade sendo imposta pela pandemia. Por causa disso, co-
mecei a produzir podcasts que, geralmente, são utilizados na
sala de aula como mais uma ferramenta de apoio para auxi-
liar a aluna em seu processo de ensino e aprendizagem, com o
objetivo de compartilhar ideias sobre o ensino de inglês para
crianças do 1º ao 5º ano por meio de histórias infantis, de au-

70 Universidade do Estado do Rio de Janeiro.


71 Universidade Federal Fluminense.
72 Universidade Candido Mendes.

224
Aescutasensívelcomoatoéticoemnarrativassobreexperiênciasdedes/re-aprendizagensduranteapandemia

xiliar professoras de Inglês em seu processo de formação conti-


nuada, em meio a uma pandemia que ainda assola o mundo.

Utilizei podcasts por estes representarem uma forma rápida e


eficaz de compartilhar histórias infantis e atividades que po-
dem ser feitas com as histórias para engajar as crianças nas au-

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


las de Inglês, mesmo que de forma remota, tornando-as mais
atrativas e significativas. Meu objetivo maior foi otimizar o
tempo da professora, que pode ouvir os episódios dos podcasts
em qualquer lugar em que esteja, desde que tenha um celular
e acesso à plataforma em que os episódios são publicados.

Toda facilidade de acesso trazida pelo podcast faz com que ele
seja mais uma tecnologia para fomentar o processo de forma-
ção continuada de professoras que têm interesse em conhecer
novas formas de ensinar, principalmente no que diz respeito
ao ensino de língua inglesa para crianças, pois, apesar da cres-
cente oferta de inglês para crianças em escolas regulares e de
idiomas, ainda há poucas iniciativas de ferramentas práticas
que facilitem o trabalho de professoras diariamente com o en-
sino de inglês para esse público. O diferencial que o trabalho
com podcasts traz é o de fomentar a formação da professora de
línguas, com uma ferramenta eficaz, que traz discussões sobre
o ensino e aprendizado de inglês para alunas do 1º ao 5º ano,
já que não há grande oferta de cursos específicos para formar
professoras para trabalhar com esse segmento.

Ao compartilhar os episódios dos podcasts com meus pares, fi-


quei muito surpresa com a reação positiva das professoras que
nunca haviam usado histórias infantis para ensinar inglês
para crianças antes, contando histórias e adaptando as ativi-
dades propostas às suas realidades. Hoje, um ano após a publi-
cação do primeiro episódio do podcast It is Story Time, penso

225
Aescutasensívelcomoatoéticoemnarrativassobreexperiênciasdedes/re-aprendizagensduranteapandemia

que atingi o objetivo principal, que era auxiliar professoras de


Inglês, fornecendo-lhes mais uma ferramenta para trabalhar
na sala de aula de escolas da rede pública e privada, pois os
episódios do podcast totalizam 830 reproduções desde o seu
lançamento. Como dito por uma das participantes/ouvintes
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

dos Painéis sobre esse trabalho com podcasts, “a literatura foi


a forma que encontrei para lidar com essa situação em que
tivemos que nos reinventar”.

[Giuliana] Realmente, Palmyra! Uma ferramenta que auxilia pro-


fessoras de línguas, acessível de qualquer lugar, foi, com certeza, um
acréscimo para o arsenal de novidades que foram criadas e reinventadas
neste ano.

[Alex] A Thaís, que já é “parceira de outros carnavais”, tem nos


contado da complexidade de seu contexto, atuando na maior metrópole
brasileira, onde os desafios são quase sempre tão grandes quanto a cida-
de de São Paulo. Imagino que em 2020 esse quadro tenha se agravado,
conte para nós Thaís…

[Thaís] Pode deixar, pessoal. Sou professora da rede de São


Paulo há 13 anos, moradora da Zona Leste de São Paulo (É
nóis!), mãe de pet, madrasta e esposa. Crossfiteira amado-
ra, nas horas vagas amante da cozinha. Também aspirante
à acadêmica (!), graduada em Letras – Português e Inglês e
Pedagogia. Minha experiência é intitulada “Pandemia tecno-
lógica: sobre a importância da escuta entre docentes”.

Peste negra. Gripe espanhola. Covid-19. Pandemias. Quando


deixei a escola em março de 2020, jamais imaginei que eu
não voltaria a vê-la tão cedo. A palavra pandemia para mim
habitava somente os livros de História. Ao passar pela porta
da escola apenas levei comigo minha mochila, deixando todos
os meus materiais de trabalho para trás, acreditando que tão

226
Aescutasensívelcomoatoéticoemnarrativassobreexperiênciasdedes/re-aprendizagensduranteapandemia

logo estaria de volta. O final dessa história nós já sabemos:


nenhuma professora voltou para a escola naquele ano. Todo
mundo ficou trancado em casa e a educação foi virada de
ponta-cabeça.

Por aqui, em São Paulo, na rede municipal de ensino, uma

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


nova realidade se instaurou. Uma miríade de sistemas e sof-
twares invadiram a vida cotidiana de todos os professores da
educação infantil e do ensino fundamental público. WhatsApp,
Microsoft, Google, Microsoft Teams, Google Classroom,
Outlook, Gmail, login, password, YouTube, download, upload
e mais uma variada quantidade de palavras em inglês passou
a habitar o cotidiano de nossas reuniões on-line para tornar
possível o fazer diário na docência. Em minha escola, na Zona
Leste, na extrema periferia da cidade, as professoras foram to-
madas por um furor tecnológico. Em uma realidade em que,
para muitos, instalar o datashow em sala já era um desafio,
lidar com toda uma nova gama tecnológica tornou-se quase
uma loucura.

Em contrapartida a esse cenário, eu me encontrava em um


lugar diferente. Minha experiência pregressa na educação a
distância já me permitia certa familiaridade com a tecnologia.
Em casa eu tinha tudo: o computador certo, o celular certo, a
internet certa e até o marido certo que trabalhava com tecno-
logia da informação, e que me ajudava quando tudo que era
certo não dava certo. Por isso, a empolgação com a tecnologia
logo cessou. Eu, professora de Inglês nos anos iniciais do ensi-
no fundamental, que sempre sonhara com aulas multimodais,
comecei rapidamente a perceber as dificuldades inerentes ao
ensino on-line no contexto da educação básica.

227
Aescutasensívelcomoatoéticoemnarrativassobreexperiênciasdedes/re-aprendizagensduranteapandemia

A primeira questão que me desolou foi a falta de acesso por


parte das minhas alunas. Se eu, aqui, a 8 km de distância da
minha escola, tinha tudo, elas, lá, não tinham nada. Muitos
eram os relatos de mães de alunas do 1º e 2º ano que diziam
não ter como acessar a plataforma digital ou sequer ter inter-
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

net suficiente para enviar os vídeos que eu solicitava como res-


posta às minhas atividades. Diante desses relatos, compartilhei
com minhas colegas de escola minhas inquietações com relação
a todo o entusiasmo referente à implementação das tecnologias
nesse momento tão difícil para todos. Surpreendi-me com o
fato de que, apesar de estar há dez anos na mesma escola, ain-
da descobria que minhas crianças estavam numa situação de
mais carência do que eu supunha imaginar.

Entretanto, minhas colegas de escola estavam em outro lugar,


habitavam outro momento em relação às tecnologias. Para
elas, era o momento das descobertas e não havia disponibi-
lidade para escuta (FREIRE, 1996) tanto das carências das
crianças quanto das minhas ansiedades e desconsolos. Pelo meu
lado, almejava uma acolhida, no sentido mais amplo da pala-
vra, como propõe Teixeira (2004), de identificação, elaboração
e negociação das necessidades que podem vir a ser satisfeitas
por meio do diálogo. Mas não a encontrei entre meus pares na
escola. Sentia-me caminhando sozinha em busca de um rumo
que não encontrava.

Vagando a esmo e tentando dar conta de meus próprios fantas-


mas pandêmicos com o adoecimento de familiares, a solução
encontrada para possibilitar às minhas crianças uma aula que
os respeitasse enquanto sujeitos da infância (ABRAMOWICZ;
MORUZZI, 2010) e garantisse de alguma maneira o direito
à interação e agência (SÃO PAULO, 2015) foi a elaboração
de vídeos no PowerPoint. Nesses vídeos, eu desejei, de alguma

228
Aescutasensívelcomoatoéticoemnarrativassobreexperiênciasdedes/re-aprendizagensduranteapandemia

maneira, dar a minhas alunas o mesmo sabor que havia em


nossas aula presenciais, nas quais escrevíamos a agenda do dia,
cantávamos e dançávamos a música de abertura juntos (o fa-
moso “Hello”) e aquecíamos nossos corpinhos com muitos ups
and downs. Por meio de uma narração com minha própria

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


voz e da inserção de outros vídeos, do YouTube ou gravados
por mim mesma, pude proporcionar às minhas crianças expe-
riências para além de meras palavras lançadas numa página
da internet. Ainda visando ampliar o acesso, compactei esses
vídeos, possibilitando que todos fossem passíveis de comparti-
lhamento através do WhatsApp, o que permitiu que muitas
das alunas que não conseguiam acessar a plataforma oficial ti-
vessem acesso às aulas mesmo que de maneira não formal e não
oficialmente, como havia sido estabelecido pelos órgãos oficiais.

E foi essa experiência que compartilhei com minhas colegas


professoras de Inglês no painel “Com a palavra, você, profes-
sor/a de inglês” no XVI Enfople de 2020. Em uma tentativa
de transpor a visão de uma “pedagogia do pouquinho” quando
se ensina inglês para crianças, pude, nas trocas e diálogos lá
traçados, encontrar a escuta que buscava ao não apenas falar
para outras professoras, mas ao falar com outras professoras
de Inglês dos mais diversos lugares do país, que em suas reali-
dades souberam acolher e problematizar a minha experiência
vivida.

[Giuliana] A Thaís nos chama atenção para um aspecto que tem


provocado a desolação, o desânimo e a indignação naquelas que, de
alguma forma, se incomodam com as injustiças sociais e o aprofunda-
mento desse abismo que separa “aquelas que são merecedoras”, daque-
las “que não se esforçaram o suficiente”. Saber do apagamento dessas
crianças por falta de acesso à internet nos destrói, não é mesmo? Como
nos mexer para fazer aquilo que sabemos fazer (i.e. ensinar, educar) em

229
Aescutasensívelcomoatoéticoemnarrativassobreexperiênciasdedes/re-aprendizagensduranteapandemia

meio ao adoecimento dos nossos, às perdas que as crianças sofreram,


“à morte rondando” (REZENDE, 2020, p. 2) nossas casas? Tudo isso
e inúmeras outras preocupações estavam pesando sobre nossas cabeças.
No entanto, conversar, ali naquela sala virtual, tão comum, mas acon-
chegante, foi como descansar o corpo doído em uma rede tecida com
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

nossos fios infinitamente diferentes, todos se achando frágeis fios, mas


que, entrelaçados, resistem. Nessa rede, resistimos e reexistimos na força
da emoção que nos constitui.

ATÉ LOGO, PORQUE NOSSA CONVERSA NÃO TERMINA

[Giuliana e Alex] Escolhemos a conversa com professoras como


forma de resistência a diversas atrocidades que temos presenciado.
Resistência também por nos desdobrarmos para sermos ouvidas – daqui
do chão da sala de aula, daqui da solidão das nossas casas, sem ambiente
escolar, sem crianças para nos cutucar – e nos alegrarmos por guardar
nossa própria dor para logo depois reconhecer-nos na dor do Outro
(LÉVINAS, 2020). Muitas emoções foram compartilhadas e oralizadas
aqui nas narrativas dessas interlocutoras, mulheres, professoras, parcei-
ras-em (emo)ação.

Recuperamos algumas das falas da Beatriz, da Palmira e da Thaís,


destacando as diversas emoções que estavam atravessando as decisões e
as praxiologias emergenciais que fizeram parte de suas vidas:

Beatriz: Nos Painéis, tivemos a ousadia de falar,


derramar lágrimas e sorrir com as experiências re-
latadas. Vivemos em uma sociedade, em que deci-
diram por nós! Francamente, se não ousarmos na
esperança de dias melhores, perecemos. Nós, nos-
sas alunas e toda a sociedade brasileira.

230
Aescutasensívelcomoatoéticoemnarrativassobreexperiênciasdedes/re-aprendizagensduranteapandemia

Palmyra: Com a pandemia, tive que aprender a li-


dar com novas tecnologias e com formas diferen-
tes de trabalhar com estudantes, a fim de garantir,
além de um vínculo emocional, uma educação de
qualidade, mesmo que a distância.

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


Thaís: Em minha escola, na Zona Leste, na extre-
ma periferia da cidade, as professoras foram toma-
das por um furor tecnológico. Em uma realidade em
que para muitas instalar o datashow em sala já era
um desafio, lidar com toda uma nova gama tec-
nológica tornou-se quase uma loucura. [...] Pude,
nas trocas e diálogos lá traçados, encontrar a escuta
que buscava ao não apenas falar para outras profes-
soras. Mas ao falar com outras professoras de Inglês
dos mais diversos lugares do país que em suas rea-
lidades souberam acolher e problematizar a minha
experiência vivida.

Nos trechos destacados, vemos formas diferentes de construir


sentidos na explicação das emoções vividas por si mesmas e pelas de-
mais professoras. Aprender a lidar com as tecnologias rapidamente foi
uma decisão. Adaptar e recriar praxiologias que garantissem uma “edu-
cação de qualidade e vínculo emocional”, foi “quase uma loucura”. Em
algum curso de formação de professoras você já foi preparada para isso?
Independentemente das nossas trajetórias de formação, certamente, to-
das responderemos que não o suficiente.

A escuta sensível (REZENDE, 2017) foi a nossa escolha de “pen-


sar em possibilidades para além daquilo que conhecemos”. Não deseja-
mos esgotar esse questionamento acerca do que é possível nesse cenário
tão complexo e singular em cada uma de nossas vidas, tão ameaçadas,
por sinal. Compreendemos as conversas que aconteceram nos Painéis

231
Aescutasensívelcomoatoéticoemnarrativassobreexperiênciasdedes/re-aprendizagensduranteapandemia

como temas vivenciais, “que são temas da vida, mas, principalmente,


são temas prenhes de vida” (REZENDE, 2017, p. 283). Nosso desejo
surge em um momento em que precisamos ressignificar o termo “for-
mação docente”. Formar professoras, para nós, envolve acolher e ser
acolhida, escutar e ser escutada, irradiar compreensão e sentipensar jun-
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

tas que não é possível estarmos envolvidas com educação e não sermos
atravessadas pelas emoções e pelo chamado ao movimento de corazonar
a educação (ARIAS, 2010; ROSA-DA-SILVA, 2021).

Nosso até logo desta conversa é carregado de sentimento de grati-


dão pelo espaço, pela escuta e pela sensibilidade, mas também por uma
prece: que espaços como este sejam mais frequentes e genuínos, respon-
dendo a sentimentos, vivências e corpos ainda apagados. Professoras
sempre falaram, mas quem as têm escutado?

Dedicatória: Dedicamos este capítulo a todas as professoras que


participaram dos painéis temáticos em 2020 e a todas que têm conti-
nuado a encontrar novos sentidos de ser professora em tempos inéditos.

REFERÊNCIAS
ABRAMOWICZ, Anete; MORUZZI, Andrea Braga (org.). O plural da infância:
aportes da sociologia. São Carlos, SP: EdUFSCar, 2010.
ARIAS, Patrício G. Corazonar el sentido de las epistemologías dominantes desde
las sabidurías insurgentes, para construir sentidos otros de la existencia. CALLE 14,
Bogotá, v. 4, n. 5, p. 80-94, jul./dic. 2010.
BORELLI, Julma Dalva Vilarinho Pereira; MASTRELLA-DE-ANDRADE, Mariana
Rosa; BROSSI, Giuliana Castro. Movimentos de formação docente decolonial: a cria-
ção de três grupos de estudos com professoras/es de línguas. In: PESSOA, Rosane
Rocha; SILVA, Kleber Aparecido da; FREITAS, Carla Conti de (org.). Praxiologias do
Brasil Central sobre educação linguística crítica. São Paulo: Pá de Palavra, 2021. p. 71-90.
BROSSI, Giuliana. Castro. Implementação da educação linguística na infância na escola
pública: uma história “para inglês (e brasileiro) ver”? Tese (Doutorado em Estudos da
Linguagem – Universidade Estadual de Londrina). No prelo.

232
Aescutasensívelcomoatoéticoemnarrativassobreexperiênciasdedes/re-aprendizagensduranteapandemia

CADILHE, Alexandre José; LEROY, Henrique Rodrigues. Formação de professores


de língua e decolonialidade: o estágio supervisionado como espaço de (re)existências.
Calidoscópio, São Leopoldo, RS, v. 18, n. 2, p. 250-270, 2020.
EGIDO, Alex Alves. Os rostos que ganham contornos: dilemas éticos por pesquisado-
ras/as de línguas. No prelo.
FALS BORDA, Orlando. Una sociologia sentipensante para America Latina. Mexico,

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


DF: Siglo XXI Editores; Buenos Aires: Clacso, 2015.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São
Paulo: Paz e Terra, 1996.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimi-
do. Notas: Ana Maria Araújo Freire. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 50. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.
JORDÃO, Clarissa Menezes. Tradition and difference: can mainstream academic dis-
course in Applied Linguistics ever change? International Journal of Applied Linguistics,
Amsterdam, v. 25, n. 3, p. 422-425, 2015.
LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito. 3. ed. Lisboa: Martinus Nijhoff, 2020
[1988].
LIBERALI, Fernanda. Construir o inédito viável em meio à crise do coronavírus: lições
que aprendemos, vivemos e propomos. In: LIBERALI, Fernanda; FUGA, Valdite
Pereira; DIEGUES, Ulysses Camargo Corrêa; CARVALHO, Márcia Pereira (org.).
Educação em tempos de pandemia: brincando com um mundo possível. Campinas, SP:
Pontes Editores, 2020. p. 13-22.
REZENDE, Thalita. Pósfácio. In: SILVESTRE, Viviane P. V. Colaboração e crítica na
formação de e professores/as de línguas: teorizações construídas em uma experiência com
o Pibid. Campinas, SP: Pontes Editores, 2017. p. 279-289.
REZENDE, Thalita. Problematização: o confronto colonial nos roubou a vida e pro-
duziu os delírios da modernidade: a ideologia do déficit e a norma salvadora. Goiânia:
Obiah; Grupo de Estudos em Cosmolinguística, 2020. Manuscrito não publicado.
ROSA-DA-SILVA, Valéria. Movimentos decoloniais no estágio de língua inglesa: senti-
dos outros coconstruídos nas vivências em uma escola pública. 2021. Tese (Doutorado
em Letras e Linguística) – Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2021.
SÃO PAULO (cidade). Secretaria Municipal de Educação. Diretoria de Orientação
Técnica. Currículo integrador da infância paulistana. São Paulo: SME/DOT, 2015.

233
Aescutasensívelcomoatoéticoemnarrativassobreexperiênciasdedes/re-aprendizagensduranteapandemia

SILVESTRE, Viviane. P. V. Colaboração e crítica na formação de professores de línguas:


teorizações construídas em uma experiência com o Pibid. Campinas: Pontes, 2017.
TEIXEIRA, Ricardo Rodrigues. As redes de trabalho afetivo e a contribuição da
saúde para a emergência de uma outra concepção de público. In: RESEARCH
CONFERENCE ON: RETHINKING “THE PUBLIC” IN PUBLIC HEALTH:
NEOLIBERALISM, STRUCTURAL VIOLENCE, AND EPIDEMICS OF
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

INEQUALITY IN LATIN AMERICA, 2004, San Diego. Proceedings [...]. San Diego:
Center for Iberian and Latin American Studies, University of California, 2004. n. p.
TODD, Sharon. Learning from the other: Levinas, psychoanalysis, and ethical possi-
bilities in education. New York: State University of New York Press, 2003.
WALSH, Catherine. Pedagogías decoloniales: prácticas insurgentes de resistir, (re)exis-
tir e (re)vivir. Quito: Editora Abya-Yala, 2017. (Serie Pensamiento Decolonial).
ZOLIN-VESZ, Fernado. (Por entre) as narrativas que (não) nos contam sobre a mi-
gração árabe na cidade de Cuiabá. In: ZOLIN-VESZ, Fernado (org.). Linguagens e
descolonialidades: arena de embates de sentidos. Campinas, SP: Pontes Editores, 2016.
p. 59-74.

234
TEMPOS INÉDITOS NA FORMAÇÃO DE EDUCADORES E EDUCADORAS DE LÍNGUAS NA INFÂNCIA:

11.
TEMPOS INÉDITOS NA FORMAÇÃO
DE EDUCADORES E EDUCADORAS

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


DE LÍNGUAS NA INFÂNCIA:
E QUANDO FOI QUE OS TEMPOS
FORAM DIFERENTES?

Juliana Reichert Assunção Tonelli | Universidade Estadual de Lon (UEL)

Cláudia Jotto Kawachi-Furlan | Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)

Não importa com que faixa etária trabalhe o educar


ou a educadora. O nosso trabalho é realizado com
gente, miúda, jovem ou adulta, mas gente em per-
manente processo de busca. Gente formando-se, mu-
dando, crescendo, reorientando-se, melhorando, mas,
porque gente, capaz de negar os valores, de distorcer-
-se, de recuar, de transgredir.

Paulo Freire

235
E quando foi que os tempos foram diferentes?

O tema do XVI Enfople73 – Linguagens em tempos inéditos: de-


safios praxiológicos da formação de professoras/es de línguas – nos pro-
voca, mais uma vez, a lidarmos com dois aspectos bastante presentes no
campo da formação de professoras e professores: desafios e praxiologias.
Parece-nos que os desafios sempre estiveram presentes e são eles que nos
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

impulsionam a (re)pensar constantemente as praxiologias, nos termos


de Paulo Freire, tendo em conta a indissociável relação entre teoria e
prática, inerentes à formação de professoras e professores de línguas, no
nosso caso, línguas adicionais para e na infância.

Neste artigo, decorrente de um espaço privilegiado de discussões


no referido Encontro, objetivamos abrir possibilidades para refletirmos
acerca das praxiologias na educação de professores e professoras de lín-
guas para e com crianças e como almejamos romper com padrões, mui-
tas vezes difíceis de serem transpostos nos cursos de Letras – Inglês, no
nosso caso. Para tanto, recuperamos, logo de início, reflexões outras
com as quais pretendemos dialogar e, quem sabe, provocar em quem
se aventurou nesta leitura, inquietações acerca da formação docente em
nosso país.

Embora seja temática recorrente, a educação linguística na e para


a infância ainda parece provocar estranhamento em alguns. Temos vis-
to, no campo da formação de professoras e professores, em especial, dis-
cussões que se colocam como “desafios contemporâneos”, mas, ao mes-
mo tempo, ignoram questões elementares no referido campo. Afinal de
contas, o que a contemporaneidade nos traz de “novidade”? Discussões
acerca de identidade, etnicidade e gênero nas aulas de línguas adicionais
emergem como se estas nunca tivessem existido. Ou estaríamos todo
esse tempo com os nossos olhos fechados, ou vendados, fazendo-nos

73 Agradecemos à profa. Dra. Leandra Inês Seganfredo Santos, por ter comparti-
lhado suas reflexões sobre a formação de professoras e professores de Inglês para
crianças na mesa que motivou esse artigo.

236
E quando foi que os tempos foram diferentes?

seguir o caminho como se nele não houvesse motivos para redimensio-


nar a rota?

As temáticas apontadas acima, a nosso ver, sempre estiveram pre-


sentes em nossas salas de aulas, mas não temos evidências se, por opção
ou não, foram colocadas à margem como se pudéssemos, mais para

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


frente na jornada, pensar nelas. O ensino de línguas adicionais a alu-
nos com deficiência, por exemplo, igualmente apagado nos cursos de
formação de professores de línguas, também não se coloca, há tempos,
como emergencial? O que nos leva a decidir quem são as minorias, de
fato? Evidentemente que se buscarmos respaldo em documentos que
definem e nomeiam quem são estes, encontramos respaldo teórico. Mas
quem são essas minorias no dia a dia da escola ou dos excluídos dela?

Neste mesmo fluxo de ideais, voltamo-nos, neste texto, para a


educação em línguas adicionais na infância: seria este um tema “con-
temporâneo” e um desafio inusitado ou este sempre esteve diante de
nossos olhos, mas, por comodidade, talvez, incomoda e provoca a pou-
cos? Last but not least, quais os impactos dessa temática na educação de
professores e professoras?

Com a pandemia da Covid-19 vivenciamos diversas incertezas


em variados cenários. No campo educacional, relacionado ao escopo
deste texto, os denominados tempos inéditos têm promovido uma bus-
ca incessante por maneiras de continuar com as práticas pedagógicas em
formato on-line, remoto, híbrido e demais possibilidades que fogem ao
nosso propósito de discussão neste capítulo. As mudanças, as lacunas,
os abismos e as dificuldades relacionadas à educação foram (e estão
sendo) evidenciadas nesse período. As incertezas presentes na educação
linguística com crianças e na formação docente também estiveram no
centro das atenções. Mas, desde quando esse cenário foi marcado por
certezas?

237
E quando foi que os tempos foram diferentes?

Para chegarmos ao final desta breve conversa, organizamos o ar-


tigo da seguinte forma: no próximo item, discutimos brevemente nos-
sa compreensão sobre o ser criança e sobre a infância. Na sequência,
problematizamos o que almejamos com a formação de professores e
professoras de Inglês com crianças. Finalizamos este texto com nossas
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

reflexões sobre a relevância de pensarmos em rupturas na formação ini-


cial de professores e professoras, para que possamos conceber a educa-
ção linguística com o sujeito criança como protagonista nesse processo.

COMO CONCEBEMOS O “SER CRIANÇA”

Para atingir o objetivo a que nos propomos para este capítulo,


precisamos, antes de mais nada, esclarecer como concebemos o “ser
criança”, uma vez que tal concepção vem influenciando diretamente o
ensino de línguas para e na infância e, consequentemente, a educação
de professores e professoras para atuar neste contexto.

Questões relacionadas ao período para iniciar a aprendizagem


de uma língua adicional têm exercido forte influência na organização
escolar dos anos iniciais. Para além das controvérsias que envolvem
uma suposta melhor idade para tal aprendizagem (MERLO, 2019;
KAWACHI-FURLAN; ROSA, 2020), temos, ainda, o silenciamen-
to de documentos oficiais, mais especificamente da Base Nacional
Comum Curricular (BRASIL, 2017) que, ao omitirem a possibilidade
da inserção do ensino de línguas na educação infantil e nos anos iniciais
do ensino fundamental, negam a possibilidade do “sujeito criança” ser
protagonista por meio de outras línguas que não a sua materna, confor-
me discutem Avila e Tonelli (2018) e Tonelli e Avila (2020).

