A política, desde os antigos gregos e romanos, se presta a dirimir os conflitos e divisões
inerentes a todas as formas de sociedades humanas. Foi a invenção – e de fato foi uma invenção, pois não havia formas precedentes – da política que possibilitou a existência do poder público a partir da separação, não apenas, entre público e privado, mas entre governo e poder. Antes do contexto histórico-geográfico do classicismo greco-romano as sociedades humanas tendiam para formas despóticas de exercício do poder justamente pelo fato de seus governantes concentrarem três formas distintas de autoridade: poder privado (pai), poder militar (comandante) e poder religioso (sacerdote). O advento do poder público – fundamentalmente com a democracia, a república e suas instituições normativas e deliberativas – promoveu a separação entre estas distintas formas de autoridade e, por conseguinte, a primazia do público sobre o privado. O Ocidente tem perseguido na contemporaneidade a implementação de mecanismos de sociabilidade que nos permita experimentar cotidiana e plenamente estes princípios. Cabe lembrar que não nos referimos aqui a uma idealização utópica do espaço público e suas potencialidades democráticas como isentos de conflitos e divisões. Ao contrário! Ressaltamos que a democracia é o único regime político que admite conflitos e divisões como legítimos e propõe a linguagem política como instrumento de mediação dos mesmos. O maior desafio da atual conjuntura vivida pela sociedade brasileira é manter viva a chama da política democrática em um contexto em que a política foi despida de suas virtudes. Foi desnudada e coberta por uma lama tão malcheirosa e grudenta que se tornou tarefa hercúlea revertê-la. A política se tornou impossível no Brasil recente por conta do retorno à concentração das três supramencionadas formas de autoridade experimentadas no na tríade “boi, bala, bíblia” que encampou o Congresso Nacional. Não à toa ele é despótico em desmontar a institucionalidade vigente sem qualquer cacoete democrático sequer. Em conluio com o Executivo Federal e apoiado pela mídia de massas age como se fosse um Faraó com poder de vida e morte sobre os súditos. Ou as reformas em curso não expressam esse poder? A Nova República ruiu em 2016 não pela patente incompetência da gestão petista, mas pela nossa incapacidade de redemocratizar efetivamente a sociedade brasileira no pós-ditadura. Só a democracia plena, no sentido mais radical (de raiz), pode apresentar uma alternativa. Não apenas a democratização da política, mas antes de tudo a politização da democracia. A democracia liberal é o regime de lei e ordem para garantia de direitos e liberdades individuais, firmando-se pelo princípio da eficácia na gestão pública. Contudo, por mais bem- intencionados que sejam os liberais, este tipo de democracia ofusca os sentidos próprios do regime, pois a impede de mostrar mais do que o liberalismo permite perceber. Para que servem as eleições? Para contemplar a alternância do poder, diriam os liberais. Como se garante a liberdade e a igualdade? No âmbito das leis formais, diriam os liberais. A quem temos de recorrer a fim de encontrarmos solução para os impasses e violações? Ao Estado e suas diversas representações, diriam os liberais. Contudo as eleições representam a soberania popular, não simples alternância no poder. A cidadania com liberdade e igualdade só é plena quando é garantido ao cidadão o direito de reivindicar direitos. O engessamento dos direitos no âmbito das leis só produz o “cidadão-de- papel”. E por fim, o Estado não pode, nem deve ser o único ambiente de exercício da política, pois a política se presta a dirimir conflitos e estes, por sua vez, ocupam todos os âmbitos da vida social. A democracia representativa não pode ser o limite de nossa práxis política. Com isso não quero desdenhá-la, muito menos o liberalismo político. Nem quero recorrer ao ideal da democracia direta experimentada na ágora pública. Convido os brasileiros a reivindicarem a política do cotidiano que nos permite assumir as rédeas da vida pública. Lembro que ao separarmos política e ética abrimos precedentes para o príncipe disposto a ser amado ou temido. E que ética é resultado da ação reflexiva do homem racional, livre, autônomo e responsável.