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Angústia

1
Graciliano Ramos

2
A obra Angústia produz em primeiro momento um
efeito insólito no leitor, já que é um romance
fundamentalmente rico em fluxo de consciência.

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Duas temáticas ecoam fortemente no livro:
o existencialismo e o sofrimento amoroso.

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Vale destacar ainda a forma singular de conduzir a prosa
que permite uma aproximação da obra com as narrativas
cinematográficas.

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Angústia (1936) é narrada em tom confessional e memorialista,
por isso a crítica a vincula a uma trilogia com traços
existencialistas – Caetés (1933) e São Bernardo (1938).

(...) Certos lugares que me davam prazer tornaram-se


odiosos. Passo diante de uma livraria, olho com
desgosto as vitrinas, tenho a impressão de que se
acham ali pessoas exibindo títulos e preços nos rostos,
vendendo-se. É uma espécie de prostituição. Um sujeito
chega, atenta, encolhendo os ombros ou estirando o
beiço, naqueles desconhecidos que se amontoam por
detrás do vidro. Outro larga uma opinião à toa.
Basbaques escutam, saem. E os autores, resignados,
mostram as letras e os algarismos, oferecendo-se como
as mulheres da Rua da Lama (p. 7).

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As obras citadas têm, para além da narração em primeira pessoa,
personagens que estão mergulhadas em um conflito interno, à procura
de uma saída, respostas e questionando o que as levou aos
respectivos quadros que se apresentam.

7
Angústia, assim como as duas obras que
compõem a trilogia, assemelha-se a um diário
íntimo.
(...) Em duas horas escrevo uma palavra: Marina.
Depois, aproveitando letras deste nome, arranjo
coisas absurdas: ar, mar, rima, arma, ira, amar. Uns
vinte nomes. Quando não consigo formar
combinações novas, traço rabiscos que representam
uma espada, uma lira, uma cabeça de mulher e outros
disparates. Penso em indivíduos e em objetos que
não tem relação com os desenhos: processos,
orçamentos, o diretor, o secretário, políticos, sujeitos
remediados que me desprezam porque sou um pobre-
diabo (p. 8).
8
Na trilogia, a narração é conduzida por confissões
que vão adensando dramaticamente o sentimento
da culpa.

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Luís da Silva é o protagonista, oriundo do campo, que veio
para a cidade – a capital.

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Luís da Silva é apenas mais um na cidade, homem de hábitos
simples e medíocres, trabalha escrevendo para um jornal, mas
sem autonomia, ou seja, realiza o que pedem.

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Para pensar!!!
Luís da Silva se considera um
intelectual fracassado: vive
mediocremente, arquiva produções
textuais, está estagnado na profissão,
enquanto funcionário público, possui
uma noiva de longa data, mas não
pode realizar o casamento já que as
suas condições financeiras o impedem.
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Luís da Silva é traído por sua noiva, Marina, fato esse que
atormentará o ‘pequeno’ intelectual.

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O norte que direciona as pessoas no espaço em que Luís está
circunscrito é o dinheiro, levando o protagonista a tomar vários
empréstimos para tornar agradável a vida da amada e noiva Marina.

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Ainda sob a condição de noivos e sem um fim decretado
para o compromisso, Luís é abandonado e Marina segue
sua vida com Julião Tavares, homem bem sucedido
economicamente.

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Julião Tavares é filho de comerciantes bem sucedidos e
herdou a capacidade de ganhar dinheiro por ser homem
extremamente astuto.

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Julião Tavares compra o amor de Marina, usando
a estratégia de presentear a moça com passeios
ao cinema e ao teatro, tecidos caros e joias.

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Luís da Silva, diante de tal quadro, se vê impotente e
desmotiva-se com a vida que possui.

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Surge em Luís da Silva, então, um ciúme
doentio e incontrolável que o impulsiona a
tomar uma ação drástica.

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A angústia sentida pelo protagonista assemelha-se a um
cárcere, gerando algo maior, ou seja, o mal-estar por viver em
uma sociedade em que o financeiro é o único objetivo a ser
alcançado.

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Marina, sem saber, passa a ser seguida por Luís
da Silva, mormente após Julião Tavares a
abandonar no início da gravidez.

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O ódio que Luís da Silva sente por Julião é avassalador, culminando
na tomada de uma decisão radical, pois Julião Tavares, além de
roubar Marina, representa primeiramente aquilo que ele não podia ser
e, em segundo lugar, um perigo a olhos vistos para a sociedade.

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Luís da Silva, então, começa a caçar o seu
opositor, que já se encontrava flertando com outra
moça.

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A essa altura do romance, o protagonista vive um drama interior, em
que se sente humilhado pela arrogância de Julião Tavares, enquanto a
angústia o entorpece, não conseguindo encontrar outra saída para a
resolução do seus problemas que não seja o fim do rival.

