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Da ditadura militar brasileira


Augusto César Buonicore
março de 2014

Primeira Edição: Este ensaio foi originalmente publicado em duas partes no Portal


da Fundação Maurício Grabois em março de 2014.
Fonte: Fundação Maurício Grabois -
http://www.grabois.org.br/portal/artigos/154829/2019-03-30/da-ditadura-militar-
brasileira
Colaboração: Erik de Souza
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.

Neste ensaio, o autor defende

a correção teórica e política da

utilização dos conceitos golpe

e ditadura militar para

definirem o movimento

armado que derrubou o

governo Jango em 31 de

março de 1964 e o regime

discricionário que se seguiu,

durando 21 anos. Em defesa

de sua tese, utiliza-se das

posições oficiais das principais

organizações de esquerda

daquele período – como o

PCB, PCdoB, PCBR, ALN, AP-


ML - e da própria teoria

política marxista. O texto

também nos apresenta um

breve histórico do processo de

militarização do Estado

brasileiro pós-1964 e da

gradual eliminação política dos

apoiadores civis do golpe. O

tema ganha maior relevância

quando o presidente de

extrema-direita, Jair

Bolsonaro, afirma não termos

tido um golpe militar e sim um

movimento cívico-militar"

“É indispensável fixar o conceito do movimento civil e militar que

acaba de abrir ao Brasil uma nova perspectiva sobre o seu futuro

(...). A revolução se distingue de outros movimentos armados pelo

fato de que nela se traduz não o interesse e a vontade de um grupo,

mas o interesse e a vontade da Nação” (trecho do Ato Institucional nº

1, decretado pela junta militar em abril de 1964).


Figueiredo cercado por millitares

“A primeiro de abril o que houve foi um golpe militar fascista,

com toda a sequência de arbitrariedade, despotismo e opressão”

(Carlos Marighella. Por que resisti à prisão, 1965).

Até a década de 1990 existia um amplo consenso entre os

principais intelectuais e organizações marxistas brasileiros em relação

ao caráter do golpe e do regime implantado no país em março de

1964. Poucos na esquerda questionavam que havíamos tido em 31 de

março de 1964 um “golpe militar” e que este, por sua vez, implantara

uma “ditadura militar”. As maiores críticas a essas conceituações

vinham dos liberais que, muitas vezes, preferiam usar os termos

regime e governos autoritários, de carga semântica mais suavizada.


Atualmente cresceu o número daqueles que utilizam termos como

“golpe civil-militar” e “ditadura civil-militar”. Talvez, o primeiro

intelectual de esquerda a problematizar o uso do termo “ditadura

militar” tenha sido René Armand Dreifuss. O seu livro 1964: a

conquista do Estado é fruto de uma exaustiva pesquisa em torno do

papel dos grandes empresários, vinculados ao complexo Instituto de

Pesquisas e Estudos Sociais/Instituto Brasileiro de Ação Democrática

(IPES-IBAD), na conspiração que levou ao golpe e nos próprios

governos “autoritários” que se seguiram.

Escreveu ele: “Apesar de a administração pós-1964 ser rotulada

de ‘militar’ por muitos estudiosos de política brasileira, a

predominância contínua de civis, os chamados técnicos, nos

ministérios e órgãos administrativos tradicionalmente não-militares, é

bastante notável (...). Um exame mais cuidadoso desses civis indica

que a maioria esmagadora dos principais técnicos em cargos

burocráticos deveria (em decorrência de suas fortes ligações

industriais e bancárias) ser chamada mais precisamente de

empresários, ou, na melhor das hipóteses, de técnico-empresários”. E

vai mais longe ao afirmar que “os empresários e técnico-empresários

do IPES controlavam os mecanismos e processos de formulação de

diretrizes e de tomadas de decisão no aparelho de Estado”. Menos, é

claro, a presidência da República e a chefia das Forças Armadas – e

isso não é algo trivial.


Nesta obra, curiosamente, ele não usa os termos ditadura ou

golpe. Prefere palavras menos carregadas, como intervenção,

administração e governo autoritários. Contudo, se Dreifuss tem

dúvidas quanto ao caráter “militar” da “administração”, parece não

tê-las quanto ao caráter da “intervenção” ocorrida em primeiro de

abril de 1964. Sobre isso escreveu: “As classes capitalistas se

‘unificariam’ sob uma única liderança – o complexo IPES/IBAD – no

Estado-Maior da burguesia, como também agiram sob a bandeira de

um único partido da ordem: as Forças Armadas”. Continua: “por

intermédio da intervenção militar, o bloco de poder multinacional-

associado emergente elevava o nível e a qualidade da luta de classes,

impondo soluções próprias para a crise, controlando a sociedade

política e produzindo um realinhamento nas relações de domínio

através de uma forma de governo militar autoritário”.


Junta Militar que substituiu Costa e Silva e impediu a posse do vice-presidente civil Pedro
Aleixo.

