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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS

FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA

ÓSCAR MORAIS FERNANDO NAMUHOLOPA

O PAPEL DOS RITOS DE INICIAÇÃO NA COMUNIDADE YAAWO: CASO


DA CIDADE DE LICHINGA-MOÇAMBIQUE.

GOIÂNIA-GO
2017
ÓSCAR MORAIS FERNANDO NAMUHOLOPA

O PAPEL DOS RITOS DE INICIAÇÃO NA COMUNIDADE YAAWO: CASO


DA CIDADE DE LICHINGA-MOÇAMBIQUE.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Sociologia, Faculdade de Ciências
Sociais da Universidade Federal de Goiás para
obtenção do título de Mestre em Sociologia.

Linha de Pesquisa: Cultura, Representações e


Práticas Simbólicas.

Orientadora: Profa. Dra. Ivanilda Aparecida


Andrade Junqueira.

GOIÂNIA-GO
2017
ÓSCAR MORAIS FERNANDO NAMUHOLOPA

O PAPEL DOS RITOS DE INICIAÇÃO NA COMUNIDADE YAAWO: CASO DA


CIDADE DE LICHINGA-MOÇAMBIQUE.

Dissertação aprovada em 20 de Fevereiro de 2017, pela banca examinadora constituída por:

_______________________________________________________________
Profa. Dra. Ivanilda Aparecida Andrade Junqueira-UFG
Presidente da Banca

_______________________________________________________________
Prof. Dr. Nildo Viana-UFG
Examinador

_______________________________________________________________
Profa. Dra. Veralúcia Pinheiro-UEG
Examinadora
À eterna saudade da minha mãe, Julieta Morais dos Santos
Ao meu pai Fernando Silvestre
Aos meus irmãos
Angélica e
Amílcar
Agradecimentos

O presente trabalho não teria sido possível sem o apoio e a colaboração de pessoas e
instituições a quem agradeço, são elas: a Professora Doutora Ivanilda Aparecida Andrade
Junqueira, que aceitou me orientar mesmo sem saber de quem se tratava; a coordenação do
Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) da Universidade Federal de Goiás (UFG)
que aceitou minha integração no programa; o Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico/Ministério de Ciência e Tecnologia de Moçambique (CNPq/MTC-
MZ), que me atribuiu a bolsa de estudo; a Coordenadoria dos Assuntos Internacionais (CAI)
da UFG, que me deu apoio necessário; o Professor Doutor Nildo Viana, que me sugeriu e
forneceu material bibliográfico.
Agradeço ainda, a todos os intervenientes que tornaram possível o meu trabalho de
pesquisa; a todos meus colegas e amigos que deram o seu apoio moral e, por fim, a todas as
pessoas singulares ou instituições que, tendo dado seu apoio significativo para que este
trabalho fosse uma realidade, não tenha mencionado por erro de omissão ou de memória.
Na verdade, porém, cada sociedade considerada em
momento determinado de seu desenvolvimento,
possui um sistema de educação que se impões aos
indivíduos de modo geralmente irresistível. É uma
ilusão acreditar que podemos educar nossos filhos
como queremos. Há costumes com relação aos quais
somos obrigados a nos conformar; se os
desrespeitarmos, muito gravemente, eles se vingarão
em nossos filhos. Estes, uma vez adultos, não
estarão em estado de viver no meio de seus
contemporâneos, com os quais não encontrarão
harmonia. (DURKHEIM, 1965, p. 36).
RESUMO

Esta dissertação, intitulada O papel dos ritos de iniciação na comunidade yaawo:


caso da cidade de Lichinga-Moçambique centra o seu objetivo em analisar o papel social dos
ritos de iniciação na comunidade yaawo, caracterizar a prática dos ritos de iniciação nesta
comunidade em tempos atuais de fluxo cultural, diferenciar a iniciação masculina e feminina
quanto à prática e temática e descrever o papel dos ritos de iniciação na preservação dos
valores socioculturais da região. A sua execução tornou-se possível através da pesquisa
desenvolvida dentro da comunidade, envolvendo iniciados, mestres e gestores das escolas
onde estes iniciados buscam o seu aprendizado. A pesquisa junto destes últimos visava aferir
o nível de relacionamento entre a prática dos ritos de iniciação e as instituições escolares. Da
pesquisa, constatei que os ritos de iniciação têm o papel de reforçar a coesão social interna
entre os membros da comunidade, disseminar entre os seus participantes o espírito de
solidariedade e despertar o sentimento de pertença. Têm igualmente, o papel de socialização
entre os iniciados e a comunidade em geral. Eles criam linhas mestras da moral e traçam as
regras de conduta social da comunidade. A iniciação no contexto yaawo significa a conquista
da maioridade social. Pela iniciação o indivíduo passa da infância para a vida adulta, passando
assim a integrar a parte ativa da vida da sua comunidade e gozando de plenos direitos.
Significam ainda, o momento mais alto da exaltação da cultura e identidade da comunidade.

Palavras-chave: comunidade yaawo; iniciação masculina e feminina; papel dos ritos


de iniciação.
ABSTRACT

This dissertation, entitled The role of initiation rites in the yaawo community: case of the city
of Lichinga-Mozambique has the aim: to analyze the social role of initiation rites in the yaawo
community; to characterize the practice of initiation rites in this community in present times
Of cultural flow; to differentiate male and female initiation related to practice and thematic
and to describe the role of initiation rites in the preservation of the socio-cultural values of the
region. Its execution has become possible through research developed within the community,
involving initiates as witness, teachers and managers of the schools where these initiates seek
their learning. The research with schools and its agents aimed to analyze the relationship level
between the practice of initiation rites and school institutions. The findings showed that
initiation rites have the role of reinforcing internal social cohesion among members of the
community, disseminating among their participants the spirit of solidarity and awakening the
sense of belonging. They also have the role of socialization between initiates and the
community at large. They create moral guidelines and outline the community's rules of social
conduct. Initiation in the yaawo context means the attainment of social majority. By initiation
the individual passes from childhood to adulthood, thus becoming part of the active part of the
life of his community and enjoying full rights. They also mean the highest moment of the
exaltation of culture and community identity.

Keywords: yaawo community; Male and female initiation; Role of initiation rites
LISTA DE TABELAS, MAPAS E FOTOS

Tabelas

Tabela 1-Efetivo abrangido pela pesquisa..................... ................................................................ 16


Tabela 2-Distribuição dos iniciados por sexo e religião ............................................................... 79
Tabela 3-Distribuição de idades dos iniciados ......................................................................... 81
Tabela 4-Distribuição de idades das iniciadas .......................................................................... 99

Mapas

Mapa 1-Localização de Moçambique....................................................................................... 43


Mapa 2- Divisão política de Moçambique.................... ........................................................... 44
Mapa 3-Divisão administrativa da Província de Niassa ........................................................... 45
Mapa 4-Moçambique e as companhias monopolistas.... ............................................................. 155
Mapa 5-Área da companhia de Niassa.......................... ......................................................... 155

Fotos

Foto 1-Iniciado acompanhado de padrinho e familiares ............................................................... 97


Foto 2-Iniciada acompanhada de madrinha e familiares ............................................................. 109
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ago.-Agosto
CAI-Coordenadoria dos Assuntos Internacionais
CEA-Centro de Estudos Africanos
CMCL-Conselho Municipal da Cidade de Lichinga
CNPq-Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
Coor.-Coordenação
dez.-Dezembro
Dir.-Direção
ed.-edição
Ed.-Editora
EPC-Escola Primária Completa
ESG-Escola/Ensino Secundária/o Geral
Etc.- e o resto/e outras coisas
FRELIMO-Frente de Libertação de Moçambique
GD-Grupo Dinamizador
INDE-Instituto Nacional do Desenvolvimento da Educação
INE-Instituto Nacional de Estatística
jan.-Janeiro
Km-Quilómetro
METRAMO-Medicina Tradicional de Moçambique
MINED-Ministério da Educação
MTC-MZ-Ministério de Ciência e Tecnologia de Moçambique
n.-número
nov.-Novembro
Org. Organização/organizador
out.-Outubro
P. -Página
P.e-Padre
PCEB-Plano Curricular do Ensino Básico
PCESG-Plano Curricular do Ensino Secundário Geral
PPGS-Programa de Pós-Graduação em Sociologia
RENAMO-Resistência Nacional Moçambicana
SNE-Sistema Nacional de Educação
UEM-Universidade Eduardo Mondlane
UFG-Universidade Federal de Goiás
UnB-Universidade de Brasília
V-Volume
WNELA-Witwatersrand Native Labour Association
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 13
CAPÍTULO 1
O MUNDO DOS RITOS: TEORIAS E CONCEITOS ............................................................ 20
1.1 A DIVERSIDADE DOS RITOS E SUA CLASSIFICAÇÃO ........................................... 21
1.2. CONCEITOS E PRINCÍPIOS DOS RITOS ..................................................................... 28
1.3. CARÁTER EDUCATIVO DOS RITOS DE INICIAÇÃO .............................................. 30
1.4. OS RITOS, A MORAL E SOCIALIZAÇÃO ................................................................... 35
CAPÍTULO 2
MOÇAMBIQUE E NIASSA: TERRITÓRIO E POPULAÇÃO ............................................. 40
2.1. CONHECENDO UM POUCO DE MOÇAMBIQUE....................................................... 40
2.2. NIASSA, TERRITÓRIO E POPULAÇÃO....................................................................... 43
2.2.1. Território......................................................................................................................... 43
2.2.2. Evolução da geopolítica da Província de Niassa ............................................................ 47
2.2.3. Passado territorial ........................................................................................................... 49
2.2.4. População e civilização .................................................................................................. 51
2.2.5. Os Anyanja ..................................................................................................................... 53
2.2.6. Os Amakhuwa ................................................................................................................ 54
2.2.7. Os Ayaawo ................................................................................................................... 57
2.2.7.1. Duas origens, um só povo: história ou lenda? ............................................................. 59
2.2.7. 2. Organização social e os Estados Yaawo. ................................................................... 61
2.2.7.3. As dinastias do Estado Mataka .................................................................................... 69
2.2.8 Lichinga, território: ontem e hoje .................................................................................... 73
CAPÍTULO 3
A PRÁTICA DOS RITOS DE INICIAÇÃO NA COMUNIDADE YAAWO .......................... 76
3.1. OS RITOS DE INICIAÇÃO MASCULINA .................................................................... 80
3.1.1. Ritos preliminares ........................................................................................................... 82
3.1.2. Ritos Liminares .............................................................................................................. 84
3.1.2.1 Ensinamentos ................................................................................................................ 86
3.1.3. Ritos Pós-liminares ......................................................................................................... 94
3.2. RITOS DE INICIAÇÃO FEMININA ............................................................................... 98
3.2.1. Ritos Preliminares .......................................................................................................... 99
3.2.2 Ritos Liminares ............................................................................................................... 76
3.2.3. Ritos Pós-liminares ....................................................................................................... 108
3.3. DA IMPORTÂNCIA À PROBLEMÁTICA DA GLOBALIZAÇÃO ........................... 109
3.4. O PROBLEMA DE PROCEDIMENTO ......................................................................... 113
3.5. RELAÇÃO ENTRE EDUCAÇÃO INFORMAL E EDUCAÇÃO FORMAL ............... 115
3.6. ESFORÇOS DE MOÇAMBIQUE NA INTEGRAÇÃO DO CURRÍCULO
CULTURAL................ ........................................................................................................... 123
CONCLUSÃO ........................................................................................................................ 137
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................... 141
GLOSSÁRIO .......................................................................................................................... 146
APÊNDICES .......................................................................................................................... 148
Instrumento de produção de dados-01 .................................................................................... 148
Instrumento de Produção de dados-02.................................................................................... 150
Instrumento de produção de dados-03 .................................................................................... 152
ANEXOS ................................................................................................................................ 154
Anexo 1-Moeda da Companhia de Niassa-1894 .................................................................... 154
Anexo 2-Território da Companhia de Niassa ......................................................................... 155
INTRODUÇÃO

Na imensa Província de Niassa, floresce a cultura de um povo que sempre preservou


os seus valores sociais. A ele, cuja origem conflui com a dos demais povos bantu que fazem
os habitantes da África Austral de hoje, foi posto o nome de Ayaawo. Este povo é descrito
como guerreiro tanto como a narrativa histórica de sua origem é de circunstâncias militares.
Durante a penetração estrangeira europeia, este povo fez sentir a sua resistência contra
a dominação colonial, tendo para isso criado dificuldades na implantação da Companhia de
Niassa, símbolo de exploração dos territórios das atuais Províncias de Niassa e Cabo Delgado.
O emblemático soberano yaawo Mataka teria sido o mais destacado entre os chefes yaawo da
região, tendo sido, por isso, o último soberano yaawo a ser submetido à coroa da Companhia.
Sabe-se ainda que este soberano havia acumulado riqueza como resultado do comércio
costeiro e internacional, pois chegou a comerciar com as regiões do continente, como
Zanzibar e Quiloa na atual Tanzânia e Cazembe na Zâmbia, entre outras regiões. (SERRA et
al, 2000). Os ayaawo teriam sido os mais preferidos pelos mercadores portugueses,
especialmente pela sua disposição imensurável de riqueza natural de onde podiam obter o
ouro e marfim com os quais participavam no comércio internacional e em troca recebiam
especiarias e tecidos. Isso não tardou em levantar contradições com os outros grupos étnicos
próximos, como é o caso dos amakhuwa, que vezes sem conta procuram a todo custo barrar as
rotas comerciais para que os ayaawo não tivessem acesso ao mar, o que acabou em tremendas
batalhas que por vezes precisaram da intervenção da estrutura portuguesa, que via os seus
interesses comerciais com este povo do interior ameaçados.
Os árabes foram outros comerciantes do além-mar com os quais os ayaawo
mantiveram relações. Foi desse contato com os árabes que os ayaawo converteram-se ao
islamismo. O soberano Mataka depois da conversão passou a ser chamado de Sultão Mataka.
Depois deste soberano e num processo muito rápido, o islamismo seria difundido e adotado
por quase todos os descendestes yaawo. A conversão do povo yaawo ao islamismo teria
imposto novas realidades culturais, às quais levam a aceitação ao islão, uma delas, é a
circuncisão, ou melhor, os ritos de iniciação. Não assumo que foram os árabes que
introduziram os ritos de iniciação no seio da comunidade yaawo, mas admito a hipótese de
que com eles estes (os ritos) conheceram uma nova dinâmica e rigor nos moldes em que são
praticados até aos dias de hoje, pese embora reconhecer-se que a cada momento estes tendem
a sofrer algumas mudanças ligeiras na sua ordem estrutural face à conjuntura global.
14

É nesse interesse de conhecer melhor a prática desta cultura que o presente estudo tem
como tema O papel dos ritos de iniciação e circunscreve-se a estudar este fenômeno
basicamente na comunidade de descendência Yaawo da Cidade de Lichinga, Província
nortenha de Niassa, em Moçambique.
Acontece que em Moçambique a vida inteira das comunidades é marcada pela
presença de rituais de diversas ordens. Entre eles, podem se destacar, a título de exemplo, os
ritos de iniciação que marcam a passagem da infância para a vida adulta, os do início da vida
marital, os pós-parto e os fúnebres. Na Comunidade Yaawo da Província de Niassa, estas
práticas rituais estão sempre presentes e caracterizam a vida da comunidade, particularmente
os ritos de iniciação quer masculina, quer feminina. Esta tendência visa preparar os iniciados
para uma nova fase da vida e para o seu papel ativo na sociedade onde esta comunidade está
inserida
Portanto, com a prática desde os tempos passados, estes rituais na comunidade yaawo
têm sido uma ação indispensável para qualquer indivíduo dessa etnia, sendo transmitido seu
testemunho de geração em geração graças ao papel relevante da oralidade. Nesse processo, a
comunidade é atenta em observar a chegada de crianças na faixa etária útil para a iniciação, e,
geralmente, assim que reunido o número suficiente de candidatos, dá-se lugar à iniciação. Os
ayaawo são muito rigorosos com esta manifestação cultural sendo que isso visa habilitar os
integrantes para o seu papel ativo na respectiva comunidade, diferentemente de outras
comunidades da região, no caso da nyanja, em que a prática dos ritos de iniciação não tem a
mesma expressão e indivíduos são integrados normalmente no seio da comunidade.
A peculiaridade com que se revestem estas práticas é de extrema importância para a
comunidade toda, isto é, representa o momento mais alto de afirmação de sua existência, de
tal maneira que a presença de crianças, numa família, em idade útil para a iniciação abre
esperanças de que num futuro breve poderá reunir entre familiares, amigos e convidados,
numa grande festa de ritos de iniciação, testemunho de transição duma fase para a outra
(adulta).
Pela vulgarização e consistência do processo, por vezes, caso os pais demorem decidir,
algumas crianças por iniciativa própria fogem de casa para se juntarem às outras na iniciação,
só para serem iguais às que foram submetidas, terem um novo tratamento e não ficarem
isoladas dos amigos que já passaram pela prova. Foi nessa óptica que ao propor a pesquisa
coloquei a seguinte questão: Qual é o papel social dos ritos de iniciação e o seu significado
na comunidade yaawo? Esse papel é analisado em função dos tempos atuais de fluxo cultural
15

como reflexo da interculturalidade. Tomo esta reflexão no sentido de analisar, primeiro, em


que medida é que a interculturalidade, em muitos casos determinada pela globalização, influi
na própria realização dos ritos, isto é, na sua essência como tal e, em segundo, como é que
influencia na maneira de ser e agir dos iniciados. Além disso, serve o presente trabalho para
caracterizar a prática dos ritos de iniciação na comunidade yaawo, diferenciar os ritos de
iniciação masculina e feminina, quanto à prática e temática, e descrever o papel dos ritos de
iniciação na preservação e promoção dos valores históricos e socioculturais da região.
A razão que me levou à escolha do presente tema prende-se com o fato de constatar
que a comunidade yaawo na Província de Niassa pratica os ritos de iniciação de forma
regular, levando as crianças entre oito e 12 anos de idade à iniciação, com uma permanência
de pelo menos um mês, a fim de imbuir nelas valores, costumes e conhecimentos
socioculturais da comunidade, entre outros códigos sociais criados para esse efeito. Estas
práticas têm sido levadas a cabo em duas ou mais temporadas por ano para permitir a
abrangência de todas as crianças em idade fértil para a iniciação e que por diversas razões não
conseguiram fazê-la na temporada imediatamente anterior.
Ao propor o estudo desta temática, pretendia avaliar a dinâmica do processo de
iniciação nos últimos tempos marcados por um fluxo contínuo de valores, o que influencia
sobremaneira na alteração dos padrões de vida das comunidades. Este princípio permitiu
examinar o que com o tempo mudou na prática dos ritos de iniciação e o que permanece entre
padrões anteriores.
No que tange à motivação pelo tema, tem a ver com o fato de estar me formando em
Sociologia e, tendo em conta que este é um fenômeno social, daí o meu interesse em buscar
perceber melhor o elo social destas cerimônias simbólicas com a sociedade na construção de
uma convivência sã e harmoniosa. A outra motivação pessoal prende-se com o fato de residir
nesta província, observando o fenômeno com mero entusiasmo, e não ser da etnia em estudo,
o que levava praticamente à ignorância dos conteúdos. Disso decorre a necessidade de estudar
esta realidade social para melhor perceber as reais motivações do afinco e emoção que se
pode ler no semblante dos seus praticantes. Este fator de não pertença não pode presumir que
faço críticas sem precedentes deste processo ritual. Antes, pelo contrário, faço apreciações
valorativas com isenção e sem pré-noções porque ignoro quase tudo o que é ministrado na
escola da iniciação yaawo. É, por isso, que o que trago aqui é fruto das informações colhidas
durante a pesquisa ou das leituras em fontes devidamente identificadas nas respectivas
passagens e com as informações completas sobre as mesmas nas referências bibliográficas.
16