Em acordo com outras áreas do conhecimento, mais especifica-


mente a sociologia da infância, enquanto formadoras de professores e
professoras para atuar na educação linguística em línguas adicionais

238
E quando foi que os tempos foram diferentes?

junto a crianças, compreendemos juntamente com Girão e Brandão


(2021, p. 2) que “as culturas infantis também têm se destacado enquan-
to eixo estruturante do desenvolvimento e, portanto, como linguagem
própria da criança na construção de sentidos sobre si e sobre o outro”.
Por entendermos que o ensino de línguas adicionais na infância deve ir

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


além do ensino da língua em si, a fim de promover o desenvolvimento
social da criança e possibilitar que ela viva esta fase da vida construindo
sentidos por meio do uso da língua, buscamos nas bases teóricas da
sociologia da infância a compreensão da criança enquanto sujeito de
direitos e, no caso do ensino e da aprendizagem de línguas, de quais di-
reitos estamos falando. Nesse sentido, objetivamos problematizar quais
são as possíveis implicações de tal noção para a garantia dos direitos
desse grupo geracional no âmbito da educação linguística em línguas
adicionais na e para a infância.

Como defendido por Quinteiro (2002, p. 139), precisamos rever


a construção social da infância, que é marcada por perspectivas adul-
tocêntricas, que consideram a criança “tábula rasa a qual os adultos
imprimem a sua cultura”. É nesse sentido que defendemos a educação
linguística com crianças que as considere como protagonistas desse pro-
cesso, em oposição à passividade e até mesmo subordinação que elas vi-
venciam em relações hierárquicas no ambiente educacional. Para tanto,
seguimos a proposta de Quinteiro sobre esse novo olhar para a infância.

Finalmente, há que exercitar e construir um outro


olhar através do qual se possa conhecer a infância
e os vários contextos onde ela se constitui no sen-
tido de poder intervir nas discussões e definições
de políticas e programas sociais dirigidos à crian-
ça, particularmente aquelas referentes à escola e ao
processo de formação de professores, tanto a inicial
quanto a continuada. Contudo, o conhecimento

239
E quando foi que os tempos foram diferentes?

não se faz em qualquer tempo ou lugar, é neces-


sário, prioritariamente, dirimir e explicitar concei-
tos, identificar valores e representações estruturan-
tes que constroem e constituem as culturas infantis
[...] (QUINTEIRO, 2002, p. 156-157).
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

Nesse sentido, defendemos que os processos de formação de pro-


fessores e professoras de Inglês com crianças têm papel fundamental
no direcionamento de reflexões sobre quem são essas pessoas/sujeitos,
sobre quem são as educadoras e educadores e sobre por que queremos
ensinar línguas estrangeiras para crianças (PICANÇO, 2011).

No campo da educação de professores e professoras para atuar no


ensino de línguas adicionais na infância, temos testemunhado uma movi-
mentação que, a nosso ver, parece indicar que as práticas pedagógicas vêm
promovendo e impulsionando investigações advindas, na maioria dos ca-
sos, de inquietações das próprias pesquisadoras. Tonelli e Avila (2020),
por exemplo, apresentam sete trabalhos (teses e dissertações)74 que com-
preendem a criança como autora de suas ações e indicam possíveis cami-
nhos para uma educação linguística em línguas adicionais que colocam
a práxis pedagógica como ponto central. Tais pesquisas são textualmente
marcadas pela ânsia de atribuir sentidos às práticas já desenvolvidas.

Além das investigações discutidas pelas autoras, em sua disserta-


ção de mestrado, Malta (2019), a partir de suas experiências e vivên-
cias profissionais, buscou compreender como professores de Inglês que
atuam junto a crianças de dois a cinco anos constroem ou não práticas
pedagógicas relacionadas com educação crítica e letramentos críticos.
Para isso, criou-se um curso de formação de professores voltado a dis-
cussões relacionadas a esses temas, incluindo teorias e práticas de ensino
a partir dessa perspectiva.

74 A tabela com os trabalhos discutidos em Tonelli e Avila (2020) está disponível no


anexo deste capítulo.

240
E quando foi que os tempos foram diferentes?

Nas palavras da própria autora, ao apresentar suas motivações


para o estudo,

Foi o que aconteceu, por exemplo, com esta au-


tora, também educadora em língua inglesa para

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


crianças de 2 a 5 anos, ao não encontrar respaldo
em documentos oficiais para seu cenário de atua-
ção, tendo que unir, de maneira intuitiva e expe-
rimental, as teorias estudadas durante a gradua-
ção em Letras-Inglês ao seu contexto de trabalho
(MALTA, 2019, p. 17).

Como propusemos problematizar na introdução deste capítulo, a


autora nos coloca frente ao desafio de ensinar uma língua adicional para
crianças pequenas tendo em conta que elas podem ser coparticipantes
de construções de sentidos que incluem a criticidade. O cenário apre-
sentado por Malta (2019) é mais um exemplo de questões recorrentes
nas aulas de Inglês nos anos iniciais de escolarização, o que se constitui
em mais um desafio, mais uma incerteza de como fazer e, portanto,
mais uma oportunidade de construção coletiva de novos conhecimen-
tos e significados.

Essas reflexões nos levam a ponderar acerca da urgência de rup-


turas na formação inicial de professores, o que será discutido no item
a seguir.

O QUE ESPERAMOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORES E


PROFESSORAS DE INGLÊS QUE ATUAM COM CRIANÇAS?

Cunha (2013) defende que a formação docente é um processo


contínuo e não linear, que precisa acompanhar as constantes mudanças
da nossa sociedade. Atualmente, e, principalmente por conta da pande-

241
E quando foi que os tempos foram diferentes?

mia da covid-19, essa afirmação está mais do que evidente. Além disso,
temos observado aumento significativo nos interesses de pesquisas re-
lacionadas ao ensino, à aprendizagem, à formação docente, à avaliação,
entre outros, com crianças no território brasileiro. Esses temas estão re-
gistrados em teses e dissertações publicadas desde 1987 no mapeamen-
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

to realizado pelo grupo de pesquisa Formação de Professores e Ensino


de Línguas para Crianças – Felice (CNPq).

Nesse levantamento, até o ano de 2020, observamos um total de


74 trabalhos sobre “ensino-aprendizagem de línguas estrangeiras para
crianças”, a partir de 1987; 8 sobre “avaliação no ensino de línguas
estrangeiras para crianças”, a partir de 2008; 14 sobre “bilinguismo”,
desde 2000; e 26 trabalhos sobre “formação de professores de línguas
estrangeiras para crianças”, desde 2003. Assim, notamos que, em com-
paração com outras “áreas” de estudo, o campo de LIC pode ser consi-
derado recente e em evidência nas últimas duas décadas. Discordamos
quando pesquisadores afirmam que há uma escassez de estudos nesse
campo, pois, conforme observado no levantamento de teses e disserta-
ções do Felice, não se trata de escassez, mas de visibilidade. O que tem
conferido certo “prestígio” aos estudos sobre ensino-aprendizagem de
línguas adicionais na infância é, infelizmente, a influência do mercado
(programas bilíngues, ofertas de inglês para crianças pequenas, cursos
particulares etc.).

Tonelli, Ferreira e Belo-Cordeiro (2017) e Tanaca (2017) nos


mostram que o ensino de inglês para crianças já é realidade no Brasil.
No entanto, sabemos que a formação de professores e professoras para
atuar nesse contexto ainda não ocorre de maneira regular em muitas
instituições. Segundo Galvão e Kawachi-Furlan (2020), 10 das 63 uni-
versidades federais brasileiras oferecem disciplinas sobre língua inglesa
para crianças (LIC) nos cursos de Letras. No geral, nessas instituições,
as propostas de disciplinas são resultados de esforços individuais, de

242
E quando foi que os tempos foram diferentes?

professores e professoras que trabalham com esse tema e buscam con-


templá-lo na graduação, além de projetos de extensão e de pesquisa.

Contudo, julgamos que não se trata apenas de ter ou oferecer


tal formação. Nosso questionamento incide no que esperamos dessa
formação. Nesse sentido, nosso primeiro movimento é problematizar

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


concepções e práticas estáticas de língua(s), de ensino e de aprendiza-
gem na infância, entendendo a dinamicidade entre linguagem e reali-
dade (FREIRE, 1987), a importância da práxis centrada na criança e
do educar para as diferenças por meio da linguagem (MENEZES DE
SOUZA, 2019).

Estamos cientes de que a área de ensino de línguas é fortemen-


te marcada pela presença dos métodos, das técnicas, dos modelos. Por
mais que pensemos que isso está no passado, as experiências práticas
nos mostram que não. Os cursos de idiomas com os seus métodos de
sucesso estão fortemente presentes em nossa realidade. As escolas bilín-
gues ou os programas bilíngues com a “metodologia perfeita” para a
criança aprender de forma natural e sem esforços (e na idade certa)75
estão “em alta”. É nesse cenário que sentimos que há certa tendência
em mostrar certezas, ou seja, receitas que sempre funcionam. Mas como
questionamos no início deste texto, a formação docente é um território
de certezas?

Como a professora Clarissa Jordão76 mencionou na palestra de


abertura do evento do XVI Enfople, a escola precisa ser um lugar para
construção de diversas narrativas, pois tanto a escola quanto a univer-

75 Esses temas foram questionados em estudos anteriores, como os de Garcia


(2011), Carvalho e Tonelli (2016) e Kawachi-Furlan e Rosa (2020).
76 JORDÃO, Clarissa Menezes. Linguagens em tempos inéditos: desafios praxio-
lógicos na formação de professoras/es de línguas. Palestra proferida em XVI
Encontro de Formação de Professoras/es de Línguas. Inhumas, GO, set. 2020.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ikKQXYsDALI. Acesso em:
4 set. 2021.

243
E quando foi que os tempos foram diferentes?

sidade têm mostrado um único modelo, uma única narrativa. E, neste


sentido, é preciso expandir o repertório de narrativas.

Nesse cenário, sabemos das influências de concepções hegemôni-


cas de línguas, nas quais o suposto nativo é o modelo a ser seguido, e
as pessoas (pais, diretores, gestores) querem que as crianças aprendam
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

desde cedo para que tenham o tal inglês do nativo. Enfim, por mais
que as pesquisas na área de Educação e Linguística Aplicada tenham
nos mostrado outras possibilidades, outras compreensões de todo esse
processo, a mídia e o discurso neoliberal acabam transformando essa
aprendizagem de uma língua em um produto, uma ferramenta, ou seja,
em algo algo fixo, imutável e mensurável.

Assim, prevalecem as ideias tradicionais de educação e essas pers-


pectivas estruturais de língua e de todos os envolvidos no seu processo
de ensino. É nesse momento em que precisamos questionar sobre o pa-
pel da educação linguística que, seguindo as propostas de Ferraz (2018),
esse processo consistiria não apenas em ensinar e aprender uma língua,
mas em educar em uma língua, o que implica revisitar o que é ensinar,
o que é aprender, o que é produzir conhecimento. Esse redimensiona-
mento envolve a valorização das subjetividades, das identidades, das
histórias e das necessidades de educadores e educandos.

Portanto, a nosso ver, discutir formação docente é falar sobre o


local, sobre o contexto, sobre quem são nossos aprendizes, quem são
os educadores. É também falar sobre possibilidades. Então, além da
necessidade de os cursos de Letras contemplarem a educação linguística
com crianças, a compreensão de formação de professores de LIC que
temos é aquela que possibilita que nossas práxis criem oportunidades
para que a criança aprenda a língua e, por meio dela, possa questionar
verdades impostas pela sociedade, visando, em última instância, um
processo de educação linguística que seja (trans)formador, para que que

244
E quando foi que os tempos foram diferentes?

a criança possa construir outras narrativas para além daquelas que a ela
são impostas.

E, para que isso seja possível, precisamos pensar na educação des-


sas crianças no presente, como defendido por Santos (2010). Mas, para
que consideremos realmente o presente, devemos repensar o que enten-

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


demos por língua e por aprender e ensiná-la. Infelizmente, a pandemia
tem nos mostrado que essas práticas estruturais são muito mais frequen-
tes do que gostaríamos (KAWACHI-FURLAN; TONELLI, 2021). As
crianças estão vivendo em isolamento, em quarentena e estão passando
por um período extremamente tenso e complexo. No entanto, muitas
propostas de ensino de inglês não contemplam esse momento, focando
no ensino das cores ou de formas geométricas, ou seja, são propostas de
ensino remoto que pouco contribuem para romper com padrões alie-
nantes, como pondera Liberali (2020).

Não seria, então, o momento de pensarmos em ampliar nossas


perspectivas e valorizar outros saberes? Outros conhecimentos? Quando
pensamos que as crianças não estão indo para as escolas, ou estão com
suas rotinas de aulas presenciais/híbridas alteradas, pensamos que elas
estão sendo privadas de interações e de vivências no ambiente escolar, o
que vai muito além do que qualquer ensino de conteúdos. No entanto,
para que seja possível pensarmos em outras possibilidades, precisamos
pensar em outras narrativas para a educação de professoras e professores.

Lima (2019) pontua que não podemos afirmar que não há for-
mação de professores de Inglês para crianças. A autora nos lembra de
que não temos as diretrizes e a regulamentação, mas temos as iniciativas
de algumas instituições e dos próprios professores que estão em cons-
tante formação. São esses professores e professoras que buscam cursos,
palestras, que compartilham experiências, participam de grupos, de
eventos, o que Lima denominou de práticas formativas informais, com
base em Maciel (2014).

245
E quando foi que os tempos foram diferentes?

Portanto, novamente, precisamos problematizar o que entende-


mos por formação e o papel dos cursos de Letras, pois considerando a
realidade posta por meio dos estudos apresentados, são os alunos egres-
sos desses cursos que também irão atuar como docentes de Inglês para
crianças. Além disso, defendemos que revisitar o conceito de formação
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

docente é compreender que esse processo é amplo e não restrito a um


único curso, seja o de Letras ou outro, seja em processo de formação
inicial ou contínua, se possível, atemporal. Concordamos com Monte
Mór (2018, p. 273), que afirma que “formação ampliada certamente
requer muito mais dos docentes e direciona para a urgência de maior
reconhecimento da docência e de novos planos de carreira e de incen-
tivo à profissão”. Assim, julgamos que, por meio da transformação no
que comumente associamos com o ensino de inglês para crianças, é
que conseguiremos pensar em uma educação que seja para e com as
crianças.

Esperamos que este texto promova reflexões sobre a necessidade


de questionarmos o que almejamos com a educação linguística com
crianças e a relevância de construirmos, coletiva e colaborativamente,
esse processo e a ampliação das narrativas de formação docente. A se-
guir, apresentamos as considerações finais do estudo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme questionado no título deste capítulo, quando foi que


os tempos foram diferentes na formação de educadoras/es de línguas
na e para infância? Diante dos desafios impostos pela pandemia de co-
vid-19, pudemos observar com mais atenção as problemáticas envolvi-
das na formação de professoras e professores que atuam com crianças.
Ao analisarmos nossas práxis e os trabalhos que têm sido desenvolvidos
nesse campo, observamos uma busca por revistar os conceitos já pré-es-
tabelecidos na educação e na linguística aplicada.

246
E quando foi que os tempos foram diferentes?

Como pontuado por Tonelli e Avila (2020), há um movimento


das próprias professoras e pesquisadoras, nos sete estudos analisados,
em promover práticas pedagógicas que valorizem a criança como prota-
gonistas de suas ações. Sabemos que professores e professoras de Inglês
com crianças estão em constante busca por formações, aprendendo a

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


lidar com o ineditismo que envolve a educação linguística com estu-
dantes dessa faixa etária.

Assim, se intencionamos romper com modelos e fórmulas de


“sucesso”, continuamos defendendo a relevância dos processos ininter-
ruptos de formação docente, os quais são pensados coletiva e colabora-
tivamente, com foco no protagonismo da criança e da/do educadora/
educador. Foram essas reflexões que, por ocasião de nossa participação
no XVI Enfople, traçamos e procuramos registrar neste espaço.

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E quando foi que os tempos foram diferentes?

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E quando foi que os tempos foram diferentes?

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E quando foi que os tempos foram diferentes?

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LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

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250
E quando foi que os tempos foram diferentes?

ANEXOS
Quadro 1 – Exemplos de teses e dissertações que abordam a realidade do ensino de
LIC no Brasil

AUTORA ESCOPO CENTRAL TRAÇOS LINGUÍSTICOS

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


Mello (2013) Tratou da implementação da LI no EFI na Implementação;
cidade de Rolândia no ano de 2010, por Língua inglesa;
meio da Lei nº 3.446/2010. Lei.

Vicentin (2013) Os professores de LI entrevistados têm Policy makers de um modelo


atuado como policy makers de um modelo de política linguística ascendente;
de política linguística ascendente; eles não Papel no estabelecimento dessas
se reconhecem, ou parecem ainda não ter políticas;
consciência do seu papel no estabelecimento Implementação efetiva;
dessas políticas. A autora concluiu ainda Modelo de política
que, para que seja possível a implementação linguística específico para LEC.
efetiva do ensino de LIC na matriz curri-
cular oficial dos anos iniciais, é necessário
haver um modelo de política linguística
específico para LEC.

Barbosa (2014) Analisou quais as orientações contidas nos Orientações;


documentos oficiais municipais no que diz Documentos oficiais municipais;
respeito ao ensino e à avaliação em LEC, Falta de formação para
descreveu as práticas avaliativas desenvol- ensinar, avaliar e
vidas pelos docentes naquele contexto, elaborar programas de LEC.
analisou a integração das práticas com os
objetivos de ensino e aprendizagem de
LEC e indicou pistas que possam, teórica
e metodologicamente, tornar essas práticas
mais eficazes.

Os dados revelam [...] a falta de formação


para ensinar, avaliar e elaborar programas
de LEC.

Seccato (2016) Como resultados, aponta que os prin- Língua Inglesa;


cípios que norteiam o Guia Curricular Projeto;
Língua Inglesa – documento elaborado Políticas linguísticas e a
para orientar a prática das professoras que prática docente.
atuam no Projeto Londrina Global [...] da
cidade de Londrina foram exemplificados
nos relatos das professoras, os quais for-
neceram indícios para reflexões quanto às
possíveis conexões entre políticas linguísti-
cas e a prática docente.

251
E quando foi que os tempos foram diferentes?

AUTORA ESCOPO CENTRAL TRAÇOS LINGUÍSTICOS


Tanaca (2017) Práticas híbridas de formação continuada Formação continuada;
constituem espaços desestabilizadores de Formação e
saberes que potencializam novos modos aprendizagem docente;
de ser e saber da formação e da aprendiza- Ensino de LIC.
gem docente para o ensino de LIC.
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

Gini (2017) A partir dos resultados identificados, a Implementação de LIC.


autora elaborou uma Carta ao Gestor para
auxiliar gestores em momentos de im-
plementação de LIC em seus municípios,
contemplando os elementos da atividade
educacional identificados nas análises.

Avila (2019) Investigou as motivações para a inserção Inserção da LI em uma


da LI em uma escola municipal pública de escola municipal pública de EFI.
EFI situada em uma cidade de aproxima-
damente 3.000 habitantes ao norte do
estado do Paraná e objetivou estabelecer
possíveis contribuições do ensino de
inglês nos anos iniciais para a internacio-
nalização do ensino superior.

Fonte: Tonelli e Avila (2020, p. 258-259).

252
CRIANÇA QUE CANTA SEUS MALES ESPANTA E AINDA APRENDE INGLÊS:

12.
CRIANÇA QUE CANTA SEUS MALES
ESPANTA E AINDA APRENDE

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


INGLÊS:
UMA EXPERIÊNCIA MUSICAL
DURANTE O ENSINO REMOTO
EMERGENCIAL

Giuliana Castro Brossi | Universidade Estadual de Goiás (UEG, Inhumas)

Otto Henrique Silva Ferreira | Universidade Estadual de Londrina (UEL)


Â

Cintia Ribeiro Maniquinho | Secretaria Municipal de Educação de Inhumas (SME,


Inhumas)

O que é, o que é?
Eu fico com a pureza das respostas das crianças:
É a vida! É bonita e é bonita!
Viver e ão ter a vergonha de ser feliz,
Cantar,
A beleza de ser um eterno aprendiz
Eu sei
Que a vida devia ser bem melhor e será,
Mas isso não impede que eu repita:
É bonita, é bonita e é bonita!
E a vida? E a vida o que é, diga lá, meu irmão?

253
Uma experiência musical durante o ensino remoto emergencial

Ela é a batida de um coração?


Ela é uma doce ilusão?
Mas e a vida? Ela é maravilha ou é sofrimento?
Ela é alegria ou lamento?
O que é? O que é, meu irmão?
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

Há quem fale que a vida da gente é um nada no mundo,


É uma gota, é um tempo
Que nem dá um segundo,
Há quem fale que é um divino mistério profundo,
É o sopro do criador numa atitude repleta de amor.
Você diz que é luta e prazer,
Ele diz que a vida é viver,
Ela diz que melhor é morrer
Pois amada não é, e o verbo é sofrer.
Eu só sei que confio na moça
E na moça eu ponho a força da fé,
Somos nós que fazemos a vida
Como der, ou puder, ou quiser,
Sempre desejada por mais que esteja errada,
Ninguém quer a morte, só saúde e sorte,
E a pergunta roda, e a cabeça agita.
Fico com a pureza das respostas das crianças:
É a vida! É bonita e é bonita!
É a vida! É bonita e é bonita!

(NASCIMENTO JÚNIOR, 1982)

C
omeçamos este capítulo, escrito a seis mãos, inspirando-nos nos
versos de Gonzaguinha, o qual nos chama a “cantar a beleza de
ser um eterno aprendiz”, que tomamos como ponto de parti-
da para nós, professoras/es: um aprender contínuo, cientes da

254
Uma experiência musical durante o ensino remoto emergencial

incompletude do saber. No que diz respeito a essa incompletude do


saber, ratificamos Paulo Freire (1996), que nos diz que “[t]oda prática
educativa demanda a existência de sujeitos, um que ensinando, apren-
de, outro que aprendendo, ensina” (FREIRE, 1996, p. 28). Neste re-
lato de experiência, tratamos de diversas relações que dialogam com

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


Gonzaguinha e Paulo Freire: a prática educativa aqui se faz no plane-
jamento e na colaboração entre professoras/es de diferentes contextos,
mas ela se faz ainda mais pulsante após a realização e a execução do
planejamento realizado por muitas mãos (além das três que aqui lhes
relatam). As atividades que foram planejadas e realizadas com as
crianças do ensino fundamental I (EFI) pela professora Cintia foram
inspiradas nas videoaulas musicais gravadas pelo professor e par-
ceiro Otto, numa iniciativa da coordenadora da ação extensionista
English for Kids, Giuliana. Participaram das atividades quatro par-
ceiras/os voluntárias/os, que gravaram quatro vídeos para compor as
atividades durante a semana do Enfople, e oito professoras do EFI
em Inhumas em 2020.

A discussão proposta acerca da incompletude abrange a nossa


construção docente ao trabalharmos em parceria de fato (MATEUS,
2014), inclusive ao reconhecer o quanto aprendemos mutuamente, e
o quanto as crianças têm nos ensinado. É dessa forma, responsável e
ética, cantando, e vivendo a “pureza das respostas das crianças”, que nos
dirigimos a você, com o objetivo de apresentar as atividades realizadas
com as crianças de 6 a 8 anos, pela ação extensionista English for Kids
da Universidade Estadual de Goiás, Inhumas (UEG Inhumas), como
parte da programação do XVI Encontro de Formação de Professoras/es
de Línguas (Enfople) em 2020.

Devido à pandemia de covid-19, em 2020, na impossibilidade


de realizar o IV English for Kids Immersion com e para crianças do
fundamental I das escolas de educação básica, no espaço físico da uni-
versidade, a rede de professoras/es de inglês para crianças (IC) planejou

255
Uma experiência musical durante o ensino remoto emergencial

atividades a partir de um vídeo em que o professor canta e interage com


as crianças usando ukulele e chocalhos, e transitando entre o português
e o inglês.

No cenário de crise mundial/nacional, em que presencia-


mos a tentativa de destruição da escola pública no Brasil e o neo-
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

liberalismo devastador aumentando drasticamente a (já) enor-


me desigualdade social que conhecemos na educação, reexistimos
(WALSH, 2017). Por meio de ações nas aulas de inglês na escola públi-
ca inhumense, reexistimos como aprendizes, como crianças que gostam
de cantar e dançar, que se emocionam, se entristecem e se alegram,
“mas sem perder a indignação” (CABNAL, 2019). Nossa indignação
diante de todo cenário desolador que temos enfrentado é o que nos
faz construir possibilidades que tragam alegria para as crianças, o que
nos encheu de gratidão, fé, amor. E, do nosso ponto de vista, é preciso
compreender que a vida pode ser o “divino mistério profundo, [...] o
sopro do criador numa atitude repleta de amor” para alguns, mas pode
ser também “maravilha ou sofrimento, alegria ou lamento” para outros,
a depender de suas histórias e dos momentos que estão vivendo.

Nesse sentido, diante da fragilidade e delicadeza das nossas vidas


no contexto atual, escolhemos nos indignar e, nessa (indign)ação, duas
professoras e um professor – Giuliana, Cintia e Otto – narramos, por
nossas óticas, como foram nossas participações na ação. Destacamos
nossas praxiologias, além de descrevermos a experiência de gravar o ví-
deo, de trabalharmos relacionando música e inglês, nossas motivações
transdisciplinares, e reflexões acerca dos efeitos do vídeo na sala de aula
no contexto remoto emergencial on-line, com e para crianças nas escolas
de Inhumas.

Os documentos formais das políticas educacionais brasileiras,


como a BNCC, de 2018, prescrevem atualmente inglês como a língua
estrangeira “prioritária” no ensino fundamental II, numa perspectiva de

256
Uma experiência musical durante o ensino remoto emergencial

língua franca (DUBOC; SIQUEIRA, 2020). Defendemos a pluralidade


na oferta de línguas, inclusive para os anos iniciais do ensino fundamen-
tal, sem privilegiar um idioma em detrimento de outros. No entanto,
nossa atuação como professores de IC nos situa no cenário (TONELLI,
2017) da educação linguística em inglês para crianças (doravante ELIC).

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


Relembramos que apesar das inúmeras iniciativas já concretizadas de
ensino de língua inglesa para crianças (de 6 a 12 anos), tanto em escolas
privadas (TONELLI, 2005; SELBACH; SARMENTO, 2017), quan-
to em públicas (COLOMBO; CONSOLO, 2017; DIAS; BROSSI,
2015; MELLO, 2017; ANDRADE; CONCEIÇÃO, 2017; BUOSE;
SANTOS, 2017; DIAS, 2014; MONTEIRO, 2016; SANTOS, 2005,
2009), não há políticas públicas que reconheçam esse cenário (com in-
vestimentos inclusive), ou políticas para a formação de professoras/es
para atuarem nessa esfera no cenário nacional.

É em um desses cenários já existentes, e inclusive legalmente au-


torizado por políticas públicas municipais, que o relato de experiência
que retratamos foi realizado. Vivenciamos o cenário de crise mundial/
nacional de saúde pública com os efeitos da pandemia de covid-19, e
principalmente na banalização da vida e na super-valorização do capital.
Além disso, enfrentamos ameaças constantes ao meio ambiente, com a
banalização da destruição de biomas em diversas partes do mundo, em
uma sociedade pautada na valorização do “ter” em detrimento do “ser”,
e presenciamos o aumento drástico da (já) enorme desigualdade social
que conhecemos na educação. Essa desigualdade social nos causou ain-
da mais preocupação em 2020, quando as escolas fecharam, e iniciamos
o ensino remoto emergencial, com atividades pelo WhatsApp, por meio
de vídeos e tarefas envolvendo outros recursos tecnológicos, apagando
tantas crianças das nossas salas de aula pela (não tão) simples falta de
acesso à internet. Aos/Às professores/as restou a árdua tarefa de “se vi-
rar”: aprender a usar recursos tecnológicos do dia para a noite, a gravar

257
Uma experiência musical durante o ensino remoto emergencial

vídeos e a planejar atividades para serem desenvolvidas sob a supervisão


de pais, mães, avós, tias, entre outros/as responsáveis.