Nos últimos anos a tese do “golpe civil-militar” (e da “ditadura

civil-militar”) ganhou importante apoio do historiador Daniel Aarão

Reis, um dos maiores e mais respeitados estudiosos da atuação da

esquerda brasileira durante a ditadura. Fazendo uma autocrítica dos

seus escritos anteriores, onde usava livremente a palavra ditadura

militar, passou a utilizar o termo “civil-militar”. Fez isso não apenas

para jogar luz sobre a participação dos grandes empresários no golpe

e o apoio destes à ditadura, mas também para problematizar a

complexa relação existente entre a sociedade brasileira e o regime

implantado em 1964. Aarão chega mesmo a afirmar, de maneira


polêmica, que os “anos de chumbo” (1969-1973) também poderiam

ser considerados “anos de ouro” para “não poucos” brasileiros.

A primeira crítica que devemos fazer a alguns dos defensores

deste neologismo – na qual não incluo Aarão Reis – é quanto à

acusação que fazem aos que criaram e utilizaram os conceitos “golpe

militar” e “ditadura militar”. Eles teriam por objetivo esconder a

participação da grande burguesia e dos latifundiários naqueles

trágicos eventos. A exclusão do termo “civil” seria, na verdade, uma

operação ideológica. Esta ideia é errônea e injusta, pois a esquerda

marxista – a primeira a constatar o caráter militar do golpe e do

regime implantado em 1964 – sempre denunciou o papel

desempenhado pela burguesia, o latifúndio e o imperialismo

estadunidense.

A esquerda marxista diante do golpe e a ditadura

Vejamos agora como alguns dos principais marxistas brasileiros

definiram o golpe e a ditadura brasileira. O historiador e general

comunista Nelson Werneck Sodré escreveu: em 1964 “as Forças

Armadas tomam e instalam-se no poder, não o cedendo às forças

políticas que as manipularam. Há um significado novo, portanto, na

forma de intervenção das Forças Armadas, que é o de manter as

velhas estruturas que controlavam este país desde a época colonial”.

O golpe e a ditadura não eram socialmente neutros, pois serviam aos


interesses de determinadas classes: a burguesia associada ao

imperialismo e o latifúndio.

Golpes e tentativas de golpes militares não eram novidades na

história do Brasil. “A forma dos golpes”, continua Sodré, “é sempre a

mesma: a ação preparatória da mídia, uma pregação intensiva,

visando isolar as forças políticas progressistas e o coroamento por

meio de uma intervenção militar do tipo que vai e vem. Ou seja, as

forças militares intervêm, depõem o detentor do poder naquele

momento, asseguram a sua substituição e se retraem”. Em 1964, ao

contrário do que ocorrera antes, os militares não voltaram aos

quartéis e permaneceram no centro do poder político por mais de 20

anos.

Outro intelectual marxista oriundo do PCB – mas de uma tradição

teórica diferente da de Sodré –, Jacob Gorender, referindo-se ao

golpe afirmou: “A solução encontrada foi inédita na história do Brasil,

porque logo depois do golpe de 64, a partir do Ato Institucional nº 1,

tivemos a primeira ditadura militar brasileira (...). O Estado Novo não

foi uma ditadura militar, mas civil. Getúlio Vargas encarnava, em sua

pessoa, a liderança carismática própria do populismo. Exerceu um

poder ditatorial apoiado nas Forças Armadas (...), mas isso não

chegou a se caracterizar uma ditadura militar”. 


“No Brasil, o poder foi assumido, em 1964, pelas Forças

Armadas, que institucionalizaram um processo de sucessão de

presidentes da República escolhidos entre os pares do alto comando,

de tal maneira que não houve lugar para caudilho militar”. A

diferença entre a nossa ditadura e a argentina e a chilena – além da

falta de caudilhos – foi a tentativa de manter uma fachada

democrática, através da permanência do Congresso Nacional e de um

partido de oposição consentido, o MDB.

Lacerda, líder civil do golpe, teria seu caminho à presidência impedido e seria preso depois do
AI-5.

Esta, em certo sentido, é a mesma opinião do professor João

Quartim de Moraes: “A fórmula ditadura militar é a designação mais

adequada para o regime instaurado em 1964 no Brasil. Expressões


como regime autoritário ou autoritarismo não passam, no melhor dos

casos, de eufemismo, explicáveis quando vigorava a censura

ditatorial (...). Ditadura não carrega, como o autoritarismo, uma

ambiguidade intrínseca, mas também apresenta inconvenientes, que

no uso corrente se manifestam principalmente na confusão entre os

militares enquanto categoria social e as Forças Armadas enquanto

corporação da burocracia estatal. Vulgarmente (...) entende-se a

ditadura militar como a ditadura dos militares. É evidente, porém,

que não são os militares enquanto categoria diferenciada, massa de

funcionários armados e uniformizados, que exercem o poder de

Estado e sim a corporação enquanto tal que extrapola suas funções

profissionais, transpondo para o poder político suas normas

constitutivas internas, cujo primeiro princípio é a disciplina

hierarquizada sob comando central”. A massa dos militares –

inclusive da oficialidade – estava submetida ao férreo princípio da

unidade de comando. Romper com esse princípio seria romper com a

legalidade castrense. Foi justamente isso o que fizeram milhares de

militares que não se submeteram ao golpe de Estado e ao regime

implantado pela cúpula das Forças Armadas.