Para a exequibilidade do presente estudo, realizei um trabalho de campo, com recurso


à entrevista, no qual busquei informações a 54 iniciados de ambos os sexos, organizados em
seis grupos focais, sendo três para homens e igual número para mulheres dos últimos níveis
(6ª e 7ª classes) de duas Escolas Primárias Completas (EPC) e do primeiro nível de uma
Escola Secundária, ambas da Cidade de Lichinga. Os níveis escolhidos são os que agregam
parte significativa dos recém-graduados da iniciação e a opção pelos grupos focais foi para
permitir que os iniciados se sentissem a vontade em falar ao lado de companheiros e para que
um completasse o outro. Isto permitiu uma larga vantagem em encontrar respostas para as
minhas questões. Tive ainda a oportunidade de entrevistar quatro membros do Conselho da
Autoridade Comunitária do Bairro de Chiuaúla, seis mestres do processo ritual e três
dirigentes de duas escolas selecionadas com a finalidade de saber deles o nível de
relacionamento entre as duas instituições de educação. Perfez-se, assim, um total geral de 67
intervenientes (vide abaixo a tabela de distribuição dos intervenientes):

Tabela 1-Efetivo abrangido pela pesquisa


Quantidade
Grupo alvo Homem Mulher Total
Iniciados 26 28 54
Conselho da Autoridade Comunitária 3 1 4
Dirigentes do processo ritual 3 3 6
Gestores Educacionais 2 1 3
Total geral 34 33 67

Fonte: Autor, 2017.

Para garantir a privacidade, de modo que os intervenientes se sentissem a vontade para


se expressarem, e, dada a delicadeza dos assuntos a abordar, constituí dois grupos de
discussão que se reuniram em separado, sendo um dos homens e o outro das mulheres. Entre
semelhantes a conversa foi muito produtiva, pois que os intervenientes falaram sem
complexos e reservas.
Tendo em conta que na cidade de Lichinga coabitam três grupos étnicos principais,
tive o cuidado de solicitar para que todos os grupos reunidos nas escolas fossem constituídos
por descendentes yaawo já iniciados, para corresponder com os meus propósitos de pesquisa,
que incidem sobre esta comunidade.
17

Contrariamente ao que estava previsto, não consegui fazer uma observação direta do
processo de iniciação. Isto foi devido ao tempo que tive disponível para realizar a pesquisa,
visto que foi fora do intervalo de realização das duas temporadas anuais (dezembro/janeiro e
junho/agosto). Apesar disso, este fator não prejudicou tanto o meu trabalho de campo, uma
vez que os mestres e os iniciados sabiamente constituíram uma réplica oral do processo desde
o início ao fim, descrevendo todo o procedimento em cada uma das etapas e explicando cada
um dos detalhes.
O meu trabalho não se limitou apenas às entrevistas. Também contei com uma boa
parte de levantamento bibliográfico de onde obtive informações adicionais sobre o povo em
estudo e sobre vários outros aspectos que complementam o estudo em causa. É importante
referir que durante o levantamento da literatura sobre o assunto em estudo, deparei-me com
uma diversidade de grafia para um mesmo aspecto ou nome de pessoas, povos e Lugares.
Nesse caso, tive que adotar a que mais me convinha. A título de exemplo, o nome do povo em
estudo grafa-se: Yao ou jaua, singular; ayao ou ajaua, plural; ou ainda: yaos ou ayaos, jauas
ou ajuas. Para se referir ao idioma desse povo grafa-se chiyao, ciyao ou cyao. Esta
diversidade revela uma tentativa de grafar e de construir o plural à moda da língua
portuguesa, o que é errado segundo os critérios de línguas bantu.
As formas mais aceitas até o momento foram adotadas pelo III Seminário de
Padronização da Ortografia de Línguas Moçambicanas, segundo o qual o nome deste povo
grafa-se yaawo no singular e ayaawo no plural e ciyaawo é nome do idioma. (NGUNGA;
FAQUIR, 2012). Como se pode notar, a palavra forma o seu plural de maneira muito
diferente da língua portuguesa, isto devido às características das línguas bantu1.
Esses são, portanto, os grafemas que adotei para me referir a estes grupos étnicos. Se
for a escrever de outra forma, é justamente para respeitar os autores das transcrições literais e
sempre que isso acontece, deixo bem evidentes essas fontes.

1
Uma das características das línguas bantu, que também contribuem para que sejam consideradas
línguas aglutinantes, é a maneira como estas línguas organizam o sistema do gênero (singular e plural) das suas
palavras, o que na língua portuguesa chama-se número. De acordo com o quadro de Guthrie (1967) citado por
Ngunga (2014), os nomes das línguas bantu de Moçambique estão organizados em classes nominais de 1 a 19,
e que o seu número de ocorrência varia de língua para língua. Assim, o nome yaawo que se apresenta no
singular, forma o plural com o prefixo “a”, lendo-se ayaawo, onde a- é prefixo nominal da classe 2 e -yaawo é o
tema nominal desse nome. Outros exemplos seriam makhuwa (singular), amakhuwa (plural) e emakhuwa, o
idioma; lomwe (singular), alomwe (plural) e elomwe, o idioma; nhanja (singular), anyanja (plural) e cinyanja, o
idioma. (NGUNGA, 2014; NGUNGA; FAQUIR, 2012). A lista poderia ser longa, mas estes exemplos são
suficientes.
18

Em termos de estrutura, o trabalho conta com três capítulos. O primeiro é sobre as O


mundo dos ritos: teorias e conceitos. Nele procuro trazer as teorias, conceitos e o debate que
se pode fazer em torno dos ritos em geral e da iniciação em particular. As abordagens que
trago sobre os ritos são de natureza antropossocial. Faço igualmente a sua classificação em
função do quadro de Gennep (1979; 2013) baseada nas escolas animista e dinamista. É de
notar que nesta matéria faço referência à perspectiva educativa dos ritos de iniciação enquanto
representação social cuja grande contribuição é a de Émile Durkheim (1965). Essa abordagem
permitiu constatar que tal como a educação, a iniciação tem por objetivo formar o indivíduo
para a sua integração pessoal, social e cultural. Destaco também o papel dos ritos de iniciação
na socialização dos indivíduos e criação da coesão social.
O segundo capítulo intitula-se Moçambique e Niassa: território e população. Neste
capítulo, faço uma breve apresentação de Moçambique e da Província de Niassa no que
respeita aos seus aspectos físicos, históricos e socioeconômicos. Porque o meu trabalho incide
sobre a Província de Niassa, é nela que presto maior atenção com vista a um conhecimento
pormenorizado do território e do povo em estudo, os Ayaawo. Esse estudo envolve a sua
trajetória histórica desde o período mercantil, pré-colonial, colonial e pós-independência.
Como o povo yaawo constituí o centro do presente estudo, procuro trazer a sua afirmação
sociopolítica que conduziu à formação dos chamados "grandes Estados Yaawo", com um
particular destaque ao Estado da Dinastia dos Mataka, que muito deu de falar na história deste
povo. Como não seria possível conhecer uma totalidade do povo yaawo sem falar das suas
relações com outros grupos de convívio, tornou imperioso falar dos grupos etnolinguísticos
makhuwa e nyanja. Para além de falar de forma breve sobre alguns aspectos-chave destes
grupos, faço uma análise comparada entre eles e a sua relação de coexistência.
E por fim, apresento o capítulo três, sobre A prática dos ritos de iniciação na
Comunidade Yaawo. Este é o capítulo central do presente trabalho e nele faço uma descrição
sobre o processamento dos ritos de iniciação (unyago2 em ciyaawo) desde a convocação da
temporada até a etapa final do processo, quando o iniciado é entregue à comunidade como um
indivíduo socialmente ativo e valente. Nessa descrição, faço a análise em separado entre o
processo de iniciação masculino (djando) e o processo de iniciação feminino (nsondo),
destacando os principais momentos de cada um, principais matérias e metodologias, sempre
fazendo um destaque do antes e depois. Avalio deste modo, o impacto do fluxo cultural e da
interculturalidade nas práticas dos ritos de iniciação e conduta dos iniciados.
2
Nome genérico pelo qual é conhecido todo o processo dos ritos de iniciação quer masculino, quer feminino.
Enquanto que o processo de iniciação masculino é conhecido por djando e feminino por nsondo.
19

Neste estudo constatei que o processo de iniciação masculina realiza-se num ambiente
de reclusão e aquartelamento em acampamentos instalados fora do alcance da comunidade
para garantir uma autonomia do processo, dada a sua complexidade e os ensinamentos
acontecerem na calada das noites. Ao se isolar, evita-se o contato com outros membros da
comunidade, à exceção dos que se encontram devidamente autorizados. Caso se atente uma
infiltração, as consequências podem ser desastrosas.
Quanto ao processo de iniciação feminina, diferentemente da masculuna, este acontece
durante o dia e numa casa identificada dentro da comunidade, mas também é vedada a
presença de pessoas não autorizadas, sobretudo de homens. Esta iniciação acontece em fases:
1) na infância, para uma preparação com vista ao domínio do corpo; 2) com a chegada do
período das primeiras regras; 3) ritos da primeira gravidez; 4) ritos do primeiro parto.
(GENNEP, 2013).
Como me referi anteriormente, é nesta seção que trago o debate sobre a relação dos
ritos de iniciação e as práticas educacionais modernas, no sentido de perceber que relações
existem entre as duas instituições, seus possíveis pontos de convergência e possibilidades de
práticas coexistentes. Busco igualmente refletir sobre os esforços das entidades da educação
em agregar parte dos conteúdos dos ritos de iniciação e demais práticas culturais ao processo
de ensino formal, no âmbito do currículo local.
Por fim, estou consciente de não dizer tudo e certeza de trazer elementos suficientes
para futuras reflexões sobre a temática. Assim, termino fazendo o empréstimo das palavras de
Marx (2014, p. 81), segundo as quais “todos os julgamentos fundados numa crítica científica
serão bem-vindos”.
20

CAPÍTULO 1
O MUNDO DOS RITOS: TEORIAS E CONCEITOS

Neste capítulo procuro refletir sobre as teorias e conceitos dos ritos em geral e de
iniciação em particular. Trata-se de um percurso no qual faço um diálogo com autores cujos
estudos deixaram pormenores sobre os ritos e demais manifestações coletivas, partindo de
referências às determinadas sociedades que floresceram em diversos lugares do mundo.
Esses autores (que apresento mais adiante) desenvolveram os seus estudos
orientando-se por uma perspectiva analítica e de objeto (o tipo de rito) de acordo com a
aproximação e área de estudo de cada um deles. Assim, as abordagens que trago neste
capítulo são de âmbito antropossocial por se ocupar do estudo das práticas das sociedades
humanas.
Vários estudos sociais e antropológicos procuram interpretar as manifestações e
estrutura das sociedades. Esses estudos orientam-se para uma compreensão sobre o que as
sociedades fazem para a sua socialização, como fazem, porque fazem e em que medida é que
estes princípios são coercivos aos indivíduos. Essas práticas, geralmente traduzem as formas
de pensar e conceber o universo. Victor Turner (2013) observa que vários foram os estudos
feitos em volta das estruturas sociais e, a título de exemplo, faz referência a alguns ícones que
se notabilizaram nesse âmbito. Trata-se de Freud, um psicanalista que postulou indicações
claras da estrutura da psique moral e que contribuiu sobremaneira para a compreensão dos
comportamentos e manifestações dos indivíduos na sociedade; Lévi-Strauss3, que se
notabilizou com seus estudos sobre os mitos e ritos das sociedades pré-letradas. Têm outros
que, segundo o autor, dedicaram décadas inteiras de suas vidas profissionais ao estudo da
religião. Dessa lista fazem parte “Tylor, Robertson-Smith, Frazer e Herbert Spencer;
Durkheim, Mauss, Lévy-Bruhl, Hubert e Herz; Van Gennep, Wuldt e Max Webwr [...]”
(TURNER, 2013, p.21). E eu acrescentaria, ele próprio, Victor Turner, com O processo ritual.
Conta-se, no entanto, que a maior parte das manifestações quer se trate dos mitos quer dos
ritos têm procedimentos religiosos, seja como um meio, seja como um fim em si. Assim, as
crenças, mitos, ritos e práticas religiosas encontram importância na manutenção das estruturas
humanas tanto sociais quanto psíquicas.

3
Lévi-Strauss é apontado como o maior expoente e teórico do século XX no campo antropológico entre os que
estudaram as manifestações rituais. Apesar desse mérito, o pioneirismo no estudo dos ritos atribui-se a Arnold
Van Gennep cuja obra data de 1909. (RODOLPHO, 2004).
21

Adicionalmente, os rituais revelam os valores sociais no seu nível mais profundo.


Desta forma, “[...] os homens expressam no ritual aquilo que os toca mais intensamente e,
sendo a forma de expressão convencional e obrigatória, os valores do grupo é que são
revelados. Vejo, no estudo dos ritos, a chave para compreender-se a constituição essencial das
sociedades humanas”. (WILSON apud TURNER, 2013, p.23). Os ritos estabelecem as
relações duradouras e satisfatórias entre nativos e não nativos, pois que as relações
satisfatórias dependem, quando muito, de uma profunda compreensão mútua. Turner não
hesitou em dizer que “os ritos em parte têm a finalidade de efetuar uma reconciliação entre as
partes em jogo, visíveis e invisíveis, embora tenham episódios de exorcismo”. (2013, p.34).
Isto pode se evidenciar nas sociedades em que tudo se explica na base dos ritos e mitos. Uma
contenda envolvendo duas ou mais individualidades e, desconhecendo-se em quem recai a
razão, acha-se saída recorrendo ao talismã, que poderá desanuviar, provando a inocência ou a
culpabilidade dos indiciados. Os ritos servem também para unir os deuses e seus protegidos e
estes entre si, pela comunhão de crenças.
As práticas mágico-religiosas, mais do que simples crenças, fortificam as relações
políticas, econômicas e sociais e acabam criando fortes relações com os ambientes naturais e
sociais. Os estudos encetados nesta vertente, mesmo que tenham inúmeros registros a
respeito, não estão esgotados, pois há muito ainda por estudar. Simplesmente os autores que
se destacaram nesse campo deram o seu começo. Há necessidade, no entanto, de um estudo
cíclico e contínuo, não só para aprofundar as realidades, mas para analisar também os novos
contornos com o advento do mundo moderno. Esse estudo permitirá analisar o que mudou em
função do tempo, como mudou, porque mudou e em que medida essas mudanças representam
um desvio do seu padrão inicialmente concebido.
Depois de uma breve passagem geral, nas linhas que se seguem, procuro trazer a
título demonstrativo os diferentes tipos de ritos praticados pelas sociedades para depois
caminhar aos conceitos e particulares reflexões sobre os ritos de iniciação.

