Você está na página 1de 10

UNIVERSIDADE FEDERAL

FLUMINENSE
ESCOLA DE SERVIÇO SOCIAL

Docente: Juniele Ribeiro


Discente: Gustavo Fagundes

Disciplina: História Política e Social III

RESENHA INDIVIDUAL

NITERÓI
2023
As maneiras como as sociedades lidam com seu passado são caracterizadas por
dinamismo, fluidez e, por vezes, contradições. Essas abordagens variam
conforme os grupos sociais, culturais e políticos envolvidos no processo, sendo
permeadas por traumas, tabus e ressentimentos. A interseção entre história e
memória torna-se complexa, especialmente ao abordar um passado
compartilhado, sobretudo quando há processos políticos em andamento e muitos
dos protagonistas ainda estão vivos e atuantes.
É importante reconhecer que a memória é uma construção cultural subjetiva,
enquanto a história é uma operação intelectual regida por convenções científicas.
Apesar de distintas, essas duas formas de representar o passado frequentemente
se entrelaçam e podem gerar confusão. Não se pode afirmar que uma seja
superior à outra, uma vez que ambas desempenham papéis significativos na
compreensão e interpretação do passado.
A complexidade dessa relação é evidente no estudo dos regimes militares na
América Latina. No artigo “Recordar é vencer: as dinâmicas e vicissitudes na
construção da memória sobre o regime militar brasileiro”, o autor Marcos
Napolitano aborda questões teóricas relacionadas à memória de períodos
conflituosos e violentos. Em seguida, ele propõe uma perspectiva abrangente
sobre a construção social da memória em torno do regime militar brasileiro.
A superação de conflitos políticos marcados por extrema violência tem
demandado uma revisão histórica, ações reparatórias e autocrítica por parte dos
Estados resultantes desses processos, juntamente com o reconhecimento do
direito à memória das vítimas, especialmente após a Segunda Guerra Mundial.
Observa-se que o conflito ou a divergência de opiniões e identidades não são,
por si só, o cerne do problema; entretanto, as formas como são abordados pela
sociedade podem degenerar em violência amômica. Embora um Estado tenha o
direito legal de se defender quando atacado por grupos insurgentes, essa defesa
deve ser conduzida com absoluto respeito aos direitos humanos fundamentais.
A violência contra opositores políticos tornou-se inaceitável nos alicerces das
democracias contemporâneas, e quando direcionada a grupos étnicos ou
religiosos que, em princípio, não representam uma oposição ativa à ordem
política, a gravidade do problema se intensifica. O genocídio associado ao
extermínio de judeus nos campos de concentração nazistas, conforme definido
pelas Nações Unidas, exemplifica essa violência e a memória subsequente que
se formou, causando uma ruptura nos padrões de recordação de conflitos.
As formas de memória adotadas por Estados democráticos originados de regimes
ditatoriais concentram-se na construção da verdade a partir da perspectiva das
vítimas, representadas pelos sobreviventes, e na denúncia dos crimes cometidos
pelo Estado. A complexidade aumenta ao considerar o nazismo, onde a extrema
violência estatal, aliada à derrota incontestável das potências fascistas na
Segunda Guerra, facilita a reconstrução da memória de maneira ético-moral
clara, identificando com nitidez a avareza política nos processos relacionados aos
regimes militares latino-americanos.
Ao substituir ditaduras, as democracias enfrentam o desafio, além das questões
jurídicas, de lidar com dois estatutos da verdade na reconstrução da memória. Há
uma dimensão jurídica inquestionável voltada para a elucidação de crimes,
localização dos corpos de desaparecidos políticos, e outra dimensão histórica
guiada pelo imperativo de narrar e analisar a violência a ser superada,
conciliando as demandas éticas e metodológicas da historiografia com a função
pedagógica de construir uma nova convivência democrática. Como Martin
Carrapós observa sobre os desaparecidos políticos: "A história não os registrou
pelo que fizeram, mas pelo que foi feito com eles: sequestrados, assassinados,
escamoteados, desaparecidos", e esses dois estatutos de verdade se
entrelaçam. Portanto, enquanto não se souber "o que foi feito com eles",
persistirá uma lacuna de verdade que contaminará a narrativa histórica como um
todo.