“A ordem burguesa” – segue Quartim – “especializa

crescentemente as funções hegemônicas, coercitivas, econômicas e

administrativas do Estado (...). É na cúpula e no leme da máquina do

Estado, no nível mais alto da burocracia, que elas se centralizam e


coordenam. Portanto, por ditadura militar entendemos o regime

político em que o poder de Estado é assumido pela cúpula da

hierarquia das Forças Armadas (e não pelos militares enquanto

categoria)”.

Florestan Fernandes, por sua vez, nos perguntava “por que os

militares julgaram-se no dever de dar um golpe de Estado cujo

paradigma procede da contrarrevolução ‘preventiva’?” A lógica militar

responderia: “sem a presença ativa dos militares, o governo ditatorial

seria incapaz de defrontar-se com algo mais grave que ‘turbulências’

e a restauração da ordem continuaria ameaçada”. Segundo esse

raciocínio, uma “tirania civil (mesmo) com apoio militar” seria incapaz

de conter “as lutas de classes e a propagação e o crescimento de

forças sociais desestabilizadoras e incontroláveis”. Assim, “cortar o

mal pela raiz (...) requeria a montagem de um Estado subfascista e

de um governo militar ditatorial! Isso não resolveria a crise social

crônica, mas permitiria salvar as classes dominantes e suas elites de

uma tragédia histórica”.

Os quatro artigos citados acima não foram escritos no “calor da

hora” e sim muitas décadas depois do golpe militar. Compuseram a

coletânea 1964: visões críticas do golpe, resultado de um importante

seminário realizado no IFCH-Unicamp e coordenado pelo professor

Caio Navarro de Toledo. Era, também, um período em que já


começavam a circular – ainda sem grandes repercussões – termos

como “golpe civil-militar” e “ditadura civil-militar”. Podemos

conjecturar que esses textos se constituíam em tentativas de inocular

a militância socialista contra o “revisionismo” histórico em marcha,

tanto na sua vertente de direita como de esquerda.

As organizações de esquerda e o golpe militar

Trataremos agora de como as organizações de esquerda

revolucionárias brasileiras que combateram a ditadura – muitas vezes

de armas nas mãos – encararam o golpe e o regime implantado em

1964.

Em agosto daquele mesmo ano, a Comissão Executiva do Partido

Comunista do Brasil (PCdoB) se reuniu clandestinamente para

debater as razões do golpe de Estado e aprovar a tática a ser adotada

naquela nova quadra histórica. O documento saído desse encontro

afirmava: “Em situação difícil e num clima de insegurança e violência

vive o povo brasileiro, desde que foi desfechado o golpe militar (...).

Sob o falso pretexto de que Goulart favorecia os comunistas, há

muito grupos militares e de civis tinham iniciado a conspiração para

derrubar o governo e deter a ascensão das lutas populares”. Continua

ele: “(...) para derrubar o presidente da República uniram-se desde

Magalhães Pinto, Nei Braga e Mauro Borges até Lacerda e Adhemar

de Barros”. Como é possível ler, os comunistas não tinham a menor


dúvida da participação civil no golpe desfechado, mas sabiam que os

agentes principais haviam sido os militares.

“O governo chefiado pelo Mal. Castelo Branco é fruto de uma

quartelada nos moldes tradicionais latino-americanos (...). Lidera o

novo governo um punhado de militares de alta patente que tem como

centro a Escola Superior de Guerra, fundada por inspiração do

Pentágono”. E segue o texto: “(...) a oficialidade retrógrada não

somente depôs o governo como se apoderou da máquina

governamental, inclusive da presidência da República”. De maneira

pioneira, o PCdoB conseguiu ver o caráter permanente – e não

provisório – do regime: “o grupo de militares que desfechou o golpe

não revela a intenção de entregar o governo nem agora nem depois,

em 1967”.
As dissidências do PCdoB, formadas entre 1966 e 1967, como o

Partido Comunista Revolucionário (PCR) e a Ala Vermelha (AV),

pensavam da mesma forma. Em maio de 1966, o PCR lançou seu

primeiro documento intitulado Carta de 12 pontos. Nele, se lê: “(...) o

imperialismo ianque dirigiu e executou por intermédio dos militares

Senador Auro de Moura Andrade, que que declarou vaga


a presidência da República, logo se chocaria com os militares.
reacionários, os ‘gorilas’, o golpe de 1º de abril de 1964. Estabeleceu-

se uma ditadura militar apoiada internamente na alta burguesia

nacional e nos latifundiários (...). A classe operária, os camponeses,

os estudantes e intelectuais revolucionários constituem as massas

fundamentais para a revolução, isto é, aquelas que exigem de fato a

derrubada da ditadura militar, a expulsão do imperialismo norte-

americano e a eliminação como classe da alta burguesia nacional e do

latifúndio”. A Ala Vermelha, por sua vez, afirmava: “A sociedade

brasileira está submetida à dominação, opressão e exploração do


neocolonialismo e do seu suporte social interno, que as exercem

através da contrarrevolução armada no poder, sob a forma de uma

ditadura militar”. Tanto o PCdoB quanto as suas dissidências não

pareciam ter dúvidas quanto ao caráter de classe do golpe e da

ditadura militar. Os documentos da Ação Popular (AP) desde 1964

também falam em golpe e ditadura militar.

O Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro (PCB)

conseguiu se reunir apenas em maio de 1965. No documento

aprovado naquela ocasião falava-se em “golpe militar reacionário”,

que teria instaurado “uma ditadura reacionária e entreguista”. Na

resolução do seu VI Congresso, de 1967, esse mesmo partido

afirmava: “(...) o Brasil se encontra hoje asfixiado por um regime

ditatorial, militar, de conteúdo entreguista, antidemocrático e

antioperário”. Vários anos depois – em novembro de 1973 – concluía

que o “regime evoluiu de uma ditadura militar reacionária para uma

ditadura militar caracteristicamente fascista”. Esta também era a

visão das dissidências do partidão, nascidas depois de 1964.

Marighella e a Ação Libertadora Nacional (ALN) acreditavam que,

em primeiro de abril, havia ocorrido um golpe militar e que, desde

então, passamos a viver sob o domínio despótico de uma ditadura

militar. Bem antes da criação da ALN, no seu livro Por que resisti à

prisão, o futuro líder da guerrilha urbana afirmaria: “Não houve, pois,


revolução. Os ‘gorilas’ simplesmente desfecharam o golpe e

acabaram com a democracia. O termo é mesmo golpe, quartelada,

abrilada, gorilada. E o mais jocoso de tudo, um autêntico primeiro de

abril”. Em outro trecho, de maneira enfática, disse: “fiz questão de

tornar público que vivemos sob uma ditadura militar fascista. E outra

não pode ser a caracterização do atual estado de coisas”.

“Tratando-se, pois de uma ditadura militar (...) criou uma

contradição com o poder civil. O Brasil entrou numa fase de

militarização da política – resultado lógico de um militarismo que se

implantou no poder pela força – entendido como militarismo o

predomínio dos militares sobre os civis em todos os aspectos da vida

da nação, a subordinação dos interesses do país aos interesses do

poder militar”. E concluiu: “a contradição militarismo versus poder

civil voltou a ser um fenômeno político na vida do povo brasileiro”.

Um último exemplo. O Partido Comunista Brasileiro

Revolucionário (PCBR) – outra dissidência do PCB comandada por

Mário Alves, Apolônio de Carvalho e Jacob Gorender –, no seu

documento programático de 1968, afirmava: “Sendo a ditadura

militar a expressão do poder burguês-latifundiário, a luta pela sua

derrubada está indissoluvelmente ligada ao objetivo principal da

forças revolucionárias – a formação de um governo popular que leve

a termo a revolução e abra o caminho socialista de desenvolvimento”.


Reconheço que esse primeiro artigo não passa de um elenco de

“argumentos de autoridade” – e que autoridades! Mas isso foi

necessário para demonstrar que a utilização dos conceitos “golpe

militar” e “ditadura militar” tem uma longa e respeitável tradição no

seio da cultura marxista e revolucionária brasileira. Não são

invenções pós-fato, criadas com o simples objetivo de inocentar a

burguesia, os latifundiários e o imperialismo de suas

responsabilidades. Eram, pelo contrário, resultado de um louvável

esforço teórico-político, desenvolvido por centenas de militantes

revolucionários em condições nem sempre favoráveis.

No próximo artigo apresentarei as bases teóricas e as implicações

políticas da utilização dos conceitos “golpe militar” e “ditadura militar”

entre as décadas de 1960 e 1980.

Estado, ditadura na teoria marxista

Até agora buscamos demonstrar que a utilização dos conceitos

golpe militar e ditadura militar tem uma longa tradição no seio da

esquerda brasileira. Não foram criados para encobrir o caráter de

classe daqueles acontecimentos e sim para captar suas

especificidades. Como disse Quartim de Moraes: “O sentido de um

termo (...) apresenta um valor semântico determinado por seu

emprego, isto é, pelas significações que foi vinculando ao longo de


sua trajetória”. Os conceitos têm sua história que deve ser

respeitada.

Para entender o conceito ditadura militar faz-se necessário

retornarmos às bases da teoria política marxista. É isso que faremos

de maneira bastante sintética e esquemática. O Estado é uma

organização que, fundamentalmente, se destina a garantir a

dominação de uma classe sobre outra. Diferentes tipos de Estados

correspondem aos diferentes tipos de modos de produção – por

exemplo, escravista, feudal, asiático, capitalista e socialista. A forma

de governo (ou regime político) é a maneira pela qual o poder

classista do Estado se apresenta num determinado momento

histórico. Por isso, ela muda mais rapidamente do que o seu

conteúdo classista.

Os críticos de esquerda do conceito ditadura militar – que o

acusam de encobrir a participação dos empresários naquele regime –

incorrem no erro de confundir a natureza de classe do Estado com a

sua forma. Não veem que a ditadura militar – como o fascismo, o

bonapartismo, a monarquia, a república democrática – é apenas uma

das formas pela qual pode se apresentar o domínio da

burguesia. Quando a esquerda revolucionária brasileira nas décadas

de 1960 e 1970 afirmava que vivíamos sob a égide de uma ditadura

militar estava simplesmente se referindo à forma de governo


despótico existente, que objetivava defender os interesses da grande

burguesia monopolista em aliança com o latifúndio e apoiada pelo

imperialismo estadunidense.