1.1 A DIVERSIDADE DOS RITOS E SUA CLASSIFICAÇÃO

Ninguém duvida que a vida inteira da maior parte das sociedades está coberta de
mistérios e, para desmistificar cada um deles, torna-se necessário pôr em evidência um
determinado tipo de rito. O título escolhido nesta seção não pode sugerir logo a priori que irá
se esgotar esta matéria. Nesta conformidade, apresento apenas alguns deles, mais próximos do
22

nosso cotidiano, para evitar que o presente trabalho ocupe-se unicamente na sua descrição,
dada a sua quantidade infinita.
Assim, há ritos próprios para assinalar a passagem de cada uma das etapas da vida
social, ou seja, há ritos de nascimento, puberdade, noivado, casamento, gravidez, paternidade
(sobretudo a primogenitura), progressão de classe, especialização de ocupação social e morte.
Há também de batismo, comunhão, crisma, penitência, noviciado, consagração sacerdotal,
entronização de chefes e comemoração de várias efemérides. São inúmeros de tal maneira que
a lista podia ser realmente enorme, mas limito-me a estes poucos exemplos, porém
suficientes.
Em cada uma das esferas sociais (religião, escola, comunidade etc.), os ritos podem
assumir diversas formas, podendo numa ser mais rigoroso e noutra menos; ou tão
representativo numa e noutra tão simbólico, e assim por diante. Por essa razão não houve um
consenso de classificação única entre os autores que debatem esta matéria. Assim, as
classificações variam de autor para autor e mediante a significação que se pretende atribuir. A
verdade é que em todas as esferas sociais existem ritos que servem para dar início ou encerrar
ou ainda marcar o percurso de uma sessão ou etapa de vida. Por exemplo, para um indivíduo
passar para leigo e de leigo para sacerdote, é preciso ser submetido a um conjunto de
cerimônias específicas, ligadas a certo gênero de sensibilidade e determinada orientação
psicológica. Todo esse processo visa separar o indivíduo do mundo profano e ligá-lo ao
sagrado, de maneira que a passagem de um ao outro não pode ser feita sem um estágio
intermediário. (GENNEP, 1978).
Considerável número de estudos faz apenas uma mera menção dos ritos na descrição
do seu objeto central. Não que os outros estudos não tenham aqui a sua importância, mas a
preferência é destacar o de Émile Durkheim. Em As formas elementares da vida religiosa
(2000), Durkheim faz transcorrer os ritos como parte integrante da religião totêmica da
Austrália e fê-lo com notável mérito. A perspectiva de análise dos ritos em Durkheim consiste
em classifica-los em sagrado ou profano. Estes dois são uma criação do espírito humano e
constituem igualmente dois mundos distintos. Durkheim entende por sagrado tudo que está
ligado à religião, magia, mitos e crenças. Portanto, o sagrado manifesta-se como algo
extraordinário, transcendental ou metafísico. O contrário disto pertence ao seu oposto, ou seja,
ao mundo profano, que compreende o natural, o normal e regular.
No limiar do século XX, Arnold Van Gennep, toma o rito em si como seu objeto de
23

estudo, tendo para isso, feito várias classificações e agrupamentos, um fenômeno tomado a
recorte no tempo, tanto como no espaço, dando uma direção do comportamento social.
Uma das grandes descobertas de Gennep nesta empreitada é o sequenciamento dos
ritos em etapas ou fases que marcam a separação ou transição, tal como acontece com o ciclo
de vida de um ser qualquer, pese embora ele próprio reconheça a dificuldade dessa
classificação lógica e perfeita.
O que torna difícil a definição e classificação rígida dos ritos é a variedade de seu
campo, pois eles são múltiplos e estão representados em diferentes momentos da vida, com
peculiaridades que variam de comunidade para a outra. Assim, para um mesmo fim ritual,
haverá várias manifestações e formas de fazê-lo. É nessa variedade que, embora dificulte a
sua classificação, reside a riqueza dos ritos. De acordo com Gennep. (1978, p. 26),

A vida individual, qualquer que seja o tipo de sociedade, consiste em passar


sucessivamente de uma idade a outra e de uma ocupação a outra. Nos lugares em
que as idades são separadas, e também as ocupações, esta passagem é acompanhada
por atos especiais, que, por exemplo, constituem, para os nossos ofícios a
aprendizagem, e que entre os semicivilizados consistem em cerimônias, porque entre
eles nenhum ato é absolutamente independente do sagrado.

Neste sentido, nas sociedades que conservam o seu patrimônio de prática cultural,
cada um dos momentos da vida é marcado por práticas de rituais próprios para simbolizar os
momentos. Qualquer situação de alteração da vida de um indivíduo implica intervenção de
ações para separar o profano do sagrado, que no entender dessas sociedades seria para não
sofrer nenhum constrangimento.
Como disse anteriormente, Gennep reconhece o quão é difícil categorizar os ritos na
sua mais variada ordem. Não obstante, propõe duas grandes subdivisões: (1) os ritos
simpáticos e (2) os ritos de contágio. “Os ritos simpáticos são aqueles que se fundam na
crença da ação do semelhante sobre semelhante, do contrário sobre o contrário, do continente
sobre o conteúdo e reciprocamente, da parte sobre o todo e reciprocamente, da palavra sobre o
ato”. (GENNEP, 1978, p. 27). Por seu turno, os ritos de contágio fundamentam-se na
materialidade e na transmissibilidade por contato, ou mesmo a distância, das qualidades
naturais ou adquiridas. Em paralelo com estas categorias, Gennep avança que as escolas
animista e dinamista4 classificam outras quatro categorias independentes uma da outra, mas

4
As duas escolas (animista e dinamista) dedicaram a maior parte do seu tempo a estudar o fenômeno mágico-
religioso. A escola animista não teve rigor na classificação dos ritos. A escola dinamista fê-lo claramente,
mostrando a insuficiência teórica da anterior que, mesmo assim, não perdeu a sua importância. (GENNEP,
1978).
24

que foram agrupadas aos pares. Esses pares são ritos diretos e indiretos, positivos e negativos.
O rito direto é aquele que possui uma virtude eficiente e imediata, sem, portanto, intervenção
de um eventual agente autônomo. É um exemplo o feitiço. Quanto ao seu contrário, ou seja, o
rito indireto é uma espécie de choque que põe em movimento uma potência autônoma ou
personificada. Por exemplo, uma divindade que só atua para quem realiza o rito, voto, oração
ou culto.
Em última instância, pode se distinguir entre ritos positivos e negativos. Os ritos
positivos são vontades traduzidas em atos. Um rito positivo corresponde à vontade, ele traduz
uma maneira de querer, é um ato e não a negação de um ato. Por sua vez, os ritos negativos
habitualmente são chamados de tabus. Lembre que o tabu é uma proibição, corresponde a
uma ordem de não fazer ou não agir. Ainda de acordo com Gennep, um mesmo rito pode
incluir-se em quatro categorias ao mesmo tempo. Por exemplo: “Assim, para uma mulher
grávida, não comer amoras, porque isso marcaria a criança, é executar um rito dinamista, de
contágio, direto, negativo.” O segundo exemplo que oferece outra classificação é o seguinte:
“Para um marinheiro que esteve em perigo de morte, oferecer como ex-voto um naviozinho a
Nossa Senhora da Guarda é um rito animista, simpático, direto, positivo”. (GENNEP, 1978, p.
30). Assim sucede com demais exemplos. Como se pode depreender, os ritos simpáticos não
são necessariamente animistas5, e os negativos, necessariamente dinamistas6. Depende das
circunstâncias para assim o serem.
Gennep dedicou-se especialmente ao estudo dos ritos de passagem, que segundo ele,
se subdividem em três categorias secundárias, a saber: ritos de separação, ritos de margem e
ritos de agregação: “[…] Os ritos de separação são mais desenvolvidos nas cerimônias
funerais, os ritos de agregação, nas do casamento. Quanto aos ritos de margem, podem
constituir uma secção importante, por exemplo, na gravidez, no noivado, na iniciação […]”
(GENNEP, 1978, p.31).
O autor sustenta que estas três categorias não são, na maioria das vezes,
desenvolvidas em uma mesma população e nem em um mesmo conjunto cerimonial. Uma
categoria pode ser típica de uma dada população enquanto outra será igualmente de outra.
Depois o autor apresenta outra categoria de classificação dos ritos de passagem ora
apresentados. Assim, os ritos preliminares correspondem aos de separação, os liminares, aos

5
Animista – derivada de animismo. Animismo designa a teoria personalista, quer a potência personificada
(totem), quer antropomórfica ou morfa (Deus).
6
Dinamista – derivada de dinamismo. Ao contrário do animismo, dinamismo é a teoria impersonalista do mana
(relativo a força do supernatural). As duas teorias constituem a religião, cuja técnica (cerimônia, ritos, cultos)
van Gennep chama de magia.
25

de margem, e pós-liminares, aos de agregação. Os ritos de separação compreendem,


praticamente, todos aqueles processos nos quais se corta alguma coisa, como o primeiro corte
do cabelo, raspar a cabeça e, ainda mais, o ato de se vestir pela primeira vez. Por sua vez, os
ritos de agregação visam introduzir, integrar ou lançar o noviço no mundo.
A classificação e interpretação de Gennep, se não encontrou simpatizantes entre os
seus contemporâneos, pelo menos sabe-se que foi muito aplaudida pelos pesquisadores
subsequentes, mesmo que com isso não lhe faltassem críticas. Posteriormente, já na década de
60, o testemunho vem do seu mais próximo concorrente na matéria, Victor Turner, que
interpreta também os ritos de passagem, projeto começado por Gennep.
Turner toma como referência das suas análises dos mais variados processos rituais a
classificação feita por Gennep, ou seja, pré-liminares/separação, liminares/margem e pós-
liminares/agregação. Turner (2013) remata que a primeira fase da iniciação (separação)
abrange o comportamento simbólico que significa o afastamento do indivíduo ou de um grupo
do seu ponto fixo anterior na estrutura social ou de um conjunto de condições culturais. No
período liminar (intermédio), o sujeito ritual encontra-se na região de transição entre o
passado que deve ser relegado e o futuro que deve ser assimilado. O autor observa que a
liminaridade, a marginalidade e a inferioridade estrutural são condições em que
frequentemente se geram os mitos, símbolos rituais, sistemas filosóficos e obras de arte. Além
disso, estas formas culturais proporcionam aos homens um conjunto de padrões que
constituem (re) classificações periódicas da realidade e do homem com a sociedade, com a
natureza e com a cultura. Na terceira etapa, do sujeito espera-se que depois deste processo
comporte-se de acordo com as normas costumeiras definidas como estruturas sociais e
padrões culturais e éticos da sociedade, sendo que, em virtude disso, terá direitos e obrigações
perante os outros.
Turner considera que uma das tendências dos ritos de passagem consiste em discuti-
los como uma resposta adaptativa obrigatória dos indivíduos quando geralmente são forçados
a mudar de posição dentro de um sistema. A esse respeito, DaMatta (2000, p. 11) faz uma
descrição dos ritos como uma força oculta que se impõe aos indivíduos. Leiamos na íntegra o
que ele escreve:

[…] os ritos seriam elaborações sociais secundárias, com a função de aparar os


conflitos gerados pela transição da adolescência à maturidade, uma passagem
postulada inevitável, difícil, problemática e conflituosa em qualquer sociedade
humana. Nessa perspectiva, o foco é sempre nos jovens e naquilo que é percebido
como uma arriscada e conflituosa transição dentro da sociedade.
26

Assim, os ritos na sua generalidade aparecem para regulamentar essa transição de


uma etapa para outra, para de um lado redimir os possíveis conflitos e, de outro, estabelecer
os critérios da nova vida (adulta, se se tratar de ritos de iniciação). Nesse sentido, os rituais
conferem autoridade e legitimidade quando estruturam e organizam as posições dos iniciados,
os seus valores morais, as suas visões e interpretação do mundo.
Os ritos de iniciação fazem parte da lista dos ritos de passagem, pois que permitem a
transição de uma etapa para outra. Com relação a isso, Rodolpho (2004, p.143), citando
Andràs Zempléni, refere

[…] que o protótipo dos ritos de passagem são os ritos de iniciação: como os ritos de
passagem, os ritos de iniciação marcam a transição de um status social para o outro
(morte e renascimento simbólico). A iniciação é, portanto, “a forma sintética dos
ritos de passagem, por meio dos quais ela opera”. Mas a iniciação é mais do que
simplesmente um rito de transição, ela é um rito de formação. Esta formação vai
diferenciar os participantes ou o círculo dos neófitos dos “de fora”, daqueles
exatamente não iniciados. Numerosas iniciações contam com ritos de inscrição nos
corpos de marcas, signos visíveis da formação e transformação de nova identidade
(escarificações, circuncisões, modificação do formato de dentes, perfurações no
nariz ou lábios etc)

As modificações corpóreas aqui referenciadas não são patentes em todas as


comunidades em que a prática dos ritos tem uma expressão significativa e nem em um único
ritual. Portanto, uma pelo menos pode caracterizar determinado rito numa dada comunidade,
de tal modo que os saberes específicos de iniciação não são universais. Eles são válidos
unicamente no círculo em que são aplicados, pois que a iniciação, como observou Rodolpho
(2004), pressupõe a criação de linguagens, símbolos e saberes que são de domínio próprio de
quem já passou pela prova. Desse modo, esses signos só podem servir no meio em que está
inserido o iniciado, perdendo importância à medida que se afaste desse círculo.
Lévi-Strauss chama especial atenção para a importância da diferenciação entre o
mito e o rito na análise do ritual. Segundo ele, o ritual é o modo pelo qual as coisas são ditas,
enquanto o mito, o que dizem as palavras. Entende que os rituais são compostos por dois
mecanismos estruturais básicos de funcionamento, designadamente: a fragmentação e a
repetição. No seu entender, ambas têm o mesmo efeito, pois buscam restaurar a continuidade
perdida. A essência do rito é o caráter continuísta, enquanto o mito, a descontinuidade, pela
ação das combinações binárias. Portanto, enquanto o pensamento mítico está relacionado aos
termos pensa/diferença/descontinuidade, a operação ritual seria identificada com os termos
viver/identidade/continuidade. (LÉVI-STRAUSS, 2011).
27

Adriane Luisa Rodolpho (2004) realça que as formas estabelecidas para os diferentes
tipos de ritos coincidem num ponto comum, a repetição. Para ela, os rituais executados
repetidamente, conhecidos ou identificáveis pelas pessoas, concedem certa segurança. Pela
familiaridade com a sequência ritual, “sabemos o que vai acontecer, celebramos nossa
solidariedade, partilhamos sentimentos, enfim, temos uma sensação, de coesão social”. (p.
139, grifo meu). Um dos fins fundamentais dos rituais de iniciação é disseminar entre os seus
participantes este espírito de sentimento e solidariedade com vista a criar uma linguagem de
coesão e harmonia social.
Na opinião de Durkheim (2003) as representações coletivas (tal como os ritos o são)
arrastam-se junto das gerações predecessoras até as presentes, estendendo-se para as gerações
futuras num processo de transmissão e assimilação mais ou menos consciente dos valores e
atitudes da comunidade. Durkheim dá um realce à análise cultural na produção teórica sobre a
ação coletiva. Trata-se da utilização de uma determinada interpretação da cultura. Com isso,
foram postos em evidência os símbolos, valores, significados, ícones, crenças, códigos
culturais, em geral, que passaram a ter maior expressão nas representações coletivas. Assim, a
maior preocupação de Durkheim com relação às representações não são, portanto, ideias de
indivíduos ou grupos perseguindo seus interesses, mas o veículo de processos fundamentais
nos quais símbolos publicamente compartilhados constituem grupos sociais. A consciência
coletiva do grupo é algo muito similar à identidade coletiva por ser um repertório de normas e
valores que definem o comportamento de uma coletividade.
Enfim, a lista dos critérios de classificação e seus propósitos é tão longa e podia
mencionar ainda, como considera Turner, os ritos de crise da vida e os fixados pelo
calendário. O autor compreende como ritos de crise todos aqueles em que os sujeitos rituais
são marcados por um determinado número de momentos críticos de transição e que toda a
sociedade ritualiza publicamente com práticas próprias para assinalar essa etapa de certa
importância para a vida da comunidade. Esses momentos são os de nascimento, puberdade,
casamento e morte. Acrescenta-se a este grupo os ritos de mudança do status social, como por
exemplo, a ascensão a um cargo político ou a outro ambiente que lhe tenha sido estranho
anteriormente. Portanto, há uma tendência de cumprimento a tais ritos por todos os indivíduos
da comunidade. Quanto aos ritos marcados pelo calendário, são referentes aos que, pela sua
grandeza, abrangem a sociedade inteira. Frequentemente estes ritos são realizados em
momentos bem assinalados dentro do ciclo produtivo anual e testemunham a passagem da
escassez para a abundância de alimentos ou o inverso, isto é, da fartura para a escassez. A
28

estes acrescenta o autor todos os ritos de passagem que acompanham qualquer mudança do
tipo coletivo, marcando a passagem de um estado para o outro, como por exemplo, quando
uma tribo inteira entra em guerra, ou quando uma comunidade executa um rito a fim de
reverter o cenário de fome, da seca ou de uma praga qualquer. (TURNER, 2013).
O autor observa ainda que os ritos de crise da vida e os ritos de investidura num
cargo são quase sempre os ritos de elevação do status. Só que no meio desta elevação há um
porém: para o indivíduo poder subir na escada social, precisa antes descer aos mais baixos
degraus. Descer no sentido de humilhar-se, aceitar tudo quanto custe a sua personalidade.
Sabemos que a finalidade dos ritos de iniciação, por exemplo, é elevar a posição social do
sujeito, que logo depois da prova passa a integrar o grupo socialmente importante dentro da
sua comunidade. Tal é o caso dos meninos iniciados que são submetidos a várias intempéries
(por vezes, seminus ou completamente nus), a suportar as surradas, as provas de fome, sede e
de resistência. O mesmo pode se dizer para a entronização de chefes. Dependendo dos
costumes, momentos antes da sua investidura, ele é vaiado, recebe pancadarias, é cuspido, e
noutras, se diz a ele tudo quanto eram as mágoas que cada um dos presentes carregava contra
ele, que, nesse momento, continua cabisbaixo. Mas logo depois de sua proclamação e
investidura, a ele se deve vênia, inclusive todos aqueles que a bem pouco tempo o vaiaram.
Este é um fenômeno de Gabão apresentado por Victor Turner em seu conhecido O processo
ritual (2013). Esta é uma clara demonstração de que para um indivíduo subir na escada social,
deve descer alguns degraus às posições mais baixas.

