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"Angústia, escrito entre os anos de 1935 e 1936, foi a terceira obra publicada por Graciliano Ramos.

À época, o escritor vivia em


Maceió (AL) e trabalhava como diretor na Instrução Pública do Estado. Vencedor do Prêmio Lima Barreto (1936), foi eleito um dos
melhores romances brasileiros por grandes críticos e escritores, tais como Octávio de Faria, Lúcio Cardoso, Rachel de Queirós e
Jorge Amado.

Resumo de Angústia
Narrado por Luís da Silva, um funcionário público e escritor frustrado, Angústia é um romance caracterizado pela autoanálise
e pelo encadeamento narrativo centrado na interioridade do protagonista.
Luís volta-se ao passado buscando reestabelecer o desarranjo interior causado pelo rompimento de seu noivado com Marina,
agora comprometida com Julião Tavares. Entretanto a insatisfação permanente com o presente recupera do passado apenas
conclusões amargas a respeito de si mesmo, dos outros personagens e do mundo em geral.

Emergem-se na narrativa lembranças de uma infância de afetos distantes, de frustrações sexuais e profissionais, delineando uma
completa falta de horizonte e um desencanto perpétuo do personagem com relação a si mesmo e ao estado de coisas.

Luís tentou êxito profissional no Rio de Janeiro, mas, diante do fracasso, fixa-se em Maceió, espaço da narrativa. Vive
uma vida comezinha e pouco significante até apaixonar-se por sua vizinha, Marina, o que lhe traz lampejos de
satisfação. Marcam casamento, e Luís gasta os poucos vinténs de suas economias para comprar o enxoval. Contudo,
seus planos são frustrados ao descobrir que Marina estava traindo-o com Julião Tavares, sujeito rico, eufórico,
eloquente, com aspirações literárias e constante ar de superioridade. O ciúme passa, então, a tomar posse de Luís,
que, enganado e humilhado, mergulha em si mesmo e no transtorno da derrota. Imerso em uma condição financeira
miserável, sem condições de pagar as próprias contas, rodeado por ratos e pelos próprios fantasmas do passado, Luís
vê-se incapaz de afastar Marina e Julião Tavares do pensamento. Ora seguia a moça, ora seguia o rival. Certa feita,
descobriu que Julião estava envolvido também com uma outra mulher.

A obsessão com as lembranças e a fragmentação subjetiva angustiante de Luís levam-no a maquinar o assassinato de
Julião Tavares. Até que, em uma de suas perseguições, Luís encontra a oportunidade perfeita e estrangula Julião.
Tomado de euforia e de súbita felicidade, sentiu-se repentinamente forte, não mais insignificante — naquele
momento, seus sofrimentos evanesceram-se. No entanto, esse lapso de alegria e reconciliação consigo dura muito
pouco: rapidamente a angústia volta a instalar-se em Luís, tomado pelo desespero de ser descoberto. Ele volta para
casa, completamente perturbado, toma uma garrafa de cachaça e adormece. Não comparece ao trabalho no dia
seguinte. Livra-se dos vestígios que o ligariam à cena do crime e deita-se, adoentado e transtornado mais uma vez
pelas lembranças, sufocado pela angústia.

Contexto histórico: O relato de Luís da Silva corresponde em tempo e espaço ao momento em que Graciliano escreve o
romance: Maceió, após o Golpe de 1930. O autor havia finalizado a revisão da última versão manuscrita no dia 3 de março de
1936. Na tarde desse mesmo dia, Graciliano Ramos foi preso pelo exército de Getúlio Vargas, acusado de subversão e associação
ao comunismo, permanecendo encarcerado por quase um ano.