Outro erro que alguns críticos do conceito ditadura militar

cometem é confundir o caráter de classe de um Estado (vinculado à

fração hegemônica no bloco no poder) com a sua base social de

apoio. Uma ditadura da burguesia monopolista e financeira pode, em

alguns momentos, ter como base social de apoio setores das

camadas médias e mesmo das classes populares. Foi o que ocorreu

durante o período de domínio nazista na Alemanha. Isso não significa

que o nazismo fosse uma ditadura da pequena burguesia, como

chegaram a aventar alguns teóricos. Dentro da mesma lógica dos que

argumentam a estreiteza do termo ditadura militar, poderíamos dizer

que o conceito Estado (ou regime) nazista encobriria o apoio dado

pelos grandes industriais e financistas alemães a Hitler.

O Golpe de Estado no Brasil

Ninguém tem dúvida de que entre nós ocorreu um Golpe de

Estado em 1964. Apenas meia dúzia de carcomidos ainda chama

aquilo de revolução. Mas, o que é tecnicamente um Golpe de Estado?

O Dicionário de Política – organizado por Bobbio, Matteucci e

Pasquino – afirma que, em primeiro lugar, “é um ato realizado por

órgãos do próprio Estado”. Ou seja, é um ato de força  executado


fundamentalmente por algum ramo da burocracia civil e militar contra

determinada forma de legalidade. Continua: “(...) na maioria dos

casos, quem toma o poder político através de golpe de Estado são os

titulares de um dos setores-chaves da burocracia estatal: os chefes

militares. O golpe militar (...) tornou-se a forma mais frequente do

Golpe de Estado”. Os civis compareceriam como apoiadores e até

mesmo como beneficiários, mas não (tecnicamente) como

executores.

Foi, justamente, o que ocorreu no Brasil em 1964. Contudo,

diferentemente dos golpes ocorridos antes, os militares, além de

derrubarem o governo legal, resolveram permanecer no centro do

poder, desalojando a elite político-civil que os havia apoiado. O

resultado foi a implantação entre nós – pela primeira vez – de uma

ditadura tipicamente militar.

Isso, é claro, não deve encobrir o fato de que o golpe foi uma

reação das classes economicamente dominantes ao crescimento do

protagonismo popular, especialmente dos trabalhadores urbanos e

rurais. Temiam que as mobilizações crescentes em defesa das

reformas de base poderiam levar as coisas a extrapolarem os limites

da ordem liberal burguesa. Como sempre acontece nesses

momentos, chamaram as Forças Armadas para darem um basta na

situação. Assim, pelo seu conteúdo, o golpe foi burguês e visava a


preservar a ordem supostamente ameaçada. Contudo, a forma

adquirida por ele foi o de um “pronunciamento” militar.

Cabe ressaltar que a base social desse movimento golpista não se

reduzia aos burgueses, que representam uma ínfima minoria da

população. Para ser bem sucedida, a grande burguesia e o

imperialismo estadunidense precisaram mobilizar as camadas médias,

sempre temerosas diante da proletarização e do comunismo. Foram

elas que encheram as ruas de São Paulo na monumental (e patética)

Marcha da Família com Deus pela Liberdade e as do Rio de Janeiro na

Marcha da Vitória após o golpe. Nem por isso é correto dizer que o

ocorrido em 1º de abril de 1964 foi um golpe das classes médias ou

que elas tenham sido as maiores beneficiárias.

Não entraremos nos meandros da conspiração, envolvendo civis e

militares, que precedeu ao fatídico “1º de abril”, trataremos do golpe

propriamente dito. Ao tomar conhecimento do discurso de Jango

numa solenidade promovida por uma associação de sargentos e

suboficiais, realizada na noite do dia 30 de março, os generais

Mourão Filho e Carlos Luís Guedes resolveram rebelar-se com suas

tropas em Minas Gerais, marchar rumo ao Rio de Janeiro e derrubar o

governo.

A mobilização da opinião pública conservadora e a inação do

governo, que ainda possuía tropas leais e podia ter tentado virar o
jogo, decidiram a partida a favor dos golpistas. Os generais que ainda

vacilavam, amedrontados de se envolverem numa luta cujo resultado

era imprevisível, adquiriram súbita coragem e aderiram ao golpe.

Este era o caso de Amaury Kruel, comandante do II Exército de São

Paulo. Logo o I e o II Exércitos estavam unificados contra Jango. Dois

dias depois seria a vez de o comando do III Exército, sediado no Rio

Grande do Sul, incorporar-se à intentona.

Neste momento, a direção dos acontecimentos saiu das mãos do

precipitado e atabalhoado Mourão Filho e passou para as do grupo

liderado pelos generais Castelo Branco e Costa e Silva. Estes, mais

organizados, eram os verdadeiros líderes da sedição nos quartéis e

mantinham contatos íntimos com os conspiradores civis e,

especialmente, com o embaixador dos Estados Unidos.