Apesar de todos esses percalços, reexistimos (WALSH, 2017).


Nos debatemos, em meio ao mergulho caótico nesse mar de insegu-
ranças, medos e desolações que foi 2020. Nos indignamos (CABNAL,
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

2019), nos envolvemos e esperançamos por meio de ações nas aulas


de Inglês na escola pública inhumense, nos segurando com todas as
forças nas possibilidades de “re-existir resistindo e resistir re-existindo”
buscando outras formas de viver e de estar em sociedade, apesar do
momento pandêmico e suas dificuldades.

Há alguns conceitos/fundamentos que nos “suleiam” e, por em-


basar as nossas praxiologias, nos dedicamos a apresentá-los nesta seção.
Em primeiro lugar, um dos aspectos essenciais das nossas praxiologias
é o trabalho docente colaborativo (MATEUS, 2014). É na colaboração
e no sentido da parceria de fato (MATEUS, 2014; SILVESTRE, 2017)
que nos organizamos (professora da universidade, professor colabora-
dor da ação de extensão e professora de IC) e desenvolvemos a atividade
aqui descrita. Em segundo lugar, o viés que orientou este trabalho, em
particular, é a inseparabilidade das linguagens (português, inglês, música,
artes e educação física) para a perspectiva que adotamos, além da trans-
disciplinaridade que perpassa as praxiologias para a educação linguística
na infância. O terceiro ponto que destacamos refere-se à relação entre
as praxiologias de reexistência à constatação de que nós, professores/
as de IC, conforme defende Tonelli (2017, p. 81), “não somos ato-
res de espaços vazios”, uma vez que “os espaços já estão constituídos”.
Consideramos, ainda em consonância com a autora, que o contexto
inhumense de ensino de IC já é reconhecido como um dos “espaços
genuínos de atuação”.

Nesse sentido, apontamos que em Goiás um grupo de trabalho


foi mobilizado em 2018, organizando a construção do Documento

258
Uma experiência musical durante o ensino remoto emergencial

Curricular de Goiás (GOIÁS, 2020), o DC-GO, que estabelece uma


organização curricular para o inglês nos anos iniciais do EFI. Em 2020,
a Coordenação Estadual de Implementação da Base Nacional Comum
Curricular-GO organizou, em regime de colaboração entre o Conselho
Nacional de Secretários de Educação (Consed) e a União Nacional dos

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


Dirigentes Municipais de Educação (Undime), por equipes de pro-
fessores da Rede Estadual de Ensino de Goiás e da Rede Municipal
de Educação de Goiânia, e elaborou a Matriz Curricular Estruturante
2020-2021, baseada no Documento Curricular para Goiás-Ampliado
. Essa matriz cont
ém as ditas “aprendizagens essenciais de cada componente
curricular para cada ano escolar do ensino fundamental”, além de reto-
mar aprendizagens nucleares do ano anterior. O documento que con-
templa as unidades temáticas, os objetos de conhecimento/conteúdos e
seus conceitos centrais, as habilidades estruturantes e complementares
e os cortes temporais que apresentam um conjunto de habilidades a
serem desenvolvidas num determinado período de tempo, reforça que
nos anos iniciais, a escolha das habilidades estruturantes foi baseada
na apropriação de léxico sobre os temas abordados em cada bloco,
priorizando os eixos de leitura e conhecimentos linguísticos. Segundo
a apresentação do componente curricular, os eixos oralidade, escrita e
dimensão intercultural podem ser trabalhados como habilidades com-
plementares, promovendo a integração entre elas.

Ao mencionar o DC-GO, não queremos de forma alguma decla-


rar nossa anuência com tal documento ou com a BNCC. Entendemos
que os documentos legais fazem parte das políticas públicas que estão
sendo construídas no âmago da necropolítica (MBEMBE, 2016), que
tem se destacado com mais vigor nas (não) ações do desgoverno atual
no Brasil. Especialmente em relação à educação pública e à área de co-
nhecimento à qual nos filiamos (i.e. as humanidades). Discordamos da
forma como o documento foi elaborado e como tem sido implementa-
do, desconsiderando a urgente necessidade de apoio didático-pedagó-

259
Uma experiência musical durante o ensino remoto emergencial

gico para professores/as que atuam no contexto de educação linguística


na infância (EGIDO, no prelo; BROSSI; FURIO; TONELLI, 2019).
Neste capítulo, objetivamos apresentar atividades de ELIC gestada e de-
senvolvida no âmbito da extensão universitária, como possibilidade para
o ensino remoto emergencial, tendo como viés a transdisciplinaridade.
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

Consideramos pertinente apresentar o conceito de linguagem


que nos constitui e que pauta nossas atividades enquanto professoras/
es de IC, além da forma como percebemos a educação para professoras/
es no contexto local onde atuamos. Em seguida descreveremos o con-
texto e a ação extensionista que promoveu a atividade que relatamos.
Na sequência, nossas narrativas retratam nossas considerações a partir
das nossas óticas. Ao final, propomos novos questionamentos a partir
de nossos diálogos.

SENTIDOS QUE NOS CONSTITUEM

Nossa trajetória atuando na área de ELIC tem sido um cami-


nho marcado pela constante aprendizagem. Aprendemos o tempo todo,
muito mais do que nossa pretensa ambição de ensinar. Concordamos
que a nossa percepção de língua como construção, constituição do agir
e do existir humano em um dialogismo constante se ancora em mui-
tas experiências, muitas leituras e principalmente muitas conversas. Em
recente conversa/leitura com Rocha (2020) concordamos que, assim
como Arendt, temos sentido que a educação:

[...] é o ponto em que decidimos se amamos o


mundo o bastante para assumirmos a responsabili-
dade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que
seria inevitável não fosse a renovação e a vinda dos
novos e dos jovens. A educação é, também, onde
decidimos se amamos nossas crianças o bastante

260
Uma experiência musical durante o ensino remoto emergencial

para não expulsá-las de nosso mundo e abandoná-


-las aos seus próprios recursos, e tampouco arran-
car de suas mãos a oportunidade de empreender
alguma coisa nova e imprevista para nós, preparan-
do-as em vez disso com antecedência para a tarefa

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


de renovar um mundo comum (ARENDT, 2013,
p. 247).

A responsabilidade pelo mundo, por nossas ações e sobre o que,


e para que temos ensinado, tem sido mencionada também por Bakhtin
(2011), na singularidade da arte e da vida, e por Freire (1996), que
nos diz que aprender nos responsabiliza pela liberdade que assumimos.
Dito isso, bradamos em alto e bom som: “— Sim! Nós amamos nossas
crianças!”, e vamos tentar, de todas as formas, provocar situações de
prática social das línguas, oportunidades de “empreender alguma coisa
nova e imprevista para nós”. A situação provocada pelo distanciamen-
to social recomendado em 2020-2021 nos mostrou uma conjuntura
completamente não prevista de uso dos recursos tecnológicos, forçando
a escola a encarar sua função de “ensinar às crianças como o mundo é,
e não instruí-las na arte de viver” (ARENDT, 2013, p. 246). No caso
desta experiência por meio de WhatsApp, que nos levou diretamente
para dentro das casas dessas crianças e suas famílias, seus animais de
estimação, seus contextos urbano ou rural, os sons do cotidiano, enfim
a vivência da gravação dos vídeos das crianças, cantando em inglês, nos
trouxe muita alegria e gratidão, sentimentos tão necessários no nosso
duro cotidiano. É nessa esteira de envolver as emoções como forma
de prática social na educação linguística na infância que percebemos
as línguas: em momentos de uso que fazem sentido para as crianças,
como postar um vídeo da tarefinha com foco na oralidade, atendendo,
inclusive, às premissas do DC-GO e da BNCC. Concebemos língua no
mesmo sentido que Jordão (2013):

261
Uma experiência musical durante o ensino remoto emergencial

[...] como uma prática social de construção de


sentidos, ao ensinarmos língua estamos ensinando
formas de entender/construir o mundo – e a contri-
buição social disso fica evidente. As pessoas, quan-
do aprendem língua e se percebem construindo
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

sentidos para/do/no mundo no processo de apren-


dizagem, podem desenvolver uma atitude mais res-
peitosa diante dos sentidos das outras pessoas, as
identificações e desidentificações, suas e de outras
(JORDÃO, 2013, p. 78).

Compreendemos que as crianças conseguem “entender/construir


o mundo” por meio do lúdico que representa a sua existência como
seres de 6, 7 ou 8 anos. E cantar, dançar, se alegrar contribui para
uma “atitude mais respeitosa diante dos sentidos das outras pessoas”
que nós, professoras/es temos a responsabilidade de buscar provocar.
Concordamos com Busch (2012) que as histórias de vida são consti-
tuídas em nossos repertórios, que envolvem enquanto crianças, lingua-
gens, expressões corporais, musicalidade, brincadeiras, contação de his-
tórias, e as emoções em todas as suas nuances (alegria, medo, ansiedade,
vergonha, timidez).

Dito isso, apontamos que uma das “aprendizagens” que nossa


trajetória tem nos ensinado e ressignificado é o viés da colaboração, na
consciência de nossa incompletude, e a compreensão de que, juntas,
as vozes se multiplicam, e os fazeres se diversificam. Temos, ao lon-
go dos anos, desenvolvido redes de colaboração entre professoras/es de
línguas e professoras/es licenciandas/os, pautadas na parceria de fato
(MATEUS, 2014; SILVESTRE, 2017), enredadas nas emoções que
provocamos e permitimos que sejam potências nas nossas praxiologias.

As praxiologias que temos construído, no ponto em que nos


encontramos em nossa trajetória, parte de um movimento de cons-

262
Uma experiência musical durante o ensino remoto emergencial

tante vir-a-ser, ou, como discutem Mastrella-de-Andrade e Pessoa


(2019, p. 10), estamos envolvidas/os em uma “preparação des-
preparada”. Coadunamos também com Rosa-da-Silva (2021) na
percepção de uma formação ancorada nas relações, e as relações
construídas com respeito, ética, responsabilidade e amor nos tem

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


ensinado que na educação linguística para crianças, o trabalho do-
cente compartilhado em redes e multiplicado em vários braços e
corações expande e diversifica o que entendemos por praxiologias
. Em outra ocasi
ão discutimos as praxiologias suleadas na transdisciplinaridade
(BROSSI; SILVA; FREITAS, 2020), com foco nos multiletramentos,
inspiradas na educação linguística como um projeto mais amplo, e,
pensando nisso, defendemos a religação dos saberes (MORIN, 2005,
2009) das linguagens como área de conhecimento para a educação de
crianças de 6 a 8 anos. A religação entre Português, Inglês, Artes, e
Educação Física nos parece muito natural na experiência que relata-
mos, assim como os saberes que as crianças expressam por meio dessas
linguagens. As explicações do professor Otto em português e inglês, o
uso das línguas para cantar compõem um repertório de vivência para
as crianças que tiveram acesso e realizaram a atividade proposta pela
professora Cintia. Os movimentos e gestos que trazem o corpo infantil
para a prática social de gravar um vídeo para enviar por WhatsApp para
a professora provocam um sentido significativo do inglês (as cores, os
números, os dizeres I love), além da experiência em sentir excitação por
gravar o vídeo, alegria durante a sua realização, insegurança e medo
para algumas crianças mais tímidas.

Tudo isso nos dá pistas de que a atividade aqui descrita se confi-


gura como uma forma de mostrar às crianças que o mundo atualmente
exige multiletramentos, pois está marcado em situações inéditas. Tendo
brevemente apresentado alguns sentidos que nos constituem enquanto
seres humanos educadores e linguistas que atuam no cenário de ensino
de línguas para crianças, passamos a descrever o contexto da experiên-

263
Uma experiência musical durante o ensino remoto emergencial

cia e as narrativas que provocaram novos sentidos acerca da formação


docente.

CONHECENDO O CONTEXTO
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

O English for Kids Immersion é uma ação extensionista desen-


volvida em uma parceria entre a secretaria de educação municipal e a
UEG Inhumas como uma das atividades do projeto homônimo. Desde
2017, temos promovido uma ação, nas dependências físicas da UEG,
que consiste num trabalho conjunto entre as/os professoras/es de IC
das escolas municipais, professoras/es em formação inicial no curso de
Letras, professoras/es de inglês na universidade, professoras/es convi-
dadas/os e voluntárias/os de diversas instituições de todos os lugares. A
atividade acontece na semana do Encontro de Formação de Professores/
as de Línguas (Enfople), evento extensionista que objetiva promover a
troca de experiências entre professores de línguas de contextos diversos. 

Em 2020, respeitando os cuidados com a saúde exigidos pelo


momento pandêmico, a comissão organizadora do XVI Enfople de-
cidiu por organizar um evento totalmente on-line, gratuito e aberto,
incluindo a programação das crianças da rede municipal. Neste relato
de experiência contamos como essa atividade aconteceu, as contribui-
ções de professoras/es de diversas esferas e contextos, os laços desenvol-
vidos entre parceiros, por meio das narrativas da professora de IC em
Inhumas (3ª autora), do professor colaborador (2º autor) e da profes-
sora da universidade (1ª autora). O objetivo desta IV edição do English
for Kids Immersion foi proporcionar às crianças de 6 a 12 anos de todas
as escolas municipais de Inhumas a possibilidade da prática social do
inglês em vivências familiares para a faixa etária das crianças por meio
da música.

264
Uma experiência musical durante o ensino remoto emergencial

Quando iniciamos as reuniões de planejamento não-presenciais,


a coordenadora do projeto extensionista compartilhou com as/os pro-
fessoras/es de IC da rede municipal a ideia da gravação de vídeos, por
professoras/es colaboradores do evento, como atividade diferenciada
em suas próprias aulas, como parte do currículo de todas as turmas das

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


escolas. Após algumas reuniões, decidimos que a gravação dos vídeos,
edição e o planejamento de atividades adequadas a cada série acontece-
ria até 14 de setembro de 2020, para que na semana do XVI Enfople as
crianças tivessem tido pelo menos um breve contato com as atividades
desenhadas pelo professor colaborador, devidamente justificadas, para
acontecer nas aulas das próximas semanas do componente curricular
inglês. Organizamos um grupo de WhatsApp inicialmente com trinta
colegas que atuam nesse campo de ELIC ou formação de professores/
as para o ELIC, explicamos a origem do projeto e qual o tipo de con-
tribuição cada uma/um poderia dar. Após conversas, em alguns dias
obtivemos a resposta positiva de quatro professoras/es, que após apre-
sentar suas ideias para contribuir com o projeto gravaram seus vídeos e
enviaram. Os vídeos foram editados, as atividades foram planejadas, e
o material final foi compartilhado com as/os professoras/es da rede mu-
nicipal. Organizamos uma reunião na qual realizamos o planejamento
das atividades utilizando os quatro vídeos, com atividades adequadas a
cada faixa etária, aproveitando inclusive o conteúdo que estava sendo
ou já havia sido trabalhado nas aulas on-line.

Na semana do Enfople gravamos um vídeo rápido, que foi en-


viado aos pais, às mães e/ou aos responsáveis pelas vias de comunica-
ção das/os professoras/es de inglês, explicando a presença de outras/
os professoras/es nos vídeos das aulas de Inglês, e os objetivos da nossa
atividade, como parte dos cuidados éticos em relação a ELIC, pedindo
licença às famílias para adentrarmos seus lares. No decorrer das semanas
seguintes recebemos inúmeros vídeos com as participações das crianças,
além de mensagens positivas de mães e das próprias crianças comen-

265
Uma experiência musical durante o ensino remoto emergencial

tando a realização das atividades. As professoras e o professor que par-


ticiparam da ação apontam em seus relatos alguns desafios, esperanças
e desdobramentos. Elas/ele também destacam suas praxiologias, além
de descreverem a experiência de gravar o vídeo, trabalhar relacionan-
do música e inglês, motivações interdisciplinares, e reflexões acerca dos
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

impactos do vídeo na sala de aula virtual de IC nas escolas de Inhumas.

CONHECENDO AS ATIVIDADES PLANEJADAS


EM TRÊS PERSPECTIVAS

As narrativas que se seguem serão mantidas em 1ª pessoa do sin-


gular para marcar as reflexões de cada uma/um que aqui se posiciona, a
partir de sua própria história de vida, suas relações enquanto professo-
ras/es e percepções advindas desta experiência.

A narrativa da Giuliana, quem construiu a proposta:

A angústia dos meses que antecederam o XVI Enfople,


em setembro de 2020, diante de toda a insegurança em
relação aos riscos de contágio com o coronavírus, me
deixou muito triste e ao mesmo tempo indignada com o
negacionismo, a banalidade e desrespeito à vida, espe-
cialmente àquelas vidas que são invisíveis para aqueles
que tomam decisões. Uma necropolítica escancarada
aos olhos do mundo todo. A reação inicial foi a de desis-
tir. No entanto, ela não perdurou, pois sou mulher, mãe,
avó e professora: categorias que me dão força e coragem
para resistir! E para continuar fazendo o que eu já fazia,
só que agora sem encontros, sem abraços, sem lanches
comunitários, sem cafés à sombra do flamboyant, sem
crianças correndo pelo gramado da UEG. Escolhi se-
gurar nas mãos das minhas parceiras que lutavam bra-
vamente para não deixar nenhuma criança ser apagada

266
Uma experiência musical durante o ensino remoto emergencial

de suas aulas. Em uma de nossas reuniões de discussões


e sugestões de planejamento, decidimos que as videoau-
las curtas seriam adaptadas com atividades próprias de
cada nível, de cada escola, para cada professora. Cada
detalhe foi dialogado com as/os professoras/es de IC e

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


com as/os colaboradoras/es, já voluntários em outros
eventos, e, ao final, após a participação de diversas/os
parceiras/os na gravação e na edição das videoaulas, as
crianças receberam os vídeos (ou os links do YouTube)
no WhatsApp de seus familiares. As atividades foram
realizadas e, de acordo com o planejamento das crian-
ças de 7 a 9 anos, as crianças gravaram vídeos reprodu-
zindo as músicas que o teacher Otto cantou, inserindo
outros elementos, que estavam ao seu alcance em casa,
conforme orientação no vídeo. A devolutiva das mães (e
algumas avós) foi emocionante, e quando, alguns dias
depois do final do Enfople, recebi vídeos gravados com
simplicidade, muito carinho e cuidado, com acompa-
nhamento da família, no ambiente seguro de seus lares,
confirmei que nós, professoras/es somos realmente cons-
truídas/os nas trocas, nas vivências e nas experiências.
Como eu aprendi com aquelas crianças! Como eu apren-
di com a professora Cintia e seu arsenal de figurinhas de
motivação para as crianças, que compõem os repertórios
de multiletramentos, os quais farão parte das histórias
dessas crianças quando olharem para trás e relembra-
rem aquele difícil ano em que a escola invadiu suas ca-
sas. Aprendi a escutar a experiência de quem tem pisado
o chão da escola, se transformado em “tech-teacher”
e reinventado o sentido de educar em tempos inéditos.
Aprendi muito com os detalhes pensados pelo professor
Otto em suas experiências de mergulho na transdisci-

267
Uma experiência musical durante o ensino remoto emergencial

plinaridade e da religação dos saberes da área das lin-


guagens, que uniu a música ao inglês, o ritmo dos ins-
trumentos aos movimentos corporais e gestos usando as
línguas, em sintonia com a ideia de reexistir. À professo-
ra Cintia, ao professor Otto, e às/aos demais professora/
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

es e colaboradores/as minha gratidão por serem minha


inspiração.

Seguimos acreditando na “pureza das respostas das crianças” ape-


sar de tudo que temos vivenciado na educação. Como nos relembra
Gonzaguinha, “[h]á quem fale que a vida da gente é um nada no mun-
do / [é] uma gota, é um tempo / [q]ue nem dá um segundo”, e é nesse
sentido que retomamos a fala de Arendt, que nos convoca a “salvá-lo
[o mundo] da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e a vinda
dos novos e dos jovens”. É nesse tempo de vida em que nos inserimos:
um tempo incerto, finito, surpreendente. Em tempos de insegurança
quanto à nossa existência, escolhemos viver, nos alegrar junto com as
crianças na mais pura simplicidade em cantar e encantar.

“Quem canta seus males espanta!”, já diziam nossas avós!


Acrescentamos ainda que, criança que canta ressignifica seus sentidos
de aprendizagem, de aprender línguas, se reinventa na língua do outro,
e ensina suas/seu professoras/professor a reexistir. E ensina as mães e as
avós a valorizarem pequenas conquistas de fazer sentido nas cores em
inglês dos objetos da casa, da natureza, dos seus pets, do mundo que
nos cerca. A/o professora/professor que canta, espanta muito mais que
seus males. Cantar nos faz sentir vivas/os, nos emociona, nos remete a
memórias, nos relembra nossas histórias, nos alegra ao ver as crianças
felizes, se esforçando para cantar também. As possibilidades de intera-
ções das crianças (6 a 8 anos) das escolas municipais de Inhumas com
as videoaulas musicais promoveram aprendizagem, interação e alegria
para outras crianças que assistiram e se relacionaram por meio de mo-
vimentos corporais, e para as famílias que se motivaram nas atividades,

268
Uma experiência musical durante o ensino remoto emergencial

se divertiram muito além do léxico das cores em inglês, envolvendo a


construção de sentido por meio de linguagens diversas, encontrando
sentidos nos objetivos ao seu redor. Entretanto, a alegria maior foi a
nossa. Uma alegria que veio da indignação, da revolta, da vontade de
mudar, de alcançar todas as mãos, das professoras e das crianças. Nós

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


nos juntamos a Freire para dizer que “há uma relação entre a alegria ne-
cessária à atividade educativa e a esperança. A esperança de que profes-
sor e alunos juntos podemos aprender, ensinar, inquietar-nos, produzir
e juntos igualmente resistir aos obstáculos à nossa alegria” (FREIRE,
1996, p. 29).

A narrativa do Otto, quem criou o conteúdo:

Participar deste processo de gravação do vídeo, tendo a opor-


tunidade de estar em contato com crianças às quais eu real-
mente só conseguiria alcançar por meios tecnológicos e com
auxílio da internet, representou para mim uma experiência
única de fazer a diferença no momento em que as/os alunas/os
estão vivendo. A pandemia trouxe inúmeros desafios a serem
superados por professoras/es, que precisaram buscar em si e em
referências por inéditos viáveis (FREIRE, 1968; LIBERALI;
FUGA; DIEGUES; CARVALHO, 2020) a fim de se ins-
pirarem e seguirem dedicados ao ensino, transpondo barreiras
impostas pelo distanciamento. Porém, não podemos deixar de
lado o fato de que as crianças também estão frente a uma
situação ímpar, tendo de lidar com o novo e as diferenças im-
postas pelo contexto.

Como professor de inglês, assumo um papel que exige ações


que, de forma transdisciplinar, promovam o engajamento das/
os alunas/os e minimizem os impactos das mudanças nos mé-
todos para a oportunizar as interações e o contato das crianças
com as linguagens. Compreendendo a importância do lúdico

269
Uma experiência musical durante o ensino remoto emergencial

para que exista este engajamento, e as/os alunas/os se sintam


contemplados dentro de suas necessidades, a linguagem mu-
sical, os jogos e brincadeiras aparecem como instrumentos e
estratégias que podem auxiliar no processo de conexão da/o
aluna/o com o assunto a ser trabalhado, de modo a envolvê-
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

-la/o em uma ação comunicativa que estimule a utilização


do idioma de forma significativa, para que possam se divertir
dançando e cantando as canções.

A transdisciplinaridade se apresenta como um campo que vem


sendo discutido na linguística aplicada (ARCHANJO, 2011;
SCHEIFER, 2013). Neste texto, chamamos transdisciplinar
uma proposta de atividades que rompam as barreiras entre
disciplinas para abordar um problema, visando superar limi-
tações impostas por condições de desigualdade social ou cultu-
ral contextualizadas. Por meio do inglês e da linguagem musi-
cal, o objetivo da parceria com a UEG de Inhumas e o projeto
English for Kids era proporcionar às/aos alunas/os uma expe-
riência única, da qual pudessem se lembrar por muitos anos,
tanto pela ludicidade e pela diversão, quanto pela forma como
interagiram e se apropriaram do conhecimento trabalhado nos
vídeos e canções.

O feedback apresentado pelas crianças por meio dos vídeos ofe-


receu uma proximidade que eu não me imaginava que teria
no contexto pandêmico atual. Quando penso em minhas/meus
alunas/os, as/os quais eu costumava ver diariamente e agora
vejo por meio de fotos e vídeos, acaba sendo diferente de pensar
que pude fazer a diferença e proporcionar essas experiências
de aprendizagem para as crianças que estão em uma cidade
distante, porém, sorriram, cantaram, dançaram, aprenderam
e se divertiram junto a mim. Tais elementos tornaram a mi-
nha experiência única e valiosa, permitindo que eu visualize

270
Uma experiência musical durante o ensino remoto emergencial

um futuro em que, mesmo distantes, podemos estar conectados,


interagindo e aprendendo juntos.

A narrativa da Cintia, quem planejou e executou as atividades do


vídeo para o contexto remoto emergencial:

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


Em 2020, o cenário da Educação mundial mudou. Em meio
à pandemia de covid-19, tivemos que adaptar as nossas au-
las para o mundo virtual. Um dos vídeos preparados para o
English for Kids, projeto extensionista da UEG em parceria
com a Prefeitura Municipal de Inhumas-GO, foi gravado pelo
professor Otto Henrique. Através desse breve relato deixo aqui
a minha opinião sobre a videoaula, pontos positivos do vídeo,
reflexões sobre as aulas ministradas e sobre as devolutivas dos
alunos.

O vídeo que utilizamos contém uma pequena introdução da


professora Giuliana dizendo que a aula traz duas atividades
que envolvem música, números e cores. O professor inicia o ví-
deo cumprimentando as crianças e se apresentando, mesclan-
do os idiomas inglês e português, confirmando que as crianças
iriam aprender inglês e música, sendo que no primeiro mo-
mento do vídeo também aprenderiam matemática. Assim, na
primeira parte do vídeo o professor apresenta um pedacinho da
música Five Little Monkeys Jumping on the Bed, depois utili-
za um ukulele para tocar parte da música. A música contém
uma ordem descrente dos números de 5 a 1, porém, o professor
apresenta a parte do número 5 e a do 1. Na segunda parte do
vídeo, o professor traz chocalhos coloridos e apresenta outra
música, incentivando as crianças a procurarem objetos colo-
ridos e a cantarem que amam aquela cor. Essa parte do vídeo
ficou ótima para revisar as cores, apesar de terem aparecido
apenas 4 cores.