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O assassinato
(...) Retirei a corda do bolso e em alguns
saltos, silenciosos como os das onças de José
Baía, estava ao pé de Julião Tavares. Tudo
isto é absurdo, é incrível, mas realizou-se
naturalmente. A corda enlaçou o pescoço do
homem, e as minhas mãos apertadas
afastaram-se. Houve uma luta rápida, um
gorgolejo, braços a debater-se. Exatamente o
que eu havia imaginado (p. 182).

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Tem-se, assim, um processo de construção relevante do narrador
personagem Luís da Silva, o qual compreende o assassinato que
cometeu como uma vitória pessoal, a ponto de se autoconfigurar como
um herói.

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Próximo ao fim da narrativa, pós-assassinato, o protagonista
Luís da Silva afunda irreversivelmente em uma crise psicológica
que o transforma em um homem fora da realidade e circunscrito
em outra sem a possibilidade de escapar.

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Em linhas gerais, é possível perceber que
Angústia faz uso do efeito de circularidade.

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Para pensar!!!
Levantei-me há cerca de trinta (...) “José Baía, meu irmão,
dias, mas julgo que ainda não estamos tão velhos!”
me restabeleci completamente. Acomodavam-se todos.
Das visões que me 16.384. Um colchão de paina.
perseguiam naquelas noites Milhares de figurinhas
compridas umas sombras insignificantes. Eu era uma
permanecem, sombras que se figurinha insignificante e
misturam à realidade e me mexia-me com cuidado para
produzem calafrios. não molestar as outras.
16.384. Íamos descansar. Um
RAMOS, Graciliano. Angústia. São Paulo: Record, 1978, p. 7.
colchão de paina.
Idem. p. 217.

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Luís da Silva, por meio de seu fluxo de consciência, viabiliza
que o seu pensamento rompa com a sequência cronológica da
apresentação dos fatos, o que torna mais densa a sensação da
angústia.

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A rigor, o fluxo de consciência é uma técnica literária utilizada
primeiramente por James Joyce, nele o monólogo interior de
uma ou mais personagens é revelado ao leitor.

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Com tal procedimento artístico, tem-se a possibilidade de
transitar simultaneamente no presente e no passado, rompendo,
dessa forma, com as barreiras do espaço e do tempo
(cronotopo).

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No caso de Luís da Silva, por meio da quebra da
linearidade narrativa, dificulta-se a ação de precisar o que
é lembrança daquilo que é fato presente testemunhado.

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Pontos a serem destacados

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O primeiro ponto relevante se encontra no existencialismo,
por deixar a cargo do homem a sua subjetividade e
liberdade individual.

35
A teoria existencialista concebe o humano enquanto único
agente e principal responsável pelos próprios atos e, por
consequência, construtor do próprio destino.

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O existencialismo ainda posiciona o homem
em uma condição de singularidade.

37
É possível dizer que a teoria existencialista
salienta a supremacia do ser empírico e submete
a essência à derrocada.

38
Conforme nos ensina o filósofo francês Jean-Paul
Sartre: “A existência precede e governa a
essência.”

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Com tal conceito, tem-se o início de uma visão de mundo em
que o homem possui plena liberdade e responsabilidade
suficiente para agir e pensar sem paradigmas.

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Durante a existência, à medida que se experimentam novas vivências,
redefine-se o próprio pensamento (a sede intelectual, tida como a alma
para os clássicos), adquirindo-se novos conhecimentos a respeito da
própria essência, caracterizando-a e dirimindo-a sucessivamente.

41
Tal peculiaridade é o resultado da liberdade de
escolha oriunda do próprio ser.

42
Sartre, após ter feito estudos sobre fenomenologia na Alemanha, criou
o termo utilizando a palavra francesa “existence” como tradução da
palavra alemã “Dasein”, termo empregado por Heidegger em Ser e
tempo.

43
Posterior à Segunda Guerra Mundial, surgiu uma vertente
literária existencialista, composta, mormente, por Albert
Camus e Boris Vian, bem como o próprio Sartre.

44
Cumpre destacar que Albert Camus, além de filósofo
também literato, assumiu postura antiexistencialista, sendo
esta somente característica de sua obra literária.

45
Já Bóris Vian intitulava-se patafísico
(ciência das soluções imaginárias e das leis que regulam as
exceções).

46
Faz-se necessário levar a conhecimento que
Graciliano Ramos foi tradutor da obra de Albert
Camus A peste.

47
Adentrando a visão de mundo do protagonista
Luís Pereira da Silva, a vida é virtualizada
como uma arena de batalha.

48
O homem, à luz da teoria existencialista e,
consequentemente, no romance, é obrigado a seguir
caminhos, mas, de forma contínua, que gerarão
arrependimentos.