Na noite de 1º de abril, com o presidente ainda em território

nacional e sem quorum para decretar o seu impeachment, o senador

Auro de Moura Andrade declarou vaga a presidência da República e

entregou o cargo ao presidente da Câmara dos Deputados Ranieri

Mazzili. Este ato ilegal – mais simbólico que efetivo – não

desempenhou papel significativo no golpe já vitorioso. Tentava-se

apenas dar uma aparência de legitimidade à ação violenta

desenvolvida pelos militares diante do público externo. Na verdade,

os generais não precisaram disso para chegar e se manter no poder.


O general Arthur da Costa e Silva, autonomeado ministro da

Guerra, o almirante Augusto Rademaker e o brigadeiro Francisco de

Assis Correia de Melo – nomeados ministros da Marinha e da

Aeronáutica – constituíram o chamado Comando Supremo da

Revolução. Foi este comando que promulgou o primeiro Ato

Institucional, em 9 de abril de 1964. O texto não deixava dúvidas de

quem tinha as rédeas nas mãos: “(...) fica, assim, bem claro que a

revolução não procura legitimar-se através do Congresso. Este é que

recebe deste Ato Institucional, resultante do exercício do Poder

Constituinte, inerente a todas as revoluções, a sua legitimidade”.

Outro fato mostra claramente a relação que iria se estabelecer

entre os militares e seus apoiadores civis. O Congresso, liderado por

udenistas e pessebistas, havia tentado se antecipar aos fatos e

aprovar um Ato Constitucional – com o mesmo conteúdo do AI-1 –,

dando plenos poderes ao Comando Supremo da Revolução para

limpar a cena política dos comunistas, trabalhistas e demais

opositores. Os generais, simplesmente, desconsideraram este ato de

subserviência e buscaram deixar claro de onde provinha o poder.


General Castelo Branco e militares

Através do AI-1, o presidente poderia apresentar emendas

constitucionais ao Congresso, que teria apenas 30 dias para examiná-

las, sendo necessário para aprová-las maioria simples e não 2/3 dos

votos como determinava a Constituição ainda vigente. Poderia

decretar Estado de sítio por até 60 dias, sem autorização do

Congresso; teria o direito de suspender por dez anos os direitos

políticos de qualquer cidadão; cassar mandatos parlamentares e

demitir servidores públicos.

Para garantir que um dos seus pudesse galgar à presidência,

revogou a cláusula constitucional que impedia que oficiais da ativa

pudessem se candidatar. Em 11 de abril – dois dias depois –, o


Congresso elegeu o general Castelo Branco. Talvez, essa tenha sido a

última decisão importante que a “elite civil” pode se considerar

coautora. Mesmo assim – apesar das aparências –, o ato formal de

escolha no parlamento foi apenas o reconhecimento de um fato

consumado pela força das armas. Em poucos meses foram cassados

50 deputados e senadores. Entre as vítimas mais ilustres estava

Juscelino Kubitscheck, que votara em Castelo Branco.

A legislação determinava e Castelo prometia realizar eleição

direta no final de 1965. Contudo, o governo conseguiu arrancar do

Congresso a prorrogação do mandato presidencial por um ano. Diante

dessa medida, que lhe roubava a possibilidade de chegar à

presidência, Carlos Lacerda passou a fazer duras críticas ao governo

de Castelo Branco.

Em outubro de 1964 quem entrou na alça da mira dos militares

foi Áureo de Moura Andrade – o mesmo que havia declarado vaga a

presidência. Acusado de corrupção teve de responder a um Inquérito

Policial-Militar (IPM). Diante disso, exclamou: “Esta revolução foi feita

para salvar o Brasil, mas está sendo literalmente liquidada por

homens que pretendem implantar a ditadura (...). (...). Ninguém

ignora que, à sombra dessa revolução, cresceram muitos inimigos da

democracia que querem fechar o congresso, revogar a Constituição,


suprimir as liberdades do povo e implantar um regime ditatorial

fascista”.

No dia 23 de novembro de 1964, o Supremo Tribunal Federal

(STF), por unanimidade, deu habeas corpus ao governador de Goiás,

Mauro Borges, que estava sendo ameaçado de cassação. Decidiu que

ele somente poderia ser processado com o aval da Assembleia

Legislativa. Apesar disso, três dias depois, foi decretada a

intervenção no Estado e destituído o governador. Assumiu em seu

lugar o coronel Meira Matos. Nesse primeiro período outros

governadores foram cassados, como o do Rio de Janeiro, substituído

pelo marechal Paulo Torres, e do Pará, substituído pelo coronel Jarbas

Passarinho.

Uma das análises mais argutas desse processo foi feita por Décio

Saes. Segundo ele, em 1964, amplos setores das classes médias e da

burguesia desejavam uma ditadura provisória, que limpasse as

instituições da influência das correntes comunistas e populistas.

Contudo, a militarização do aparelho de Estado tornou-se “uma

tendência permanente e irreversível” e levou à “ascendência

crescente do poder executivo – controlado em última instância pelo

grupo militar – sobre o parlamento e o poder judiciário”. O objetivo

dos militares passará a ser a neutralização do conjunto da “classe


política” e a “rejeição das próprias formas democráticas

parlamentares”.