271
Uma experiência musical durante o ensino remoto emergencial

As videoaulas do professor Otto Henrique foram ministradas


do 1º ao 3º ano. Como eu queria pedir uma atividade so-
bre cada música do vídeo, elaborei duas aulas. Na primeira
aula, passei o vídeo, e ensinei o vocabulário da música Five
Little Monkeys Jumping on the Bed por meio de figurinhas
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

de WhatsApp. Repetimos as palavrinhas e expressões, em se-


guida, pedi para que as crianças gravassem um vídeo para o
professor Otto, cantando ou dançando a musiquinha. Assim,
algumas crianças mandaram vídeos cantando e outras dan-
çando ao som da música. Em outra oportunidade, passei no-
vamente o vídeo gravado pelo professor. Dessa vez foi mais
fácil pedir uma atividade. Apenas fiz uma revisão das cores,
também utilizando figurinhas de WhatsApp, em seguida, pedi
para que gravassem um vídeo para o professor Otto cantando
a musiquinha que aprenderam. Como a letra da música era
mais fácil e as crianças amam cores, recebemos um vídeo mais
lindo do que o outro. Algumas crianças mostraram brinquedos
coloridos, potinhos de tinta, lápis de cor, animais (de verda-
de), teve quem pintou o rosto, dançou, tocou instrumento etc.
Foi muito bom assistir a todos os vídeos e ver que as crianças
gostaram de cantar, dançar, se divertir com as videoaulas, bem
como tiveram o prazer de enviar os vídeos que seriam compar-
tilhados com os professores Otto e Giuliana.

Agradeço imensamente por esse projeto fazer parte da nossa


realidade. Em 2020, apesar de termos passado por situações
atípicas, gostei muito da abrangência do projeto English for
Kids, pois, todas as crianças da rede (do 1º ao 5º ano) pu-
deram participar, e quando ocorre na UEG, apesar de ser
maravilhoso, temos que selecionar uma turma de cada escola.
Entretanto, o projeto é lindo e conta com a participação de

272
Uma experiência musical durante o ensino remoto emergencial

muitas pessoas, que se empenham muito para colocar tantas


ideias excelentes em prática. É muito gratificante!

EXISTIMOS E RESISTIMOS

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


Chegamos ao final do nosso capítulo sem a intenção de respon-
der a qualquer questionamento, e já problematizando o que temos feito
em relação à educação linguística na infância para apresentar o mundo
tal como ele é para as crianças: desigual, injusto e carente de amores.
Quais atividades estamos desenvolvendo para construir repertórios lin-
guísticos que façam sentido para crianças em suas práticas sociais (brin-
car, cantar contar histórias, jogar games, negociar turnos) e lidar com
emoções para re-existir e re-inventar seus mundos? O que é, o que é a
vida senão as relações que construímos e que ensejam ressignificações?
Quantas memórias são banhadas nas músicas que ouvimos enquanto
crianças, jovens e adultos? Quantas mensagens de força e solidariedade,
de paz e indignação trazemos dentro de nós, construídas na musicalida-
de, nas artes, nos sons, nas danças de quando éramos crianças? Seguimos
acreditando na “pureza das respostas das crianças” apesar de tudo que
temos vivenciado na educação. Como nos relembra Gonzaguinha, “[h]
á quem fale que a vida da gente é um nada no mundo, [é] uma gota, é
um tempo, [q]ue nem dá um segundo”, e é nesse sentido que retoma-
mos a fala de Arendt, que nos convoca a “salvá-lo [o mundo] da ruína
que seria inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos
jovens”. É nesse tempo de vida onde nos inserimos: um tempo incerto,
finito, surpreendente. Em tempos de insegurança quanto à nossa exis-
tência, escolhemos viver, nos alegrar junto com as crianças na mais pura
simplicidade em cantar e encantar.

“Quem canta seus males espanta!”, já diziam nossas avós!


Acrescentamos ainda que, criança que canta ressignifica seus sentidos
de aprendizagem, de aprender línguas, se re-inventa na língua do outro,

273
Uma experiência musical durante o ensino remoto emergencial

e ensina suas/seu professoras/professor a re-existir. E ensina as mães e as


avós a valorizarem pequenas conquistas de fazer sentido nas cores em
inglês dos objetos da casa, da natureza, dos seus pets, do mundo que
nos cerca. O/a professor/a que canta espanta muito mais que seus ma-
les. Cantar nos faz sentir vivas/os, nos emociona, nos remete a memó-
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

rias, nos relembra nossas histórias, nos alegra ao ver as crianças felizes,
se esforçando para cantar também. As possibilidades de interações das
crianças (6 a 8 anos) das escolas municipais de Inhumas com as videoau-
las musicais promoveram aprendizagem, interação e alegria para outras
crianças que assistiram, e se relacionaram por meio de movimentos cor-
porais, e para as famílias que se motivaram nas atividades, se divertiram
muito além do léxico das cores em inglês, envolvendo a construção de
sentido por meio de linguagens diversas, encontrando sentidos nos ob-
jetivos ao seu redor. Entretanto, a alegria maior foi a nossa. Uma alegria
que veio da indignação, da revolta, da vontade de mudar, de alcançar
todas as mãos, das professoras e das crianças. Nós nos juntamos a Freire
para dizer que “há uma relação entre a alegria necessária à atividade
educativa e a esperança. A esperança de que professor e alunos juntos
podemos aprender, ensinar, inquietar-nos, produzir e juntos igualmen-
te resistir aos obstáculos à nossa alegria” (FREIRE, 1996, p. 29).

Agradecimentos: Agradecemos às professoras Marise Pires da


Silva e Carla Conti de Freitas, pela leitura crítica e amorosa, compar-
tilhando suas contribuições pontuais.

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277
Uma experiência musical durante o ensino remoto emergencial

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278
ME DEIXANDO LEVAR PELA DOCE BRINCADEIRA DO ENSINO DE INGLÊS PARA CRIANÇAS:

13.
ME DEIXANDO LEVAR PELA DOCE
BRINCADEIRA DO ENSINO DE

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


INGLÊS PARA CRIANÇAS:
VIVÊNCIAS NO ESPAÇO-TEMPO
INFANTIL

Thaís Blasio Martins | Universidade de São Paulo (USP)

D
efinir o que é língua não é um tema novo no campo de ensino-
-aprendizagem. No entanto, tendo-se em vista sua centralidade,
faz-se necessário de tempos em tempos o retorno a essa questão,
traçando caminhos entre os significados circulantes sobre língua
e as práticas docentes. Sendo assim, neste momento de maior aten-
ção ao ensino de inglês para crianças (EIC) no país (GARCIA, 2011;
VICENTIM, 2013), este capítulo visa apresentar alguns resultados pre-
liminares de minha pesquisa de doutorado, os quais indicam a necessi-
dade de novas discussões sobre a conceituação de língua quando se leva
em conta a prática de EIC. Vários autores já discutiram a relação entre
concepções de língua e sua importância para o ensino. Como mostram
Silva et al. (1986), a forma como vemos a língua define os caminhos
do que se entende por ser um aluno e um professor. Ainda, segundo
Travaglia (1997), acredito que ela altera a maneira com que se estrutura
o trabalho docente em termos de ensino, considerando essa questão tão
importante quanto a postura que se tem em relação à educação. Sobre

279
vivências no espaço-tempo infantil

este assunto, Geraldi (1997) pontua que toda e qualquer metodologia


de ensino articula uma opção política com os mecanismos utilizados
em sala. A adoção de uma opção política envolve uma teoria de com-
preensão da realidade, a qual inclui uma concepção de língua que dá
suporte ao “para quê” ensinamos o que ensinamos.
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

Dessa forma, entendo que cabe aos professores de línguas realizar


a reflexão constante sobre suas concepções, já que estas são significativas
para o ensino-aprendizagem de línguas, tendo-se em vista que os pres-
supostos teóricos linguísticos que suleiam a visão dos docentes e trazem
implicações para sua ação profissional. No entanto, circunscrever o ter-
mo língua é uma tarefa hercúlea, pois como afirma Kumaravadivelu
(2006, p. 3) definir a língua é uma maneira implícita ou explícita de
definir a própria humanidade, uma vez que ela “permeia todos os as-
pectos da experiência humana e cria, bem como reflete imagens dessa
experiência”. Diante dessa dificuldade, uma maneira possível para ex-
plicitar que língua é essa que habita minha sala junto com meus alunos
é olhar para minha prática docente e observar que compreensões de
língua dialogam com a minha realidade como professora de Inglês para
crianças. Para isso, lanço-me aqui numa empreitada autoetnográfica
(ELLIS; ADAMS; BOCHNER, 2011, p. 4), fazendo o entrelaçamento
entre minha prática docente presente e passada, alguns aportes teóricos
em Linguística Aplicada e a análise teórica através daquilo que Ellis,
Adams e Bochner (2011, p. 4) denominam layered accounts, ou relatos
em camadas. A proposta deste texto é realizar uma autoetnografia do
possível, na medida em ocorra uma mirada epistemológica que permi-
ta meu corpo, forjado pela rigidez do mundo acadêmico, desvelar sua
subjetividade. Aquela subjetividade que cabe em mim, que minha mão
consegue transbordar.

280
vivências no espaço-tempo infantil

DAS MUITAS LÍNGUAS QUE ME HABITAM

Para iniciar essa expedição, focalizo primeiro um momento pas-


sado, em uma das minhas primeiras aulas de 2013 para um primeiro
ano do ensino fundamental. Quando iniciei a docência junto a crianças
menores, minha maior aflição era o que eu deveria ensinar a elas. Eu

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


não conseguia elaborar um plano e me recusava a acatar as sugestões
que banalizavam o ensino para crianças, dizendo que bastava ensinar
as cores e os números. Isso pouco me informava sobre como ser profes-
sora de Inglês no sentido que eu estava acostumada. Eu gostava de ter
a oportunidade de falar do mundo e daquilo que era importante aos
alunos, das questões que emergiam em sala nas suas brechas (DUBOC,
2012) imprevistas. Nunca me esqueço de uma aula do 6º ano que co-
meçou com fast-food e hábitos alimentares e terminou numa longa con-
versa sobre o que era de fato um “ataque do coração”, com direito a
buscas no meu celular sobre o assunto, já que eu mesma precisava de
ajuda diante das dúvidas que surgiram.

No entanto, agora lidando com crianças tão pequenas e alijada


da linguagem escrita, da possibilidade de usar a torto e a direito textos
escritos em sala, ou ainda de me valer dos gêneros do discurso com os
quais estava acostumada, me sentia perdida em como começar com as
crianças que estavam se alfabetizando. Por isso, cedi à tentação e parti
do mote das saudações em minhas primeiras aulas com 12 salas de 1º
e 2º anos. Para dar corpo à aula tracei uma estratégia, afinal eu não
podia simplesmente entrar em sala e dizer: “good morning é bom dia
em português”. Para as traduções existe o Google Tradutor, uma vez
que o ensino-aprendizagem de línguas não é tradução ou estudo de sua
versão dicionarizada. Eu sabia que a língua é mais que um instrumento
de comunicação, e ter como objetivo ensinar as crianças a saudar tinha
um caráter demasiado funcional. Ainda que, como apontam Bishop e
Phillips (2006, p. 51), esse costume seja muitas vezes o ponto de partida
para responder à questão sobre o que é língua, definindo-a a partir de

281
vivências no espaço-tempo infantil

sua função. Esse caminho não me parecia profícuo, pois imprimia uma
linearidade e uma opacidade à língua que não refletiam a complexidade
dos processos que eu havia vivido em sala de aula anteriormente.

Pensar a língua como a pensam os teóricos da comunicação,


como afirma Geraldi (1997, p. 41), sendo um sistema organizado de
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

sinais que servem como meio de comunicação entre os indivíduos, o


lugar do mero encontro de emissores e receptores das informações con-
formadas por uma racionalidade superior, não retratava as dificuldades
para se explicar em palavras os fenômenos da vida (e por que não da
própria língua?). Quantas vezes como professora tive a certeza de estar
“comunicando” claramente aquilo que queria ou esperava para não ra-
ramente ser surpreendida por 35 carinhas cheias de dúvidas? A minha
racionalidade e aquele dito “domínio da língua” não me pareciam ser
suficientes para ser professora de línguas para crianças. Afinal, a língua
é mais que um mero suporte sonoro e escrito manipulado pelo espírito
da razão que vem conformar nela os significados.

Propus-me, então, a alinhar cada uma das saudações (good mor-


ning, good afternoon, good evening e good night) a eventos da vida das
crianças, acreditando que assim ultrapassava a visão da língua como
um instrumento de comunicação. Queria trazer o repertório da vida
das crianças para a sala, numa tentativa de dialogar com a sua cultura e
hábitos. Para isso, planejei em minha cabeça que diria que good morning
se usa ao acordar pela manhã para dar “oi” e faria uma lista das coisas
que as crianças fazem antes de vir para a escola, sendo eu a “escriba na
lousa”. Desconsiderei, contudo, naquele momento, que os alunos não
conseguiriam copiar a lista e que isto causaria uma enorme ansiedade
neles. Eu mesma não sabia disso para ser sincera. De maneira seme-
lhante, planejei associar good afternoon ao período da tarde e a chegada
à escola; good evening ao entardecer e à chegada dos pais para buscá-los
e, por fim, good night à noite e ao momento de dormir. Haveria tam-
bém a repetição das palavras para prática. Sem contar o desejo de tratar

282
vivências no espaço-tempo infantil

das palavras hi e goodbye, que seriam inseridas como forma de marcar


o início e o fim da aula. Tudo isso em duas aulas de 45 minutos. Ufa!

Entretanto, nem tive a oportunidade real de ver esse plano mi-


rabolante dar errado. Conforme a aula foi progredindo e eu falava algo
como “pela manhã quando vocês acordam” ou “aí chega à tarde, quando

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


vocês estão na escola”, as crianças me olhavam intrigadas. Eu até então
desavisada, comecei a desconfiar que algo se passava à margem da mi-
nha percepção. Foi quando finalmente fui questionada por uma delas:
“Mas teacher, agora já é tarde ou é de noite?”. O pior era que ainda que
fossem apenas três da tarde, o céu estava escuro em consequência das
chuvas fortes do verão. Meu semblante se transformou em uma grande
interrogação e a professora de ensino fundamental dos anos finais que
habitava em mim gritou silenciosamente: “Meu Deus, eles não sabem o
que é manhã, tarde e noite! Eles têm SEIS/SETE ANOS e não sabem!”.
Por óbvio, era eu que pouco sabia sobre eles, e o resultado deste dia
foi um debate longo (e animado) entre os alunos quanto a ser naquele
momento tarde ou noite, com algumas intervenções sem muita eficácia
da minha parte, tentando explicar a diferença entre o tempo do relógio
e o da natureza.

Deu-se assim, portanto, minha percepção de que mais que tra-


zer um vocabulário e forjar alguma relação com a vida dos alunos, eu
precisava conhecê-los melhor. A língua não poderia ser ensinada numa
perspectiva distante da vida de fato vivida por eles. Logo, o que se pas-
sou foi que ao tentar fugir de uma perspectiva da língua como instru-
mento de comunicação permaneci caindo na armadilha da língua como
estrutura. Concebi um plano de aula que arquitetou um encadeamento
supostamente harmônico, partindo dos sintagmas mais simples da sau-
dação, numa sequência cronológica, para num futuro tratar de algo
que eu ainda não sabia o que seria, mas por suposto deveria ser de
maior complexidade. O retrato de uma visão de língua que entende a
necessidade de uma progressão do mais simples para o mais complexo,

283
vivências no espaço-tempo infantil

a qual não leva em conta os participantes do processo de ensino-apren-


dizagem. Pensei indiretamente a língua como um código ou estrutura,
privilegiando a compreensão que a entende como um constructo com
fim em si mesmo, estruturado e normatizado pelas regras da gramáti-
ca (CAMARGO; MARSON; KONDO, 2016), excluindo, da mesma
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

maneira, a perspectiva que a vê como comunicação, algo de muito im-


portante: os alunos e o contexto. O ensino-aprendizagem não ocorre no
vazio. Acontece em um lugar e com alguém. Acredito que já não se faz
mais espaço para o professor que apresenta a língua em termos apenas
de seus artigos, pronomes, substantivos e verbos. É preciso relacionar
com a vida e com o mundo que existe.

Para minha própria sorte, respondi a todo esse imbróglio com


uma saída que permitiu uma aproximação das crianças e de suas neces-
sidades. Não houve da minha parte, naquele momento, toda essa refle-
xão sobre a visão de língua subjacente ao meu fazer e nem foi minha
decisão movida pelo desejo de me alinhar a uma concepção de língua
(e também de mundo) mais contemporânea. Apenas entendi que se
naquele contexto a passagem do tempo era uma questão que intrigava
aos alunos, este poderia ser o ponto de partida (ou minha tábua de
salvação). Dessa forma, iniciei uma série de intervenções para descobrir
com os alunos o que era o dia (day) e à noite (night). Comecei com dis-
cussões em que eles mesmo trouxeram hipóteses, desde as mais simples
como “Sol se esconde atrás da água” a “eles existem porque Deus quis”,
para depois explorar os conceitos de translação e rotação, e uns dois
mitos indígenas brasileiros sobre a origem do dia e da noite. Ao falar
de translação e rotação, fazia uma simulação em sala com os alunos em
que um deles era o sol e outro à terra. Meu celular garantia a iluminação
fornecida pelo sol e as partes do corpo possibilitavam certa localização
geográfica do Brasil e de outros países. Isso era muito mais divertido
(para mim e para eles) do que olhar os mapas ou usar o globo. A órbita

284
vivências no espaço-tempo infantil

elíptica da Terra era justificada pelo seu “problema de coluna” e, dessa


forma, os fenômenos naturais iam se entrelaçando às aulas de Inglês.

Da discussão do dia e noite, começamos a falar sobre a semana.


Os alunos sempre queriam saber quando eu voltaria e ao ouvirem “se-
mana que vem” me retrucavam com dúvidas sobre se esse “semana que

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


vem era amanhã”. Diante disso, o calendário pareceu ser uma forma
de articulação das aulas. Por conseguinte, dos dias partimos para falar
da semana (week), depois estudamos os dias da semana e vikings. Em
seguida, tratamos dos meses, descobrindo em que mês cada aluno havia
nascido. Acabamos por fazer gráficos de barras (ou melhor, de bolinhas
de crepom) para descobrir em qual mês mais alunos faziam aniversário.
Aprendemos o “happy birthday”. Em algum momento também discu-
timos porque fazia uma temperatura diferente no aniversário de cada
um (isso começou quando eu disse que sempre chovia no meu ani-
versário, em janeiro). Como resultado, tratamos das estações do ano e
desenhamos um boneco que melhor representava “nosso inverno”, que
não tem neve. Em meio a tudo isso, contávamos os dias da semana e os
meses, além de colorir várias atividades. Uma coisa foi levando à outra
e meu coração se acalmou. Eu não precisava ter o controle de tudo e
prescrever cada passo. As próprias crianças iam revelando seus interesses
e eu, como professora, fazia a mediação do ensino-aprendizagem de
inglês e pensava no melhor encadeamento. Estava aberta para discussão
e produção de significados que emergiam da curiosidade dos alunos.
Lembro-me como se fosse hoje quando, ao entrar na sala dos professo-
res, uma de minhas colegas de escola, uma professora polivalente, me
abordou. Começando com o clássico “você não morre mais”, ela disse
que comentava com uma outra professora que eu não era professora de
Inglês. Eu franzi a testa, pois aquilo me pareceu uma repreensão. Ela,
notando imediatamente minha expressão, reformulando sua fala: “Não,
é que você dá aula de tudo. Geografia e Ciências. Você não parece pro-

285
vivências no espaço-tempo infantil

fessora de Inglês. Só de Inglês”. Nós três rimos e eu ainda hoje não sei o
que é ser uma professora só de Inglês. Ainda bem.

AS LÍNGUAS QUE HABITAM AS SALAS


DE AULA E SEUS SUJEITOS
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

Como resultado de todo esse movimento, a língua que habitava


minha sala de aula havia se ressignificado. Mais distante do desejo da
comunicação e do conhecimento da estrutura, mais perto dos sujeitos
e de suas relações em sociedade e de como, nas suas relações com o
mundo e com os outros, dá-se a construção de suas identidades (HALL,
1998, p. 40). O foco era na produção em sala de possíveis entendi-
mentos sobre o mundo, na construção local junto com os alunos de
significados sobre suas realidades. A língua era agora prática social que
se materializava no discurso entre todos os indivíduos envolvidos no
processo, naquela dada realidade.

Como mostra Kumaravadivelu (2006), o entendimento de dis-


curso se relaciona de maneira geral à ideia de uso conectado e contex-
tualizado da língua, pensado em termos de um contexto e interlocu-
tores determinados (2006, p. 8). Dessa forma, a língua é entendida
em termos das interações dos indivíduos e suas relações pragmáticas
para a construção de significação, incluindo-se aí também a deter-
minação daquilo que pode e não pode ser dito ou deve ser silencia-
do (FOUCAULT, 1972 apud KUMARAVADIVELU, 2006, p. 13).
Segundo Travaglia (1997, p. 23), “nessa concepção, o que o indivíduo
faz ao usar a língua não é tão-somente traduzir e exteriorizar um pensa-
mento ou transmitir informações a outrem, mas sim realizar ações, agir,
atuar sobre o interlocutor (ouvinte/leitor)”. Portanto, uma perspectiva
discursiva de língua se distancia da visão sistêmica ou comunicacional
ao compreendê-la em constante movimento. Por tudo isso, ao retornar
a lecionar aos 1º e 2º anos em 2019, seis anos depois dessa primeira ex-

286
vivências no espaço-tempo infantil

periência, a professora que se apresentou diante dos alunos já era outra,


como não haveria de ser diferente. Tanto porque já tinha sua prática
como matéria de estudo do doutorado, mas sobretudo porque entendia
que o processo de ensino-aprendizagem da língua se daria no encontro
com os alunos e não em um planejamento para seus alunos, escrutinado

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


solitariamente por ela.

Sendo assim, a primeira aula de 2019 com os meus alunos dos


anos inicias do ensino fundamental desejava apenas a minha apresen-
tação e a deles, a realização de uma versão adaptada do corre-cotia na
qual os alunos podiam dizer seus nomes e cantar, e uma conversa sobre
os combinados em sala de aula. Cantando, os alunos repetiam a frase
“What’s your name?” e batiam palmas, correndo em torno da roda até
parar atrás de um colega que, após falar o nome, deveria pegar o aluno
que estava em pé antes que este conseguisse percorrer toda a roda e
tomar seu lugar. A repetição, que em 2013 aparecia em minha práti-
ca como ação descontextualizada, retorna em 2019 inserida dentro de
uma perspectiva que se integra à aula. Não que haja problemas em os
alunos repetirem as palavras em inglês. Eu, quando aluna de cursos de
inglês, participava sorridente de todas as práticas de drilling. O teacher
da escola de idiomas colocava a fita-cassete: “I like banana”, dizia a voz
macia da moça naquilo que me diziam ser o mais genuíno sotaque ame-
ricano. Em seguida, um homem de voz marcante também com o tal
sotaque americano – pois ou se aprendia inglês americano ou britânico
no final dos anos 1990 – dizia uma única palavra uma única vez, “pine-
apple”. E eu respondia ao cassete, sorridente com meu aparelho móvel
nos dentes: “I like pineapple”. Eu gostar de abacaxi é uma mera coinci-
dência dessa história, pois ninguém queria saber nada a meu respeito e,
ainda assim, eu adorava. Afinal, eu me tornei uma professora de Inglês,
ainda que tenha sido formada por práticas descontextualizadas. Agora,
pergunte-me sobre os as equações de segundo grau, os logaritmos, os
polinômios ou o balanceamento das equações químicas. Ah, esses não

287
vivências no espaço-tempo infantil

ganharam nenhum sorriso até hoje. Dessa forma, na medida que con-
sigo, sempre procuro integrar minhas propostas em sala a experiências
significativas dos alunos, desejando que meu fazer não faça do inglês os
“logaritmos e polinômios” deles no futuro.
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

AS LÍNGUAS QUE TRANSBORDAM A BOCA:


OCUPANDO O ESPAÇO

Contudo, dar a ver o caráter discursivo interacionista de mi-


nha prática como professora, pois como afirma Bakhtin “duas vozes
são o mínimo para que a vida aconteça” (BAKHTIN, 2013 apud SÃO
PEDRO, 2016, p. 41), ainda não parecia responder a algumas especifi-
cidades do ensino de inglês para crianças que me intrigavam. Ao ensinar
adolescentes e adultos, a palavra era meu maior instrumento. Daí vinha
meu medo das crianças, para as quais minhas “magias metalinguísticas”
poderiam não surtir efeito, pensava eu. É claro que eu também usava
vídeos e flashcards nas aulas com os mais velhos, mas preciso admitir
que eles eram recursos acessórios. Ainda mais na realidade da escola
pública em que tudo é complicado e difícil: limite de xerox, cabos que
somem na hora em que se precisa deles, sala de vídeo sempre cheia de
algum material que impede o uso apropriado, toda uma ladainha que
não convém tratar aqui, e que já se sabe.

Essa desconfiança de que havia mais a ser dito sobre a prática com
crianças estava baseada em experiências em sala com um princípio sim-
ples. Numa dessas minhas primeiras tentativas desajeitadas com os pe-
quenos, introduzi aquilo que até hoje chamo de maneira geral de “aque-
cimento do corpinho”. Por meio daquilo que sabia sobre Total Physical
Response ou Resposta Física Total, das aulas de metodologia de ensino
da universidade, eu propunha aos alunos palavras soltas, como verbos
de ação e palavras relacionadas a direção e sentido. Com movimentos
criados no início por mim unicamente, íamos aprendendo os signifi-

288
vivências no espaço-tempo infantil

cados de up, down, left e right. Pulávamos, abaixávamos, brincávamos


de “vivo ou morto”. Nos divertíamos, dávamos boas risadas e o ensino-
-aprendizagem acontecia sem precisar dizer que ele estava acontecendo.
Os alunos viviam em seus corpos as palavras. Essa ação tinha muito
êxito com as crianças, elas adoravam ficar em pé na sala e se movimentar

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


sem parar. Com o tempo, fui integrando o “aquecimento do corpinho”
aos assuntos da aula. Por exemplo, se eu estava falando das partes do
corpo, pedia a eles para tocarem partes diferentes do corpo. Depois
percebi que esse momento poderia se consolidar como um jogo ou uma
brincadeira, em que eu lançava um desafio físico (“touch your toes, mas
não pode dobrar os knees!”) ou cognitivo (dizia up, mas eu na verdade
me abaixava ou solicitava a eles que se agrupassem falando um número
em inglês enquanto mostrava com os dedos um número diferente).

Com isso, eu me dava conta de que quanto mais passava o tempo,


menos dependente eu era das palavras e mais eu usava meu corpo, o
corpo dos alunos, os sons, o espaço da sala e qualquer recurso semiótico
que eu tivesse à mão para fazê-los aprender. Ao mesmo tempo, para as
crianças, essas barreiras entre o português e o inglês me pareciam mui-
to mais fluidas do que para os alunos mais velhos, pois se eu me fazia
entender como professora, pouco importava qual a língua eu estava
usando. Por tudo isso, o que se dava é que eu aprendia sobre o ensino-
-aprendizagem de inglês para crianças no processo de ensino-aprendi-
zagem com as crianças.