Graciliano Ramos foi o autor de Angústia e um representante importante da prosa da segunda fase do modernismo.
Era um período de grandes agitações econômicas e políticas. A Crise de 1929, motivada por alta especulação financeira, quebrou
a Bolsa de Nova Iorque e afetou diversos países do mundo capitalista, incluindo o Brasil. Os Estados Unidos compravam cerca de
80% da produção cafeeira brasileira, e, com a grande recessão econômica, o café, principal produto de exportação do Brasil,
estagnou. Os preços das sacas despencaram e os fazendeiros viram-se afundados em enormes prejuízos. O impacto da recessão
econômica fez com que o então presidente da república, Washington Luís, indicasse para sua sucessão o candidato também
paulista Júlio Prestes. Isso significava um rompimento com a chamada política do café com leite, que fazia alternar na presidência
do país membros das oligarquias de São Paulo e Minas Gerais. De modo geral, os governos brasileiros da Primeira República
(1889-1930) foram marcados pelas práticas do clientelismo, do coronelismo, da troca de favores e da corrupção da máquina
eleitoral para garantir a permanência de seus próprios interesses. É diante desse cenário que grupos contrários à candidatura de
Júlio Prestes uniram-se na chamada Aliança Liberal (AL), que lançou como candidato à presidência o fazendeiro gaúcho Getúlio
Vargas. Derrotado nas urnas, Vargas e seus aliados acusaram a eleição de fraude e deram um golpe armado, dando fim à
Primeira República e instaurando um novo governo, com medidas socioeconômicas que baniram as oligarquias cafeeiras do
poder.

Vargas governou o Brasil por 15 anos ininterruptos, de 1930 a 1945, em períodos que se dividem em Governo Provisório (1930-
1934), Governo Constitucional (1934-1937) e Estado Novo (1937-1945).

A segunda fase do modernismo brasileiro sofreu diversas prisões políticas do governo de Getúlio Vargas.
Diversos conflitos entre apoiadores e opositores do governo marcaram as primeiras etapas da Era Vargas. Uma das principais
articulações de oposição foi liderada pela Aliança Nacional Libertadora (ANL), encabeçada por Luís Carlos Prestes, líder tenentista
que contava com o apoio da União Soviética. Batizada de Intentona Comunista, essa aliança congregou uma série de levantes
revolucionários entre 1935 e 1936, principalmente nas cidades de Recife, Natal e Rio de Janeiro. Embora não tivesse associação
partidária nem envolvimento com os membros da ANL, o aparato de repressão de Vargas considerou Graciliano uma ameaça
ideológica, e foi esse o contexto que o levou à prisão no mesmo dia em que conclui Angústia.

Angústia faz menção, ainda, a um outro período histórico, o da infância do narrador-protagonista, em


meados de 1900, ou seja, o momento de origem da Primeira República, nos primeiros anos da tardia
abolição da escravatura. Luís da Silva é descendente dos latifundiários que constituíam uma casta de
privilégios no Brasil do século XIX e que não elaboraram bem as lentas transformações que se davam no país.
Assim, a ascendência do narrador identifica-se também com os primórdios da república brasileira e reflete o
pensamento das antigas elites escravocratas:
“Eu andava no pátio, arrastando um chocalho, brincando de boi. Minha avó, sinhá Germana, passava os dias falando só,
xingando as escravas, que não existiam. Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva tomava pileques tremendos. Às vezes subia
à vila, descomposto, um camisão vermelho por cima da ceroula de algodão encaroçado, chapéu de ouricuri, alpercatas e varapau.
Nos dias santo, de volta da igreja, mestre Domingos, que havia sido escravo dele e agora possuía venda sortida, encontrava o
antigo senhor escorado no balcão de Teotoninho Sabiá, bebendo cachaça e jogando três-setes com os soldados. O preto era um
sujeito perfeitamente respeitável. Em horas de solenidade usava sobrecasaca de chita, correntão de ouro atravessado de um
bolso a outro do colete, chinelos de trança, por causa dos calos, que não aguentavam sapatos. Por baixo do chapéu duro, a testa
retinta, úmida de suor, brilhava como um espelho. Pois, apesar de tantas vantagens, mestre Domingos, quando via meu avô
naquela desordem, dava-lhe o braço, levava-o para casa, curava-lhe a bebedeira com amoníaco. Trajano Pereira de Aquino
Cavalcante e Silva vomitava na sobrecasaca de mestre Domingos e gritava:

— Negro, tu não respeitas teu senhor não, negro!”