1.2. CONCEITOS E PRINCÍPIOS DOS RITOS

Como vimos na seção anterior, os ritos variam tanto na sua natureza quanto na
finalidade. É assim que os conceitos que a eles se atribuem podem ser latos ou
demasiadamente amplos. Como o foco principal do presente trabalho são os ritos de
iniciação, torna necessário trazer os conceitos de ritos no geral e de iniciação em particular
como forma não só de facilitar a compreensão das abordagens, mas também de perceber os
diferentes níveis de interpretação que se faz dos mesmos.
Émile Durkheim (2000, p. 20), entende que “[…] os ritos são regras de conduta que
prescrevem como o homem deve comportar-se com as coisas sagradas”. Com efeito, uma
regra moral, assim como um rito nos prescrevem maneiras de agir e ser na comunidade em
observância às regras estabelecidas. Noutros desenvolvimentos, sublinha que os ritos são as
cerimônias através das quais o fiel entra pela primeira vez em comunicação com o seu gênio
29

protetor. Esse tipo de rito é o rito de iniciação, como diz o termo, que tem por finalidade
iniciar alguém. Pela iniciação, o indivíduo passa da infância para a vida adulta. Participando
nos ritos de iniciação, o iniciado adquire a maioridade social e toma consciência da própria
identidade e do lugar que lhe compete na comunidade. Só depois da iniciação é que o
indivíduo pode tomar parte de plenos direitos em todas as atividades da sociedade que outrora
da sua iniciação pertenciam ao mundo dos adultos. Pode por exemplo, participar das
cerimônias sagradas (fúnebres, sacrifício aos deuses), participar das assembleias da
comunidade, formar família, enfim, tomar parte da vida ativa da sua comunidade. Nesse
contexto, os ritos de iniciação representam uma cortina de vida, em que dum lado está o antes
caracterizado como sendo marginal e ambíguo e, do outro, o depois, uma nova condição do
iniciado que representa um renascimento na vida social e apto para todos os efeitos ao serviço
da comunidade. É nos ritos onde o membro da comunidade é instruído sobre aspectos
fundamentais para a sua vida positiva na sociedade onde está inserido, o seu papel e deveres
enquanto membro integrante.
De acordo com o autor em referência, “[…] os ritos são maneiras de agir que só
surgem no interior de grupos coordenados e se destinam a suscitar, manter ou refazer alguns
estados mentais desses grupos”. (DURKHEIM, 2000, p. xvi). Nesta percepção, os ritos são
coisas eminentemente sociais criados para manter o vínculo social. As representações rituais
são representações coletivas que exprimem realidades coletivas. A importância da sua prática
não se subscreve apenas na exaltação ou afirmação cultural dos povos, mas também e,
sobretudo, em provocar determinados estados físicos, emocionais e mentais nos iniciados. Há
no indivíduo dois seres: um que se limita ao organismo como uma essência biológica e outro,
um ser social que se reveste de uma ordem intelectual e moral (cabe aos ritos preencher esse
espaço moral com máximas próprias da comunidade).
Por seu turno, os “ritos de iniciação”, segundo Pereira (1998), entendem-se como um
conjunto de cerimônias pelo qual se inicia alguém segundo os mistérios de uma dada região.
Além da educação da família e do grupo, os ritos de iniciação têm um papel preponderante na
instrução e educação da criança. Eles abordam os aspectos da vida social designadamente:
como ser e estar, os valores culturais, costumes e tradições. Assim, o conceito de Pereira
remete-nos a uma questão fundamental, a de que a iniciação constitui uma verdadeira
educação, e isto é inegável, pois que evidências disto são reveladas pelos ensinamentos aos
quais a criança é submetida. Sobre essa análise, retomarei mais adiante.
30

São vários os tipos de ritos de iniciação conforme o seu propósito, tal como ficou
claro nas passagens anteriores. Portanto, cada um deles reveste-se de características próprias.
Eles constituem as mais diferentes etapas do ciclo de vida das comunidades e representam as
realidades de tais comunidades. Por isso, “os ritos mais bárbaros ou os mais extravagantes, os
mitos mais estranhos traduzem alguma necessidade humana, algum aspecto da vida, seja
individual ou social”. (DURKHEIM, 2000, p. vii).
A iniciação em crianças ou jovens, dependendo dos costumes de cada população, não
tem formas uniformes em toda sua universalidade, tal como muito bem observou Durkheim
nos recentes trechos. E para assinalar essa variedade, Gennep (2013) afirma que a iniciação
geralmente serve ora para marcar a entrada na infância, ora a entrada na adolescência e,
geralmente, consiste em deixar marcas corporais, na maior das vezes. Numas consiste em
cortar o prepúcio e noutras, arrancar um dente; nalgumas consiste no corte ou perfurar o lobo
da orelha e noutras, a prática de tatuagens e escarificações ou a cortar cabelo de certa maneira.
Estas práticas dolorosas servem para tirar o indivíduo do mundo anterior e agregá-lo, por
conseguinte, ao outro. Assim, é notável que neste processo de iniciação descrito pelos
exemplos ora mencionados, pelo menos se sacrifica uma parte do indivíduo para essa
integração. Nas mulheres, em algumas sociedades, este processo era acompanhado da
perfuração do hímen e corte de clitóris. Por causa da situação dolorosa a que a mulher é
submetida, algumas sociedades tendem a desistir desta prática.

1.3. CARÁTER EDUCATIVO DOS RITOS DE INICIAÇÃO

Tanto Pereira quanto Durkheim, ambos fazem caminhar o conceito de ritos de


iniciação no sentido de aproximá-lo da ação educadora. Assim sendo, geralmente, os ritos de
iniciação não podem passar daquilo que se chama de educação. Se por um lado a educação
moderna ensina, dotando o aluno de conhecimentos socioculturais, por outro, a educação dos
ritos de iniciação dota-o de conhecimentos socioculturais da sociedade a que pertence e de
conhecimentos da ciência comunitária. Ao falar da iniciação como uma componente da
educação, chamo atenção desde já que estou longe de me referir à educação “formal”, mas
que estou me referindo à educação “informal”, aquela que acontece em meios comunitários.
Buscando o conceito de educação legado pelo sociólogo francês Émile Durkheim,
facilmente pode-se constatar sua aproximação com os ritos. Segundo ele, "A educação é a
ação exercida, pelas gerações adultas, sobre as gerações que não se encontrem ainda
31

preparadas para a vida social; tem por objetivo suscitar e desenvolver, na criança, certo
número de estados físicos, intelectuais, reclamados pela sociedade [...]” (DURKHEIM, 1965,
p. 41). Evidente é o que acontece com a iniciação em que a ação educadora dos iniciados fica
confiada às pessoas adultas escolhidas pela comunidade pela sua capacidade e idoneidade.
Esses mestres devem ser dotados de certa autonomia moral e ética. O fim conflui ao mesmo
ponto, o de provocar determinados estados físicos e psicológicos nas camadas visadas.
A finalidade desta educação ritual, sobretudo na mulher, é provocar-lhe
características e comportamentos achados convenientes para enfrentar a vida marital e de
futura mãe e agente fundamental da educação da sociedade. Basta recordar que cabe a ela dar
orientação certa aos filhos desde a primeira hora através do seu afeto emocional. Pelo menos é
assim que é vista a mulher nas sociedades tradicionais.
Nessa educação são também transmitidos os hábitos, costumes, valores e outros
códigos adotados pela comunidade para representar vários significados. É nessa vertente que
Golias (1993, p. 11) prefere dizer que a educação tradicional é “um conjunto de ideias,
sentimentos de hábitos, costumes e aptidões transmitidos de geração em geração aos membros
duma sociedade humana, quer através de linguagem verbal, quer através dos próprios actos
[sic]”.
Nesta perspectiva, tal como a educação, a iniciação tem por objetivo formar o
indivíduo para a integração pessoal, social e cultural. A integração pessoal permite ao
indivíduo reunir todas as múltiplas influências do seu meio para em seguida integrá-las na sua
maneira de pensar, de agir e de se comportar. A integração social permite ao indivíduo
participar ativamente nas atividades e na vida do grupo a que pertence. Por sua vez, a
integração cultural faz da personalidade um padrão que é a maneira de viver, de pensar e de
ser dum determinado grupo.
Nem todos os ensinamentos prestados na educação tradicional são consensuais entre
os iniciados, mas não têm nada a dizer senão subscrever-se, aceitando, por mais que não
esteja de acordo, pois os ensinamentos resultam das práticas mais antigas da mesma
comunidade que chegam a cada uma das gerações mercê da importância das fontes orais.
Assim, “o indivíduo integra os valores culturais do seu grupo e neles se conforma nas suas
maneiras de ser e de agir”. (GOLIAS, 1993, p. 12).
Na educação tradicional os conhecimentos práticos concretos são de extrema
importância, na medida em que à criança é ensinado o essencial da vida. É participando em
certas atividades que aprende a executá-las, sendo o papel do adulto o de guia. É geralmente
32

nos ritos de iniciação, onde reside a educação tradicional, que, a menina ou o menino busca
conhecimentos que lhe vão ser úteis durante a sua vida inteira.
Constata-se, no entanto, que o sentido da educação é bastante largo e diversificado.
Segundo Stuart Mill, citado por Durkheim (1965), a educação compreende tudo aquilo que
fazemos por nós mesmos e tudo aquilo que os outros procuram fazer com a finalidade de
aproximar-nos da perfeição da natureza. Claramente observa-se que a finalidade dos ritos é
similar, levar ao iniciado a essa perfeição. Essa perfeição de que cada indivíduo é capaz tem
relação direta com o desenvolvimento harmonioso de todas as faculdades sociais dos homens.
As finalidades da educação de várias civilizações em diferentes épocas e lugares
nunca foram as mesmas. Em Atenas, por exemplo, se privilegiava formar espíritos delicados,
prudentes, dóceis para gozar, conforme diz Durkheim, o belo e os prazeres da pura
especulação. Em Roma, outra civilização do mundo antigo, a pretensão era levar as crianças a
serem agentes de ação apaixonados pelas glórias militares. Por isso, privilegiavam a educação
militarista e eram indiferentes ao que dissesse respeito às letras e às artes. Na Idade Média, a
educação era predominantemente religiosa e desenvolvida nos conventos. Já com o surto do
Renascimento, era literária. Nos dias que correm, é reservado à educação o domínio da
ciência, da arte e da técnica. Os exemplos poderiam ser múltiplos.
Sucede que, em função dessa finalidade educativa, a sociedade pretende fazer cada
um dos seus membros, certo e ideal sob o ponto de vista intelectual, físico e moral,
características que devem ser refletidas em todos os integrantes da comunidade. De acordo
com o autor em referência, esse ideal ao mesmo tempo uno e diverso constitui a base da
educação e tem a função de suscitar na criança o seguinte: (1) um determinado número de
estados físicos e mentais, que a sociedade a qual pertence considera indispensáveis a todos os
seus membros; (2) certos estados físicos e mentais que o grupo particular (família, profissão
ou classe social) considere indispensáveis a todos os seus componentes. Assim, a educação é
o meio pelo qual a sociedade prepara no íntimo das crianças as condições essenciais da sua
própria existência.
Uma das finalidades da educação é geralmente esta, a de preparar o indivíduo para
lidar com o seu grupo. Lembramos que em cada indivíduo existem dois tipos de seres, um
individual e outro social, de convívio grupal. O ser individual é constituído de todos os
estados mentais que se relacionam apenas consigo mesmo e com os acontecimentos da vida
pessoal. O outro, o ser social, é constituído por um conjunto de ideias, sentimentos e hábitos
que exprimem em nós o que é do grupo de que fazemos parte. É exemplo disso, as crenças
33

religiosas, as práticas da moralidade, os costumes e as opiniões coletivas. Este ser social, que
interessa a maioria, é constituído dentro da comunidade através dos sistemas de educação por
ela aprovados.
O ser social não está prescrito no gene dos homens. Em outras palavras, ninguém
nasce com o ser social constituído em si, esta é uma tarefa da sociedade que molda a
personalidade social dos seus integrantes. Os novos constituintes da sociedade encontram-se
numa fase de tabula rasa sobre a qual devem ser inscritos os valores éticos e morais, as
virtudes, o espírito de vida social, enfim, condições de sobrevivência grupal. Mais uma vez,
destaca-se aí o papel dos diferentes processos de educação: ela (a educação) cria no homem
um ser novo. Por essa razão, “Cada tipo de povo tem um tipo de educação que lhe é próprio, e
que pode servir para defini-lo, tanto quanto a sua organização moral, político ou religiosa”.
(DURKHEIM, 1965, p.79). Nesse processo, o indivíduo deve abandonar tudo que tem a ver
com o individual e passar a abraçar tudo aquilo que diz respeito ao grupal para se tornar num
verdadeiro sujeito moral, que sabe distinguir o bem do mal, o doce do amargo e que saiba
ainda, separar o que é de interesse particular do que é de interesse geral.
Em conformidade com a fonte ora em referência, o tipo de homem que a educação
deve realizar em cada um de nós difere do tipo de que a natureza fez, mas sim representa o
homem que a sociedade quer que ele seja, conforme as exigências para o seu equilíbrio
interno. Disso resulta que a educação consiste, sob qualquer de seus aspectos, numa
socialização metódica de cada uma das novas gerações com vista a atingir essa perfeição que
se pretende do ser social.
Ora, é interessante notar o que diz o autor de que tenho vindo a fazer menção, só para
reforçar esta posição de que os ritos em geral e de iniciação em particular fazem parte dos
mais diversos processos de educação. Em suas palavras, ele refere que

Uma cerimônia existente num grande número de sociedades, põe em evidência este
traço distintivo de educação humana, e mostra-nos mesmo que o homem teve dela,
desde logo, o sentimento. Refiro-me à cerimônia de iniciação. Ela se realizava uma
vez terminada a educação; geralmente encerrava um último período, em que os
antigos davam a última demão à formação do jovem, revelando-lhe as crenças e os
ritos sagrados, de maior significação da tribo. Uma vez submetido a ela, o indivíduo
tomava o seu lugar na sociedade; deixava a companhia das mulheres, no meio das
quais tinha passado a infância; tinha, então, lugar indicado entre os guerreiros; ao
mesmo tempo tomava consciência do seu sexo, de que passava a ter todos os direitos
e deveres. Tornava-se homem e cidadão. (DURKHEIM, 1965, p. 84; grifo do autor).

Esta é a interpretação feita por Durkheim, de que a iniciação constitui uma educação,
uma forja de uma personalidade ativa para o seu papel dentro da sociedade a que pertence.
34

Notadamente destaca que o homem assim só poderia ser considerado depois de passar pelos
ritos. Poderia, desde então, ser integrado nas missões de homens valentes, passava a dispor de
plenos direitos e ainda podia lidar com as coisas sagradas. A explicação de Durkheim não
para por aqui, pois em seguida dá conta que a iniciação representa um renascimento para os
seus praticantes, como se pode ler:

Ora, é crença universalmente difundida em todos os povos que o iniciado, pelo


simples fato da iniciação, tornava-se homem inteiramente novo; mudava de
personalidade, tomava outro nome, e é bem sabido que o nome não era então
considerado como simples signo verbal, mas como um elemento essencial da pessoa.
A iniciação era considerada como segundo nascimento. Tal transformação, o
espírito primitivo a representava simbolicamente, imaginando que um princípio
universal, uma espécie de nova alma vinha encarnar-se no indivíduo. Mas, se
separarmos dessa crença as formas míticas que a envolvem, não vimos a encontrar,
sob um símbolo de fácil decifração, essa ideia ainda obscuramente entrevista da
educação que cria um ente novo? Esse ente, é evidente, representa um homem
social. (DURKHEIM, 1965, p. 84; grifo do autor).

Portanto, estas e outras qualidades só podem ser suscitadas por uma ação vinda de
fora que em outras passagens o autor chama de coerção social. No trecho anterior, está ainda
mais claro que a iniciação, como um derivado da educação, satisfaz as necessidades sociais de
diversos grupos igualmente sociais.
Essa imensa discussão permite apreender que a importância da educação não se
limita apenas nas evidências aqui trazidas, embora consciente que não são poucas e nem
suficientes, mas também que ela perpetua e reforça a homogeneidade social, incutindo na
mente e na alma da criança as atitudes essenciais que a vida coletiva impõe aos indivíduos.
Ela assegura a unicidade na diversidade e ela própria começa apresentando a diversidade e
especificação para assegurar essa homogeneidade.
Sem a educação, as aptidões que a vida social impõe seriam simplesmente literárias,
ou por outra, não seriam difusas. As faculdades de boa convivência e as pré-disposições de
sociabilidade não são transmitidas por hereditariedade, elas são fruto da educação tomada no
seu sentido mais amplo. Nesse diapasão, interpretando Durkheim, quer se trate dos fins a que
ela se propõe, quer se trate dos meios que ela emprega, a educação sempre atende as
necessidades sociais, exprime as ideias e sentimentos coletivos. Importante é reconhecer ainda
que nós devemos à educação o melhor de nós mesmos. E, portanto, essa parte melhor de cada
um de nós é de origem social.
Não obstante a sua contribuição, as passagens anteriores deixam claro que a proposta
educativa de Durkheim é de uma educação de reprodução, aquela em que o indivíduo nada
35

questiona, aceita as coisas tal como são e as recebeu. Na verdade, os ritos de iniciação como
uma componente dessa educação, também carregam as mesmas características, os iniciados
são meros consumidores. Os ritos servem para reproduzir os mesmos valores que são
anteriores ao sujeito social. O interesse de Durkheim é de uma educação de reprodução social
completa e não de uma educação que visa promover mudanças sociais.
Os pressupostos apresentados ao longo desta discussão são suficientes para
testemunhar que a prática dos ritos de iniciação tem importância na vida das comunidades, na
medida em que integram os valores de socialização das comunidades, pois não resta mais
dúvida quanto a isso. Aliás, os fatos falam por si, os conteúdos, os valores e os objetivos de
fazer dos iniciados seres íntegros na sociedade culminam com os princípios da educação
moderna e objetivos simétricos de formar o homem para o seu papel ativo na sociedade, para
saber ser, saber estar, saber fazer, sentir e agir.
A importância dessas manifestações culturais não reside apenas na exaltação de
minorias das sociedades, como também servem para identificar as comunidades, para
descrever os indivíduos, para representar os povos e para demarcar as fronteiras.
Assim é o exemplo dos ritos aqui estudados que servem para habilitar o indivíduo ao
serviço útil da comunidade a que pertence. Os ritos também representam a manifestação
cultural, pois tornam o respectivo povo distinto do outro, mediante a natureza da sua prática,
tendo em conta que as suas modalidades variam de uma comunidade para a outra. Deste
modo, os ritos são coisas iminentemente sociais. As representações sociais são identidades
coletivas que exprimem realidades coletivas para e na sociedade.
Tanto os ritos de toda natureza, quanto às demais manifestações, todos eles são,
única e exclusivamente, enquanto a sua existência estiver relacionada com o quotidiano do
homem, direta ou indiretamente, ideias dos valores dos nossos interesses culturais e
patrimoniais.