Neste cenário, em que essas experiências reverberavam em mim,


tive contato com novas perspectivas de reflexão sobre a produção de sig-
nificações a partir de leitura no campo da Linguística Aplicada Critica,
as quais visavam dar maior atenção à fluidez dos processos, seus contex-
tos e suas vozes. Esses novos estudos ligavam-se à tentativa de descrição
da compreensão não daquilo que seria uma língua em si, mas sim da
variada gama de ações e interações que permitem a construção de sig-
nificados nos tempos presentes. Nesse âmbito, eram profícuos os estu-

289
vivências no espaço-tempo infantil

dos direcionados a pensar como acontece a negociação de significados


entre sujeitos com diferentes línguas no mundo globalizado, conectado
e desterritorializado. Como aponta Pennycook (2016, p. 201), esses
intentos resultaram em uma variada terminologia para sua explicação,
a saber: superdiversidade, translinguismo, prática translíngue, transglo-
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

sia, polylingual languaging, entre outros.

Diante dessa miríade terminológica, minha atenção recaiu na


prática translíngue, cujo diálogo parecia possível com os fenômenos
que observava em sala de aula. O translinguismo, de maneira diversa ao
multilinguismo, vê os recursos verbais de maneira sinérgica, interagin-
do uns com os outros para gerar significados para além das estruturas
linguísticas (CANAGARAJAH, 2018b, p. 1). Segundo Canagarajah
(2018b), a prática translíngue contribui de maneira significativa para
o entendimento do uso de recursos verbais em comunidades de práti-
ca. O autor trata do assunto a partir de seus estudos (2018a, 2018b)
sobre competência linguística de profissionais universitários da área de
STEM (ciências, tecnologia, engenharia e matemática), nos quais per-
cebeu a necessidade da proposição de novas formas de entendimento
da ideia de competência linguística para compreensão dos processos
de produção de significado pelos usuários multilíngues. Seus estudos
desvelam um modo de aquisição de língua e de competência que se
desvia dos modelos dominantes na Linguística Aplicada. Canagarajah
(2018a, p. 35) afirma que, em geral, se espera que falantes multilíngues,
antes de participarem em situações mais complexas, como a escrita de
artigos acadêmicos ou palestra em contextos profissionais, adquiram
competência básica na gramática da língua alvo. Mais do que isso, pen-
sa-se que as habilidades orais precedem a aquisição de habilidades mais
complexas, como a escrita profissional.

No entanto, a observação das práticas e as entrevistas feitas reve-


lam que os falantes multilíngues estudados por Canagarajah encontram
maior dificuldade nas interações orais e cotidianas fora de seu contexto

290
vivências no espaço-tempo infantil

profissional. Nota-se ainda que o quadro de suposições sobre a com-


petência linguística, citado anteriormente, ecoa a perspectiva da lin-
guística estruturalista sobre o campo da aquisição de línguas. A visão
tradicional, assevera Canagarajah (2018a, p. 35), o entende em termos
da acumulação linear durante o processo de aprendizagem, renegando

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


quaisquer elementos visuais e o uso da gestualidade corporal durante
a comunicação. De maneira oposta à visão estruturalista, para o autor
(2018a) é preciso situar a língua dentro de ecologias espaciais e mate-
riais e tratá-la como um entre vários recursos semióticos possíveis para
a produção de significado durante a comunicação.

Também a esse respeito, um trabalho anterior do autor em cola-


boração com Wurr (CANAGARAJAH; WURR, 2011, p. 1) já trazia
evidências de que “os pressupostos da linguística moderna refletem a
homogeneidade e monolingüismo e deixam de levar em conta as reali-
dades multilíngues em diversos contextos e comunidades” não situadas
no contexto ocidental. Canagarajah e Wurr descrevem que em muitas
populações sul-asiáticas a noção de comunidade se constrói em torno
da noção de espaço geográfico, e não de língua. Sendo assim, nessas co-
munidades, a norma vigente é a da diversidade linguística, e as pessoas,
como resultado, estão sempre dispostas à negociação de significações
em sua vida pública. Mais do que isso, os autores (CANAGARAJAH;
WURR, 2011) apontam que os integrantes desse tipo de comunidades
assumem que não encontrarão pessoas que falem sua mesma língua em
suas interações cotidianas e, diante deste fato, criam estados mentais
mais propícios para a negociação e estabelecimento de normas intersub-
jetivas coconstruídas com os falantes com quem estarão em interação.
Nesse processo de criação, os falantes multilíngues “não dependem ape-
nas do meio verbal para obter inteligibilidade. A comunicação envolve
o uso de uma ecologia de recursos” (CANAGARAJAH; WURR, 2011,
p. 3), como: os objetos na localidade, o contexto comunicativo, o pró-
prio corpo e pistas paralinguísticas. Portanto, a ideia de norma nesse

291
vivências no espaço-tempo infantil

cenário se atrela à situação de interação em que ela ocorre e sua eficiên-


cia quanto à inelegibilidade de comunicação torna-se transitória, não
sendo mais possível afirmar que uma norma criada em um contexto de
comunicação em cenários multilíngues, como os descritos, seja também
aplicável em outras interações entre falantes diversos.
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

Feitas as leituras de Canagarajah e Wurr, que não tratavam do


ensino de língua para crianças, e depois aproximando-me de García
(2009, 2014), pude perceber o quanto o conceito de prática translíngue,
aliado à ideia de língua enquanto discurso, situava-me como professora
de línguas e respondia a minhas desconfianças de que para se ensinar
línguas para crianças era necessário levar-se em conta algo mais que a
palavra. De certa forma, posso afirmar que meu medo inicial, aquele da
“professora de inglês dos anos finais do ensino fundamental” se justifi-
cava, era o medo de alguém que ainda não visualizava o potencial dos
recursos não verbais para o ensino-aprendizagem de inglês, embora já
os utilizasse antes. Todavia, a compreensão de que a competência lin-
guística de meus alunos poderia ser coconstruída sinergicamente, com a
mobilização de uma gama de recursos que transcendem a palavra escrita
ou dita, explicou muito sobre aquilo que venho fazendo. Possibilitou-
me aprender mais sobre mim mesma e, quiçá, conceber que acabei me
contaminando, no bom sentido, da fluidez dos meus alunos e me dei-
xando levar por essa doce brincadeira em que o ensino-aprendizagem
de língua não estava no livro ou no quadro, mas em tudo que fazíamos
em sala.

Uma vivência que pode ilustrar tal concepção pode ser observada
na renomeação da “flecha”, nome que atribui a divisória que faço nos
cadernos dos alunos desde que comecei em 2013 com os pequenos,
pelos novos alunos do 1º ano de 2020. Para que se faça mais claro,
quando comecei a dar aulas em 2013, concebi com as crianças a ideia
de divisão de uma parte do caderno da professora polivalente somente
para o Inglês. Eram as vinte páginas finais do caderno, as quais con-

292
vivências no espaço-tempo infantil

távamos juntos em inglês (uma tarefa que descobri homérica, pois a


crianças perdiam a contagem e eu, no começo, não tinha muito tato
ou não sabia instruí-las a usar o material escolar para segurar o caderno
não o deixando fechar). Depois de contadas as folhas, fazíamos uma do-
bradura simples, juntando as pontas da folha do caderno e escrevendo

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


a palavra English. Os alunos, em seguida, faziam desenhos para decorar
essa dobradura, a qual eu denominava de “flecha”, por sua aparência se
assemelhar à ponta de uma flecha. Enfim, este nome ficou para a folha
que dividia o caderno de inglês do caderno da professora polivalente.
Alguns alunos a chamaram de “pirâmide” nesse ínterim, mas o nome
não pegou. Dessa forma, eu costumeiramente chego a sala de aula e
solicito aos alunos que “abram a flecha para anotarmos o São Paulo”,
isto é, encontrem o lugar em que começa o caderno de inglês para es-
crevermos juntos o cabeçalho em inglês.

Todo esse preâmbulo foi necessário para contar uma situação,


que não narra uma subversão à norma gramatical, mas que descreve
uma ressignificação dessa flecha pelos alunos de hoje que, diferente-
mente dos alunos de 2013, têm muito mais acesso e desenvoltura com
a tecnologia. Na quinta aula deste ano, em uma das quatro salas de pri-
meiro que leciono, começamos a organizar o caderno. Mesmo procedi-
mento: confusão para contar até vinte, dificuldade para virar o caderno
e contar as páginas finais, pedidos para que eu fizesse a dobradura. Tudo
corria confusamente como nas demais salas. No entanto, ao finalizar a
dobradura e virarmos o papel para o lado sem as marcações, ou seja, o
lado liso da folha, uma das alunas colocou a mão sobre a dobradura e
a apertou levemente. Como ela estava sentada logo na segunda cadeira
de uma fileira próxima a mim, isso chamou minha atenção. Eu acabara
de dizer que iríamos sempre colocar na flecha “para começar a aula de
inglês”. Percebendo que eu a observava e havia parado de falar, algo
raro num 1º ano, a aluna repetiu o gesto levemente e disse: “Dar o play!
Parece um play, teacher”. Creio que ela relacionou a palavra começar

293
vivências no espaço-tempo infantil

com o formato da dobradura, pois em 2020 faz muito mais sentido


para ela ser aquela imagem formada no papel um “play” que a ponta
de uma flecha. Com isso, naquela sala não existiu mais flecha, pelo me-
nos até as aulas serem suspensas pela pandemia de covid-19 em março.
Naquele espaço, dávamos o “play no inglês” e os alunos estavam apren-
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

dendo a abrir o caderno na dobradura para começarmos a aula.

TECENDO LINGUAGENS NO ESPAÇO-TEMPO COM A CRIANÇAS

Nesse processo reflexivo, creio que aprendi que compreender


aquilo que faço dentro de uma prática translíngue permite, como pro-
põe Canagarajah (2018b, p. 3), situar a língua no espaço e tempo,
possibilitando aceitar a acomodação das imprevisibilidades e diversi-
dades que marcam o tempo atual. A língua não deve ser pensada como
pertencendo a um lugar ou comunidade, deve-se estar aberta para a
emergência de significados e gramática nas interações situadas. Logo,
em vez de tentar forjar maneiras de acomodar os repertórios de vida
dos meus alunos, buscando dar vazão a suas identidades locais de uma
maneira artificial, passa a ser de mais valia estar aberta para aquilo que
é precioso para eles. Ao desassociar as palavras de normas e significados
pré-construídos, abrindo espaço para considerar como os recursos ver-
bais ganham significado no tempo e espaço. Dar significado à espaciali-
dade permite “entender que cada prática é situada, holística, conectada,
mediada e ecológica, logo interligada a diversos recursos semióticos e
participantes” (CANAGARAJAH, 2018b, p. 3).

Por tudo isso, sinto que o meu ensinar inglês para crianças se dá
a partir de uma visão que entende língua como discurso, na qual todos
os interlocutores devem ser levados em conta em sua inteireza, dialo-
gando com seus contextos e com os significados que circulam em suas
culturas e sociedades. Ao mesmo tempo, entendo que a prática trans-
língue é profícua para explicar os processos de ensino-aprendizagem de

294
vivências no espaço-tempo infantil

língua com crianças que vivencio, pois ela responde à maneira como os
significados são construídos sinergicamente por meio do uso de uma
variada gama de recursos semióticos, visando sobretudo a inteligibili-
dade e a interação por meio da língua e das linguagens. Por fim, parece
ser interessante também para minha prática docente levar em conta

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


as perspectivas espaciais de reflexão sobre os significados. Vislumbro,
como aponta Canagarajah (2018b, p. 5), que os significados – nesta
perspectiva – se constroem em atividades situadas em contextos especí-
ficos e permitem a imersão de padrões e convenções que se configuram
como repertórios específicos, os quais têm sido chamados de repertórios
espaciais. Em contexto de ensino que não se começa a aula, mas se dá
o “play no inglês”, vale a pena estar de olhos voltados para o longe e
coração disposto para se reinventar sempre diante das cem linguagens
das crianças (EDWARDS; GANDINI; FORMAN, 1999).

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298
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS
AS CONTRIBUIÇÕES DA PSICANÁLISE PARA A FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE LÍNGUA INGLESA NO FUNDAMENTAL I

14.
AS CONTRIBUIÇÕES DA
PSICANÁLISE PARA A FORMAÇÃO

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


DE PROFESSORES DE LÍNGUA
INGLESA NO FUNDAMENTAL I

Caroline Martins dos Santos | Colégio Santo Antônio (Minas Gerais)

Kely Cristina Silva | Escola Municipal José Brasil Dias (Minas Gerais)

A
discussão acerca do ensino de língua inglesa para crianças tem
sido pauta recorrente nos estudos da Linguística Aplicada
(TONELLI, 2005; ROCHA, 2006, 2007; SANTOS, 2009),
visto que esse ensino abrange questões para além do discurso
educativo, reivindicando políticas linguísticas acerca do tema. Além
disso, vemos um crescimento da oferta do ensino da língua nos anos
iniciais do ensino fundamental, o que gera algumas questões sobre a
formação do professor para esse contexto específico. Trabalhos desen-
volvidos recentemente vêm fornecendo valiosas orientações para os pro-
fessores e, o que nos é mais caro, várias reflexões que fazem progredir a
discussão sobre o ensino de língua inglesa para crianças. Considerando
que a formação específica para professores de língua inglesa para crian-
ças, doravante LIC, ainda não está amplamente difundida, esses estudos
configuram-se como instrumentos motivadores para a ampliação das
reflexões e dos diálogos.

299
AS CONTRIBUIÇÕES DA PSICANÁLISE PARA A FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE LÍNGUA INGLESA NO FUNDAMENTAL I

Nesse caminho, alguns trabalhos (GIMENEZ; CRISTOVÃO,


2004; TONELLI, 2010; QUEIROZ; CARVALHO, 2010; SANTOS,
2011) podem ser considerados como rotas de direção para as inúmeras
possibilidades de discussões que têm surgido na área. Desse modo, para
além das questões de formação, que são urgentes e necessárias, perce-
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

bemos, por meio da nossa atuação no contexto do fundamental I e de


um trabalho contínuo de investigação na área, que há possibilidades de
interlocução do campo da LIC com os estudos da psicanálise.

Freud (1980) nos alerta que há três funções impossíveis: gover-


nar, analisar e educar. Vamos nos atentar a este último, o impossível de
educar. Para o autor, há um furo inerente na educação, não havendo,
portanto, uma completude no seu fazer. A impossibilidade desse fazer
docente se refere à não compreensão do todo; quanto ao ato de educar
alguém, há sempre um resto que o sujeito não é capaz de cumprir. Se
pensávamos a formação inicial do professor de Inglês como completa,
hoje estamos conscientes de que há sempre algo que nos falta, especi-
ficamente no tocante ao ensino de LIC. Tal reflexão reforça o nosso
compromisso com a formação de professores, seja ela a inicial ou a con-
tinuada, visto que acreditamos que das impossibilidades poderão advir
as possibilidades.

Trazemos, portanto, uma breve reflexão sobre a temática LIC a


partir de nossos referenciais teóricos e também através dos frutos de
uma pesquisa de mestrado que intencionava compreender os efeitos de
sentido da implantação do ensino de inglês nas escolas municipais de
Nova Lima (SILVA, 2019). Além disso, as implicações cotidianas com
o ensino da língua inglesa para crianças na nossa prática docente nos
estimulam a buscar o debate no campo.

Portanto, através de um recorte na interseção do ensino de lín-


guas e os estudos psicanalíticos, a teoria dos impossíveis, buscamos con-
tribuir para as discussões na formação de professores de língua inglesa,

300
AS CONTRIBUIÇÕES DA PSICANÁLISE PARA A FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE LÍNGUA INGLESA NO FUNDAMENTAL I

em especial os professores do ensino fundamental I. Na sequência, tra-


remos a teoria psicanalítica que nos oferece suporte para analisar esse
diálogo com a formação de professores de língua inglesa para crianças.

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


UM POSSÍVEL DIÁLOGO COM A PSICANÁLISE

É importante salientar o quão crescente é o número de pesquisas


em Linguística Aplicada que buscam interconexões com outras áreas
do conhecimento. É nesse contexto e buscando compor seu caráter
interdisciplinar e transdisciplinar que propomos um atravessamen-
to da psicanálise neste trabalho. Os estudos da Linguística Aplicada
têm ampliado seu diálogo com a educação, as ciências tecnológicas, as
ciências humanas, a filosofia, a psicologia, a psicanálise, a pedagogia,
o letramento, entre outras. No caso das contribuições da psicanálise
para a área da educação, essas se justificam uma vez que tratamos, na
formação docente, de sujeitos que são complexos e, como preconiza
Lacan (1985), munidos de um inconsciente estruturado como lingua-
gem. Isso faz desses sujeitos professores nem sempre racionais e donos
de suas ações. Por isso, considerar a psique quando se trata de profissio-
nais da educação é considerar também os impossíveis que cercarão suas
práticas docentes.

Conforme já mencionamos, Freud (1980) nos adverte que no


ofício de educar há uma impossibilidade, assim como em outros dois
ofícios: o de governar e analisar. Segundo o psicanalista, esse impossível
diz da inviabilidade de termos resultados completamente satisfatórios
na função na qual estamos empenhados. Pereira (2016, p. 204) diz que
“algo viria frustrar os planos de quem professa tais artes e o seu êxito fi-
nal guardaria sempre alguma aleatoriedade”, ou seja, há sempre um furo
inerente na formação ou na própria prática docente. Portanto, consi-
derar essa impossibilidade na função de educar é um possível caminho

301
AS CONTRIBUIÇÕES DA PSICANÁLISE PARA A FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE LÍNGUA INGLESA NO FUNDAMENTAL I

para o professor que entende a sala de aula como um espaço complexo


e espontâneo.

Pode haver, portanto, uma consequência ao sujeito que não lida


com a impossibilidade de educar: a impotência. Pereira (2013) discute
o fato de que essa impossibilidade da função docente chega à prática
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

escolar como sendo da ordem da impotência, o que desvirtua o con-


ceito inicial e muda os rumos da ação educacional. Em outras palavras,
uma vez vista a impossibilidade do educar como inerente à profissão, o
sujeito seria capaz de se esvaziar de um saber totalizante sobre o sujeito e
se colocaria em uma posição de não-saber. O autor também propõe que
os sujeitos docentes nessa posição tratem dos gestos educativos como
singulares, ou seja, que cada ato educacional tenha origem em um sa-
ber inconsciente, que é da ordem do indizível. Esse saber não está nos
manuais ou guias prescritivos, mas na singularidade daquele professor,
o que nos leva a pensar na criação de um estilo docente, produzido por
traços que singularizam esse profissional.

Dizer que o olhar na formação pela via da psicanálise tem como


objetivo possibilitar a construção de um estilo pelo sujeito é o mesmo
que fazer do processo analítico um caminho de busca de reconheci-
mento da sua singularidade pelo sujeito. Não buscamos um contexto
de processo analítico aqui, mas, de certa forma, observamos a questão
da produção de um estilo no que tange à posição do professor na escola.
Acreditamos que aquele que produz um estilo próprio no seu lugar do-
cente é capaz de lidar com a impossibilidade do ofício de educar.

Dessa forma, o docente, uma vez certo de que não há uma ver-
dade sobre o ato de educar, renunciaria a uma “arrogância narcisista”
(PEREIRA, 2013, p. 496) para admitir a impossibilidade de educar.
Pereira (2013, p. 486-487) enumera razões pelas quais os professores se
sentem impotentes:

302
AS CONTRIBUIÇÕES DA PSICANÁLISE PARA A FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE LÍNGUA INGLESA NO FUNDAMENTAL I

Um professor, na realidade, vive essa angústia sob


o signo da impotência ao estar diante das incer-
tezas de seu ato, das ambivalências, das pulsões,
das manifestações da sexualidade de si e do outro,
das invariantes diagnósticas, das irrupções da vio-

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


lência, da apatia e do desinteresse discentes, além
de estar diante de sujeitos em sua pura diferença,
tendo que exercitar o legítimo imperativo social de
fazê-los incluídos. 

Assim, entendemos que, a partir do momento em que o do-


cente é consciente da impossibilidade, ele se abre para buscar saídas,
e estas se dão de modo singular, dentro do seu contexto, driblando
a impotência. Singular porque a psicanálise trata o sujeito no caso a
caso, não havendo generalizações, e sim uma heterogeneidade. Dito
isso, nos questionamos: porque os conceitos de singularidade, impos-
sibilidade e não-saber nos são tão caros quando tratamos da formação
de professores de língua inglesa para crianças? Pois estamos diante de
um campo que escancara as suas impossibilidades e apresenta um Real
da educação que pode vir a angustiar docentes e, como consequência,
os fazer se sentir impotentes. Pela ausência de abordagens, metodologias
e discursos sobre esse ensino em suas formações iniciais e até mesmo
continuadas, esses profissionais podem vir a acreditar que não estão pre-
parados para tal função e a idealizar uma formação que entregue todo o
suporte que imaginam ser necessário para ensinar a língua.

Como já dissemos, para a psicanálise não há um todo que esse


profissional possa atingir quando se trata da educação. O todo é da
ordem do impossível. Por isso, defendemos que, apesar de a formação
inicial e continuada ser urgente e fundamental, ela não garante que ha-
verá ensino de fato, e que se apegar na totalidade da formação pode vir
a ser um caminho possível que cause no docente certa angústia.

303
AS CONTRIBUIÇÕES DA PSICANÁLISE PARA A FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE LÍNGUA INGLESA NO FUNDAMENTAL I

Qual seria então a tarefa da formação docente? Como conclui


Santos (2021) em sua tese sobre as singularidades de professoras de
língua inglesa, o papel da formação seria o de fazer com que o pro-
fessor possa se implicar na sua tarefa de educar e, assim, buscar saídas
que lhe são próprias; fruto de um estilo docente que diz de sua autoria
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

enquanto sujeito. Por isso os espaços de fala e escuta nesses programas


de formação docente são tão essenciais, como enfatizam os estudos de
Loures (2014), Sól (2014) e Silvestre (2017).

No Brasil, o processo de ampliação dos programas de formação


docente acompanhou o crescimento e a valorização das universidades
nos anos 1980. O profissional de língua estrangeira, em especial o de
língua inglesa, sofre influência desse processo com a obrigatoriedade
do ensino da língua nas escolas brasileiras e, posteriormente, com as
mudanças de perspectivas em relação à função da formação do profes-
sor. Se no início o papel da formação continuada era a de manter esse
professor de línguas a par das mais recentes metodologias, visto seu
caráter tecnicista, mais recentemente iniciam-se paradigmas reflexivos
em relação à docência.

Já no meio da década de 1980, os profissionais da educação pre-


senciaram o efeito de certos avanços em relação à ideia de formação,
como reporta o documento do Portal do MEC com orientações ge-
rais sobre a Rede Nacional de Formação Continuada de Professores de
Educação Básica (BRASIL, 2006, p. 11):

Os anos de 1980, no Brasil, representaram um mo-


vimento de busca de ruptura com o pensamento
tecnicista que predominava na área da educação
até então. No âmbito do movimento dos educa-
dores, o debate produziu e evidenciou concep-
ções sobre formação do professor, do profissional
da área de educação dos diversos campos do co-

304
AS CONTRIBUIÇÕES DA PSICANÁLISE PARA A FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE LÍNGUA INGLESA NO FUNDAMENTAL I

nhecimento, destacando o caráter sócio-histórico


dessa formação. [Evidenciou também] a necessi-
dade de formação de um profissional com ampla
compreensão da realidade de seu tempo, portador
de uma postura crítica e propositiva, que lhe per-

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


mitisse interferir na transformação das condições
da escola, da educação e da sociedade e com ela
contribuir. Com esta concepção emancipadora de
educação e formação, o movimento avançou no
sentido de buscar superar as dicotomias presentes
na formação acadêmica entre professores e espe-
cialistas, na pedagogia e nas licenciaturas, junto a
especialistas e generalistas, acompanhando a escola
na busca da democratização das relações de poder
em seu interior e na construção de novos projetos
coletivos.

Nesse caminho de ressignificação do docente e sua formação, en-


tendemos que o saber inconsciente aliado à formação inicial e conti-
nuada do professor de línguas contribui para uma prática docente que
considera o caráter criativo e singular do sujeito professor. Neste caso, a
formação docente auxilia em um processo no qual o professor se torna
cada vez mais ativo em seu próprio aprendizado e autor do seu próprio
percurso. Na tentativa de exemplificar o conceito de saída singular, tra-
zemos adiante um breve relato sobre a implantação do ensino de inglês
em escolas municipais de Nova Lima, investigado por Silva (2019) em
sua dissertação de mestrado.

UMA SAÍDA SINGULAR PARA O “IMPOSSÍVEL” DE EDUCAR

A pesquisa intitulada “Ensino de inglês no fundamental I de


Nova Lima, MG: acontecimento e efeitos de sentido nos dizeres dos

305
AS CONTRIBUIÇÕES DA PSICANÁLISE PARA A FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE LÍNGUA INGLESA NO FUNDAMENTAL I

professores” tinha como objetivo compreender os efeitos de sentido da


implantação do ensino de inglês nas escolas municipais dessa cidade. A
partir dos dizeres de cinco professores de inglês investigou-se como se
deu esse acontecimento e os deslocamentos subjetivos, os quais cada um
deles vivenciou. Tratamos de “saídas singulares” às buscas individuais de
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

cada professor frente às impossibilidades diárias da docência. A saída é


uma invenção própria do sujeito que se vale do seu saber inconsciente
para educar mesmo diante do imprevisível da educação.

O ensino de inglês no F1 da rede municipal de Nova Lima foi


inserido via concurso público no ano de 2003/2004, no projeto Tempo
Integral, para ampliar o acesso a uma língua estrangeira para as crianças
da rede pública. Este ensino já era ofertado em algumas escolas parti-
culares, institutos de idiomas e na rede estadual de ensino a partir da 5ª
série (hoje 6º ano).

Desde o início do século XIX, Nova Lima, cidade da Região


Metropolitana de Belo Horizonte, tem sua história atravessada pela
cultura inglesa. A segunda década de 1800 é caracterizada pela explora-
ção do ouro feita pela mineradora inglesa Saint John Del Rey Mining
Company. As influências inglesas ainda podem ser vistas na arquitetura,
nas festas locais e na culinária de Nova Lima. Trazemos esse fato his-
tórico uma vez que compreendemos como a inserção da língua inglesa
no currículo escolar tem uma valorização que antecede uma influência
midiática entre os alunos, como percebemos em outros contextos.

Assim, chamamos a implantação de acontecimento, porque ao


(re)visitar a memória discursiva desses sujeitos professores percebemos
que essa deixou marcas indeléveis em cada um, de modo singular, que
ressoaram também coletivamente. O sujeito, ao dizer-se novamente,
teria o passado atualizado no presente, produzindo novos efeitos.

Pêcheux concebe acontecimento como o ponto de encontro entre


uma atualidade e uma memória (PÊCHEUX, 2015, p. 16). O autor

306
AS CONTRIBUIÇÕES DA PSICANÁLISE PARA A FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE LÍNGUA INGLESA NO FUNDAMENTAL I

preconiza que o efeito de sentido está no entrelaçamento entre passado


e presente, porque os já-ditos, os pré-construídos, não cessam de encon-
trar o presente no seu objeto e o passado em sua prática; ou seja, por
meio da memória, eles irrompem na atualidade.