Análise da obra Angústia

Angústia foi o terceiro romance escrito por Graciliano Ramos

Foco narrativo

A angústia, sentimento que dá nome à obra, é o eixo central da narrativa, pelo qual se orienta o enredo, as ações dos
personagens e o procedimento estilístico. Por isso, o foco narrativo do romance é o monólogo interior: o narrador-
personagem constrói os eventos com base em suas lembranças, em suas percepções, no local em que se aloca o
sentimento angustioso.
“Há nas minhas recordações estranhos hiatos. Fixaram-se coisas insignificantes. Depois um esquecimento quase completo. As
minhas ações surgem baralhadas e esmorecidas, como se fossem de outra pessoa. Penso nelas com indiferença. Certos atos
aparecem inexplicáveis. Até as feições das pessoas e os lugares por onde transitei perdem a nitidez. Tudo aquilo era uma
confusão, em que avultava a ideia de reaver Marina.”

Trata-se, portanto, de um romance em primeira pessoa, uma narrativa psicológica caracterizada por um contínuo
estado de delírio do personagem: sufocado pela angústia, Luís tem dificuldade de diferenciar o real do irreal. Confessa
ter a memória repleta de hiatos, preenchidos pela imaginação. A tônica delirante conduz toda a trama e eclode nas
perseguições a Marina e Julião Tavares, culminando no assassinato deste último.
“Lembro-me de um fato, de outro fato anterior ou posterior ao primeiro, mas os dois vêm juntos. E os tipos que evoco não têm
relevo. Tudo empastado, confuso. Em seguida os dois acontecimentos se distanciam e entre eles nascem outros acontecimentos
que vão crescendo até me darem sofrível noção de realidade. As feições das pessoas ganham nitidez. De toda aquela vida havia
no meu espírito vagos indícios. Saíram do entorpecimento recordações que a imaginação completou.”

Temporalidade e espacialidade

Angústia é um romance urbano e tem por espaço narrativo a cidade de Maceió, capital de Alagoas, durante as décadas
que sucedem a tomada do poder por Getúlio Vargas. No entanto, como o fio condutor do enredo é norteado pela
fragmentação interior de Luís, há uma sobreposição de espaços e períodos temporais ao longo da narrativa. Ora Luís
descreve o presente, em Maceió; ora volta-se para seu passado rural, para a cidadela interiorana onde cresceu.

Seguindo o fluxo de consciência, as memórias misturam-se às situações presentes, num constante zigue-zague espaço-
temporal. Muitas vezes Luís conecta Marina e Julião Tavares a acontecimentos sem relação direta com eles, em
movimento de obsessão angustiante, rompendo a rigidez lógica e ampliando a sensação de irrealidade e delírio. No
trecho seguinte, vê-se um exemplo desse procedimento:
“A escola era triste. Mas, durante as lições, em pé; de braços cruzados, escutando as emboanças de mestre Antônio Justino, eu
via, no outro lado da rua, uma casa que tinha sempre a porta escancarada mostrando a sala, o corredor e o quintal cheio de
roseiras. Moravam ali três mulheres velhas que pareciam formigas. Havia rosas em todo o canto. Os trastes cobriam-se de
grandes manchas vermelhas. Enquanto uma das formigas, de mangas arregaçadas, remexia a terra do jardim, podava, regava, as
outras andavam atarefadas carregando braçadas de rosas. “

Importante mencionar que o final do livro remete ao seu início, pois é depois de assassinar Julião Tavares que Luís
inicia a narrativa, em tentativa de recuperar-se da tomada de consciência quanto à sua ação extremada e homicida.
Assim, o personagem encontra-se encerrado num cíclico cárcere da própria consciência, em que nada se realiza.