Portanto, se esses espaços sociais desempenham um papel crucial na formação


da memória dominante, é crucial reconhecer que a relação da sociedade com seu
passado não está exclusivamente vinculada a eles. Redes de interação social
privada, como família, vizinhança e círculos culturais, também podem contribuir
para a disseminação de memórias dominantes sobre um determinado período
histórico, assim como as redes sociais na internet e sites. No cinema ambientado
na época ou no pós-regime, nas músicas da Música Popular Brasileira (MPB), na
literatura, nas artes plásticas e no teatro, a ditadura é frequentemente retratada
como sinônimo de opressão, violência e censura, em contraste com a liberdade
expressa nas obras de arte.
A imprensa liberal, que teve um papel proeminente na conspiração que resultou
na queda de Jango, destacou-se ao denunciar o autoritarismo, a tortura e a
censura como características centrais do regime que ela, de certa forma,
contribuiu para construir, como evidenciado pelos termos utilizados nos jornais
brasileiros da época. A memória dominante do regime militar brasileiro passou
por um processo complexo e contraditório de construção, incorporando
elementos simbólicos da esquerda, que foi efetivamente derrotada nos processos
políticos, e da expiação parcial realizada por setores liberais que ajudaram a
instaurar o regime. Mesmo ao incluir elementos das esquerdas armadas ou não,
a memória dominante permanece, em sua essência, uma memória liberal
conservadora. Ao elogiar a resistência e condenar as ações de alguns
resistentes, a memória liberal conseguiu obscurecer o papel dos liberais na
criação da ordem autoritária. Simultaneamente, as esquerdas também
construíram sua narrativa, enfatizando a "resistência democrática" como seu
mote genérico. Esse é um processo intrínseco à construção de qualquer memória
social, caracterizado por esquecimentos e lembranças seletivas que buscam
justificar posições no passado e identidades no presente.

O processo de construção social da memória durante a ditadura teve início


durante o regime e ainda se mostra dinâmico na memória social e histórica do
Brasil, dividindo-se em quatro fases. A primeira, entre 1964 e 1974, foi marcada
por experiências históricas fundamentais que serviram como experiência primária
para as construções no campo da memória. Isso incluiu o golpe de estado, a
derrota do reformismo de esquerda, as manifestações estudantis de 1968, as
vicissitudes do governo Castelo Branco, as primeiras dissidências liberais, a luta
armada de esquerda, a censura prévia, a disseminação do terror de estado como
métodos repressivos após o AI-5 e, por fim, o milagre econômico. Esses eventos
provocaram uma autocrítica de muitos liberais que o apoiaram vigorosamente,
delineando uma memória da fase inicial da ditadura. Castelo Branco terminou seu
mandato caracterizado como ditador, enquanto Costa e Silva era aclamado como
porta-voz de um grupo renovador do regime, mais tolerante e aberto ao diálogo
com a sociedade, pelo menos no início de seu mandato.
A segunda fase, que abrangeu o período de 1974 a 1994, foi crucial para a
construção social da memória predominante sobre o regime militar, pois envolveu
um processo complexo de construção e revisão de novos significados para as
experiências fundamentais do período anterior. O início do governo Geisel e suas
promessas de abertura política estavam vinculados à percepção comum entre
grupos liberais e guerrilheiros. A classe média educada e os movimentos sociais
emergiram como protagonistas na criação de uma memória crítica do regime,
contribuindo para deslegitimá-lo perante a opinião pública. Nesse período, a crise
econômica e a corrupção se destacaram, uma vez que o fim do milagre
econômico e o retorno da inflação tornaram-se temas discursivos cruciais para a
nova percepção social do regime. O período de 1979 a 1985 foi essencial para
solidificar uma memória crítica predominante, enfraquecendo as bases de
legitimação simbólica e ideológica do regime, embora o governo não tenha se
enfraquecido significativamente ou ficado à mercê da oposição democrática,
mesmo com os protestos de rua entre 1977 e 1984. O ano de 1979 marcou a
consolidação da resistência democrática como a expressão máxima da
sociedade civil, apresentando-se como antítese do Estado autoritário.