Os militares avançam 

Em 3 de outubro de 1965 ocorreram as primeiras eleições no

novo regime. Foram colocados em disputa onze governos estaduais e

a oposição venceu nos mais importantes: Minas Gerais, Guanabara,

Santa Catarina e Mato Grosso. Os dois primeiros eram governados

pelos principais líderes civis do golpe, os udenistas Lacerda e

Magalhães Pinto.

Em resposta, no dia 27 de outubro, foi decretado o Ato

Institucional nº 2. O presidente agora poderia estabelecer o Estado

de Sítio por até 180 dias e decretar o recesso do Congresso e outras

casas legislativas. O novo ato extinguiu os partidos políticos

existentes, criando o bipartidarismo, e colocou um fim nas eleições

diretas para presidente. Alguns dias depois, através do AI-3,

estabeleceu-se que os governadores também não seriam eleitos

diretamente pelo povo e sim pelas assembleias estaduais. Os

prefeitos passaram a ser indicados pelo governador. Em junho de

1966, Castelo Branco cassou o governador Adhemar de Barros – o

articulador da Marcha da Família com Deus pela Liberdade –, que foi

obrigado a sair do país para não ser preso por corrupção.


Em 12 de outubro de 1966 – nove dias depois da eleição indireta

do general Costa e Silva –, desrespeitando um compromisso feito

junto às lideranças governistas no congresso, Castelo Branco

decretou a cassação de seis deputados do MDB. O presidente da

Câmara dos Deputados, o arenista Adauto Lúcio Cardoso, recusou-se

a aceitar as cassações e permitiu que os parlamentares punidos

continuassem em seus postos.

Diante da resistência, o governo simplesmente fechou o

Congresso. Tropas do exército ocuparam as suas dependências, além

de cortar a água e a luz do edifício. O jornalista Carlos Chagas

descreveu a cena: “Na mesma hora, por todas as entradas do

Congresso a soldadesca invadiu em acelerado. O grito era ‘civis fora!

Civis fora!’”. O diálogo entre o comandante da operação e o

presidente da Câmara, que já se conheciam, muito nos diz sobre as

relações assimétricas existentes entre os dois poderes. Diante do

parlamentar, o coronel falou em voz alta: “Eu sou o poder militar. E o

senhor, quem é?”. Numa postura dramática de reverência, o

deputado respondeu: “Eu sou o poder civil e curvo-me à força dos

canhões”.
Governador Adhemar de Barros: o apoio ao golpe não o salvou da cassação.

O Congresso desfalcado pelas cassações foi reconvocado em

dezembro para, a “toque de caixa”, aprovar o projeto de Constituição

enviado pelo governo militar. Nascia, assim, guarnecida pelas armas,

a Constituição de 1967. Nela, o poder Executivo militarizado era

ainda mais fortalecido. O Congresso, inclusive, já havia perdido a

capacidade de legislar sobre matéria orçamentária.

Lacerda, então, resolveu fazer um lance arriscado e se jogou na

formação da Frente Ampla. Para isso procurou seus adversários

históricos Juscelino Kubistchek e João Goulart, ambos cassados. A


experiência durou pouco. Bastou que se iniciassem as primeiras

manifestações estudantis em 1968 para que a frente oposicionista

fosse fechada. Em junho, o ex-presidente Jânio Quadros foi detido e

confinado em Mato Grosso. Esses exemplos mostram a falácia dos

que afirmam que a ditadura militar começara apenas em 1969.

No final de 1968 o regime estava novamente em crise – e não

pelas manifestações de ruas que haviam retrocedido, mas devido às

resistências surgidas no seu próprio campo. Em dezembro a Câmara

se recusou a dar permissão para que se processasse o deputado

Márcio Moreira Alves. Inúmeros deputados da Arena votaram a favor

da imunidade do parlamentar. O STF, contra a vontade do governo,

deu habeas corpus para os líderes estudantis presos em Ibiúna.

Vozes discordantes já se ouviam no Tribunal Superior Militar.

Em 13 de dezembro, um dia depois da votação no Congresso e

no STF, o governo baixou o Ato Institucional nº 5 – o mais truculento

de todos. O parlamento foi fechado e os direitos civis e políticos

suspensos – entre eles o habeas corpus. À sombra desse ato foram

cassados 113 deputados federais e senadores; 190 deputados

estaduais, 30 prefeitos e 4 ministros dos tribunais superiores.

Ironicamente, no dia seguinte ao ato, Carlos Lacerda foi preso pela

polícia militar da Guanabara.


O último acontecimento que iremos tratar aqui é o da sucessão

de Costa e Silva. O general-presidente ficou enfermo e

impossibilitado de governar. Pela constituição do regime militar,

deveria assumir o vice-presidente, o civil Pedro Aleixo. Mais do que

depressa, os ministros militares impediram sua posse e o colocaram

sob uma espécie de prisão domiciliar. Uma junta militar passou a

dirigir o país até a escolha do novo presidente.