1.4. OS RITOS, A MORAL E SOCIALIZAÇÃO

Ninguém duvida que a maior parte dos ritos praticados pelas sociedades espalhadas
pelo mundo constituem pressupostos-chave para a legitimação dos indivíduos junto das suas
comunidades e servem, não raras vezes, de elo entre o mundo físico e metafísico, além de
cuidarem da relação dos homens com a natureza, e por aí em diante. É assim que ao longo das
36

linhas subsequentes, irei empreender uma análise para compreender o grau de socialização
dos ritos em geral.
A magia, as crenças religiosas e outras práticas culturais são feitas de ritos. Essas
outras formas, quando necessário, serão aqui tratadas como complemento para uma
compreensão concisa dos ritos cujo conceito foi dado anteriormente.
Mas pode se perguntar, no entanto, como é que os ritos e demais práticas de sua
classe são preservados por longos anos e por várias gerações; como eles chegam a nós; se
existe uma enciclopédia onde estão inscritos seus princípios e máximas. Ora, a oralidade
constitui o grande acervo e compêndio de toda variedade de representações. É através dela
que os costumes, os hábitos, os ritos de todo o gênero e demais magias são multiplicados
entre comunidades e gerações:

[…] Com efeito, houve quem disse “uma coisa social qualquer, uma palavra de uma
língua, um rito de uma religião, um segredo profissional, um procedimento artístico,
um artigo de lei, uma máxima de moral, se transmite e passa de um indivíduo
progenitor, professor, amigo, vizinho, colega, para outros indivíduos”. (TARDE
apud DURKHEIM, 2013, p. 395).

Este é o papel fundamental das comunidades na preservação do patrimônio cultural.


Mas não é só isso, é também uma responsabilidade acrescida na formação da personalidade sã
dos seus membros. Sobre o papel da oralidade, que tenho vindo a me referir, Durkheim (1965,
p. 46) escreve que “os frutos da experiência humana são quase que integralmente
conservados, graças à tradição oral, graças aos livros, aos momentos figurados, aos utensílios
e instrumentos de toda a espécie, que se transmitem de geração em geração”. Em todas as
épocas, em todos os tempos, a oralidade nunca perdeu a sua importância e não se duvida que
continuará exercendo o seu papel multiplicador do legado social das comunidades.
Quase sempre o comportamento dos constituintes de uma dada comunidade depende,
em grande parte, de como os valores morais foram transmitidos. É assim que determinadas
comunidades orientam esses valores para a formação de uma personalidade pacifista; outras,
para uma tendência altruísta7 ou ascética8 e, inserem-se no processo de socialização dos seus
membros.

7
Aquele que pensa mais nos outros do que em si. Geralmente indivíduos desta natureza podem oferecer as suas
vidas para salvar a dos outros ou para preservar a reputação de suas comunidades.
8
Derivada de ascetismo – prática de abstenção de prazeres e de conforto material, adotado para alcançar a
perfeição moral e espiritual. O asceta submete-se a sacrifícios rigorosos, sendo que os antigos cristãos se
sujeitavam a castigos físicos. (WEBER, 2001).
37

Processo de socialização significa, portanto, uma incorporação complexa do


indivíduo, de suas intenções ou interações em relação ou associações sociais mais
abrangentes. Aqui o indivíduo depara-se com as normas eleitas pela comunidade como formas
de conduta legal no seio dela, independentemente da vontade dos indivíduos em particular. A
sua observação e cumprimento reveste-se de uma obrigação moral sob pena de sofrer
represálias coletivas. A esse respeito, Durkheim (2007, p. 10) afirma que

Um fato social se reconhece pelo poder de coerção externa que exerce ou é capaz de
exercer sobre os indivíduos; e a presença desse poder se reconhece, por sua vez, seja
pela existência de alguma sanção determinada, seja pela resistência que o fato opõe
a toda a tentativa individual de fazer-lhe violência.

Evidente nas comunidades onde as práticas rituais são expressão mais alta da
afirmação de sua existência, quem não se submeter a essas práticas, declara a sua própria
exclusão social e a dos direitos reservados às pessoas que já passaram pela prova. Durkheim,
um dos considerados clássicos da sociologia que dedicadamente estudou o fenômeno social, a
respeito desta matéria destaca que

[…] Esse fenômeno é um estado do grupo, que se repete nos indivíduos porque se
impõe a eles. […] Isso é sobretudo evidente nas crenças e práticas que nos são
transmitidas inteiramente prontas pelas gerações anteriores; recebemo-las e
adotamo-las porque, sendo ao mesmo tempo uma obra coletiva e uma obra secular,
elas estão investidas de uma particular autoridade que a educação nos ensinou a
reconhecer e a respeitar. (2007, p. 9).

Ora, o que torna estes fatores particularmente instrutivos é que a educação tem
justamente por objeto produzir o ser social; pode-se, portanto, ver nela a maneira como esse
ser constitui-se na sociedade. Essa pressão de todos os instantes que sofre a criança é a
pressão mesma do meio social, que tende a moldá-la à sua imagem, e do qual os pais e os
mestres não são senão os representantes e os intermediários. Cumpre assinalar que a imensa
maioria dos fenômenos sociais nos chega dessa forma e não temos que rejeitá-los enquanto de
forma involuntária pertencemos àquela comunidade; devemos nos submeter em plena
observância do dever moral individual e coletivo. Sobre moral individual, Durkheim
desenvolve a seguinte interpretação a respeito:

Quanto ao que chamamos moral individual, se entendermos por isso um conjunto de


deveres de que o indivíduo seria, ao mesmo tempo, sujeito e objeto, que só o
ligariam a si mesmo e que, por conseguinte, subsistiriam mesmo que ele fosse só, é
uma concepção abstrata que não corresponde em nada à realidade. A moral, em
38

todos os seus graus nunca se encontrou senão no estado social, nunca variou senão
em função de condições sociais. (DURKHEIM, 1999, p. 421).

Segundo a fonte, os deveres do indivíduo para consigo mesmo são, na realidade,


deveres para com a sociedade, eles correspondem a certos sentimentos coletivos que não se
pode ofender. Hoje, por exemplo, há em todas as consciências sadias um vivo sentimento de
respeito pela dignidade humana, ao qual somos obrigados a conformar nossa conduta e é nisso
que reside o essencial da moral que chamamos de individual.
Os diferentes tipos de ritos e demais práticas que a eles se assemelham formam um
conjunto à parte, constituindo padrões de vida dessas mesmas sociedades, pois envolvem o
uso e costumes que geram determinados padrões de vida. Os ritos e demais práticas culturais
são realizados de forma cíclica e consagram a existência de vida humana das comunidades
que por razões históricas vêm-se obrigadas a venerar essas práticas em rígida observância aos
valores coletivos da comunidade e da sua relação com o meio em si.
Torna-se imperioso explicar o sentido dos termos recentemente aplicados. Estou me
referindo a “uso” e “costumes” por entender que isso ajudará na compreensão do sentido do
discurso. De acordo com Weber (2009, p. 18), “Denominamos uso a probabilidade efetiva
dada de uma regularidade na orientação da ação social, quando e na medida em que a
probabilidade dessa regularidade, dentro de determinado círculo de pessoas, está dada
unicamente pelo exercício efetivo.” (Grifos do autor). O conceito de uso costuma aglutinar-se
com o de costume devido a essa regularidade na ação efetiva. Assim, chamamos de uso e
costume quando o exercício dessa ação efetiva se baseia no ato inveterado. Falta compreender
o sentido do termo “costume” aqui empregue.
Segundo a fonte, “[…] Entendemos por ‘costume’, o caso de um comportamento
tipicamente regular que é mantido dentro dos limites tradicionais unicamente por seu caráter
de ‘habitual’ e pela ‘imitação’ irrefletida – uma ‘ação de massas’, portanto, cuja continuação
ninguém exige do indivíduo, em sentido algum”. (WEBER, 2009, p. 215).
No uso e no costume as comunidades exercem com determinada regularidade as
ações coletivas. A maneira de fazer, de vestir, hábitos alimentares, inserem-se no conjunto de
uma longa lista de usos e costumes padronizados e aceitos pelas sociedades e de que os ritos
fazem parte.
Os costumes são alheios da nossa vontade e respeitam a dinâmica social. Nós,
membros de uma sociedade, somos chamados a observar o seu conteúdo independentemente
39

da nossa vontade. O indivíduo aprende as normas da sociedade e conforma-se a se manifestar


conforme elas. Leia-se o que Durkheim escreveu em favor disto:

[…] basta observar a maneira como são educadas as crianças. Quando se observam
os fatos tais como são e tais como sempre foram, salta aos olhos que toda a
educação consiste num esforço contínuo para impor à criança maneiras de ver, de
sentir e de agir às quais ela não teria chegado espontaneamente. Desde os primeiros
momentos de sua vida, forçamo-las a comer, a beber, a dormir em horários
regulares, forçamo-las à limpeza, à calma, à obediência; mais tarde forçamo-las para
que aprendam a levar em conta outrem, a respeitar os costumes, as conveniências,
forçamo-las ao trabalho, etc., etc. (DURKHEIM, 2007, p. 6).

Se porventura, com o tempo, essa coerção cessa de ser sentida, é que pouco a pouco
dá origem a hábitos, a tendências internas que a tornam inútil. Frente de todo o aparato
ideológico, a comunidade cria consciência de legitimidade às crenças e legaliza a sua
submissão aos estatutos estabelecidos pelos procedimentos dos hábitos e costumes, digo
ainda, pelos ritos. Este é o princípio gerador de relações sociais sólidas. Ao falar de relações
sociais, urge a necessidade de dar seu conceito:

Por ‘relação’ social entendemos o comportamento reciprocamente referido quanto a


seu conteúdo de sentido por uma pluralidade de agentes e que se orienta por essa
referência. A relação social consiste, portanto, completa e exclusivamente na
probabilidade de que se aja socialmente uma forma indicável (pelo sentido), não
importando, por enquanto, em que se baseia essa probabilidade. (WEBER, 2009, p.
16; grifos do autor).

O processo de socialização significa, portanto, uma incorporação complexa do


indivíduo, de suas intenções ou interações em relação a determinados padrões, ou associações
sociais mais abrangentes. Na socialização o indivíduo aprende a conviver com os outros, isto
é uma união na diversidade. O indivíduo como sujeito moral e social é obrigado a relegar as
orientações pessoais e a adotar a do grupo para efeitos dessa harmonia social.
Olhando para os ritos que, na sua maioria, são praticados em ambiente coletivo
percebe-se que direta ou indiretamente acabam exercendo esse papel de socialização, primeiro
com os integrantes do meio grupal e depois para com a comunidade e a sociedade em geral.
Esse processo de socialização depende em grande medida de como a informação chega a nós,
cabendo às gerações adultas a responsabilidade de transmissão da informação orientada para
uma conduta saudável e que identifica o grupo. Se falhar nesse processo, da conduta incorreta
de um dos membros deduzir-se-á a do grupo como um todo. Quantas vezes o comportamento
de um só membro de uma comunidade, fora de sua esfera, não é atribuído ao grupo em geral?
40

CAPÍTULO 2
MOÇAMBIQUE E NIASSA: TERRITÓRIO E POPULAÇÃO

Acho conveniente trazer neste capítulo uma breve contextualização do território e


população em estudo, pois seria muito incoerente tratar de uma temática que mexe com um
território e um povo que tem uma longevidade vital e que ao longo de todo o período de sua
existência galgou e deixou pegadas e não reconstituir essa caminhada. Para uma boa
compreensão de um povo, de seus costumes, práticas e atitudes é necessário um conhecimento
pormenorizado do meio que o rodeia, do seu domínio e relação com a natureza.
É neste horizonte que no presente capítulo faço o estudo resenhado de Moçambique e
da Província de Niassa. O estudo é extensível à Cidade de Lichinga (foco da pesquisa) e diz
respeito aos aspetos físicos, históricos e socioeconômicos e, de forma particular, descrevo a
trajetória histórica do povo Yaawo – o objeto central do presente estudo. Estas informações
poderão ajudar a compreender melhor a esfera social deste grupo alvo e, por conseguinte,
fazer um paralelismo com a prática dos ritos de iniciação que caracteriza esta comunidade.

2.1. CONHECENDO UM POUCO DE MOÇAMBIQUE

Moçambique é um país localizado na costa oriental da região meridional de África,


entre os paralelos 10º 27' e 26º 52' de latitude Sul e meridianos 30º 12' e 40º 51', longitude
Este. É limitado a norte pela Tanzânia, a sul pela República da África do Sul, a este pelo
Oceano Índico e a oeste por Malawi, Zâmbia, Zimbábue e Suazilândia. O território possui
uma área de 799.380 km2, incluindo a superfície líquida das águas do interior (lagos,
albufeiras e rios). (MUCHANGOS, 1999; INE, 2015a).
O fator da localização de Moçambique junto do mar, com 2.470 km de costa,
permite-lhe o contato com povos do além-mar e de países do interior da região que a partir
dele procuram ter acesso ao mar. O mar constitui uma fonte econômica e de recursos para a
sobrevivência da população em geral e da ribeirinha em particular.
De acordo com os dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), Moçambique
possui uma população total de 27.128.530 habitantes9, dos quais 13.106.447 são do sexo

9
Projeção populacional para o ano de 2017 pelo INE (Moçambique 2007-2040) a partir do Recenseamento Geral
da População e Habitação de 2007.
41

masculino e 14.022.083, do sexo feminino. Esta população é subdividida em urbana, com


8.766.777 habitantes, e rural, majoritariamente, com 18.361.763 habitantes.
Em termos de divisão administrativa, de acordo com as fontes supracitadas,
Moçambique subdivide-se em 11 Províncias, incluindo a Cidade de Maputo, capital do país.
Estas Províncias encontram-se organizadas em três regiões, sendo: três no Norte,
nomeadamente: Niassa, Cabo Delgado e Nampula; quatro na região centro, as Províncias da
Zambézia, Tete, Manica e Sofala; quatro na região sul, que compreende as províncias de
Gaza, Inhambane, Maputo e Maputo Cidade. Cada uma das Províncias é dirigida por um
Governador, até ao momento nomeado pelo Presidente da República. Abaixo das Províncias,
encontramos os Distritos, os Postos Administrativos e Localidades.
A população de Moçambique é de origem bantu, um grupo etnolinguístico de cerca
de 300 línguas cujo povoamento na região data dos anos 200/300, na sequência de um
processo migratório oriundo da região dos grandes lagos no sentido norte-sul, fixando-se na
região meridional. Eles constituem os habitantes da África Austral de hoje. Os relatos indicam
que a fixação bantu no território que corresponde ao Moçambique atual ocorreu na sequência
do conhecimento das técnicas de fabrico de ferro na região, o que atraiu a sua presença.
A territorialidade atual de Moçambique tem pouco mais de um século e resulta do
tratado anglo-português de maio de 1891, o qual punha fim ao litígio territorial entre a
Inglaterra e Portugal ao definir novas fronteiras entre as suas esferas de influência. (NEWITT,
2012).
O colonizador ao demarcar essas fronteiras territoriais, não respeitou o princípio
étnico-linguístico e cultural ou psicológico, definindo-as ao seu mero prazer e de acordo com
os seus interesses, orientando-se por acidentes naturais (rios e montanhas) e linhas
imaginárias. Assim, é frequente encontrar o mesmo povo dum e do outro lado das fronteiras.
A respeito da questão em referência, Newitt (2012, p. 316) salienta que “A linha
contorcida de Moçambique moderno, fechado num abraço com os antigos territórios da África
Central Britânica, não representa qualquer consequência racional das necessidades de um
estado moderno […]”, mas representa o momento dos aventureiros e caçadores de
concessões. O trecho anterior mostra claramente a arbitrariedade das fronteiras
moçambicanas.
Moçambique, ex-colônia portuguesa, conheceu uma bárbara exploração deste povo
que se fez ao território em 1498. Numa primeira fase, eles chegaram como simples
mercadores. Depois passaram a explorador e colonizador, só ficando independente em 1975,
42

depois de uma década de luta. Após a independência, seguiu-se ao período de construção do


Estado nacional.
A luta de liberação nacional foi conduzida pela Frente de Libertação de Moçambique
(FRELIMO), um movimento que se formou na diáspora (Tanzânia) em 1962 e dois anos
depois (1964) proclamou uma insurreição armada contra o regime colonial em Moçambique.
O seu primeiro presidente foi o Dr. Eduardo Chivambo Mondlane, morto em 1969, ainda no
auge da luta armada. Com isso, coube a Samora Moisés Machel substituí-lo no cargo,
passando a ser o segundo presidente, cabendo-lhe também a missão de conduzir a guerrilha
até a assinatura do Acordo de Lusaka em 1974, que pôs termo ao conflito de guerra entre a
FRELIMO e o governo colonial. Samora Machel tornou-se o primeiro presidente de
Moçambique independente e veio a morrer num acidente de aviação em 1986.
Para formar uma nação no meio de uma pluralidade de mais de vinte grupos
etnolinguísticos, adotou-se o Português como a língua oficial e de unidade nacional que
embora não fosse falado por uma maioria absoluta, pelo menos tinha os seus falantes
representados em todo o país.
Pouco depois da independência, uma facção de moçambicanos apoiados por alguns
regimes da região, instaurou uma guerrilha conhecida por "Guerra dos 16 anos", e justificou
as suas ações no regime escolhido pelo governo pós-independência (o Socialismo). Este
movimento de rebelião mais tarde tomaria o nome de Resistência Nacional de Moçambique
(RENAMO). Hoje é o maior partido da oposição em Moçambique.
A guerra foi muito sangrenta e as suas ações concentraram-se na destruição das
infraestruturas sociais e econômicas com objetivos de enfraquecer o governo dessa época. Os
registros de Newitt (2012, p. 486) ressaltam que

Quando entravam numa zona, o seu alvo era o pessoal e quaisquer edifícios ou
instalações ligadas ao governo. A escolha destes alvos destinava-se a destruir toda a
confiança ou crença na eficácia do governo como organização capaz, protectora ou
beneficente. Os seus alvos secundários eram as instalações económicas que iam
desde pontes, cabos de energia e caminhos-de-ferro a fábricas, oficinas e instalações
fabris de toda a espécie.

Este movimento encontrou a nível interno apoio nos líderes tradicionais e religiosos
que haviam sido marginalizados pelo regime do governo no poder. Até o final em 1992 com a
assinatura do Acordo Geral de Paz em Roma, a fonte aponta que a guerra já tinha feito 100
mil mortos. Durante esses confrontos militares, quatro milhões haviam se refugiado em países
vizinhos e tantos outros mil haviam perdido parte dos seus membros.
43

Portanto, nesta breve passagem pela história de Moçambique, destaquei cinco


momentos importantes, nomeadamente: os anos de 200/300, do povoamento bantu; o ano de
1498, data de chegada dos primeiros portugueses ao território; 1891, ano em que nasce a
territorialidade atual de Moçambique; 1975, ano da independência nacional; e 1992, o ano da
assinatura do Acordo Geral de Paz, que pôs termo ao belicismo pós-independência.