Com o fim do regime e a transição para um novo governo, a memória da ditadura


passou a ser reconhecida como uma lacuna histórica e como uma usurpação do
Estado pelo autoritarismo, caracterizada por violência política a ser superada. A
resistência civil tornou-se o caminho verdadeiro para isolar e derrotar o regime,
utilizando termos valorizados pela esquerda percebista. Apesar do idealismo
juvenil sem base na realidade e da condenação da opção guerrilheira como uma
arma política eficaz, esses elementos continuam presentes em filmes e novelas
contemporâneos. A visão política que emergiu enfocou a política como uma ação
coletiva pacífica, baseada na negociação de conflitos e na produção de
consensos mínimos em nome dos direitos fundamentais. A nova democracia
brasileira constrói sua memória a partir da última ditadura, mas o espectro do
regime militar, seus legados institucionais e sua amarração política ainda
assombram a sociedade brasileira. Resistência e democracia são as palavras-
chave que categorizam o pensamento crítico, o autoritarismo do regime e o
pragmatismo realista em relação à ordem democrática que emergiu das cinzas.
A terceira fase, que se estendeu por apenas 9 anos (1995 a 2004), foi marcada
pela entrada do Estado como produtor de memória e pela prevalência de uma
memória predominante crítica ao regime, influenciando as políticas do Estado
brasileiro pós-ditadura. Após a década de 1990, o Estado adotou uma política
cautelosa, pontual e desarticulada, uma vez que estava se recuperando dos
estragos das violências ocorridas no regime. Essa política incluiu ações de
reparação e recuperação para as vítimas dessas atrocidades, ao mesmo tempo
em que buscou promover iniciativas institucionais e simbólicas. Em 2012, a
Comissão Nacional da Verdade foi instaurada como exemplo dessa política de
reparações, com a missão de esclarecer fatos ainda obscuros relacionados à
repressão política contra opositores e de produzir a história oficial do período sob
a perspectiva de uma democracia prejudicada. Ao todo, 29 medidas foram
recomendadas por eles, incluindo a proibição de comemorações oficiais do golpe
de 1964, a reformulação do conteúdo curricular das academias militares, entre
outras. Segundo Luiz Antonio Groppo, as políticas de memória são ações
deliberadas estabelecidas por governos e se configuram como políticas de estado
quando conseguem se institucionalizar e obter o respaldo das principais forças
político-partidárias em um determinado contexto político. Essas políticas visam
conservar, transmitir e valorizar memórias significativas para moldar uma
identidade social e política específica.
A quarta fase desse período, abrangendo 11 anos e três governos (Luís Inácio
Lula da Silva e Dilma Rousseff), destaca-se como a mais complexa e rica. Este
período apresentou desafios significativos para os analistas, pois testemunharam
dois movimentos aparentemente contraditórios: a implementação da política de
memória e a crítica ao regime militar, ao mesmo tempo em que ocorria um
movimento revisionista desmistificando as bases da memória. O resultado foi a
emergência de correntes como o liberalismo de direita e o conservadorismo
fascista e golpista. A entrada da imprensa na arena também foi notável, pois,
apesar dos interesses econômicos, havia o receio de que o governo pudesse
instaurar uma república sindicalista e reintroduzir a censura.
Este período político abalou o espaço sociopolítico, que, apesar dos conflitos,
defendia a democracia. É fundamental refletir sobre essa fase, que ainda
permanece sem conclusões definitivas, pois há muitas incertezas e
questionamentos em relação às memórias ignorantes e difusas da direita.
Durante esse período, surgiram diversas formas de legitimação das memórias da
direita, incluindo o negacionismo (recusando a tortura dos presos políticos), a
nostalgia (idealizando uma época de prosperidade, honestidade e segurança), o
autoritarismo conservador (vendo-o como uma saída legítima para a crise moral
brasileira, rejeitando os valores socialistas e liberalistas), o etilismo (explicando a
crise moral da era PT) e o moralismo (enxergando a política como reino da
corrupção, defendendo a regeneração das instituições corrompidas pelo
"lulopetismo").