Desta vez acharam uma forma original de fazer isso – e que

traduzia mais fielmente o caráter do regime. Fez-se uma primeira

eleição apenas entre os generais, almirantes e brigadeiros. O

escolhido nesta forma peculiar de democracia militar foi Emílio

Garrastazu Médici. O Congresso – expurgado de todas as vozes

discordantes – foi reconvocado para sufragar o nome escolhido pela

cúpula das Forças Armadas. Isso demonstra que a existência formal

de um parlamento não faz de nenhum país uma democracia.

A militarização do aparelho de Estado

Escreveu João Roberto Martins Filho: “(...) o afastamento dos

representantes propriamente políticos (da burguesia) expressou-se

institucionalmente no surgimento e consolidação de sedes de poder

castrense – a presidência e órgãos de assessoria militar, os

ministérios das três armas, os comandos do exército, os Estados-

Maiores das Forças Armadas e, depois de 1967, o Alto Comando das


Forças Armadas –, no aspecto político, marcaram-se por uma

acentuada ‘desigualdade estrutural’ em relação aos outros ramos do

aparelho de Estado”. Por isso, “o conceito mais pertinente para

entender esses regimes seria o de ditadura militar”.

Como diz Martins, houve a partir de 1964 um rápido e acentuado

deslocamento de forças no interior do Estado burguês a favor dos

seus aparelhos repressivos (no caso, a cúpula das Forças Armadas),

com o aguçamento sem precedente do centralismo burocrático. A

outra face desse processo foi o esvaziamento dos poderes Legislativo

e Judiciário, ambos subordinados ao “poder militar”. Os militares

avançariam sobre os mecanismos de representação política

(parlamento) – terreno das chamadas elites civis. Pouco – ou nenhum

– espaço de decisão foi-lhes dado. E conclui: “(...) ao cerrar fileiras

contra qualquer tentativa civil de mudanças dos rumos do processo

político, as Forças Armadas apresentaram notável unidade no plano

estratégico (...). O repúdio a todo risco de ‘volta ao passado’

constituiu, no pós-1964, o principal fator de unidade militar face ao

mundo civil.”

Os militares não formam uma classe social. Dentro da tradição

marxista, são considerados uma categoria social, como os

estudantes, funcionários públicos e padres. Sua identidade é dada

pelo seu pertencimento a um dos aparelhos (repressivos) do Estado:


as Forças Armadas. Ditadura militar, enquanto regime, significa o

monopólio (ou influência desproporcional) do poder político pela

cúpula do aparelho militar.

O que são civis? De uma maneira mais ampla, são todos aqueles

que não são militares. Assim, quando falamos em civil-militar

estamos nos referindo a todos os cidadãos de um país.

Convenhamos: se o termo ditadura militar pode parecer um pouco

estreito por, aparentemente, não dar conta de todo fenômeno; o

termo ditadura civil-militar é demasiado amplo e perde a capacidade

de entender a especificidade deste tipo de regime. Além do mais não

resolve o problema de denunciar o caráter de classe da ditadura, pois

entidades civis eram a CGT, a Contag, as Ligas Camponesas, a

Febraban e a Fiesp. Civis eram Prestes, Jango e Carlos Lacerda.

Décio Saes nos lembra que “um conceito não pode ser uma cópia

exaustiva de qualquer fenômeno, ele consiste, tão somente, na

enunciação, em temos científicos, dos seus aspectos essenciais e

invariantes”. O conceito ditadura militar, como qualquer conceito,

pode não nos dizer tudo sobre o fenômeno que procura abarcar, a

saber: o regime que imperou no país entre 1964 e 1985, mas nos diz

dele o que é fundamental.

Segundo matéria da revista Retrato do Brasil tratando do poder

militar: “(...) não se instalou, no Brasil, apenas um governo militar,


caracterizado pela origem castrense do presidente da República, nem

passou a ocorrer somente a coexistência desequilibrada de um

Executivo ‘forte’ com um Legislativo e um Judiciário fracos (...). Muito

mais que isso, houve um amplo e profundo processo de militarização

do conjunto do Estado brasileiro. Houve antes de mais nada a

militarização do Executivo”. Continua o texto: “surgiram os ‘generais-

ministros’ os ‘coronéis-ministros’, ocupando pastas estratégicas,

tradicionalmente qualificadas como civis (...)”. Mesmo os ministros

civis passaram a ser tutelados e fiscalizados pelas Forças Armadas,

através das Divisões de Segurança e Informações (DSI). A mesma

coisa acontecia nas autarquias e empresas públicas, como a

Petrobras. Tudo era um problema de Segurança Nacional, típica

subideologia do aparelho militar.

Concluímos este longo artigo com uma reflexão do professor

Quartim de Moraes: “Os bons historiadores da política dão mais

importância ao vocabulário das lutas concretas do que às

elucubrações de sabichões tardios. As ideias-força que animam o

combate político devem sintetizar-se numa fórmula clara que oriente

e concentre a energia coletiva. O inimigo imediato que os

movimentos contra as ditaduras enfrentaram em todo o Cone Sul

foram as cúpulas militares reacionárias, que exerciam quase

monopolisticamente o poder de Estado, recorrendo ao terror

repressivo para aniquilar a resistência clandestina e intimidar a


oposição consentida”. Assim, o conceito ditadura militar – além de

teoricamente correto – tinha um claro sentido político-prático.

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Inclusão: 22/09/2020

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