Mapa 1 – Localização de Moçambique

Fonte: Vanito Viriato M. FREI, 2017 (org.)

2.2. NIASSA, TERRITÓRIO E POPULAÇÃO


2.2.1. Território

A Província de Niassa localiza-se na região noroeste de Moçambique e limita-se a


este com a Província de Cabo Delgado, a oeste com o Malawi através do Lago Niassa e por
44

uma fronteira terrestre, a norte com a Tanzânia através do rio Rovuma e a Sul com as
Províncias de Nampula e Zambézia, através do rio Lúrio (vide o mapa 2). Niassa é a maior
Província do País em termos de extensão, com uma área total de 122.176 km2
(www.niassa.gov.mz).
A atual geopolítica da Província de Niassa é constituída por dezesseis distritos (mapa
3), sendo que sua capital é a cidade de Lichinga, localizada no planalto com o mesmo nome.
Ela dista cerca de 2.800 km de Maputo, cidade capital do País.

Mapa 2 – Divisão política de Moçambique

Fonte: KOEHNE (https://commons.wikimedia).


45

Mapa 3 – Divisão administrativa da Província de Niassa

Fonte: Ernesto Jorge MACARINGUE, 2017 (ogr.).

Na antiga divisão administrativa, tivemos o Distrito de Lichinga e a Cidade de


Lichinga, esta última gozando o mesmo estatuto de distrito. Hoje a nova estrutura territorial
(Lei 26/2013) designa Distrito de Chimbonila ao antigo território do Distrito de Lichinga e o
território que corresponde à Cidade de Lichinga, de Distrito de Lichinga. A esta matéria
retornarei mais adiante.
Niassa em língua cinyanja significa “lago” e é daí que deriva o nome da Província. O
lago Niassa é o décimo maior no mundo e o terceiro maior de África, depois do lago Victória
e Tanganika. Ele é partilhado por três países: Moçambique, Tanzânia e o Malawi. Por essa
tripartida, em alguns registros consta como lago Malawi, palavra que em língua chichewa,
falada no Malawi, significa “nascer do sol”, visto que o lago localiza-se no oriente deste país.
46

É assim como os malawianos vêem o nascer do dia nas imediações do lago. Na Tanzânia em
kiswahili (idioma falado neste país) o lago Niassa é conhecido como Nyasa.
Localizado no Vale do Rift (que partindo do mar vermelho no norte de África, atinge
o rio Zambeze no extremo sul), o lago Niassa tem uma extensão de 600 km de comprimento,
com largura que varia entre 15 e 90 km e cerca de 700 metros de profundidade. O lago possui
uma biodiversidade bastante rica estimada em centenas de milhares de espécies diferentes. A
área total do lago é 28.628 km2. Porém apenas 7.000 km2 pertencem a Moçambique. Estima-
se que tenha entre um e dois milhões de anos de existência. (MUCHANGOS, 1999;
WEGHER, 1995).
O lago Niassa é o cartão de visita da Província de Niassa. Além disso, ele tornou o
Distrito do Lago e em particular o Município de Metangula, sede do distrito, um grande
destino turístico da província, associando-se às outras ofertas naturais, como a Reserva do
Niassa que juntos fazem de Niassa uma província de beleza sem par.
Nas terras do Niassa correm águas dos lagos de maior importância ao nível nacional.
Para além do lago Niassa destacam-se os lagos Chuúta, Amaramba e Chirua. À exceção do
lago Amaramba que em território nacional é partilhado entre os Distritos de Mandimba e
Mecanhelas, os restantes pertencem a este último. Localizados no extremo sudoeste da
Província, estes lagos são partilhados com o Malawi e parecem uma descontinuidade do lago
Niassa. O lago Chirua é o mais importante entre os três, pela sua extensão. Não vou entrar em
detalhes acerca de cada um, mas importa referir especialmente que o Lago Amaramba é a
nascente do Rio Lugenda, um dos importantes afluentes da bacia do Rovuma e uma das três
bacias hidrográficas mais salientes da província, depois da referida bacia do Rovuma e do
Lúrio. O rio Lúrio corre no sentido sudoeste-sudeste por extenso percurso a caminho do
Oceano Índico. Na margem direita banha as Províncias da Zambézia e Nampula e na margem
esquerda, as Províncias de Niassa e de Cabo Delgado. O rio Rovuma corre no sentido
noroeste-nordeste e prolonga-se até ao mar. Na margem direita banha a Província de Niassa e
posteriormente a Província de Cabo Delgado e na margem esquerda, banha a vizinha
República da Tanzânia quase na sua totalidade. Por sua vez, o rio Lugenda corre no sentido
sul-norte, até a sua foz junto do Rovuma. (MUCHANGOS, 2009; WEGHER, 1995).
De acordo com os indicadores sociodemográficos de Niassa, o setor agrário e os seus
derivados (agricultura, silvicultura e pesca) é a atividade primária que ocupa a maior parte da
população economicamente ativa, com um percentual de 83,1% e subsetor familiar desta
47

atividade é o mais predominante. As mulheres economicamente ativas na sua maioria


pertencem ao setor agrário com 91,9% do total.
Como principais produtos com finalidade alimentar desta atividade, destacam-se o
milho, feijões, arroz, tubérculos e horticulturas e, como culturas de rendimento, algodão,
tabaco etc. Há registros de criação de gado ainda que em escala diminuta. Niassa tem também
potencial em madeiras, além de registrar ocorrências minerais, com destaque para pedras
semipreciosas, ouro, carvão e granito vermelho (WEGHER, 1995;
www.portaldogoverno.gov.mz/).
Mercê às boas condições agroecológicas, Niassa chega a abastecer em produtos
agrícolas os mercados nacionais e ainda, em certa medida, os países vizinhos. É por essa
razão que o governo pós-independência desenhou um ambicioso e falhado projeto agrícola de
400 mil hectares com o qual pretendia transformar Niassa em um verdadeiro complexo
agroindustrial. Entre as razões que levaram ao fracasso do tal projeto, a guerra dos 16 anos, é,
de fato, a “mais culpada”.

2.2.2. Evolução da geopolítica da Província de Niassa

A toponímia do território de Niassa passou por várias metamorfoses para atingir o


estágio atual. Os tais contornos caracterizam-se por movimentos de avanço, regressão,
inovação e, até certo ponto, de estabilidade; coisa própria do colonizador que face às
conjunturas internacionais procurava contornos para legitimar-se junto dos territórios em sua
posse.
O decreto que mandou cessar a companhia de Niassa (retomarei mais adiante)
estabelecia que a partir de 28 de outubro de 1929 esses territórios passavam ao controle
efetivo da colônia da administração portuguesa. Com efeito, o território foi desmembrado
dando origem a dois distritos administrativos: Cabo Delgado, com a sede em Porto Amélia
(hoje Pemba), e Niassa, com a sede em local a indicar. A instalação efetiva do Distrito de
Niassa, de acordo com Wegher (1995), viria a acontecer no ano econômico de 1930-1931,
sendo subdividido em quatro circunscrições, nomeadamente:

1. Circunscrição Civil do Lago, com a sede em Metangula. Tinha como Postos


Administrativos: Unango, Cobué e Macaloge;
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2. Circunscrição Civil de Metarica, com a sede em Litunde. Compreendia os Postos


Administrativos de Muembe, Mecula e Lucinge;
3. Circunscrição Civil de Metónia, com a sede em Mandimba. Tinha como postos
administrativos: Metónia e Catur;
4. Circunscrição Civil de Amaramba, com a sede em Cuamba. Compreendia os Postos
Administrativos de Maúa e Mecanhelas.

Ao longo desta seção referi que ao se criar o Distrito de Niassa com a desagregação
da Companhia homônima, a sede seria instalada em local a indicar. Com efeito, em 1932 foi
criada a povoação Vila Cabral que passa a ser a sede do então Distrito de Niassa.
Com a nova divisão administrativa de 1935, de efeitos imediatos a partir de primeiro
de janeiro desse mesmo ano, o Distrito de Niassa passa a ser anexado ao Distrito de
Moçambique, com a sede em Nampula. Em 1945, pela Portaria Ministerial nº 23 de 09 de
setembro é criada a Província do Niassa e no território do antigo Distrito de Niassa, o Distrito
da Vila Cabral, com a sede na povoação com o mesmo nome. Assim, este distrito é composto
pelas circunscrições de Amaramba, Lago, Marrupa e Metónia. Wegher (1995) descreve que
este distrito recém-criado teve uma curta duração, pois a partir de julho de 1946 passou a
denominar-se Distrito do Lago, com a sede na Vila Cabral. Assim, integravam na referida
Província de Niassa, os Distritos de Lago, Cabo Delgado e Nampula.
No âmbito do reforço da máquina governativa, em 1954 pelo Decreto nº 39858 de 20
de outubro é promulgada a Lei Orgânica do Ultramar que estabelece uma nova divisão
administrativa das Províncias Ultramarinas de Angola e Moçambique em distritos e estes, por
sua vez, em concelhos e circunscrições. Desde então, estes territórios cessam de serem
designados por Colônias. Assim sendo, reaparece o Distrito de Niassa (estatuto que durou até
a independência), com a sede na Vila Cabral e constituído pelas circunscrições de Amaramba,
Maniamba, Marrupa e Vila Cabral.
De forma sumária, o que destaquei como evolução da geopolítica da Província de
Niassa é o seguinte:

1. 1892-1929 – o território é ocupado pela companhia de Niassa;


2. 1929-1935 – após a extinção da Companhia, é criada a Província de Niassa.
Segundo Wegher (1995) essa medida só viria a se fazer sentir no ano
econômico de 1930-1931;
49

3. 1935-1945 – o território de Niassa foi anexado ao Distrito de Moçambique,


com sede em Nampula;
4. 1945-1946 – o território é designado Distrito da Vila Cabral e integrava a
recém-criada Província de Niassa;
5. 1946-1954 – o território chama-se Distrito do Lago;
6. 1954-1975 – o território volta a chamar-se de Distrito de Niassa, designação
que durou até a data da Independência.

2.2.3. Passado territorial

A Província de Niassa durante o colonialismo português integrava a extinta


Companhia de Niassa, um todo vasto território localizado a norte do Rio Lúrio que abrangia
as atuais Províncias de Niassa e Cabo Delgado, numa extensão total de 160.000km2. A
Companhia do Niassa foi constituída oficialmente em 1892, mas só foi concedido o seu alvará
dois anos depois, em 1894, por um período de vigência de trinta e cinco anos. À semelhança
da Companhia de Moçambique que integrava as atuais províncias de Sofala e Manica, ela
gozava de um estatuto próprio e autônomo. A gestão da companhia fora confiada a
capitalistas ingleses e franceses, que estabeleceram escritório-sede em Lisboa. (NEWITT,
2012).
Pelos seus poderes majestáticos, a companhia podia emitir selos próprios. Assim, à
luz desse decreto, o primeiro administrador-gerente da companhia, o inglês George Wilson,
por sua própria iniciativa, aventurou-se a cunhar na Inglaterra, particularmente na Casa de
Moedas de Birmingham, moedas privativas e a imprimir selos postais, tendo, de seguida,
tentado introduzi-los no território. Como tivesse sido à revelia e de forma precipitada, antes
mesmo que o território fosse entregue àquela companhia, a tal intenção fracassou sem que
circulassem no território. Com efeito, “[...] Teve de ser enviado um telegrama ao Governador
da Companhia em África, a avisá-lo de que não aceitasse nem as moedas nem os selos. […]”
(NEWITT, 2012, p. 333).
Uma vez já em território da companhia e interditada a sua circulação, qual seria o
destino das moedas e selos fiscais ilegais?

Em Março de 1895, exonerado o Sr. Wilson, a Administração da Companhia


remeteu de Moçambique para Lisboa, consignados à Casa de Moeda, todos os
caixotes com moedas de bronze e os selos, "dos quais – no dizer dum Relatório da
50

Companhia do Niassa de 29 de Abril de 1895 – nem um só saíra dos caixotes e


envólucros em que tinham ido".
Esses valores deram entrada na Casa da Moeda em Julho de 1895 […] Podendo
dizer-se que, na sua grande maioria, tanto uns como outros foram eliminados de
circulação – as moedas fundidas para a amoedação do cobre continental e os selos
puramente inutilizados […]. (REIS, s/d, p. 148).

O autor, que pela narrativa me parece numismático sênior, descreve sucintamente a


constituição das moedas e selos. Especialmente os selos, refere que havia de 10, 20 e 25 réis.
Quanto às moedas cunhadas, havia moedas de bronze de dez e vinte réis, e de prata, de 500
réis, cuja coleção não completou a série, se é que existia. As moedas traziam referência à
Companhia do Nyassa-Cabo Delgado 1894. Quer nas moedas quanto nos selos entre os seus
constituintes encontrava-se uma torre circular. A torre suscitou a hipótese de que existia igual
algures na Companhia, e, uma vez feita uma minuciosa busca bibliográfica e junto de
personalidades outrora ligadas à administração da mesma, não se achou evidência alguma,
permanecendo a dúvida sobre a que se referia.
De acordo com Newitt (2012), os primeiros anos da Companhia não foram
animadores, a administração, que enfrentava dificuldades financeiras, viu-se ainda mais
complicada ao explorar os territórios do interior, visto que se encontrava um poderoso chefe
Yao, o Mataka, que continuava independente na região de Niassa e o território maconde, no
Planalto de Cabo Delgado, que continuava ainda intacto em termos de exploração. Portanto, o
decreto da Companhia só podia vigorar de forma significativa na zona costeira, o que levou à
fundação da Cidade do Porto Amélia, sede da administração da Companhia.
Havia muito pouco lugar onde cobrar os impostos e o comércio continuava limitado.
Esse fator levou a Companhia em 1903 a assinar com a Witwatersrand Native Labour
Association (WNLA), organização sul-africana de recrutamento da mão de obra para as minas
da África do Sul, um decreto para que recrutamentos fossem feitos em território da
Companhia. Porém, segundo a fonte, a medida parece que não trouxe resultados animadores
pelo menos nos primeiros anos. Mas por outro lado, Serra et al (2000) refere que até pelo
menos 1913 a Companhia exportava mão de obra para a África do Sul como uma das suas
fontes. Contudo, diga-se que “os primeiros quinze anos de vida da Companhia do Niassa
foram, no que se refere ao desenvolvimento econômico ou à criação de um estado moderno,
um fracasso burlesco”. (NEWITT, 2012, p. 333).
A companhia continuou empreendendo esforços de ocupação e conquista do interior,
criando postos desde a costa até o lago. No entanto, a Companhia tinha que interromper este
plano de ocupação para dar lugar à cobrança de impostos para fazer face ao défice financeiro.
51

Em 1908, após uma injeção de capital sul-africano, a administração retomou as incursões de


ocupação do interior, como descreve Newitt (2012, p. 352):

[…] A Companhia de Niassa dispunha agora de fundos para empreender uma nova
tentativa de ocupação do interior. Durante um período de quatro anos, a sequência
de postos estendeu-se para norte e para sul do território de Mataka, e por fim em
Outubro de 1912, o próprio Mataka Chissonga foi derrotado e constituiu-se um forte
nas ruínas de Muembe. Foram então criados postos administrativos da Companhia
ao longo do Lago para iniciar o recrutamento da mão-de-obra e a cobrança de
impostos. A única região que a Companhia não controlava quando eclodiu a
primeira guerra mundial era o planalto de Maconde, no extremo nordeste.

Só assim é que de fato, a Companhia entraria em pleno serviço efetivo de sua


concessão e a pôr em prática o seu plano real de explorar ou “arrancar dinheiro ou mão de
obra aos camponeses africanos” até o final do seu período de vigência, em 1929, quando o
Decreto nº 16757 de 20 de abril desse mesmo ano traz de volta a administração desses
territórios ao Estado Português.
Isto acontece numa altura em que o Governo Português, saído do golpe de Estado de
26 de maio 1926, procurava cada vez mais afinar a sua máquina governativa e pretendia, com
isso, tirar o máximo proveito de suas colônias. Com efeito, em Moçambique, logo depois do
golpe, começou a se fazer sentir o reforço da burguesia portuguesa em diversas posições, quer
do setor estatal, quer das companhias monopolistas ou no seio do campesinato. (HEDGES et
al, 1999). Até o final do período de seu mandato, pode se perguntar se a companhia de Niassa
teria logrado os objetivos pelos quais fora criada.

