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Graciliano Ramos. Angústia. Todavia, 2024.

Graciliano Ramos é conhecido como um dos principais nomes do realismo social na literatura
brasileira. Livros como São Bernardo, de 1934, ou Vida Secas, de 1938, fizeram do escritor
alagoano um dos grandes representantes do “romance de 30”, em referência à segunda
geração (“regionalista”) do modernismo.

Não deixa de ser interessante, portanto, que a Todavia tenha dado a largada da Coleção
Graciliano Ramos com a publicação de Angústia, originalmente lançado em 1936, quando o
escritor estava encarcerado pelo regime varguista. Simultaneamente, agora que a obra do
autor entrou em domínio público, a editora publica também, por seu selo infantil (Baião
Livros), o inédito Os filhos da coruja, baseado em poema escrito por Ramos em 1923, sob o
pseudônimo J. Calisto.

Terceiro romance do autor, Angústia é “sua obra mais ousada, vanguardista,


ambiciosa”, como destaca na introdução Thiago Mio Salla, professor da Escola de
Comunicações e Artes da USP e responsável pela coleção.

Para Antonio Candido - cujo ensaio sobre o romance escrito para o jornal Diário de S.
Paulo, em 1945, figura como posfácio da presente edição -, embora não seja a obra-prima de
Graciliano, é em Angústia “que devem ser procuradas as suas melhores frases. Defeituoso no
conjunto, ele contém certos trechos que não podem ser considerados senão admiráveis”.

Não que os artifícios narrativos utilizados em Angústia não tenham sido mobilizados nos
romances anteriores, a exemplo de Caetés, de 1933, ou do próprio São Bernardo. Desta vez,
porém, a narração em primeira pessoa, por meio de um anti-herói em torno do qual o enredo
se desdobra, atinge um novo patamar.

Sabe-se que Graciliano era preciosista com os seus próprios textos, revisando-os
sempre que podia. Em especial, este foi o caso de Angústia, volta e meia criticado por ele
mesmo como mal escrito e cheio de erros de edição. Não por acaso, Salla e a Todavia
optaram por tomar como base para o trabalho editorial o texto da quinta edição, a última a ter
sido revista em vida pelo próprio escritor, antes de vir a falecer em 1953, vitimado pelo
câncer.

Estruturado através da memória de Luís da Silva, funcionário público de 35 anos, “homem de


ocupações marcadas pelo regulamento” e autor eventual de artigos para a imprensa, o livro é
composto por uma torrente de digressões e fluxos de consciência, embaralhando qualquer
objetividade social mais evidente. Assim, se a preocupação com as mazelas do país periférico
continua presente, ela é agora contrabalanceada pela subjetividade onipresente do narrador.

Oriundo das elites oligárquicas decadentes, obrigado a se acomodar precariamente à vida


urbana na capital Maceió, Luís da Silva vai relembrando acontecimentos do presente e do
passado com uma velocidade estonteante.

O centro do enredo é o seu embate com Julião Tavares, bacharel e filho de rico
comerciante pelo qual sua pretendente, Marina, se apaixonou, após ter dilapidado para o
casamento que não houve as parcas economias que o noivo havia juntado. A Luís da Silva só
restava, então, dar vazão aos seus impulsos assassinos, matando por estrangulamento o
antagonista econômico e sentimental.

O resultado é uma narrativa em que meditações psicológicas, quando não


psicanalíticas, se entrelaçam com aspectos da vida social da época, marcada pela ascensão de
certos ramos das elites em detrimentos de outros. Com isso, o “drama coletivo” é tragado
pelo “drama pessoal” do narrador, a ponto de Candido qualificar (em 1945, vale lembrar)
Luís da Silva como “o personagem mais dramático da moderna ficção brasileira”.

A intensidade errática da introspecção, sempre excessiva e transbordante, é tamanha


que faz com que o leitor se questione sobre a sua veracidade factual: e não seria tudo aquilo
mera alucinação de um narrador angustiado e marcado pelo complexo de inferioridade em
relação ao oponente?

É o próprio Luís da Silva, aliás, quem sugere tal situação fantasmagórica. “A


lembrança chega misturada com episódios agarrados aqui e ali, em romances. Dificilmente
poderia distinguir a realidade da ficção”, diz ele (p.68). “Seria tudo ilusão?”, se pergunta mais
ao final do romance (p.263).

Estamos no meio de um turbilhão de emoções, o que nos instiga a uma indagação


permanente a respeito do andamento da história. É como se esse distanciamento ficcional,
impulsionado pelo próprio narrador/autor, nos permitisse ultrapassar os limites de uma vida
social asfixiante. Transfigurada, a realidade pode ser vista como passível de ser transformada,
sujeita que está àquilo que dela fazem os que nela vivem.

Em Angústia, o escritor alagoano nos revela, assim, que o interesse pela dinâmica
social perversa do país periférico não é contraditório com a potência da imaginação ficcional.
Na verdade, pode ser o contrário: ao filtrar a realidade pelas lentes da subjetividade do
narrador, Graciliano Ramos constrói um mundo próprio que, por contraste, ilumina de modo
inesperado aspectos fundamentais do mundo “real”.

E não é justamente isso o que caracteriza um grande escritor?

Fabio Mascaro Querido é professor de sociologia da Unicamp

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