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Novos sentidos

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Inicialmente, cumpre destacar que a mania de Luís Pereira
da Silva de manter as mãos sempre limpas pode dialogar
com o poema “A mão suja”, de Carlos Drummond de
Andrade.
Minha mão está suja.
Preciso cortá-la.
Não adianta lavar
A água está podre.
Nem me ensaboar
O sabão é ruim.
A mão está suja,
suja há muitos anos [...]

51
As histórias de vida de algumas
personagens merecem um segundo
destaque quanto à intertextualidade:
Germana, “que dormiu meio século numa
cama dura e nunca teve desejos”; José
Baía, matando sem maldade e de riso
claro; Evaristo, enforcando-se em um
galho de carrapateiro; O Lobisomem e
suas filhas.
52
A dificuldade da vida de inúmeras personagens em função
da fragilidade econômica, sem perspectiva de mudança,
também dialoga com o mundo das artes.

53
Em uma intertextualidade com a teoria psicológica
freudiana, há três aspectos sobre a sexualidade de Luís da
Silva que são relevantes para que se entenda o seu
comportamento.

54
Em tempo de criança, o pai se distanciou
propositadamente de Luís da Silva, sendo a solidão a
única confidente.

55
Consequentemente, tudo o que faltou na infância,
também não foi encontrado na juventude e
mocidade.

56
Na fase adulta, a condição econômica de pobreza,
ausência de trabalho, sem namorada são índices de
continuidade dos períodos de dificuldades anteriores.

57
E, quando Luís da Silva consegue flertar com uma moça e ser aceito,
Marina, é traído e ultrajado por Julião Tavares, que, por sua vez,
empurra sem retorno o intelectual fracassado e falido para o mundo da
angústia e do ciúme.

58
A castração sexual de Luís Silva está
presente em praticamente todo o romance.

59
Luís da Silva espiona a intimidade dos vizinhos,
principalmente nos atos sexuais, e visualiza nos mínimos
detalhes a erotização.

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A frustração sexual de Luís Silva se manifesta por de três
símbolos fálicos: as cobras da fazenda do avô, os canos
de água de sua casa e a corda com que enforca Julião
Tavares.

61
Em decorrência de tais simbologias, é relevante a intenção
contínua de Luís Silva querer ‘penetrar’ em qualquer
acontecimento e invadir o interior da vida alheia.

62
Em Angústia, a vinculação com o mundo ‘real’, por parte
de seu protagonista, é deixada à margem, contudo
apresenta-se uma outra realidade com forte traço
solipsista.

63
O mundo dos sonhos invade a narrativa, submetendo o
leitor a presenciar, de ponto privilegiado, “...as horas de um
longo pesadelo...”

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Cumpre destacar também um aspecto a mais, ou seja, a
utilização do texto autobiográfico que, por sua vez, adensa
dramaticamente o caos experenciado pelo protagonista.

65
Os fatos decorridos por Luís da Silva desencadeiam o retorno para
outros fatos de sua infância e adolescência, conectando, dessa forma,
presente e passado.

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Como nos ensina o crítico Hélio Polvora,
Angústia aproxima-se do surrealismo.

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O Surrealismo foi um movimento artístico e literário criado em Paris
dos anos 20, integrante das vanguardas europeias que definiriam o
modernismo, por meio de artistas anteriormente ligados ao Dadaísmo.

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O Surrealismo foi influenciado pela teoria de Sigmund
Freud, mas evidenciando a importância do inconsciente na
atividade criativa.

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Aqueles que se destacaram no Surrealismo foram Max
Ernst, Rene Magritte e Salvador Dali nas artes plásticas,
André Breton na literatura e Luis Buñuel no cinema.

70
Recursos cinematográficos como “fade in”, que é
(aumentar gradualmente) e “fade out”, (diminuir
gradualmente), podem ser utilizados em outras artes.

71
Em Angústia, quando Marina procura a personagem Albertina
para fazer o seu aborto e em algumas cenas antes da morte de
Julião Tavares, tais recursos cinematográficos se fazem
presentes.

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Simbologias

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Frequentemente são citados na obra cobras,
corda e ratos.

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Simbolicamente, a cobra pode sugerir tanto um falo como
a falsidade, no que tange ao confronto do protagonista
(Luís da Silva) com o seu opositor (Julião Tavares).

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A corda, em sintonia simbólica com a cobra, pode
recuperar o falo, bem como o aprisionamento, a redenção
e a salvação.

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Já os ratos sugerem simbolicamente a sujeira que circunda
o protagonista, ativando, por outro lado, a sua contínua
necessidade de água para purificar/limpar o seu corpo.

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Em suma, Angústia é um romance complexo por trazer um
protagonista assaz tímido e solitário, vivendo entre dois
mundos com os quais não se sente integrado.

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