Nessa perspectiva, a psicanálise é convocada porque defende a

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


ideia de que “o dizer escapa sempre ao enunciador, pois é irrepresen-
tável” (AUTHIER-REVUZ, 1998, p. 17). O sujeito do qual falamos
é esse sujeito do inconsciente, ou seja, dividido, cingido, do qual, ao
dizer, não se obtém sua verdade; há sempre uma meia-verdade sobre ele.
O que buscamos compreender desse sujeito, portanto, é o que escapa a
esse enunciador, o que há de inconsciente em sua fala.

Os dizeres dos  professores constituem o corpus da pesquisa de


mestrado, tendo sido recolhidos por meio de entrevistas, semiestrutu-
radas e não estruturadas, e de uma conversação, além de um diário de
bordo (SILVA, 2019). A conversação é um dispositivo clínico elaborado
por Jacques Allain Miller nos anos 1990 e tem sido usada para além
de sua vertente puramente clínica, uma vez que visa promover espaços
de conversa e debate para se falar de situações e impasses vivenciados
por aqueles que estão presentes naquele momento. A conversação em
programas de formação continuada, como o Continuação Colaborativa
(Concol), na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), tem sido
importante instrumento de oferta da escuta a docentes que, muitas ve-
zes, não encontram outras oportunidades de falar de suas angústias e
frustrações docentes. Ao encontrarem pares e professores com quem se
identificam, esses podem ter contato com propostas pedagógicas que
os motivam a contar com suas próprias experiências e com seu saber
inconsciente.

Desse modo, verificou-se que os sujeitos professores, diante de


um “não saber” lidar com o ensino de inglês para crianças na faixa etária
do ensino fundamental I, buscaram saídas singulares para um evento

307
AS CONTRIBUIÇÕES DA PSICANÁLISE PARA A FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE LÍNGUA INGLESA NO FUNDAMENTAL I

singular, o projeto Tempo Integral nas escolas. Não havia prescrição,


diretrizes e modelos que respaldassem os profissionais naquela experiên-
cia inédita. Juntamente ao planejamento, a junção das vivências de cada
um deles, dentro e fora da sala de aula, se fez um acontecimento sin-
gular. Inferimos que esse movimento possa tê-los feito sair da posição
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

de impotentes e os conduzido para um ato criativo, de ressignificação


de suas práxis. Todos eram professores licenciados, mas nunca haviam
ensinado para crianças nessa faixa etária, sendo esse processo nomea-
do por alguns como um desafio. Somente a posteriori os professores
participantes se dão conta dos seus feitos e, porque não dizer, do seu
protagonismo docente.

Percebemos hoje que a implantação do ensino de língua inglesa


nas escolas municipais de Nova Lima foi um acontecimento bem-su-
cedido devido aos vários docentes que abriram mão de métodos e pro-
cessos prescritivos e contaram com um não-saber docente, um saber
inconsciente. Ao se abdicarem da segurança do presumível, buscaram
saídas que singularizaram todo um evento e puderam fazer algo ino-
vador. Talvez se esperassem alguma rigidez de métodos e legislação, o
ensino de inglês para aquelas crianças ainda não seria uma realidade.
Ao desenvolver este estudo, compreendemos que a trajetória desses
professores, a partir desse espaço no tempo e na história, produziu
sentidos novos que ressoaram nas representações deles sobre si e sobre
seu ensino.

Desse modo, fazer a escuta dos seus dizeres, propiciando o mo-


mento do “deixar falar sobre”, parece ter promovido movimentos, e
mesmo deslocamentos, no modo como cada um deles se percebe agora.
Um movimento de profissional concursado e contratado para ensinar
inglês para o de protagonistas da implantação do ensino de inglês na
rede municipal de Nova Lima.

308
AS CONTRIBUIÇÕES DA PSICANÁLISE PARA A FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE LÍNGUA INGLESA NO FUNDAMENTAL I

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Acreditamos que nossa implicação com o tema deste trabalho


surge na nossa prática escolar, tanto em sala de aula quanto nas in-
vestidas para trazer a discussão para o ambiente acadêmico, tão pouco
ocupado com o ensino fundamental. Além disso, propor um diálogo do

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


ensino de línguas com a psicanálise diz de uma interação muito rica, a
qual temos nos empenhado em investigar nos últimos anos. Propomos
pensar a educação a partir de pesquisadores e psicanalistas que viram
nela uma oportunidade de estudar a civilização e o sujeito em si. Por
isso, tratar do sujeito professor pela via do inconsciente é considerar que
quando falamos do professorado, primeiro estamos falando do caso a
caso, onde se faz um. Dentro dessa classe, há singularidades que devem
ser consideradas e estudadas, como assim buscamos fazer no evento.

A formação de professores tem sido oportunidade de urgentes


investigações e o espaço do evento Enfople foi um catalisador deste
trabalho que nos é tão caro. Poder contribuir com a formação docente
e ouvir pesquisadores que estão implicados com o mesmo campo é re-
vigorante e nos faz compreender que a necessidade de pesquisas é real.
Esperamos que este trabalho alcance profissionais e pesquisadores que
diariamente já buscam saídas para as impossibilidades diárias e possam,
assim, se sentirem legitimados a serem docentes singulares onde atuam.

Sabemos da necessidade da formação docente e é por isso que a


formação inicial e continuada para professores são momentos valiosos
de trocas que podem nos levar para além das teorias. Entendemos hoje
que a máxima, trazer o professor para o protagonismo de sua própria
prática, tornou-se uma urgência. É preciso ter um olhar mais humano
e afetuoso para o interior da sala de aula, lugar onde de fato a prática
acontece, lugar onde sujeitos se encontram e interagem, mesmo on-li-
ne, lugar onde se vivencia culturas em uma língua estrangeira, lugar de
construção diária de nossa identidade (BIESTA, 2017). Ressaltamos,

309
AS CONTRIBUIÇÕES DA PSICANÁLISE PARA A FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE LÍNGUA INGLESA NO FUNDAMENTAL I

enfim, o quanto é importante escutar a voz do professor nesses espaços


de formação, atentando a uma devida escuta que consiga compreender
os seus dizeres e que lhes confira uma docência autoral. 
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

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tecimento e efeitos de sentido nos dizeres dos professores. 2019. 97 f. Dissertação
(Mestrado em Linguística Aplicada) – Faculdade de Letras, Universidade Federal
de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2019.
SILVESTRE, Viviane P. V. Práticas problematizadoras e de(s)coloniais na formação de
professores/as de línguas: teorizações construídas em uma experiência com o Pibid. 2016.
239 f. Tese (Doutorado em Letras e linguística) – Faculdade de Letras, Universidade
Federal de Goiás, Goiânia, 2016.

311
AS CONTRIBUIÇÕES DA PSICANÁLISE PARA A FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE LÍNGUA INGLESA NO FUNDAMENTAL I

SÓL, Vanderlice Santos Andrade. Trajetórias de professores de inglês egressos de um


projeto de educação continuada: identidades em (des)construção. 2014. 259 f. Tese
(Doutorado em Linguistica Aplicada) – Faculdade de Letras, Universidade Federal de
Minas Gerais, Belo Horizonte, 2014.
TONELLI, Juliana Reichert Assunção. Histórias infantis no ensino da lín-
gua inglesa para crianças. 2005. 312 f. Dissertação (Mestrado em Estudos da
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

Linguagem) – Centro de Letras e Ciências Humanas, Universidade Estadual de


Londrina, Londrina, PR, 2005.
TONELLI, Juliana Reichert Assunção; CRISTOVÃO, Vera Lúcia Lopes. O pa-
pel dos cursos de Letras na formação de professores de inglês para crianças.
Calidoscópio, São Leopoldo, RS, v. 8, n. 1, p. 65-76, 2010.

312
IMPLEMENTAÇÃO DA EDUCAÇÃO LINGUÍSTICA NA INFÂNCIA NA ESCOLA PÚBLICA:

15.
IMPLEMENTAÇÃO DA EDUCAÇÃO
LINGUÍSTICA NA INFÂNCIA NA

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


ESCOLA PÚBLICA:
UMA HISTÓRIA SÓ
“PRA INGLÊS VER”?

Giuliana Castro Brossi | Universidade Estadual de Goiás Inhumas (UEG, Inhumas)

Juliana Reichert Assunção Tonelli | Universidade Estadual de Londrina (UEL)

Esses projetos que me fizeram ser uma pessoa assim


mais realizada, mais feliz na educação, porque eu
sempre tive um grande encantamento com a educa-
ção [...] sempre acreditei muito no individuo a ponto
de achar que cada um aprende em tempo e em ritmos
diferentes. Mas só que com oportunidades boas todos
conseguem aprender mais e com mais intensidade e
com mais qualidade e com mais quantidade de pes-
soas, aprendendo mais. Esse projeto foi um dos que
me fez sentir gente, sentir feliz né esse projeto [...].

(Entrevistada Maria, 2019)

A alegria não chega apenas no encontro do achado,


mas faz parte do processo da busca. E ensinar e

313
UMA HISTÓRIA SÓ“PRA INGLÊS VER”?

aprender não pode dar-se fora da procura, fora da


boniteza e da alegria.

(FREIRE, 1996, p. 53)


LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

ERA UMA VEZ... VAMOS TE CONTAR UMA HISTÓRIA!

O movimento de desdobramentos que apresentamos neste estudo


passa pelo momento em que Maria se encontra com a possibilidade de
procurar – e encontrar – “boniteza e alegria” em um processo indiscuti-
velmente político, relacionado à educação, no espaço-tempo de 2006, em
uma pequena cidade do interior de Goiás. A fala da ex-secretária de edu-
cação ilustra o ponto de partida da nossa narrativa, que conta a história
de como o ensino de inglês para/com crianças (doravante EIC), de 6 a 12
anos, em Inhumas, começou. Quando Paulo Freire (1996) nos lembra de
que “ensinar e aprender não pode dar-se fora da procura, fora da boniteza
e da alegria”, afirmamos que as decisões que reverberam em políticas lo-
cais para a educação pública também não, segundo a história que iremos
contar. No entanto, é preciso reconhecer que as políticas formalmente se
dão sem um mínimo “de procura, de boniteza e de alegria”, pois, geral-
mente, são pensadas por quem está fora do chão da escola.

De fato, você, já parou para pensar que pode ser exatamente esse
o motivo da perpetuação de tantas injustiças sociais nas políticas públi-
cas? Se as políticas fossem desenhadas por/para/com quem as utiliza,
poderíamos ter políticas linguísticas, públicas e educacionais menos
distantes das realidades (SHIROMA; MORAES; EVANGELISTA,
2000), e que atendessem às necessidades reais das crianças que precisam
do sistema de educação básica público no nosso país em 2021/2022.

Neste capítulo, apresentamos um recorte da pesquisa de dou-


torado em andamento que se situa na área da Linguística Aplicada

314
UMA HISTÓRIA SÓ“PRA INGLÊS VER”?

Crítica, no campo de Políticas Linguísticas, com foco na implemen-


tação do EIC na escola pública. Este trabalho coloca em pauta as po-
líticas públicas balizadas pelo neoliberalismo, construídas a partir de
decisões baseadas em interesses privados que determinam uma políti-
ca linguística que recomenda de forma arbitrária a língua inglesa (LI)

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


como a única língua adicional a ser ensinada nas escolas públicas, de
acordo com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (BRASIL,
2018). De forma contraditória, transfere para o cenário local a deci-
são quanto ao EIC. Para esse recorte, objetivamos discutir as políticas
insurgentes que emergem dos discursos de um grupo de professoras
(em atuação e licenciandas) de Inglês no âmbito da ação extensionista
English for Kids, da Universidade Estadual de Goiás (UEG), Inhumas.

Nesta pesquisa qualitativa crítica, enraizada na agenda de direitos


humanos (DENZIN, 2018), argumentamos que os movimentos locais
são moldados e moldam as configurações espaço-temporais “translo-
cais” (WEI, 2011; CANAGARAJAH, 2013). Eles também envolvem
experiências e histórias de pessoas diferentes, formadas em espaços-tem-
pos diferentes. Tudo isso em um emaranhado só, que promove trans-
formações sociais e políticas, e parte de esforços e ações localizadas das
professoras e demais envolvidas, em seus microcontextos.

Emprestamos a categoria da indissolubilidade do espaço-tempo


de Bakhtin (2011), por meio do conceito de cronotopo, o que nos
possibilitou o tratamento do material empírico sob as lentes das ações
provocadas pelos/nos cronotopos que movimentam a dinâmica da cria-
ção ideológica nos enunciados das participantes desta história, na dia-
logicidade de todo o dizer. Organizamos as discussões acerca da imple-
mentação das políticas vigentes no espaço-tempo que vai desde 2006
(implementação) a 2019 (construção do material empírico) pelas lentes
do cronotopo, e a heteroglossia dialogizada nas vozes de personagens
reais nesse enredo. Para este recorte, relatamos discussões que buscam
responder a seguinte pergunta: de que forma as praxiologias construídas

315
UMA HISTÓRIA SÓ“PRA INGLÊS VER”?

na ação extensionista English for Kids impactam as políticas locais para


o EIC em Inhumas?
Aproximamos a fala de Freire, “da boniteza e da alegria” de en-
sinar e aprender ao “encantamento pela educação” de Maria, uma das
“personagens” principais desta história. O movimento decisivo da ex-se-
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

cretária em 2006, ao estabelecer o ensino de inglês para os anos iniciais


do ensino fundamental I, tem reverberado em muitos movimentos ou-
tros que desestabilizam discursos, provocando ressignificações nas polí-
ticas locais, relacionadas tanto à educação linguística na infância quanto
às práticas formativas para professoras de línguas para crianças.
A discussão preliminar das interlocuções tecidas entre as vozes
na rede de professoras sugere estratégias, atalhos e ações que ressignifi-
cam as políticas linguísticas nas configurações espaço-temporais espe-
cíficas e que as reverberam, materializadas em documentos que agem
diretamente na educação de professoras de línguas. No panorama
atual de supervalorização da língua inglesa, do bilinguismo e do en-
sino bilíngue na infância para uma camada privilegiada da população
brasileira, trazemos à baila o caráter excludente das políticas públicas
no Brasil no que tange ao ensino de inglês para crianças nas escolas
públicas (MAGIOLO; TONELLI, 2020; AVILA; TONELLI, 2018;
TONELLI; AVILA, 2020), contando uma história de implementação,
de muitos percalços, dores, ingênuas alegrias (FREIRE, 1996) e espe-
ranças indignadas (CABNAL, 2010).
Para tanto, além das lentes teórico-metodológicas bakhtinianas,
as vozes das “personagens” que participam deste enredo dialogam com
autoras cujas pesquisas versam sobre a implementação do EIC em con-
textos diversos, além de nos basearmos nas interlocuções sobre políti-
cas públicas para a educação e políticas linguísticas (RAJAGOPALAN,
2013; PICCONI, 2016; BALL, 1994; RIZVI; LINGARD, 2010).
Optamos por desestabilizar o gênero acadêmico por meio (i) da dis-
cussão do material empírico com destaque para as vozes locais das pro-

316
UMA HISTÓRIA SÓ“PRA INGLÊS VER”?

fessoras participantes desta pesquisa, (ii) do uso de metáforas, poemas


e músicas que se entrelaçam à escrita acadêmica e (iii) da apresenta-
ção dos capítulos como atos de uma história narrada por diversas vozes
numa contínua heteroglossia dialogizada (BAKHTIN, 2011).

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


ESCOLHAS DAS LENTES TEÓRICO-METODOLÓGICAS
NA CONTAÇÃO DESTA HISTÓRIA

Estamos denominando rede de professoras o grupo de participan-


tes da ação extensionista English for Kids que se materializou nas vozes
deste estudo e vem se constituindo a cada nova ação proposta em for-
mato de extensão desde 2012, quando iniciamos uma parceria entre
as professoras de inglês do município e a UEG UnU Inhumas. Nessa
ação, alguns princípios foram suleadores das relações e da construção
do material empírico. As discussões pautadas pela ética, pela consciên-
cia da e pela tentativa de horizontalização das relações (BORELLI;
MASTRELLA-DE-ANDRADE; BROSSI, 2021) entre as participan-
tes caracterizaram os oito encontros gravados e transcritos, que cons-
troem parte do material empírico. Apesar de termos material empírico
de ordem secundária, recuperados de outras pesquisas, documentos
oficiais/legais (no âmbito do município, da UEG e das escolas da rede
municipal), neste recorte nossa argumentação está construída a partir
de excertos advindos dos encontros e das entrevistas.
O material empírico, que constitui as vozes (BAKHTIN, 2011)
que se enfrentam na arena discursiva da heteroglossia dialogizada – de
embates, dissensos, emoções, conscientizações e praxiologias –, para o es-
tudo doutoral foi construído em sua maior parte, dos oito encontros, de
90 minutos cada, realizados, gravados e transcritos entre outubro/2018
a dezembro/2019, em que as participantes conversavam sobre diversos
aspectos envolvidos na implementação do EIC. O conjunto do material
empírico construído (Figura 1) para a tese é composto de 160 páginas,

317
UMA HISTÓRIA SÓ“PRA INGLÊS VER”?

que representam 6.486 linhas de conversas entre 11 “personagens” mais


assíduas e participativas dos encontros. Além da heteroglossia dialogi-
zada da qual participamos com as personagens nesta história que con-
tamos, há três entrevistas realizadas pela pesquisadora em 2018 e 2021,
seguindo um roteiro em comum. Além disso, recuperamos o material
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

empírico construído durante o projeto de pesquisa (2012), cujos desdo-


bramentos advindos da implementação culminaram na parceria com as
professoras de Inglês de Inhumas, no espaço-tempo que discutiremos,
materializando os movimentos cronotópicos da implementação.
Figura 1 – Mapa da tese

Fonte: Elaborado pelas pesquisadoras (2020)

318
UMA HISTÓRIA SÓ“PRA INGLÊS VER”?

As discussões que trazemos para a tese são desenvolvidas a partir


das lentes que compõem a nossa complexa existência, não apenas como
pesquisadoras, mas com todas as demais identidades que nos consti-
tuem (mulher, filha, mãe, avó, tia, professora, amiga, entre outras), das
quais não consideramos possível nos desvencilhar e que chamamos nes-

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


te estudo de identidades cronotópicas, constituídas na inseparabilidade
do espaço-tempo. As percepções são também frutos inestimáveis das
discussões realizadas nos grupos de pesquisa Formação de Professores
e Ensino de Línguas para Crianças (Felice), Grupo de Estudos de
Formação de Professores de Línguas (Gefople) e Rede Cerrado de
Formação Crítica de Professoras de Línguas (Rede Cerrado) Felice,
Gefople e da Rede Cerrado, registrados na Capes e no CNPq, os quais
integramos.

A escolha pelo aparato teórico-metodológico bakhtiniano se deu


durante o caminhar da pesquisa qualitativa crítica, na busca por sus-
tentação teórica para discutir a infinidade e a complexidade das vo-
zes que se materializaram nos enunciados no decorrer da heteroglossia
dialogizada nos encontros. A leitura e o escrutínio inicial nas primei-
ras leituras do material que tínhamos nas mãos apontou inicialmente
para relações entre as (não)ações de 2018/2019, e as (não)escolhas de
2005/2006. Outro aspecto identificado foi que as reflexividades pos-
sibilitadas nos encontros de 2018 reverberaram em ações pontuais em
2019. Buscamos no autor subsídios nas categorias do cronotopo, bus-
cando uma discussão que constitui a heteroglossia dialogizada, no senti-
do de compreender as reverberações linguístico-discursivas atravessadas
pelo espaço-tempo (cronotopo), que nos possibilita ver “imagens se-
miotizadas de tempo e espaço” (SANTO, 2021, no prelo), provocadas
por acontecimentos dentro do percurso histórico da implementação do
EIC. Lançamos mão do conceito no qual o teórico russo aproxima as
categorias tempo e espaço – nos termos kantianos e de Einstein – ligado
à unidade interna de sentido contida na existência única em um lugar

319
UMA HISTÓRIA SÓ“PRA INGLÊS VER”?

“que é espaço-temporal, exotópico, histórico e prenhe de valores axio-


lógicos” (SANTO, 2021, no prelo). Adotamos, dessa forma, o conceito
de Bakhtin (2018) de cronotopo como sendo a “interligação essencial
das relações de espaço e tempo” tais como embrenhadas na literatura.
Nos importa “a expressão de inseparabilidade do espaço e do tempo (o
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

tempo como quarta dimensão do espaço)” (BAKHTIN, 2018, p. 11).

Nesta pesquisa, do ponto de vista de quem está criando o fio


condutor dos fatos reais da vida imitando a arte, na história da imple-
mentação do EIC em Inhumas, consideramos cada personagem, nessa
singularidade existencial, e as relações que ocorrem em um continuum
de uma longa história, onde se entrecruzam diversas outras histórias,
existências únicas: Maria, as professoras, a UEG, a nossa própria histó-
ria e muitas outras, importantes na compreensão dos movimentos das
políticas locais e estaduais. Narramos essas “histórias” contadas pelas
vozes discursivizadas que compõem a heteroglossia dialogizada das per-
sonagens que constituem a rede de professoras de EIC. A relação espa-
ço-tempo inseparável (cronotopo), da qual nos fala Bakhtin (2011),
age na construção do “enredo”, das tramas de ideias, das emoções, das
relações, ao mesmo tempo em que é modelado por ele. Além disso, a
organização dos movimentos espaço-temporais em cronotopos nos per-
mite discutir momentos que consideramos cruciais para a compreensão
da complexidade envolvida na implementação do EIC, e reverberações
nas esferas pessoal, acadêmica/profissional, social e política, assim como
nas políticas públicas locais. A heteroglossia dialogizada está relaciona-
da à tessitura entre diferentes vozes sociais em confronto no processo
de enunciação, no horizonte das relações dialógicas. As personagens
dessa(s) história(s) trazem incontáveis vozes que a(s) escrevem, numa
heteroglossia dialogizada. Concordamos com Bakhtin sobre “ecos e res-
sonâncias” de outras vozes nas nossas vozes, que nos constituem, pois:

Todo enunciado concreto é um elo na cadeia da

320
UMA HISTÓRIA SÓ“PRA INGLÊS VER”?

comunicação discursiva de um determinado cam-


po. Os próprios limites do enunciado são deter-
minados pela alternância dos sujeitos do discurso.
Os enunciados não são indiferentes entre si nem
se bastam cada um a si mesmos; uns conhecem os

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


outros e se refletem mutuamente uns nos outros.
Esses reflexos mútuos lhes determinam o caráter.
Cada enunciado é pleno de ecos e ressonâncias de
outros enunciados com os quais está ligado pela
identidade da esfera de comunicação discursiva
(BAKHTIN, 2011, p. 297).

Por acreditarmos que toda fala dialoga com falas que a precedem
e a sucedem, emprestamos as lentes bakhtinianas para discutir a com-
plexidade das vozes, dos discursos e dos enunciados, que constroem a
comunicação verbal, cheia de ecos que representam posições éticas e
ideológicas. As discussões serão construídas a partir das vozes das par-
ticipantes e a heteroglossia dialogizada (diálogo) cingida pelas nossas
lentes onto-epistemológicas, que buscamos principiar, tendo em mente
que “toda compreensão de fala viva, do enunciado vivo é de nature-
za ativamente responsiva [...] toda compreensão é prenhe de resposta”
(BAKHTIN, 2011, p. 271). Advertimos que os sentidos que trazemos
são muito particulares da nossa história, e que as ressignificações e os
deslocamentos continuam e se misturam a outras vozes, numa infinita
recriação de sentidos.

Ao usarmos o cronotopo como categoria de análise e organiza-


ção do material empírico, destacamos histórias a partir das quais pude-
mos inferir reverberações que provocam mudanças nas políticas locais.
Essas histórias, em cronotopos únicos que agem nas personagens, em
configurações espaço-temporais que constituem ideais, sonhos, dese-
jos relacionados à educação linguística e ao universo que a envolve, se
iniciam em meados de 2006, com a implementação da educação lin-

321
UMA HISTÓRIA SÓ“PRA INGLÊS VER”?

guística em inglês, e vai até 2021, quando da escrita final desta história.
Destacamos, na Figura 11, a representação das ações dos cronotopos
de onde partiram reverberações, que movimentam outros cronotopos
e são movimentados por eles, em um contínuo movimento entre as
personagens, que, ao agirem, constroem o(s) enredo(s) dessas diversas
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

histórias (acontecimentos) que se materializam em ações agentivas de


professoras, que reverberaram (e reverberam) na construção de políticas
linguísticas no município, na região e no cenário estadual.

A seguir apresentamos algumas das discussões tecidas a partir da


polifonia e dos discursos que permeiam os dizeres de algumas “perso-
nagens” desta história, à luz das premissas bakhtinianas do dialogismo
e do cronotopo, que nos servem de lentes teórico-metodológicas para
apresentar e discutir os movimentos que denominamos cronotópicos
da implementação. Os movimentos apresentados na Figura 11 indicam
a reverberação que apontamos como ações possibilitadas pelo encontro
de cronotopos que se entrecruzam, e podem continuar a desestabilizar
os discursos e as políticas como consequência desses movimentos.
Figura 2 – Movimentos cronotópicos da implementação

Fonte: Elaborado pelas pesquisadoras (2020).

322
UMA HISTÓRIA SÓ“PRA INGLÊS VER”?

MOVIMENTOS CRONOTÓPICOS DA IMPLEMENTAÇÃO:


MEMÓRIAS DE MARIA

Retomando a fala de Maria na epígrafe deste capítulo, apontamos


o “encantamento” da ex-secretária construído em cronotopos outros,
que se encontram e provocam movimentos que reverberam em 2021,

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


como desdobramentos nas políticas públicas municipais, e nas políticas
de educação para professoras de línguas no cenário estadual. Bakhtin
nos mostra que diversos cronotopos agem diretamente na construção
das personagens (quem são e quem elas se tornam), nos gêneros, além
dos rumos que a história vai tomar. Emprestamos estas lentes para com-
preender os movimentos na implementação, que ocorrem como pedri-
nhas jogadas em um lago, reverberando com movimentos mais leves,
e alcançando, mesmo que levemente, grande parte da superfície. Tais
como as reverberações da implementação, outras pedrinhas são jogadas,
construídas em outros cronotopos, e da mesma forma se movimentam
discursivamente.