Uma análise desse período destaca que a política de memória se fortaleceu, mas
o revisionismo também ganhou espaço. Esta análise ressalta a problematização
da resistência da memória e conclui que isso aprofundou o estudo da direita e o
apoio militar, gerando uma versão brasileira que utilizava a violência política
como forma de expressão. Apesar das complexidades, a política de memória do
Estado pós-ditadura permanece contraditória. Os governantes, cuidadosos para
evitar serem rotulados como revanchistas, procuraram manter-se dentro da
tradição, evitando rupturas na liberdade de punição dos torturados. No entanto,
desenvolveram políticas de resgate por parte dos militares, promoção de
memórias privadas e implementação de políticas públicas.

A "febre memorialista" marcou um momento em que a sociedade brasileira entrou


em uma guerra de memória contra o revisionismo, especialmente ideológico.
Após os 50 anos, grupos lutaram para ter sua verdade reconhecida. No lado
direito, atores políticos e sociais criaram partidos para disputar o sentido histórico
dessa experiência, jovens estudantes assumiram posições direitistas e buscaram
relançar o partido do regime (ARENA), militares que defendiam o regime e até
roqueiros surgiram nas redes sociais. Do lado esquerdo, ONGs de direitos
humanos, movimentos das famílias afetadas e jovens denunciaram os
torturadores impunes. A extrema direita ganhou espaço, perturbando as áreas de
memória valorizadas pela esquerda, e essa disputa continua.
Nessa batalha, a esquerda cobra, pois os militares de esquerda, armados ou não,
sofreram punições, enquanto os torturadores nunca foram responsabilizados. No
Brasil, vivemos uma situação considerada paradoxal. A atuação demorada (30
anos após o fim da ditadura) desencadeou uma análise aprofundada do regime
militar. Os níveis do Estado brasileiro e seus entes federativos têm desenvolvido
políticas de abertura de arquivos.

Concluindo, a história permanece sem um desfecho, e surge o questionamento:


será que a abordagem crítica e compreensiva pode comprometer a moralidade e
a ética da lembrança da luta pela justiça e pela democracia? Essa questão se
torna mais enigmática à medida que as evidências se concretizam, mostrando a
disseminação da mentira. No entanto, a CNV (Comissão Nacional da Verdade)
destaca que o que está nos livros de história hoje não é eficaz para selar o
compromisso e a cultura democrática do Brasil. Os historiadores se veem
desafiados a analisar materiais de crimes coletivos, a credibilidade das
testemunhas sobreviventes e a função das testemunhas. A busca ideal é
aproximar a verdade jurídica dos avanços historiográficos para evitar a
vilanização simplista de militares e a idealização dos opositores do regime,
evitando que a memória crítica, objeto de disputa e revisão, se dilua no
relativismo e no negacionismo. Afinal, como destaca o autor do texto "Recordar é
vencer: as dinâmicas e vicissitudes da construção da memória sobre o regime
militar brasileiro", os "assassinos da memória" e os defensores do autoritarismo
estão sempre à espreita.

REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS

NAPOLITANO, M. Recordar é vencer: as dinâmicas e vicissitudes da construção da


memória sobre o regime militar brasileiro. Antíteses, [S. l.], v. 8, n. 15esp, p. 9–44,
2015. DOI: 10.5433/1984-3356.2015v8n15espp9. Disponível em:
https://ojs.uel.br/revistas/uel/index.php/antiteses/article/view/23617. Acesso em: 08
dez. 2023.

Você também pode gostar