O romance Angústia e sua época

Angústia enquadra-se nas obras produzidas pelo segundo modernismo brasileiro. Para o professor Fabio Cesar Alves,
essa obra em particular une a introspecção à crítica social, características típicas da Geração de 30. Mergulhando na
situação psicológica de Luís da Silva, O personagem, fragmentado e Angústia revela algumas das contradições e a falta
de perspectiva no Brasil da época, em acelerada modernização. Profundamente desencantado com a vida, mostra-nos
também as raízes coloniais, patriarcais e escravocratas do país, que aparecem ora pela remissão ao passado de Luís, ora
pelas ações que ainda se perpetuam. Ao drama de Luís, frustrado e estagnado em sua vida pessoal, junta-se um drama
extraliterário, próprio da década de 1930, em que a estagnação econômica freia o processo de modernização. Luís
localiza-se entre o passado ligado ao mundo agrário, em decadência, e o presente ligado ao mundo urbano, em
expansão. As mudanças que provêm da modernização transformam-no em um permanente deslocado na capital
alagoana, por onde mendigou até conseguir um emprego, depois de muito sofrimento. Para Luís, seu rival Julião Tavares
representa a burguesia ascendente que ele tanto despreza, representa o poder do dinheiro que esfacela todas as
relações sociais, que compra Marina com bilhetes para o cinema e tecidos de seda. Luís considera a sociedade burguesa
como a grande responsável pela miséria e falta de perspectiva em sua própria vida:
“Não consigo escrever. Dinheiro e propriedades, que me dão sempre desejos violentos de mortandade e outras destruições, as
duas colunas mal impressas, caixilho, dr. Gouveia, Moisés, homem da luz, negociantes, políticos, diretor e secretário, tudo se
move na minha cabeça, como um bando de vermes, em cima de uma coisa amarela, gorda e mole que é, reparando-se bem, a
cara balofa de Julião Tavares muito aumentada. Essas sombras se arrastam [...] ”Entretanto, é o próprio Luís alguém que cria
expectativas de enriquecimento, frustradas pelo trabalho mal pago, encerradas nas constantes remissões aos bilhetes de loteria
vendidos por um cego dentro da repartição:

“- 16.384, gemia o cego batendo com a bengala no cimento.


Ou seria outro número. Cem contos de réis, dinheiro bastante para a felicidade de Marina. Se eu possuísse aquilo, construiria um
bangalô no alto do Farol, um bangalô com vista para a lagoa. Sentar-me-ia ali, de volta da repartição, à tarde, como Tavares &
Cia., dr. Gouveia e os outros, contaria histórias à minha mulher, olhando os coqueiros, as canoas dos pescadores.
- 16.384.
Vestido de pijama, fumando, olharia lá de cima os telhados da cidade, os bondes pequeninos a rodar quase parados e sem rumor,
os focos da iluminação pública, os coqueiros negros à noite. Uns quadros a óleo enfeitariam a minha sala. Marina dormiria num
colchão de paina. E quando saltasse da cama, pisaria num tapete felpudo que lhe acariciaria os pés descalços.
- 16.384.
Um tapete fofo, sem dúvida. E a cama teria uma colcha bordada cobrindo o colchão de paina, uma colcha bordada em seis
meses.”

Luís vive de escrever artigos encomendados, sobre assuntos que despreza, mas acumula aspirações literárias de escrever
um livro e lançar-se profissionalmente como escritor. Entretanto, diante de um mundo que o esmaga, incapaz de
colocar-se em nenhum setor da sociedade, a literatura para ele também não se realiza. Essa falta de identificação do
sujeito para com o seu trabalho é típica das sociedades capitalistas: acovardado em sua função de jornalista submisso,
sente-se acuado pela força do dinheiro. Incapaz de conciliar-se consigo mesmo, vendo-se sem saída em face a uma
realidade hostil, Luís acaba sufocado em sua própria prisão interior e sucumbindo ao crime e à autodestruição.
Graciliano Ramos faz uso do procedimento da narrativa psicológica, ao mesmo tempo que o extrapola, pois rompe o subjetivismo
puro, já que a ambientação social da realidade brasileira torna Angústia uma obra que analisa essas estruturas sociais. Há uma
sufocante angústia daquilo que já não tem mais lugar, do esgotamento das possibilidades da economia pré-capitalista, em que
não se frutificou nenhuma renovação econômica e social.

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