O estabelecimento do ensino de inglês para os anos iniciais do en-


sino fundamental I (EFI) no município aparece na narrativa de Maria
a partir de diferentes cronotopos que constroem suas crenças e percep-
ções evidenciando uma preocupação com a exclusão de crianças “que
não têm oportunidade de estar pagando uma escola”. O cronotopo das
relações familiares, “a facilidade no Inglês que minha sobrinha de 3 ani-
nhos tinha”, e o cronotopo profissional, “na época que eu era diretora”,
agem como uma “força”, de acordo com as palavras de Maria, em 2019:

Eu sempre fiquei preocupada com a situação. Na


época que era diretora, era secretária da educação.
Trabalhar nesse projeto e não sabia a mesma quan-
tidade de facilidade no Inglês que minha sobrinha
de 3 aninhos tinha então eu achava isso incrível, a
facilidade de aprender. Então isso me forçou a dar

323
UMA HISTÓRIA SÓ“PRA INGLÊS VER”?

oportunidade para essas crianças que não têm opor-


tunidade de estar pagando uma escola como a Aim
do Daniel, não tem oportunidade de estar pagan-
do professor particular, então eu investi nessa situa-
ção (Entrevistada Maria, 2019).
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

No excerto da entrevista de Maria, podemos identificar as rela-


ções cronotópicas que se estabeleceram e que favoreceram a implemen-
tação do EIC em Inhumas: a professora que acreditava na educação, no
potencial de aprendizagem das crianças, ocupava a função de secretária,
que tinha poder decisório, apoiada pela gestão municipal. Maria posi-
ciona outros sujeitos, em outros espaços para embasar o seu argumento:
ao posicionar os outros como “aqueles que têm necessidades”, ela se
autoposiciona como aquela que “pode investir na situação”. Tudo isso
por meio da manipulação de tempos e espaços outros. Outros cronoto-
pos (da família, das conversas com Daniel, da experiência profissional)
influenciam a escolha por “investir nessa situação” e de oferecer “opor-
tunidades boas”, motivada pelo discurso de reconhecimento do papel
do inglês no cenário econômico e sociocultural. Esta decisão, tal como
uma pedrinha jogada nas águas, é marcada pelo verbo “forçar”, dando
pistas de que as experiências outras de Maria a forçaram a agir, e pos-
sibilitaram o anseio em “dar oportunidade para essas crianças que não
tem oportunidade de estar pagando uma escola”, que foi a escolha mais
ética no ponto de vista da professora Maria. Na sua fala, ela afirma que
“isso” – ver a facilidade de crianças para falar inglês e saber que as de
escola pública não tinham acesso – a forçou a decidir, o que, nesse caso,
percebemos como um dilema ético com o qual ela se deparou (EGIDO,
2021), optando assim, pelo desejo de justiça social, a primeira decisão
dessa política linguística.

Aprendemos com Rajagopalan (2013, p. 146) que “a questão


política esteve presente o tempo todo ao longo da história, influen-
ciando diretamente a tomada de decisões importantes no que tange

324
UMA HISTÓRIA SÓ“PRA INGLÊS VER”?

às políticas educacionais de forma geral”. Rizvi e Lingard (2010, p. 4)


emprestam de Dye (1992) uma definição que consideramos simples
quando afirmam que política é qualquer decisão (ou não) dos gover-
nos. Apesar de acreditar-se que as políticas existem em documentos
escritos, oficiais, prescritivos ou orientadores, os autores apontam que

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


a política é também o processo de produção, sua inserção nas discus-
sões atuais, a avaliação de seus resultados, entre outros. Nas palavras
deles, “[a] Política é tanto texto quanto ação, palavras e feitos, é aqui-
lo que é implementado assim como aquilo que se tem em mente”
(RIZVI; LINGARD, 2010, p. 5). É com base nesses autores que afir-
mamos que Maria inaugurou a política linguística de Inhumas em 2006,
com a decisão de oferecer às crianças a oportunidade de aprender inglês.
Ao olharmos por esse viés, consideramos a participação (ou não) das
professoras de Inglês na elaboração do Projeto Político-Pedagógico (do-
ravante PPP) da escola onde atuam, parte da política linguística. A con-
tribuição das professoras da UEG na elaboração do Projeto Pedagógico
do Curso (PPC) de Letras – Português e Inglês é também parte da
elaboração e implementação de políticas de educação de professoras de
línguas. O apoio da secretaria de educação em 2006 ao início do ensino
da LI nos anos iniciais é parte da política linguística, só percebida após
a heteroglossia dialogizada a partir de 2018.

Maria nos transporta de volta a 2006 (“foi/existisse”), em um


discurso em que relembra a parceria com outras pessoas (“nós/todo
mundo”) que também tinham o mesmo desejo que ela: de mais pes-
soas falando inglês, essa língua hegemônica que reforça a colonialidade
da língua (“Estados Unidos”) do opressor; de mais acesso ao inglês por
mais crianças, com base na crença de que crianças tem mais facilidade
para aprender e falar inglês (“3 aninhos”) – “foi possível devido as visões
nossas” e opiniões em comum, entremeadas em relações de poder:

[...] eu penso que [...] esse projeto foi possível devi-

325
UMA HISTÓRIA SÓ“PRA INGLÊS VER”?

do às visões nossas, de todos nós, porque se o prefeito


falasse: “Não te autorizo a fazer!”, se não existisse a
parceria com a escola do Daniel, se não existisse a
parceria com a Universidade dos Estados Unidos,
então eu penso que não é “EU” mas “NÓS”. Te-
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

nho a impressão que foi um casamento, foi uma


fusão de ideias boas, né que somos muito abençoa-
dos nessa fusão de ideias boas de todo mundo. Que
todo mundo querendo a mesma coisa né, todo
mundo buscando (Entrevistada Maria, 2019).

Nesse trecho da entrevista da professora Maria, notamos clara-


mente as diversas vozes que se materializam no seu discurso ao retratar
a decisão política da implementação: vozes da parceria, vozes que vão
além do “eu”, em uma analogia à união ao comparar com um casa-
mento, “uma fusão de ideias boas” de “todo mundo querendo a mesma
coisa”. Destacamos, assim, a percepção de decisão movida pelo interes-
se mútuo contido na parceria, no casamento, na fusão, que expressam
o envolvimento de diversos “personagens” que jogaram algumas “pe-
drinhas”, provocando os movimentos que destacamos nessa “história”
inhumense. Percebemos que Maria só conseguiu atuar porque outros
cronotopos foram alinhados: o cronotopo institucional (prefeito), a es-
cola do Daniel, o apoio da universidade norte-americana por intermé-
dio do Daniel. Ela então salta de uma escala pessoal/local (eu) para o
coletivo/global (nós). Mas esse salto não foi dado por ela apenas, mas
sim pelas condições cronotópicas percebidas quando voltamos nosso
olhar para a história, em um retorno ao passado pelas vozes de quem a
vivenciou.

Em outros municípios a educação linguística na infância por


meio do inglês ou outro idioma tornou-se realidade também, como nos
relatam Santos (2005), Sabadim (2006), Tanaca (2017), Avila (2019) e
Silva (2019), por exemplo. Nesses cenários onde não há obrigatoriedade

326
UMA HISTÓRIA SÓ“PRA INGLÊS VER”?

estabelecida em políticas públicas como os que citamos, qual é a histó-


ria por trás dessas iniciativas? O que motivou Maria a pensar no EIC em
2006, mesmo sem políticas públicas que contemplassem esse cenário?
Por outro lado, alguns municípios ofereceram essa “oportunidade”,
conforme nos lembra Maria. No que tange à educação linguística na in-

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


fância, no âmbito das escolas públicas, reiteramos as afirmações de Ball
(1994), que, de certa forma, nos indicam que os movimentos realizados
em sala de aula, nas decisões das professoras, na atuação das diretoras
que assumem os riscos de proverem suas alunas com o EIC, das secreta-
rias de educação municipais que decidem adotar o inglês como a língua
estrangeira moderna (LEM) recomendada do município – com ou sem
preparação para suas professoras – são ações que implementam uma
política linguística (mesmo que não planejada). Consideramos que as
decisões de Maria, pautadas nas suas crenças e experiências anteriores à
implementação, ratificam a afirmação de Ball (1994, p. 22) no sentido
de que “nós não ‘sabemos’ o que nós dizemos, nós ‘somos’ o que dize-
mos e fazemos”.

Apontamos que algumas das percepções da professora Maria sobre


as políticas públicas vão ao encontro do que Ball (1994) e Rizvi e Lingard
(2010) defendem: política é aquilo que é feito na prática, enunciado ou
não, pois a política, além de texto e ação, é o que se tem em mente a fazer.
A professora e ex-secretária que implementou o EIC na rede municipal
e realizou o concurso que admitiu professoras graduadas em Letras para
assumirem as aulas de Inglês, nos fala de quem ela é: uma mulher que,
ao reconhecer que há vantagens na aprendizagem de inglês na infância,
age em busca de oportunizar às crianças das escolas públicas a chance de
aprender com “facilidade” a língua que lhes desperta tanto encantamen-
to. No enunciado, podemos inferir que, em 2006, ao assumir a secreta-
ria municipal de educação, a agenda política daquela gestão era voltada
para ações e projetos que possibilitassem a inclusão das crianças da rede
pública ao ambiente altamente “elitista”, e que em tantos outros municí-

327
UMA HISTÓRIA SÓ“PRA INGLÊS VER”?

pios é fator excludente na educação básica (ROCHA, 2010; MAGIOLO;


TONELLI, 2020; TONELLI; AVILA, 2020).

Cientes do deslocamento de sentidos causado pelas diferenças


ideológicas e político-partidárias das alternâncias de governo, tanto a
nível federal quanto municipal, compreendemos no momento das dis-
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

cussões nos encontros que seria importante para todas nós, professoras
participantes das discussões na ação de extensão, conhecermos e nos
apropriarmos de documentos que organizam a oferta da educação lin-
guística nas escolas (ie.: PPP da escola, PPC de Letras, LDB, BNCC,
entre outros), de cuja elaboração temos o direito e o dever de participar.
Dessa forma, estabelecemos que uma prioridade em um dos encontros
seria conhecer os documentos, a engrenagem que movimenta as políti-
cas educacionais e de educação docente, e de fato colocar em prática o
que Ball (1994) chama de “estado de ‘tornar-se’”, que caracteriza uma
política. Atentas ao caráter local dessas representações, interpretadas e
reinterpretadas nos contextos onde são vistas como “norteadoras”, des-
tacamos as ideias insurgentes que emergiram nos encontros:

Giu: O que vocês acham do plano de aula do pro-


fessor? É um documento que direciona políticas?
Homem Aranha: Eu acho que sim sem dúvida...
Giu: Você acha... Por quê?
Homem Aranha: Porque...
Giu: Mas é um plano de aula...
Homem Aranha: E tem toda uma ideologia por
trás daquilo ali, por exemplo, o professor pode não
concordar com a ementa do curso e a liberdade que ele
tem de mostrar essa discordância é mudando a emen-
ta do seu plano de aula, o planejamento da nova [...]
semestral no caso agora né... (Encontro 3, 7 dez.
2018, grifo das autoras).

328
UMA HISTÓRIA SÓ“PRA INGLÊS VER”?

Compreendemos nessa conversa entre Giu e o Homem Aranha


que o plano de aula, a ementa do curso e o planejamento em si são, para
o professor licenciando, as materializações da política de fato que a pro-
fessora pode (e deve) levar para a sala de aula. Com essa fala forte de
que o plano de aula da professora direciona as políticas, contendo “uma

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


ideologia por trás daquilo ali”, retomamos Freire, que nos ensina que a
educação é um ato político, pois não acontece em momentos estanques:
a todo instante nos posicionamos, e em sala de aula, com as crianças, não
é diferente (KAWACHI-FURLAN; TONELLI, 2021; MALTA, 2019).
Nos aliamos a Mastrella-de-Andrade e Pessoa (2019) em nos envolver-
mos em uma “preparação despreparada”, no sentido da educação crítica
para professoras de línguas. Defendemos, assim como Borelli, Mastrella-
de-Andrade e Brossi (2021), que “os princípios do que vem a ser critici-
dade precisam estar na base das ações que propomos, indo desde a nossa
postura até as nossas relações com as pessoas e com os conhecimentos
que constroem a formação”. Juntamos nossas vozes da liberdade do pro-
fessor em questionar, discordar, mudar, às de Pessoa (2014), Brossi e Rosa-
da-Silva (2016), Silvestre (2017), Borelli (2018), Mastrella-de-Andrade
(2018), Mastrella-de-Andrade e Pessoa (2019) e Rosa-da-Silva (2021),
que defendem uma educação para professoras de línguas que seja crítica,
preocupada com o pensar. Paulo Freire (2020) nos ensina a pensar para
além dos muros da escola, para sobreviver às adversidades que afetam a
vida social/pessoal, desenvolvendo a capacidade de pensar por si, repen-
sando as opções diante da vida, assim como ensinar/aprender a pensar
valorizando outras dimensões da vida humana muito além das preocu-
pações com o conteúdo “das caixinhas” (FREITAS, no prelo). É preciso
pensar em ensinar para a vida, para a alteridade, para a justiça social, para
que as próximas gerações sejam abertas e atuem para ressignificarem o
sentido e o valor da vida, conforme nos diz Arendt:

A educação é o ponto em que decidimos se ama-


mos o mundo o bastante para assumirmos a res-

329
UMA HISTÓRIA SÓ“PRA INGLÊS VER”?

ponsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da


ruína que seria inevitável não fosse a renovação e a
vinda dos novos e dos jovens. A educação é, tam-
bém, onde decidimos se amamos nossas crianças
o bastante para não as expulsar de nosso mundo e
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

abandoná-las aos seus próprios recursos, e tampou-


co arrancar de suas mãos a oportunidade de em-
preender alguma coisa nova e imprevista para nós,
preparando-as em vez disso com antecedência para
a tarefa de renovar um mundo comum (ARENDT,
2013, p. 247).

A partir dessas discussões sobre a construção de políticas linguís-


ticas em um movimento que parte da crença pessoal na importância
do inglês, em cronotopos múltiplos na difícil relação de experiências
vividas, tensões e conflitos, sonhos e decepções, concordamos com
Arendt que nós, professoras, mulheres, mães, seres que vivem a gastura
de estar no Brasil em 2021, devemos decidir pautadas no amor que
sentimos pelo mundo, e na responsabilidade de renovação com/para/
das crianças. As decisões que tomamos, as atitudes e os movimentos que
provocamos com nossos discursos podem se materializar em práticas
sociais, situando

[...] tanto a política oficialmente autorizada quanto


aquela desenvolvida em contextos não oficiais como
práticas desenvolvidas por sujeitos situados tempo-
ralmente e espacialmente na história, no exercício
do delineamento, orientação correção, mudanças
nos modos pelas quais as pessoas agem, a fim de re-
configurar as relações entre indivíduos e sociedade
(PICONI, 2016, p. 14, grifo das autoras).

330
UMA HISTÓRIA SÓ“PRA INGLÊS VER”?

Compreendemos a “política oficialmente autorizada” da qual a


autora fala, como as leis e as diretrizes oficiais que organizam e direcio-
nam o EIC, e “aquela desenvolvida em contextos não oficiais”, como
as ações desenvolvidas em âmbito local, por exemplo, na rede de pro-
fessoras de Inglês em Inhumas. A partir das reflexões, das tensões e dos

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


embates travados na ação de extensão, alterações foram propostas na
matriz do curso de Letras – Português e Inglês, assim como no contexto
da rede municipal de educação básica. Nos dois casos, por meio dos
exemplos reais vivenciados no decorrer da presente pesquisa, percebe-
mos indícios de que a agência materializada nos discursos da rede gerou
mudanças, as quais podem promover reconfigurações nas relações, e
ainda transformações que Kalantzis e Cope (2008) denominam sistema
educacional transformador.

Tais relações entre as professoras da rede, entre as mulheres e


a sociedade, e na forma como a mulher se percebe como parte desta
engrenagem podem ser ressignificadas, promovendo o que definimos
aqui como movimentos insurgentes das/nas políticas linguísticas e de
educação das professoras de línguas. Compreendemos as políticas in-
surgentes como textos e discursos (implícitos um no outro), proces-
sos e resultados (BALL, 1994), que provocam uma mudança ecológica
(KENNEDY, 2013), que reverberam movimentos no sentido de ressig-
nificar o saber, o poder, e, acima de tudo, o reexistir (WALSH, 2017),
transformando as relações da comunidade com as escolas, das profes-
soras com as escolas e com a comunidade, e dessas com a universidade.
Ao ouvir atentamente as vozes das envolvidas na implementação e co-
nhecer saberes locais, até então silenciados/subalternizados, exercemos
a escuta sensível (SILVESTRE, 2017; REZENDE, 2017). Buscamos
evidenciar as relações entre as envolvidas na implementação de políti-
cas insurgentes no cenário inhumense, quais sejam: as professoras de
Inglês, a comunidade (mães e crianças), as escolas e a universidade.

331
UMA HISTÓRIA SÓ“PRA INGLÊS VER”?

É nesse movimento maior que mergulhamos para responder à


inquietação a qual propusemos neste recorte, que é de que forma as
praxiologias construídas na ação extensionista English for Kids impactam as
políticas locais para o EIC em Inhumas?, discutindo as reverberações que
se enredam e emaranham umas às outras, nos âmbitos pessoal, profis-
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

sional, acadêmico, social e político das envolvidas no contexto de EIC,


para além de suas configurações espaço-temporais locais.

Os deslocamentos alcançaram o município e a região, nas polí-


ticas públicas locais, por meio da autorização do EIC; e, a nível esta-
dual, nas possibilidades de educação docente por meio de alterações nas
políticas de educação de professoras de Inglês, nos cursos de Letras e
no estágio supervisionado de Inglês. O Quadro 2 elenca reverberações
provocadas pelos movimentos que se iniciam a partir da implementação
do EIC e que foram verbalizados pelas participantes deste estudo, que
provocaram a heteroglossia dialogizada das vozes, nas discussões da ação
extensionista e se relacionam às professoras de Inglês, às professoras li-
cenciandas, às gestoras, às famílias, e às crianças da rede municipal.
Quadro 1 – Reverberações provocadas pela implementação do EIC

Âmbito Pessoal Âmbito Profissional/acadêmico Âmbito Social/político


• Empoderamento nas • Empoderamento quanto ao coletivo • Leitura crítica de mundo
relações; profissional; com/para as crianças;
• Empatia e sororidade; • Conhecimento de novas • Projetos transdisciplina-
• Auto-reflexão e au- possibilidades; res que reverberam fora
toavaliação de seu • Parceria com licenciandas; dos muros (da escola e da
papel como sujeito na • Participação em eventos e cursos universidade);
comunidade. relacionados à práxis docente; • Alterações nos documentos
• Pertencimento de uma rede de regulamentadores dos cursos
compartilhamento. de licenciaturas e nos PPP
das escolas;
• Aproximação com a Secreta-
ria de Educação;
• Luta por reconhecimento da
profissionalização docente.

Fonte: Elaborado pelas pesquisadoras (2020).

332
UMA HISTÓRIA SÓ“PRA INGLÊS VER”?

SOBRE NOVAS HISTÓRIAS E


DESDOBRAMENTOS ANTES DE UM FINAL

A história que narramos aqui é contada numa heteroglossia dia-


logizada que não tem fim, visto que as nossas enunciações se encontram
na arena das subjetividades de quem a lê. As ações pontuais sugeridas,

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


gestadas e realizadas em movimentos cronotópicos que são atravessados
pela alegria, pelo “encantamento” entre/com/para as crianças77, reverbe-
ram em contínuos esforços para aproximar a prática social das crianças,
de sua existência, para as vivências no inglês, neste cenário translocal.
Esse espaço-tempo cingido por praxiologias de reexistência, como for-
ma de esperançar, nos sinaliza que estamos no caminho da defesa da
educação linguística na infância para além da aprendizagem de voca-
bulário descontextualizados da existência das crianças. É possível dizer
que a educação docente tem um “final”? Quem escreve a(s) história(s)
das vivências com as diferentes língu(a)gens na infância? As praxiologias
das professoras nos revelam possibilidades para o “final” desta história?
Ou seu início? Como pode terminar esta história da implementação de
Inglês para crianças em Inhumas? Ela vem sendo uma história “pra in-
glês ver”? Ou de fato há movimentos para concretizar políticas públicas
locais?

São muitas perguntas, cujas respostas estão espalhadas no cami-


nho que percorremos, para além deste estudo doutoral, na participação
consciente nesses cronotopos que são construídos e que constroem as
nossas identidades. Somos/Estamos personagens que atuam nesse en-
redo, que é construído à medida que acontece, com reverberações que
desestabilizam as vozes, os discursos e a heteroglossia dialogizada da
comunidade local e situada. Os movimentos que buscamos demons-
trar neste capítulo alcançam as políticas regionais, estaduais e nacionais,
77 A atividade realizada no XVI Enfople, com videoaulas musicais para todas as
crianças das escolas municipais, no ensino remoto emergencial, em setembro de
2020, por exemplo. Para mais veja Brossi, Ferreira e Manequinho (no prelo) no
e-book do evento.

333
UMA HISTÓRIA SÓ“PRA INGLÊS VER”?

com esforços de reconhecimento de que a (não)decisão por uma edu-


cação linguística na infância a nível nacional faz parte de um projeto
hegemônico de “valorização” de certas culturas e línguas para elites,
enquanto a maior parte das crianças das escolas públicas no país en-
contra-se às margens, excluídas de possibilidades de tornar-se bilíngue,
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

multilíngue ou plurilíngue.

Há muitas outras questões que nos provocam, e que não estão em


foco neste capítulo, e ainda que discutidos na tese, não temos a inten-
ção de esgotá-las, tampouco oferecer respostas fechadas. Nesse sentido,
nos causa inquietação o fato de grande parte dos municípios ofertarem
inglês como única língua adicional, em detrimento dos interesses cultu-
rais locais, como por exemplo as línguas de herança (i.e.: alemão, italia-
no, guarani, entre outras), ou de proximidade geográfica (i.e: espanhol).

Além disso, nos preocupa o caráter excludente da educação lin-


guística nas escolas públicas, já que muitos municípios não ofertam
línguas adicionais nos anos iniciais. Uma de nossas grandes inquietações
trata-se de que, em diversos municípios onde a educação linguística na
infância acontece, não há preocupação em possibilitar às professoras
subsídios que contemplem as particularidades dessa educação linguís-
tica. Nessa direção, a não adequação dos cursos de Letras a essa esfera é
uma realidade que, na nossa percepção, precisa ser endereçada, repensa-
da e ressignificada, já que entendemos que a educação (pluri-bi-multi)
linguística na infância não se trata de ensino de uma “disciplina” a mais
nos anos iniciais. Trata da construção de sentidos com/para as crianças
acerca de sua reexistência no mundo, e como nos recorda Arendt (2013,
p. 247), decidir se amamos o mundo e as crianças o suficiente para
prepará-las para “a oportunidade de empreender alguma coisa nova e
imprevista para nós”.

334
UMA HISTÓRIA SÓ“PRA INGLÊS VER”?

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ricular: silenciamento inocente ou omissão proposital? Revista X, Curitiba, v. 15,
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view/73340/41884. Acesso em: 4 set. 2021.

338
UMA HISTÓRIA SÓ“PRA INGLÊS VER”?

WALSH, Catherine. Pedagogías decoloniales: práticas insurgentes de resistir, (re)existir


e (re)vivir. Quito: Editora Abya-Yala, 2017. (Serie Pensamiento Decolonial).
WEI, Li. Moment analysis and translanguaging space: Discursive construction of
identities bymultilingual Chinese youth in Britain. Journal of Pragmatics, Amsterdam,
v. 43, n. 5, p. 1222-1235, Apr. 2011.

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

339
SUMÁRIO

340
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS
POSFÁCIO

POSFÁCIO

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


O TEMPO

Clarissa Menezes Jordão

C
omo seria bom se esses tempos já não o fossem mais. Inéditos. Se
não o fossem em sua selvageria, em sua exposição da crueldade
do ser humano diante de qualquer forma de existência, humana
ou não, em sua impossibilidade de negar o “lado mau da força”.
Tempos desumanos. Se fossem inéditos nesse sentido até que seria bom:
poderíamos acalentar a saudade de tempos em que não éramos assim,
em que éramos gentis, tínhamos compaixão, nos engajávamos, respei-
távamos, amávamos todos os seres. Mas nem isso. Sem revisionismo
histórico, sabemos que nunca fomos assim, que a coletividade tem sido
entendida como uma reunião de indivíduos mais do que como um es-
paço de com-vivência e amor ao próximo, à próxima, ae próxime. Será
que um conjunto de seres individuais, individualizados, individualistas,
fazem uma coletividade? Sei não.... suspeito, apenas: não.

Por outro lado, também seria bom que esses tempos inéditos não
fossem inéditos em solidariedade, em direitos humanos, em justiça so-
cial, porque se assim o fossem é porque não o teriam sido antes – e tal-
vez não viessem a ser depois. Então, deixo de lado a linearidade do tem-
po do relógio. Penso no tempo fluido, tempo de movimento, tempo de

341
POSFÁCIO

Exú78 – tempo do que é necessário (FLORES, 2020), tempo de Kairós79


e não de Chronos. Tempo em que saberes e sabedorias se entrecruzam,
coabitam numa tensa dialogia, ecologicamente (SOUSA SANTOS,
2002). Tempos inéditos que nos impelem violentamente a ver a diversi-
dade e reagir a ela: acolhendo-a em seu movimento, nas possibilidades
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

dos ventos que ela nos traz; ou negando-a, tentando silenciá-la, subli-
mando-a no medo da diferença, na insegurança diante do novo. Mas
tem sido cada vez mais difícil fingir que o mundo é homogêneo, que o
tempo é linear, que os sujeitos um dia serão maduros, fixos, constan-
tes, previsíveis. Não dá mais para evitar olhar para o mundo de Exu e
Kairós, das histórias que não são únicas, dos vendavais.

Mas e as linguagens em tempos inéditos, com seus Desafios praxio-


lógicos da formação de professoras/es de línguas do título desse li-

78 Exu é uma entidade/força da cosmologia afro-brasileira, especialmente da Um-


banda e do Candomblé. Existem várias representações e entendimentos de Exu,
fazendo-o um orixá bastante complexo. Segundo Rufino (2018, s/p), “Exu entra
na jogada não como signo restrito ao repertório cultural do que se entende en-
quanto religiões afro-brasileiras, mas sim como princípio explicativo de mun-
do. As pessoas praticam Exu enquanto sabedoria. Exu é princípio cosmológico,
condição existencial para o pensamento. [....] Quando se está atento, é possível
romper uma ideia muito cara para o ser ocidental que é a do indivíduo. Exu
reivindica e reconhece a condição de existência individualizada – porque afinal
todo mundo tem seu corpo, suas questões e suas potências – mas isso só acontece
enquanto possibilidade de inscrição no mundo, quando você tem relação com o
outro.”
79 “Kairós, o filho mais moço de Zeus com a deusa da fortuna e da prosperidade,
Tyche, era retratado com a figura de um jovem ligeiro que andava nú, tinha
asas nos tornozelos e nos ombros e trazia apenas um penacho de cabelos na tes-
ta – esta condição lhe atribuía um sentido figurativo quanto ao seu significado
de tempo enquanto oportunidade, ao permitir-se ser pego somente pela frente
segurando-lhe pelo topete pois, quando ele passava ligeiro, já não seria mais
possível agarrá-lo por trás. Era considerado o deus do tempo oportuno, e os pita-
góricos o qualificavam como a própria oportunidade. Kairós simboliza o tempo
não-linear, ou seja, o melhor instante do presente, este que nos possibilita afastar
o caos e abraçar a felicidade” (VOLLMER, 2020, p. 3)

342
POSFÁCIO

vro, o que têm a ver com essa divagação toda sobre o ineditismo
e a não-linearidade do tempo? O que esse posfácio a ver com
Exu e Kairós? O que esse livro tem a ver com ventania? Talvez
um trecho de uma entrevista concedida por Luiz Rufino (2018,
s/p) sobre a função epistemológica de Exu nos ajude a construir

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


algumas relações:

Exu serve também para se pensar a vida e o mundo


como projeto inacabado, que pode se constituir en-
quanto outra possibilidade. Ele traz uma ideia que
acho fundamental para nós brasileiros, enquanto
paridos dessa tragédia do colonialismo: é preciso se
reconstituir dos cacos e do desmantelamento.