2.2.4. População e civilização

Com ficou registrado, Niassa é a maior província do país em termos de extensão e


inversamente populosa, com 1.789.120 habitantes, dos quais 879.280 são homens e 909.840
são mulheres, com uma densidade demográfica de 14.6 habitantes por km2. (INE, 2010). De
acordo com os indicadores sociodemográficos de Niassa resultantes do senso de 2007, a
população da província subdivide-se em três principais grupos etnolinguísticos,
nomeadamente: makhuwa, com 43,6%, yaawo com 37,2% e nyanja com 10%. O resto do
percentual de 9,2% reserva-se aos outros grupos, entre nacionais e estrangeiros.
Ao nível da província, há uma prevalência de 61% de analfabetismo, cujo maior
índice incide nas mulheres, com 76,3%. A taxa masculina é de 44,6%. Na terceira idade (mais
52

de 60 anos) é muito mais expressiva a porcentagem com uma prevalência de 82,9%, sendo
que, quanto ás mulheres, cobre quase a totalidade da fasquia com 95,4%.
A população de Niassa é na sua maioria religiosa. No documento em referência
consta que 60.9% do total da população professa a religião islâmica, seguida da católica com
26%, as religiões protestantes10 com 10.2% e 1.4% de outras religiões de presença reduzida
(judaísmo, hinduísmo, budismo, ortodoxas grega e russa etc.). A percentagem remanescente
1.3% reserva-se às religiões desconhecidas, da população sem religião ou que professa o
credo africano.
A islamização da Província de Niassa, e dos ayaawo em particular, surge na
sequência do contato deste povo com os árabes e com povos islamizados da costa e de outros
territórios da região com quem manteve relações comerciais (retomarei mais adiante).
Quanto ao catolicismo, Wegher (1995) explica que os primeiros católicos que vieram
a esta província com a missão de implantar o cristianismo foram os Missionários da
Consolata, que vindo do Nyassalândia (Malawi), tiveram como porta de entrada a localidade
de Mandimba a 15 de julho de 1926. Trata-se do padre Pedro Calandri, padre Chiomio e
padre Amiotti. Em Mandimba ergueram a primeira capelinha a alguns quilômetros da sede,
lugar existente até hoje, ainda que careça de alguma valorização. A zona escolhida para a
construção de uma missão em Mandimba foi Massangulo (na altura pertencia ao território de
Mandimba e hoje, ao Distrito de Ngaúma), de onde partiria a evangelização para outros
quadrantes da província. Padre Calandre e padre José Amiotti foram seus primeiros
missionários11.
Precisa ficar claro que, quanto ao cristianismo em si, não foram os católicos que o
introduziram em Niassa; já tinha sido implementado na província nos meados do último
quartel do século XIX, quando foi implantando o anglicanismo, que, a partir da Diocese
Anglicana da Ilha de Licoma (Malawi), surgiu a grande Missão de São Bartolomeu de
Messumba, alhures do Distrito do Lago. (AMIDE, 2008).
Ao longo do texto, fiz uma breve passagem sobre os principais grupos étnicos que
fazem a população de Niassa. Contam-se três, os quais têm contextos históricos,
manifestações e ainda, pode-se dizer, características diferentes um do outro. Esses grupos são

10
Inclui a religião anglicana, Sião/Zione, evangélica/pentecostal (as igrejas adventistas, apostólicas, baptistas,
evangélicas, luteranas, metodistas, presbiterianas etc.).
11
Após a entrada e um périplo de reconhecimento da província, o padre Chiomio teve que deixar os outros dois
padres, pois tinha que embarcar para fora de Moçambique. (CALANDRI apud WEGHER, 1995).
53

os ayaawo, amakhuwa e anyanja, sendo segmentos do grupo linguístico bantu. Passo a


descrevê-los agora pormenorizadamente:

2.2.5. Os Anyanja

Os anyanja constituem a terceira tribo em termos demográficos na Província de


Niassa. Eles têm como nação o Distrito do Lago no extremo ocidental da província e ao longo
da margem oriental do Lago Niassa. Este povo tem como o idioma o cinyanja. A agricultura e
a pesca são as principais atividades da população. O comércio e a mineração são outras
atividades complementares.
Presume-se que os anyanja emigraram um pouco antes dos anos 1500, vindos de
Luba, na bacia do Zaire (mais conhecido também por rio Congo). Os anyanja pertencem à
tribo marave, uma tribo das regiões de Tete, Zumbo e da região do Lago Niassa. Contam-se
três principais subgrupos marave: 1 – nyanja; 2 – chewa e 3 – nsenga. Estes, por sua vez,
subdividem-se em pequenas unidades tribais, em clãs matrilineares e exógamos.
O matrimônio na tribo nyanja é uxorilocal, sem expressão significativa do dote, mas
nunca faltam as trocas de gêneros entre os parentes dos noivos, de modo a granjear simpatias
entre as duas famílias. Os sobrinhos filhos da irmã (regra geral matrilinear) são os verdadeiros
herdeiros. Os anyanja quase na sua totalidade são seguidores do cristianismo e têm o
anglicanismo como a principal fonte da fé. Pode se dar um e outro caso do islamismo no seio
deles, mas são apenas alguns casos localizados. Por outro lado, encontra-se a presença do
culto aos antepassados e crenças africanas que se desenvolvem ao lado do cristianismo e
islamismo.
Este povo é descrito como sendo pacífico. Talvez por esse motivo tenha sofrido
várias invasões, a contar a partir da submissão zulu e posteriormente yaawo. Honrados com a
presença do lago Niassa, este povo orienta as suas atividades de acordo com as condições que
este lhes oferece, pois que dele dependem em larga medida. Assim, tem um padrão de vida
distinto que pode se chamar de “civilização lacustre”.
Em termos de coberturas linguísticas, embora com ligeiras variações, o cinyanja
abrange, para além de Moçambique, a República do Malawi e da Zâmbia. Em Moçambique o
idioma é falado em três províncias: nas Províncias de Tete e Zambézia que se juntam à
Província de Niassa, minha referência por excelência neste trabalho. Em Niassa, é possível
considerar outro grupo falante do idioma cinyanja fora do círculo do Distrito do Lago; trata-se
54

de um povo localizado na parte sudoeste da província, concretamente nos distritos de


Mecanhelas e de Mandimba. Ambos partilham fronteira com o vizinho Malawi, onde o
cinyanja é tomado como a língua nacional. (NGUNGA; FAQUIR, 2012).

2.2.6. Os Amakhuwa

É o grupo étnico majoritário de Moçambique em geral e de Niassa em particular.


Localiza-se a norte do país e integra as províncias da Zambézia, Nampula, Cabo Delgado e
Niassa. Em alguns registros consta como grupo étnico makhuwa-lomwe, uma justaposição do
nome do grande grupo makhuwa com o seu subconjunto lomwe, mais falado na Alta
Zambézia.
As migrações deste povo na sequência da intensificação da ação colonial levaram à
expansão desta comunidade, que pretendia encontrar lugares onde a exploração fosse menos
tenaz. Essa expansão, por vezes, transcendeu o território nacional: “Duas importantes
comunidades makhuwa-lomwe de origem moçambicana vivem hoje na Tanzânia (makhuwa) e
no Malawi (lomwe), devido a uma antiga emigração que teve uma particular incidência no
último quartel do século XIX e primeiros decênios do nosso século”. (MEDEIROS, 2007, p.
57). “Igualmente se encontram grupos makhuwa em Madagáscar, Ilhas Seychelles e
Maurícias, devido ao comércio de escravos durante os séculos XVIII-XIX”. (MARTINEZ,
1989, p. 37).
Antropólogos e historiadores que estudaram este povo são unânimes em afirmar que
a origem do povo makhuwa é o monte Namuli, localizado na serra do Gurúe, a norte da
província central da Zambézia. A tradição oral dá conta que

[...] os primeiros homens, depois de serem criados por Deus nas grutas mais altas da
serra, organizaram uma viagem até à planície, descendo por vários caminhos. Na
medida em que se multiplicavam, iam-se separando, dando origem aos diferentes
grupos que hoje compõem o povo macua, diferentes na maneira de falar e em
algumas expressões culturais, mas unidos entre si pelos laços mais fortes da língua e
cultura. (MARTINEZ, 1989, p. 40).

Na região norte fixaram-se os povos aos quais foram postos o nome de makhuwa e
no sul os que receberam o nome de lomwe. Este último grupo também se subdividiu, tendo
uma parte, passado a ocupar as antigas terras do Namuli e a outra, o vale do Zambeze. As
evidências indicam que até pelo menos o século XVI as regiões costeiras eram pouco
55

habitadas, enquanto que no interior os falantes do emakhuwa haviam se espalhado


rapidamente para o norte e o sul. (NEWIT, 2012).
O termo “makhuwa” não deixou de atrair a minha atenção e achei conveniente trazer
algumas versões que explicam a origem da palavra em si, fazendo fé que isso não será em
vão. De entre várias versões, a palavra “makhuwa”, em termos etimológicos, provém da
palavra “nkhuwa” e significa “selvagem”, “bárbaro”, “rude” ou ainda, “não-civilizado”. O
termo, até o século XX, teve uma conotação pejorativa e injuriosa, tendo sido inicialmente
utilizado pelos islamizados do litoral, por considerarem que estes ainda não estavam
civilizados. (MARTINEZ, 1989; MEDEIROS, 2007).
Os amakhuwa chegaram a ser descritos como cafres (palavra de origem árabe que
significa infiel) ou alolo (com o mesmo sentido), como preferiam os ayaawo, provavelmente
pelo seu caráter e ter cultura diferente da sua. Na terminologia árabe, sabe-se ainda que o
termo “cafre” é referente a alguém que rejeita a fé, que oculta, cobre ou esconde a verdade,
sendo que inicialmente era aplicado aos não muçulmanos. Parece que os amakhuwa foram
acusados deste “crime” e por isso condenados ao termo. Como cedo se fizeram ao mar (os do
litoral) e estabeleceram o comércio costeiro, não raras vezes barraram o acesso ao mar aos
ayaawo, agravando ainda mais o ódio deste povo.
O grupo etnolinguístico makhuwa-lomwe subdivide-se em diversos subgrupos
regionais e dialetais espalhados por vários territórios makhuwa. Na longa lista de mais de 15
subdivisões de Medeiros (2007), a minha escolha para uma breve apresentação recaiu nos
seguintes: Lomwe (Elomwe)12, Makhuwa (Emakhuwa), Meto (Emeto), Chirima (Exirima),
Merrevone (Emarrevoni), Cotí (Ekóti), Nahara (Enahara), Mwani (Kimwani).
A tribo makhuwa é matrilinear, sendo a família (nloko) um conjunto de unidades
uterinas13. Os laços dos amakhuwa são unidos por uma mãe considerada genearca e todos os
seus descendentes se acham irmãos. O fundador do nloko é sempre um antepassado masculino
comum a quem é posto o nome de nikholo (a raiz). Porque os amakhuwa prestam culto aos
antepassados, este nikholo é sempre evocado no culto aos espíritos. Do fato de a sociedade
makhuwa ser matrilinear, isso não significa que o poder político é matriarcal. Em cada
segmento tem um homem que exerce este poder mediante a descendência matrilinear.
Os membros do nloko usam um nome comum de unidade uterina. Este nome pode ter
sido inicialmente do fundador do nloko e chama-se nihimo [leia nihimó]. As pessoas com o

12
Entre parênteses está escrito o idioma ou dialeto correspondente.
13
União por laços de descendência. Há geralmente um antepassado comum o qual serve de referência para todos
os membros integrantes da família.
56

mesmo nihimo (mahimo no plural) pertencem ao mesmo antepassado e por isso são
familiares, devendo obediência aos princípios de fraternidade, da moral dentro e fora da esfera
familiar, de solidariedade, de exogamia, entre muitos. Os membros do nihimo eram tão
coesos de maneira que provocar um deles implicava provocar a todos os membros, podendo
isso resultar em guerras tribais.
O poder entre os amakhuwa passa do tio (atata em emakhuwa) materno ao sobrinho.
Assim, atata, que deve ser o irmão mais velho da mãe, detém todos os poderes e direitos
sobre os sobrinhos e é igualmente chefe e guardião da parentela. A ele os membros devem
consultar e informar sobre qualquer procedimento, tendo ele, para isso, o poder de decidir
sobre determinados assuntos do seu grupo de tutela. (MARTINEZ, 1989).
Em casos de se tratar de uma chefatura, que nesta sociedade geralmente recebe o
nome de mwene (soberano, de sua equivalência), geralmente ao seu lado há uma mulher que
exerce o poder em paralelo e chama-se pwiyamuene14. O fato curioso é a falta de consenso
sobre o grau de parentesco desta mulher com o soberano. Ora, segundo Newitt (1999, p. 70),
“A mãe e a irmã mais velha do chefe gozam de certa preponderância política. A filha mais
velha desta última, a pia-muene [apwiyamwene], era guardiã dos costumes e responsável
pelos lugares funerários da matrilinhagem”. Para Martinez (1989, p.76), “Quem detém o
poder da APWIYAMWENE é, geralmente, a irmã principal (mais velha) do chefe (MUENE)
de um determinado território ou chefado. Este poder é transmitido por sucessão dentro da
própria linhagem”. Por seu turno, Medeiros (2007, p. 83) concilia os dois posicionamentos
anteriores ao referir que “associada à chefia de cada decano existia sempre uma irmã ou uma
sobrinha uterina, cuja função era ‘enriquecer e aumentar o clã’. O seu cargo era designado
pelo termo pwiyamuene”.
O que isso pode explicar? Admito a hipótese de que, como o grupo linguístico
makhuwa-lomwe é tão vasto, pode ser que em certos subgrupos é a irmã que detém o título de
pwiyamuene, e noutros, a sobrinha. Mas a possibilidade nos amakhuwa do Niassa é, na maior
das hipóteses, a que é apresentada pelo antropólogo e orador católico Francisco Lerma
Martinez, pelo fato de a sua pesquisa de doutoramento incidir-se sobre o grupo makhuwa do
interior da Província de Niassa.
A pwiyamwene não exerce diretamente o poder. Ela é uma espécie de conselheira e
goza de importância significativa na sociedade, sobretudo no que respeita ao serviço dos ritos.
Ela é a representante feminina do chefe, que certas vezes deve ser consultada sobre
14
Martinez (1989) grafa apwiyamwene no sentido genérico e Medeiros (2007), pwiyamwene (singular) e
apwiyamwne (plural ou cortesia).
57

determinadas matérias ligadas às mulheres e, por conseguinte, é a mulher mais importante na


sociedade makhuwa. Note-se, aqui, que ao contrário das sociedades modernas, na sociedade
tradicional makuwa, a mulher mais importante não é a esposa do soberano, mas a sua irmã ou
sobrinha e, por sinal, no caso da irmã, pela tradição, ela é a genitora do futuro sucessor. A
corte da pwiyamuene é constituída pelas anciãs de considerada idoneidade na sociedade. A
pwiyamwene está proibida de falhar, pois é a garantia da vitalidade social do amanhã e
sempre.
Newitt (2012) explica que os fortes laços matrilineares na comunidade de
descendência makhuwa levaram ao atraso desta comunidade em formar uma unidade política
forte. Até o século XVI não tinham uma instituição estatal de referência. A sua falta de coesão
política interna tornou possível a penetração e posterior estabelecimento de comunidades
muçulmanas ao longo da costa e de regimes conquistadores estrangeiros.
Há muito que dizer em torno deste povo rico do ponto de vista histórico e cultural e o
presente trabalho não pretende resolver este problema, pois que o seu estudo não se esgotaria
em tão poucas linhas a respeito. No entanto, o leque de informações aqui trazidas é suficiente
para uma compreensão pormenorizada do grupo etnolinguístico majoritário de Moçambique.

2.2.7. Os Ayaawo

São os considerados autóctones da Província de Niassa, ainda que reduzidos se


comparados com o grupo mais próximo e rival pela história, os amakhuwa. Se no começo a
nação yaawo era um grupo localizado, hoje não é; os ayaawo estendem-se por boa parte do
interior da província de Niassa. Portanto,

O grupo etno-linguístico yao [...] era predominante na zona planáltica e montanhosa


do Niassa entre o rio Messinge e o rio Lugenda, prolongando-se o povoamento até
Meponda (Mponda) e, nalgumas zonas, nessa época, até a proximidade do lago, a
nordeste e a sudeste. O coração do país yao situa-se hoje entre o rio Rovuma, a
norte, o Lugenda, a leste, o Luambala, afluente do Lugenda, a sul e o Lucheringo,
afluente do Rovuma, a oeste. [...]. (MEDEIROS, 1997, p. 81).

Admite-se que o nome “yaawo” vem do fato deste povo ser originário dos montes
Yaawo. Por isso, é frequente ouvir e ler-se “wayaawo”, que quer dizer “nós os de yaawo”. O
termo “yaawo” significa “monte sem capim” ou “monte pelado”.
Os principais grupos yaawo, de acordo com Medeiros (2007) e Peirone, citado por
Wegher (1995), são os seguintes: achingango; wamnele ou wamwela; achingoli; amachinga,
que foram fixar-se na região de Mandimba; amasaninga, que foram para montanha
58

massaninga; amakale, que foram para Makale; amalambo ou amalemba, que foram para a
planície do sopé do monte Muemba15; wambemba ou wamlemba, que se encontram na
montanha Muemba; wamkula; wanjese e amangochi, que foram para a região do Malawi.
Por razões dessa expansão, o idioma ciyaawo é igualmente falado no leste do Malawi
e sul da Tanzânia (regiões limítrofes com a nação yaawo da Província de Niassa).
A origem dos nomes das tribos Yaawo indica o antepassado comum da família inicial
ou a maneira de viver (costumes particulares) e até lugares geográficos, como nomes de
montanhas ou de rios. No pretérito, entre os ayaawo era proibida uma união marital entre os
sujeitos do mesmo clã, sob pena de terem filhos doentes, leprosos, dementes, ente outros
tabus proibitivos. João Baptista Amide (2008), sacerdote católico e descendente yaawo,
testemunha que até os nossos dias essas ameaças perduram. Mas, por outro lado, diz a fonte
que “[...] era admissível o casamento entre pessoas da mesma tribo com o objectivo de
evitarem a dispersão da população e assim aumentar o número na tribo – o que era sinal de
poder do povo e do régulo – e para fortificar a tribo”. (AMIDE, 2008, p. 26).
A dispersão da comunidade yaawo em pequenos grupos fixados em diferentes
quadrantes, como já me referi, origina-se dos consequentes ataques dos angoni, a partir da
segunda metade do século XIX, e mais tarde, dos makhuwa-lolo (provavelmente vindos do sul
e leste de Niassa) e makhuwa-meto (vindos do nordeste), num processo cíclico e contínuo. De
acordo com Martinez. (1989, p. 48),

O povo angoni, proveniente da Zululândia (África do Sul), entrou no território


moçambicano pelo Sul, tendo-o atravessado até ao Norte, chegando à região do rio
Rovuma (Tanzânia) na primeira metade do século XIX. Os Angonis16 lutaram contra
as populações que encontraram no seu caminho, tendo incorporado na sua sociedade
nómada gente dos povos que encontravam. São um povo de descendência
patrilinear, de residência virilocal, conservam o dote para o casamento e têm ritos de
passagem, especialmente na iniciação dos rapazes e raparigas.
Da Tanzânia, provenientes da zona de Songea, onde se tinham estabelecido,
emigraram para o Norte de Moçambique, para os territórios das Províncias de Niassa
e Cabo Delgado, depois de serem derrotados pelos Alemãs, na segunda metade do
século XIX. Actualmente estão dispersos em pequenos núcleos, sobretudo na zona
do Rovuma e do lago Niassa.