Esses tempos inéditos estão nos desmantelando, nos deprimin-


do, nos imobilizando, nos desanimando. Temos dificuldade de
olhar para o cerrado, de valorizar as praxiologias que constroem
possibilidades para ontem, hoje e amanhã. Ou melhor, para
“o tempo do que é necessário”, como vimos acima com Flores
(2020).

Mas esse livro que posfácio (o corretor não queria permitir grafar
sem o acento, tive que insistir para o substantivo virar verbo...) mostra a
importância do local e a relevância da colaboração, de um coletivo que
reconhece os corpos marcados e cruzados em movimento na gira cerra-
deira. Esse livro é movimento, é vento, é vida e, como Exu, “potência
que nos possibilita pensar as corporeidades, as enunciações na reivindi-
cação das identidades na diáspora e as suas produções de presenças que
transgridem as dimensões da colonialidade” (RUFINO, 2016, p.57).
Como já se viu agora, quando se chega ao fim da leitura do livro, os
textos aqui publicados nos desafiam, problematizando criticamente os
assuntos que abordam, falando sobre meio-ambiente, escola, pande-
mia, livro didático, inclusão, ética, narrativa, autoetnografia, música,

343
POSFÁCIO

encantamento, psicanálise. Falam sobre a vida das pessoas que ensinam,


das que aprendem, das que se educam. Vida não é coisa simples de se
abordar. A leitura desses textos não é simples de fazer: demanda aten-
ção, cuidado, engajamento. Mas quem está lendo essa página já perce-
beu isso. Nada de chover no molhado, então.
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

Vamos apenas lembrar que o “gostinho de quero mais” que senti-


mos agora, ao final da leitura desse livro, é uma manifestação do espe-
rançar freireano. Freire (2001, p. 110-111) escreveu:

É preciso ter esperança, mas esperança do verbo


esperançar; porque tem gente que tem esperança
do verbo esperar. E esperança do verbo esperar
não é esperança, é espera. Esperançar é se levantar,
esperançar é ir atrás, esperançar é construir, espe-
rançar é não desistir! Esperançar é levar adiante,
esperançar é juntar-se com outros para fazer de ou-
tro modo.

Estou agora querendo (e podendo): quero ler, aprender e de-


saprender ainda mais. Espero – levo adiante com Kairós, Kindembo e
Exú, meus quereres de arte, imaginação, bagunça, caos, ventania, rede-
moinho. Quero viver no tempo improdutivo. Aquele do cansaço com
negatividade (HUN, 2015), com des-canso: des-cansado.

Li, e pretendo continuar lendo. Esse livro não acabou – nem


literalmente (temos um volume 2), nem metaforicamente, pois vamos
levar em nós o que (des)aprendemos na leitura dos textos que o com-
põem. Que nossos orixás (afro-brasileiros e gregos) nos abençoem e aju-
dem a esperançarmos sempre, afinal, “o contrário da vida não é a morte,
o contrário da vida é o desencanto” (SIMAS e RUFINO, 2020, p. 10).

344
POSFÁCIO

REFERÊNCIAS
FLORES, Luiza Dias. Alargar Bordas: entre o saber e o conhecer. Revista Mundaú,
Maceió, n. 9, p. 84-104, 2020.
FREIRE, Paulo. Pedagogia dos Sonhos Possíveis. São Paulo: UNESP, 2001.
HAN, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


RUFINO, Luiz. Pedagogia das Encruzilhadas: uma perspectiva afro-brasileira para a
educação. Portal Aprendiz, São Paulo, 04 dez. 2018. Entrevista concedida a Cecília
Garcia. Disponível em: https://educacaointegral.org.br/reportagens/pedagogia-das-
-encruzilhadas-uma-perspectiva-afro-brasileira-para-educacao/. Acesso em: 4 set.
2021.
RUFINO, Luiz. Pedagogia das Encruzilhadas. Rio de Janeiro: Mórula Editorial, 2019.
SIMAS, Luiz Antonio; RUFINO, Luiz. Encantamento: Sobre Política de Vida. Rio de
Janeiro: Mórula Editorial, 2020.
SOUSA SANTOS, Boaventura. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia
das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, v. 63, p. 237-280, 2002.
VOLLMER, Lara Cristina. De Chronos a Kairós: uma reflexão sobre tempo e sub-
jetividade pós-moderna para além da mídia e do consumo. Trabalho apresentado
em comunicação oral no 43º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação e
no XX Encontro dos Grupos de Pesquisas em Comunicação Economia Política da
Informação, 2020, Salvador. p. 1-15.

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AUTORAS E AUTORES

AUTORAS E AUTORES

Alex Alves Egido é estudante de doutorado no


LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

Programa de Pós-Graduação em Estudos da


Linguagem (PPGEL) da Universidade Estadual
de Londrina (UEL), mestre pelo mesmo
programa e licenciado em Letras – Inglês
pelo Departamento de Letras Estrangeiras
Modernas da UEL, onde atua como professor
colaborado. Foi bolsista de iniciação científica
nos períodos de 2014 a 2015 e de 2015 a 2016, e
estudante do Kaplan International Colleges, CA, EUA,
em julho 2015. Seus interesses de pesquisa centram-se em: ética no ensino e na
pesquisa, estudos críticos, metodologia de pesquisa qualitativa e estudos discur-
sivos de orientação foucaultiana. E-mail: egido@uel.br.

Arielle Curado Andrade Bueno é graduada em Design


de Moda pela Universo (2010) e em Pedagogia
pela Faculdade Padrão (2016), especialista
em Arte Educação Intermidiática Digital
pela Escola de Música e Artes Cênicas da
Universidade Federal de Goiás (Emac/UFG)
(2016) e em Ensino On-line: Metodologias
Ativas e Educacionais pela UniAraguaia
(2021). É membro do Grupo de Estudos em
EaD (Gead/UFG) e do Grupo de Estudos e Pesquisa
sobre Formação de Professores de Línguas Estrangeiras (Gefople/UEG). Atua
como pedagoga no município de Bela Vista de Goiás, no ensino fundamental e
educação infantil. E-mail: prof.ariellicurado@gmail.com.

346
AUTORAS E AUTORES

Barbra Sabota é docente na Universidade Estadual de


Goiás (UEG), em Anápolis, Goiás. Licenciada
em Letras – Português e Inglês pela Faculdade
de Letras da Universidade Federal de Goiás
(UFG), em Goiânia, obteve seus títulos de

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


mestre e doutora em Letras e Linguística
pela UFG. Sua experiência profissional
abrange o ensino fundamental, médio e supe-
rior, em escolas particulares, públicas e de idio-
mas. Na graduação, atua nas áreas de Língua Inglesa e
Prática de Ensino da Língua Inglesa e Estágio Supervisionado, em atividades
que envolvem e integram ensino, pesquisa e extensão. Na pós-graduação, atua
como professora de Processos Pedagógicos, Mediação e Tecnologias Digitais e
desenvolve e orienta estudos sobre Letramentos Multimodais e Letramentos
Críticos sob as premissas da educação linguística crítico-decolonial. É vice-
-líder do grupo de pesquisa Perspectivas Críticas em Educação Linguística,
Letramentos e Discurso, cadastrado no CNPq. E-mail: barbra.sabota@ueg.br.

Beatriz Borges de Sousa é professora de Língua


Inglesa nos anos iniciais e finais do ensino fun-
damental em Goiânia, Goiás. É graduada
em Letras – Inglês e Português, e suas li-
cenciaturas pela Pontifícia Universidade
Católica de Goiás (PUC-GO), e especia-
lista em Língua(gem), Cultura e Ensino
pela Universidade Estadual de Goiás (UEG,
campus Inhumas). Sua experiência profissional
abrange o ensino de língua inglesa e portuguesa para
a educação infantil e o ensino fundamental. Atua na área de educação linguís-
tica na infância. E-mail: teacherbiaborges@gmail.com.

347
AUTORAS E AUTORES

Caroline Martins dos Santos é docente no Colégio


Santo Antônio em Belo Horizonte, Minas
Gerais. Licenciada em Letras e graduada em
Língua Inglesa pela Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG), obteve os títulos de
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

mestre em Estudos Linguísticos, em 2016,


e de doutora, em 2021, pela mesma insti-
tuição. Sua experiência profissional abrange,
além do ensino fundamental, o médio e o su-
perior, nas instituições Centro Federal de Educação
Tecnológica de Minas Gerais (Cefet-MG) e Colégio Técnico da UFMG
(Coltec). Trabalha nas áreas de ensino de inglês, letramentos e educação e psi-
canálise, além de ministrar cursos de extensão na escola onde atua com alunos
do ensino médio. E-mail: carolinemsantos0@gmail.com.

Cintia Ribeiro Maniquinho é professora de Inglês


do ensino fundamental I na rede municipal de
Inhumas, Goiás, desde 2006, e atualmente
leciona em três escolas municipais. É gra-
duada em Letras – Português e Inglês pela
Universidade Federal de Goiás (UFG) e em
Pedagogia pela Faculdade de Tecnologia e
Educação de Goiás (Fateg). É pós-graduada
em Inclusão, com ênfase em atendimento edu-
cacional especializado (AEE), e em Psicopedagogia
Institucional e Clínica. É professora de Inglês desde 1995. Sua experiência pro-
fissional anterior abrange o ensino fundamental II e o ensino médio em escolas
públicas e privadas, cursos de idiomas e contrato temporário no ensino superior.
Participa da ação de extensão English For Kids da Universidade Estadual de
Goiás (UEG) desde 2015. E-mail: cinnn.manequinho@gmail.com.

348
AUTORAS E AUTORES

Cláudia Jotto Kawachi-Furlan é professora no


Departamento de Línguas e Letras e no Programa
de Pós-Graduação em Linguística (PPGEL)
da Universidade Federal do Espírito Santo
(Ufes). É pós-doutora em Estudos da

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


Linguagem pela Universidade Estadual
de Londrina (UEL), mestre em Educação
pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho” (Unesp, campus Araraquara)
e doutora em Linguística pela Universidade Federal
de São Carlos (UFSCar). Desenvolve pesquisas sobre formação de professo-
res(as) de línguas estrangeiras/línguas adicionais, educação crítica e educação
linguística com crianças. E-mail: claudiakawachi@gmail.com.

Cristiane Rosa Lopes é docente na Universidade


Estadual de Goiás (UEG). Atua na gradua-
ção em Letras na Unidade Universitária
de Campos Belos, GO, e no programa de
pós-graduação stricto sensu em Língua,
Literatura e Interculturalidade (Poslli), no
campus Cora Coralina, da Cidade de Goiás,
GO. Licenciada em Letras – Português e
Inglês, especialista em História e Cultura Afro-
Brasileira e Africana, mestre e doutora em Letras e
Linguística, todos pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Sua experiên-
cia profissional abrange escolas de idiomas, ensino superior e pós-graduação.
Atua na área de educação linguística e formação crítica de professoras/es de
línguas. E-mail: cristiane.lopes@ueg.br.

349
AUTORAS E AUTORES

Denise Silva Paes Landim é graduada e licenciada


em Português e Inglês pela Universidade de São
Paulo (2009). Tem mestrado (2015) e dou-
torado (2020) em Inglês pela Universidade
de São Paulo. Atualmente é professora ad-
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

junta da Universidade Federal do Norte


do Tocantins. Tem experiência na área de
Letras, com ênfase em Linguística Aplicada,
com foco nos seguintes temas: formação de pro-
fessores de línguas, novos letramentos, multiletramen-
tos e letramentos críticos. E-mail: denise_landim@yahoo.com.br.

Fernanda Silva Veloso é professora doutora na


Universidade Federal do Paraná (UFPR), atuan-
do nos cursos de licenciatura em Letras. É
coordenadora institucional da residência pe-
dagógica na UFPR. Pesquisadora em avalia-
ção em língua estrangeira, formação de pro-
fessores e estágio supervisionado, participa
do grupo de pesquisa Didática, práticas esco-
lares e publicações didáticas, da UFPR. ORCiD
iD: https://orcid.org/0000-0002-5263-6479. E-mail:
fernandaveloso@ufpr.br.

350
AUTORAS E AUTORES

Giuliana Castro Brossi é docente efetiva na


Universidade Estadual de Goiás (UEG), campus
Inhumas. É licenciada em Letras – Português
e Inglês pela Universidade Estadual de Goiás
(UEG), mestre em Linguística Aplicada

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


pela Universidade de Brasília (UnB) e dou-
toranda em Estudos da Linguagem pela
Universidade Estadual de Londrina (UEL).
Seus interesses de pesquisa centram-se na forma-
ção de professores de línguas segundo a perspectiva
crítica, implementação de ensino de inglês para crianças na escola pública,
praxiologias para a educação linguística na/com a infância, ações extensio-
nistas e transformação social. É membro do grupo de pesquisa Formação
de Professores e Ensino de Línguas para Crianças-Felice (Capes/CNPq)
e do Grupo de Estudos de Formação de Professores de Línguas (Gefople).
Participa, também, do grupo de pesquisa Rede Cerrado de Formação Crítica
de Professoras/es de Línguas. Integra, desde 2018, o Projeto Nacional de
Letramentos: Linguagem, Cultura, Educação e Tecnologia, da Universidade
de São Paulo (USP). E-mail: giulianabrossi70@gmail.com.

Jhuliane Evelyn da Silva é doutora em Letras pela


Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Licenciada em Letras – Língua Inglesa pela
Universidade do Estado do Rio Grande do
Norte (UERN) em 2012, obteve seu títu-
lo de mestre em Linguagem e Ensino pela
Universidade Federal de Campina Grande
(UFCG) em 2015. Sua experiência profissio-
nal abrange o ensino médio e superior, cursos
de extensão, escolas de idiomas, assessorias, trabalhos
como freelancer (revisão e tradução de português/inglês) e outros. Atua na área

351
AUTORAS E AUTORES

de língua inglesa, com ênfase em formação inicial e continuada de professores,


letramentos críticos, teorias críticas e decoloniais e ensino de língua inglesa.
E-mail: anecomjesus@gmail.com.
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

Juliana Reichert Assuncão Tonelli é professora ad-


junta da Universidade Estadual de Londrina
(UEL). Docente efetiva do Programa de
Pós-Graduação em Estudos da Linguagem
(PPGEL) e do Mestrado Profissional de
Línguas Estrangeiras Modernas. Membro
do GT de Formação de Professores da
Anpoll e líder do grupo de pesquisa Felice/
CNPq. É mestre (2005) e doutora (2012) em
Estudos da Linguagem pela UEL. Em 2013 realizou
estágio de pós-doutorado em Didática das Línguas pela Universidade de
Genebra (Unige), no qual desenvolveu estudos sobre a sensibilização à com-
preensão e produção de textos escritos no ensino e aprendizagem de inglês em
crianças. Atuou como professora de Inglês em uma escola bilíngue e como
professora e coordenadora da área de língua inglesa na rede particular de en-
sino na cidade de Londrina. Tem experiência na área de Linguística Aplicada,
trabalhando principalmente com os seguintes temas: gêneros textuais, educa-
ção inicial e continuada de professores de línguas. Pesquisa práticas de sala de
aula e de formação de professores de línguas adicionais em contexto de está-
gio, de iniciação à docência e formação docente no âmbito das políticas pú-
blicas voltadas à contextos (in)explorados, tais como o ensino e aprendizagem
de línguas adicionais nos anos iniciais de escolarização; práticas interacionais
e discursivas em contextos escolares multilíngues e a alunos com necessidades
educacionais específicas. E-mail: jtonelli@uel.br.

352
AUTORAS E AUTORES

Julma Dalva Vilarinho Pereira Borelli é docente na


Universidade Federal de Rondonópolis (UFR).
Licenciada em Letras – Português e Inglês
pela Universidade Federal de Goiás (UFG),
obteve seu título de mestre e doutora pela

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


mesma instituição. Sua experiência profis-
sional abrange o ensino de inglês para crian-
ças, bem como o ensino fundamental e médio
em escolas particulares e o ensino em cursos de
idiomas. Atualmente, trabalha com as disciplinas de
Língua Inglesa e Estágio Supervisionado no Curso de Graduação em Letras
– Língua e Literaturas de Língua Inglesa. E-mail: julmaborelli@gmail.com.

Kely Cristina Silva é docente na Escola Municipal


José Brasil Dias, em Nova Lima, Minas
Gerais. Licenciada em Letras e gradua-
da em Língua Portuguesa/Inglesa pelo
Centro Universitário UNI-BH, especialis-
ta em Psicopedagogia e Educação Musical
pelo Instituto Pedagógico de Minas Gerais
(Ipemig), obteve o título de mestre em Estudos
Linguísticos pela Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG) em 2019. Sua experiência profissio-
nal abrange o ensino fundamental (I e II) e o ensino médio. Atua nas áreas de
ensino de inglês e educação, além de cursos de extensão (Educonle, Concol e
Unisale – Programa Interfaces/Fale-UFMG). E-mail: kelcristam2012@gmail.
com.

353
AUTORAS E AUTORES

Matheus Augusto Utim é licenciado em Letras –


Português e Inglês e suas respectivas Literaturas,
e obteve o título de mestre pelo Programa
de Pós-graduação stricto sensu em Língua,
Literatura e Interculturalidade (Poslli), pela
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

Universidade Estadual de Goiás (UEG),


campus Cora Coralina. Atua como profes-
sor de Língua Inglesa na Secretaria Estadual
de Educação do Estado de Goiás (Seduce-GO).
E-mail: matheusutim@gmail.com.

Otto Ferreira é o criador do projeto Inglês Musical,


com o qual atua principalmente no norte do
Paraná. Formado em Letras – Inglês pela
Universidade Estadual de Londrina (UEL),
pós-graduado em Linguagem Musical,
Psicopedagogia Institucional e Gestão
Escolar pela Universidade do Oeste Paulista
(Unoeste). Atualmente, é aluno do mestrado
em Estudos da Linguagem na UEL. Pesquisa
sobre metodologias para ensino de inglês e música
para crianças desde 2015. É membro do grupo de pesquisa Formação de
Professores e Ensino de Línguas para Crianças-Felice (Capes/CNPq). E-mail:
otto.letras@gmail.com.

354
AUTORAS E AUTORES

Palmyra Baroni Nunes é graduada em Letras –


Inglês e Literaturas de Língua Inglesa pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ), especialista em Ensino de Língua
Inglesa pela Universidade Candido Mendes

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


(Ucam) e mestre em Linguística Aplicada
ao Ensino de Inglês pela Universidade
Federal Fluminense (UFF). Possui 26 anos
de experiência com ensino de Inglês para alunos
do ensino fundamental, médio e superior. Atuou em
instituições públicas e privadas e em escolas de idiomas. É autora do livro O
uso de estratégias e sua contribuição para a leitura de textos em inglês (2020) e
coautora de O ensino de Língua Portuguesa e suas múltiplas funções (2021).
Atualmente, é coordenadora pedagógica na Prefeitura do Rio de Janeiro e
trabalha com alunos do primeiro segmento do ensino fundamental. E-mail:
palmyra.baroni@yahoo.com.br.

Rodrigo Calatrone Paiva é docente na Universidade


Estadual do Paraná (Unespar), em Campo
Mourão, Paraná. Graduado em Desenho
Industrial e Letras – Inglês pela Universidade
Federal do Paraná (UFPR), obteve o título
de mestre em Design pela mesma institui-
ção e de doutor em Letras também pela
UFPR. Sua experiência profissional abrange
o ensino superior e escolas particulares de idio-
mas. Atua nas áreas de ensino de inglês e formação de
professores. E-mail: rcalatrone@gmail.com.

355
AUTORAS E AUTORES

Taísa Barbosa Robuste é licenciada em Letras –


Língua Portuguesa e Espanhol pela Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
(Unesp, campus Araraquara). Obteve o título
de mestre em Linguística e Língua Portuguesa
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

pela mesma instituição, e de doutora em


Estudos Linguísticos pela Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
(Unesp, campus São José do Rio Preto). Sua
experiência profissional abrange o ensino fundamental,
médio e superior, em escolas e universidades públicas e particulares. Atua nas
áreas de ensino de língua portuguesa e desenvolve pesquisa linguística de base
funcionalista. ORCiD iD: https://orcid.org/0000-0002-6572-2173. E-mail:
taisarobuste@gmail.com.

Tânia Ferreira Rezende é professora na Universidade


Federal de Goiás (UFG), em Goiânia. É
licenciada em Letras – Português e Inglês
pelo Centro Universitário UniEvangélica
de Anápolis, Goiás, mestra em Letras e
Linguística/Estudos Linguísticos pela UFG
e doutora em Linguística pela Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG). Tem atua-
ção docente em Português na graduação e pós-
-graduação, na linha de pesquisa linguagem, sociedade
e cultura, no campo da sociolinguística, com ênfase em cosmolinguística e le-
tramento intercultural, na perspectiva do translinguajamento. Líder do Obiah
– Grupo de Estudos Interculturais Decoloniais da Linguagem, desenvolve os
projetos de pesquisa e extensão Práticas Interculturais de Letramentos na/para
a Diversidade e Matriperformances Cerradeiras do Brasil Central: formação
de “mulheres cerradeiras” professoras. E-mail: taferez@ufg.br.

356
AUTORAS E AUTORES

Thaís Blasio Martins é professora de Inglês da


Rede Municipal de São Paulo. Graduada em
Letras – Português e Inglês pela Universidade
de São Paulo (USP) e em Pedagogia pela
Universidade Estadual Paulista “Júlio de

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


Mesquita Filho” (Unesp). Obteve título de
mestre em Educação pela USP e atualmente
cursa doutorado na mesma instituição. Sua ex-
periência profissional abrange a educação básica,
escolas de idioma e o ensino superior. Atua nas áreas de
ensino de inglês, com foco no ensino de inglês para crianças, e na formação de
professores. E-mail: tatablasio@gmail.com.br.

Valdilene Elisa da Silva é professora efetiva na


Universidade Estadual de Goiás, Unidade
de Inhumas, está como doutoranda em
Estudos Linguísticos pela Universidade
Federal de Uberlândia, UFU. É mestra em
Estudos Linguísticos pela Universidade
Federal de Goiás. Graduada em Letras
pela Universidade Estadual de Goiás, UEG.
Desenvolveu projetos e cursos de extensão e
pesquisa na área de Inglês e teatro pela UEG e UFG.
Participou, por dois anos, do projeto de revitalização da cultura e da Língua
Indígena _ MAUREHI, e ainda, do projeto de pesquisa “Documentação da
cultura e da Língua Karajá” pela UFG. Atualmente desenvolve o projeto de
pesquisa “Discutindo as praxiologias das aulas de estágio de língua inglesa” e
atua como coordenadora do programa PIBID. E-mail: valdilene.elisa@ueg.br.

357
AUTORAS E AUTORES

Valéria Rosa-da-Silva é docente na Universidade


Estadual de Goiás (UEG), em Inhumas. É li-
cenciada em Letras – Português e Inglês
pela mesma instituição. Obteve o títu-
lo de mestre e doutora pelo Programa de
LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS

Pós-Graduação em Letras e Linguística da


Universidade Federal de Goiás (UFG). Sua
experiência profissional abrange ensino fun-
damental e ensino médio (em escolas públicas
e particulares), escola de idiomas e, principalmente,
ensino superior. Atua na área de estágio de língua inglesa, desde 2001, além
de cursos de extensão e de especialização. Suas pesquisas atuais são nas áreas
de formação crítica de professoras/es (com ênfase no estágio) e ensino crítico
de línguas, sob a perspectiva da decolonialidade. E-mail: valeria.silva@ueg.br.

Victor Hugo Oliveira Magalhães é técnico em assun-


tos educacionais no Instituto Federal Goiano (IF
Goiano), campus Urutaí, Goiás. Licenciado
em Letras – Inglês pela Universidade Federal
de Goiás (UFG), obteve o título de mestre
em Linguística pela mesma universidade e
atualmente é doutorando também na UFG.
Sua experiência profissional abrange o ensi-
no médio, técnico e superior, além do ensino
de língua adicional inglesa em escolas particulares de
idiomas. Atua na área de Educação Linguística, com enfoque em perspectivas
críticas, decoloniais e pós-humanistas. E-mail: victorvhom@hotmail.com.

358
AUTORAS E AUTORES

Viviane Pires Viana Silvestre é docente na


Universidade Estadual de Goiás (UEG), em
Anápolis, Goiás. Licenciada em Letras
– Português e Inglês pela Universidade
Federal de Goiás (UFG), obteve seu título

LINGUAGENS EM TEMPOS INÉDITOS: DESAFIOS PRAXIOLÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES DE LÍNGUAS


de mestra e doutora em Letras e Linguística
pela mesma instituição. Sua experiência pro-
fissional abrange o ensino de línguas (portu-
guesa e inglesa) na educação básica e superior,
bem como centros de idiomas. Atua na área de estágio
supervisionado de língua inglesa na graduação, desde 2010, e no Programa
de Pós-Graduação Interdisciplinar em Educação, Linguagem e Tecnologias
(PPG-IELT). E-mail: vivianepvs@gmail.com.

359
SOBRE O LIVRO
Formato: 16x23 cm

Tipologia: Adobe Garamond Pro

Papel de Miolo: Off-Set 90g

Papel de Capa: Triplex 250g

Número de Páginas: 360

Tiragem: 500

Suporte do livro: Impresso / E-book

EDITORA SCOTTI

Av. República do Líbano, nº 2311 – CEP 74125-125

Goiânia-GO

(62) 98121-6148

E-mail: contato@editorascotti.com

2021

Impresso no Brasil / Printed in Brazil


E
sta obra é fruto do XVI Encontro de Formação de Professoras/es
de Línguas (Enfople), evento que, há 16 anos, temos realizado em
auditórios cedidos pela prefeitura da cidade ou à sombra de nossos
flamboyants floridos (Figura 1) na Universidade Estadual de Goiás
(UEG), em Inhumas. No ano de 2020, devido à pandemia de covid-19,
nos propusemos o desafio de realizar a primeira edição on-line, com o tema
Linguagens em tempos inéditos: desafios praxiológicos da formação de pro-
fessoras/es de línguas. Naqueles dias, e desde então, os “quintais” de nossas
casas, de nossos locais, em diferentes regiões, se misturaram, se agiganta-
ram e ficaram maiores do que o mundo, em alusão aos versos do poeta
pantaneiro Manoel de Barros (2018), que servem de inspiração para este
texto ensaístico.

Organizamos esta coletânea em duas partes. Em ambas, os capítulos


apresentam discussões sobre formação docente e educação linguística, com
ênfase na língua inglesa. No entanto, a Parte II é dedicada aos estudos des-
sas áreas na infância, campo promissor que vem redesenhando caminhos e
plantando sementes na fertilidade do cerrado inhumense. Convidamos a
leitora a abrir as janelas e contemplar brevemente esse quintal que abriga
tantas moradas.

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