Outra razão da expansão yaawo explica-se pelas trocas comerciais; eles iam se
fixando ao longo das rotas comerciais e, assim, formando pequenas unidades yaawo. Há

15
Pode ser referente à Muembe, como é corrente dizer hoje.
16
O autor utilizou o padrão da Língua Portuguesa para formar o plural desta palavra. De acordo com as
características das línguas bantu, conforme escreveu Ngunga (2014), a palavra “ngoni” (nome de um grupo
étnico com laços no sul do país) que se apresenta no singular, forma o plural com a palavra “vangoni”, sendo
“va” o prefixo nominal da classe 1 e “ngoni”, o tema nominal, e não na forma como foi aqui apresentado:
angonis.
59

indicações de que na primeira metade do século XIX já havia comunidades yaawo no Malawi,
junto à atual fronteira, assim como no território norte da fronteira do Rovuma (Tanzânia) e no
extremo oriente, na rota Quissanga. Medeiros (1997) realça a existência de notícias revelando
a presença de grupos yaawo nas terras do Balama, na província de Cabo Delgado.
Estudos recentes consideram Chiconono, Distrito de Muembe, como sendo o centro
de todo esse processo de dispersão da comunidade yaawo para esses vários quadrantes. É por
essa mesma razão que os ayaawo localizados neste ponto são tomados como referência
sempre que se pretende estudar alguma manifestação sociocultural deste povo. Aliás, uma das
provas disso é o fato de o ciyaawo falado em Chiconono servir de referência do grafema deste
idioma, visto ser este o ciyaawo central do ponto de vista geográfico.
Ngunga e Faquir (2012, p.50) explicam que,

[...] do ponto de vista histórico, Chiconono constitui o núcleo mais recente de


dispersão dos falantes desta língua para o Norte, para o Sul, para Este e para Oeste.
É por estas razões que nesta proposta [de padronização da ortografia de línguas
moçambicanas] se tomou o Ciyaawo de Chiconono como referência para a
padronização da ortografia desta língua.

Portanto, como fatores da dispersão dos ayaawo, ou expansão, como prefere Amide
(2008), destacam-se a invasão de outros grupos étnicos, como makhuwa e ngoni, a fixação ao
longo das rotas comerciais, as guerras de ocupação colonial e; a procura de novas terras
férteis, contendas entre os clãs, tendências de autoafirmação de chefes emergentes, os quais se
deslocavam junto com seus fiéis para se fixar em outro território, formando novas unidades
políticas, e a personalidade do Mataka cujas ações eram cruéis. (MEDEIROS, 2007; AMIDE,
2008).
Nas primeiras comunidades yaawo há uma notória divisão de tarefas, de acordo com
a natureza física humana e das atividades. Assim, os homens iam à caça dos elefantes,
ocupavam-se da metalurgia do ferro e do comércio a longa distância de marfim, armas,
pólvoras, sal, entre outros produtos, enquanto as mulheres e filhos não crescidos dedicavam-
se à agricultura. Será a partir desta divisão de trabalho, razão pela qual nos dias que correm o
maior número de mulheres na idade economicamente ativa ocupa-se no setor agrário?

2.2.7.1. Duas origens, um só povo: história ou lenda?

São duas as versões apresentadas pelo missionário Luís Wegher (1995) para explicar
a origem do povo yaawo. As duas versões são corolários de um fenômeno de guerra a partir
60

da qual um reduto de fugitivos e refugiados num determinado ponto deu origem à tribo
yaawo. Pela importância de que se revestem os relatos de cada um dos episódios, julgo
importante apresentá-los aqui de forma detalhada, pois isso permitirá a compreensão desse
historial.

I.
A primeira versão da história de origem do povo yaawo relata que um grupo de
pessoas fugindo, para evitar as incursões militares, prisões e até mortes movidas pelos
invasores (zimbas?), refugiou-se nas montanhas das redondezas de Muembe e com maior
hipótese no monte Yaawo (monte sem capim, pelado ou careca) e deu origem ao povo que se
autointitula “wayaawo” (os de yaawo) por crerem que eles são originários daquele monte. É
nesta circunstância que o monte Yaawo surge como símbolo da origem do povo Yaawo, “[...]
apesar de muitos não admitirem esta ser a localidade da origem dos ayao sic”. (WEGHER,
1995, p. 111).

II.
A segunda versão dá conta que havia um homem guerreiro que em cumprimento de
uma incursão militar recebeu castigo de seus dirigentes, provavelmente por ter se insurgido, e
foi obrigado a abandonar o grupo. A incursão que parece feroz obrigou os residentes alvos da
ação militar a abandonar a povoação e a se refugiarem em outros locais seguros onde não
fossem fustigados pela onda militar. Nesse processo de fuga, uma coitada mulher tinha sido
abandonada e dando-se conta da gravidade do perigo, ela procurou um refúgio junto de uma
das muitas cavernas existentes no monte Yaawo.
E sucedeu que o homem guerreiro, desvinculado das suas fileiras, andando fugitivo
sem conhecer o ambiente da região, fora guiado por um coelho misterioso até alcançar a
pobre mulher, que estava chorando de desespero, de fome e medo. A mulher, que era
originária desta localidade, formou família com deste homem e foram se multiplicando,
formando assim a tribo Yaawo.
Numa e noutra versão, no começo eram poucos, mas durante o tempo, à luz da lei
natural, este povo se reproduziu e de que maneira, espalhando-se por vários lugares quer
dentro de Niassa, quer fora dele.
O povo yaawo é descrito como gente vigorosa, corajosa e, por isso, guerreira (pelo
menos os de antigamente provaram isso) e resistente à submissão. Esta deve ser a explicação
61

que se dá à difícil penetração colonial no território de Mataka, tardando o domínio efetivo da


Companhia de Niassa.
O poderio dos mataka diante dos portugueses tinha alguma força oculta por detrás, os
árabes, que, como veremos, estavam interessados em comerciar com os ayaawo, e os ingleses
e alemães do outro lado do Rovuma. O apoio deles visava os fortificar de modo a criar
barreira contra a presença dos seus concorrentes diretos, os portugueses. Estavam convictos
de que mantendo o poder forte dos Mataka, por exemplo, garantia a resistência à submissão e
permitia, por conseguinte, um intercâmbio comercial por longo tempo. De acordo com
Wegher (1995), falando sobre o caso em discussão, explica que havia um inglês que morava
na margem direita do Rovuma (parte de Moçambique) que fornecia armas aos Mataka, com as
quais faziam valer as suas resistências contra a ocupação europeia e dificultavam
sobremaneira a instalação da Companhia de Niassa.

2.2.7. 2. Organização social e os Estados Yaawo

Até a altura da agressão imperialista, Niassa já conhecia uma grande organização


social, desde as pequenas unidades familiares, até a formação dos grandes Estados Yaawo, tão
influentes não só na região como também em territórios vizinhos, com quem mantinham
relações comerciais, cuja fama deveu-se ao seu nível organizacional e de sua extraordinária
capacidade mercantil.
Ora, estou convicto que é de domínio comum o que seria um Estado. Mas mesmo
assim, julgo pertinente trazer aqui alguns postulados do Estado, porque, no meu entender, isso
é importante. Quero deixar claro que, ao propor falar de Estado, não pretendo desencadear
uma discussão filosófica ou política aprofundada, mas farei em questões mais básicas. Do
latim status, de stare (ficar em pé), a ideia de “estado” implica uma passividade e um
imobilismo. Como substantivo, “estado” pode ser compreendido como um conjunto
organizado das instituições políticas, jurídicas, policiais, administrativas, econômicas, entre
outras, sob um governo autônomo que ocupa um território próprio e independente. Os
empiristas Hobbes e Locke compreendem o Estado como sendo o resultado de um pacto entre
os cidadãos para evitar a autodestruição através da guerra de todos contra todos. O Estado
compreende, no entanto, três elementos fundamentais e indispensáveis: povo, território e
poder político. Este é o Estado-nação que floresceu na Europa do século XVIII. Assim, o
62

Estado-nação se define como soberania e administração dos homens e do território que eles
ocupam (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2006).
Falando sobre o Estado, Max Weber (2015) define-o como uma empresa com caráter
de instituição política, na medida em que seu quadro administrativo reivindica com êxito o
monopólio legítimo da coação física para realizar as ordens vigentes. A noção de Estado em
Weber é do poder de dominação, que sociologicamente significa uma possibilidade de impor
a obediência de outrem.
Max Weber dedicou parte do seu tempo ao estudo das formas de poder, de
autoridade e de dominação. Partiu de uma observação cuidadosa das formas de poder e
constatou que os governantes da dominação política de caráter institucional reivindicavam as
suas formas como legítimas. Nesse contexto, elaborou um quadro constituído por três tipos
puros de dominação legítima. O primeiro diz respeito à dominação legal, aquela de caráter
racional, baseada na crença da legitimidade das ordens estatuídas e de direitos de mando
daqueles que se encontram nomeados para exercer a dominação. Nesta forma de dominação,
obedece-se a ordem impessoal e para isso são postos em observação os estatutos. Cumpre
sublinhar que nesta modalidade é mais evidente a burocracia e o quadro administrativo
consiste em funcionários nomeados por quem detém o poder político. O segundo é referente à
dominação tradicional, baseada na crença das tradições seculares. Nesta dominação, obedece-
se à pessoa do senhor cujo poder é legitimado pela tradição (hábitos e costumes). O terceiro e
último é a dominação carismática, que consiste na veneração de uma figura de personalidade
extraordinária, de poder histórico e caráter exemplar. Na dominação deste tipo, obedece-se ao
líder carismaticamente qualificado em função das virtudes reveladas e heroísmo. O
carismático é um líder “autoindicado”, que é seguido por aqueles que nele acreditam pelas
mudanças do mundo que propõe. Napoleão, Jesus, líderes fundadores de partidos políticos,
são exemplos de líderes carismáticos. (WEBER, 1999, 2008).
A minha intenção era mesmo a de situar em termos gerais a noção de Estado e das
formas de manifestação do poder em vários contextos históricos, para depois seguir com os
pormenores dos Estados Yaawo – no plural porque não foi um só, mas vários. Pelas leituras
feitas, desde as formas de sucessão do poder entre os ayaawo, olhando com atenção as
modalidades avançadas neste texto, pode se concluir que nos Estados Yaawo a dominação era
do tipo tradicional, pois os sucessores para além de serem da mesma tribo, tinham que ser
parentes do antecessor, na lógica das tradições seculares.
63

Os Estados Yaawo desenvolveram-se no interior do atual território da Província de


Niassa. Eles floresceram até o século XIX, altura em que foram fustigados por uma ofensiva
de pacificação com vista à implantação efetiva do regime exploratório europeu. Os mais
salientes foram: Mataka, Macanjila e Mtalica.
Conhecidos também por Estados Ajaua, a sociedade dos Estados Yaawo era de
orientação matrilocal, isto é, o homem fixava sua moradia junto da família da esposa. As
linhagens eram formadas com base no grupo constituído por irmãs, filhas casadas e filhos
ainda solteiros, todos chefiados por irmão mais velho Este irmão-chefe era conhecido por
ashene mbumba, expressão que o Departamento de História da Universidade Eduardo
Mondlane traduz como “guardião da linhagem”. Para garantir o pleno exercício das suas
funções, este irmão mudava-se junto com a(s) sua(s) mulher (es) para a aldeia das suas irmãs
(SERRA et al, 2000).
Vale lembrar que o sistema matrilocal não se aplica exclusivamente à comunidade
yaawo da Província de Niassa, ele é extensivo à maioria dos grupos etnolinguísticos ao norte
do rio Zambeze e, ainda, às outras comunidades bantu além-fronteiras, como ficou dito no
estudo dos anyanja e amakhuwa. Porém, a medida com que se aplica nesta comunidade é de
importância particular. Neste sistema, o tio-chefe da família (njomba na terminologia
ciyaawo) é considerado pai ideal, detentor do poder sobre os filhos da sua irmã, enquanto o
pai biológico apenas ostenta o papel de genitor. Neste caso, a filiação é uterina e o filho passa
a pertencer ao sangue da mãe, que o integra na sociedade.
O tio-pai no sistema matrilocal ou uterino é responsável por todos os efeitos sociais e
religiosos. A sua herança passa para o sobrinho uterino mais velho nascido da irmã mais
velha. O trono do poder do tio, quem o ocupa é o sobrinho primogênito da irmã mais velha do
chefe falecido. Este sobrinho tem com certeza o sangue nobre que corria nas veias do chefe
falecido (ALTUNA, 2014).
Esta tendência de dar mais importância aos filhos da irmã que aos seus próprios deve
ser pelo fato de se ter certeza de que os filhos de sua irmã pertencem indubitavelmente a ela,
pois foi ela quem os teve, ao passo que, quanto aos seus filhos e do seu irmão, a verdade pode
ser relativa. Os filhos de sua irmã, independentemente de quem quer que seja o pai, é seu
sobrinho, nascido da sua irmã consanguínea. Aqui se desenvolve o princípio segundo o qual
“os verdadeiros pais dos nossos filhos, só as mães são as que melhor conhecem”.
64

Em casos de se dar que a irmã mais velha não tenha um varão, entra como sucessor o
filho mais velho da segunda irmã e assim por diante. São raros os casos em que um filho
sucede o seu próprio pai nas sociedades de linhagem matrilinear forte.
Existe entre as sociedades matrilineares um e outro caso isolado em que a uma
mulher é confiada a herdar o trono do poder. Casos iguais dão-se quando faltam herdeiros
indicados e para não deixar em mãos alheias o poder da linhagem, recorre-se à mulher que
pertence ao lugar de onde sairia o herdeiro, de acordo com os princípios costumeiros.
No caso em que os filhos pertencem ao tio materno, o pai biológico fica excluído da
família matrilocal, pois ele pertence à outra onde porventura pode vir a ser igualmente chefe.
Wegher (1999, p. 201) transcreve este cenário referindo que “parece claro que o pai está
completamente fora da Mbumba; não tem poder nem sobre os filhos nem sobre a própria
mulher, que pertence sempre à Mbumba, na qual o tio Njomba é quase o dono e absoluto,
podendo até desfazer o casamento, [...] da “sua protegida’”. No dizer deste autor, esta
tendência provoca consequências tais, por exemplo: a de o homem não ter autoridade sobre a
sua própria mulher, sobre os seus próprios filhos e até, em parte, sobre seus bens; mas quem a
tem é o njomba, que chega a tiranizar a sua influência nesta relação.
Nesta conjuntura, notadamente destacam-se duas orientações de famílias entre os
ayaawo: a mbumba – que é um agregado de parentes orientados por via uterina; e a liwasa –
agregado de família do modelo ocidental, constituído por pai, mãe e filhos. A mais importante
é a primeira que regula toda a relação social na comunidade yaawo. (WEGHER, 1995).
Tal como acontece nos amakhuwa, também entre os ayaawo o sistema matrilocal,
apesar da sua natureza e aparência de sobrevalorização da mulher, na prática, é muito
masculino, assim como o patrilinear, pois são os homens que sempre detêm a autoridade, o
poder local e a maioria de benefícios sociais. Vimos que todos os direitos e herança
pertencem ao sobrinho da irmã mais velha e não à sobrinha. Se o primogênito da irmã mais
velha for uma mulher, os direitos hereditários do njomba pertencerão ao irmão que nascer
depois dela. Nota-se aqui que praticamente a mulher não tem direitos, pois estes são
exclusivamente reservados aos indivíduos do sexo masculino, continuando ela cada vez mais
submissa.
Uma das políticas dos ashene mbumba com vista a alargar a sua comunidade
consistia em atrair os parentes chegados para junto das suas aldeias. Assim permitia o
crescimento da comunidade aldeã e, por conseguinte, o aumento da importância e privilégios
do ashene mbumba. Os escravos eram outra fonte do alargamento da comunidade. Uma
65

dessas formas consistia, especialmente, em trazer jovens escravas para se casarem com filhos
ainda solteiros daquela parentela, para que não saíssem e se casassem fora, segundo as normas
matrilineares. Os filhos obtidos desse casamento passavam a estar diretamente subordinados
aos pais e não às mães, pela sua condição de escrava.
Nos tempos que correm, seja dado pela interculturalidade, admite-se uma
possibilidade dentro do sistema matrilocal uma mulher fixar moradia junto da família do
marido. Tal fator não implica a cessação da dependência à família nuclear, os filhos
continuam sendo da pertença do tio-chefe, que igualmente serve de guardião da relação
conjugal. Quando necessário, este se deslocará até esta família para mediar certas contendas
ou simplesmente dar o seu acompanhamento. Por outro, esta família, querendo, pode para
qualquer fim deslocar-se à família nuclear.
Com a emergência do comércio de marfim, a atividade da caça possibilitou a
robustez de grandes chefes-caçadores cujo poder se estendera para fora da sua comunidade
linhageira. O domínio do comércio entre os ayaawo é uma longa tradição. Os relatos indicam
que os ayaawo tinham domínio técnico de fabrico de instrumentos de trabalho com os quais
podiam participar no comércio local e a longa distância. Segundo Serra et al (2000, p. 107),

Para além da agricultura, da caça e da pesca, os Yao, do período antes dos grandes
Estados, desenvolveram o fabrico de instrumentos de ferro, como enxadas,
machados e armas, pois o metal abundava no território. Segundo tradições
recolhidas, a técnica metalúrgica foi apropriada pelos A-chis, que se constituíram em
clã e desenvolveram o comércio regional e a longa distância, tendo sido os primeiros
a estabelecerem contactos com a costa.

De acordo com a fonte, os ayaawo no cerne regional chegaram a estabelecer contato


comercial com Ibo, Ilha de Moçambique, Zumbo e a longa distância com Quiloa e Zanzibar
na atual Tanzânia, e com o Cazembe na Zâmbia, entre outros. Especialmente nas viagens à
costa índica, os ayaawo levavam tabaco, objetos de ferro, peles de animais e marfim e em
troca recebiam sal, tecidos e missangas. Parece que os ayaawo eram os maiores consumidores
dos produtos vindos de Lisboa nesse comércio. Serra et al (2000, p. 68) escreve que

[…] Quase 70 por cento da missanga vinda de Portugal, se bem que fabricada em
Veneza, era destinada ao “comércio dos Mujaua” [Yaawo] como assinalam as fontes
escritas portuguesas. Os mercadores Yao eram os mais desejados dos mercadores
africanos. A maior parte do marfim que saia pelo porto da Ilha de Moçambique era
trazida pelos Yao. […]
66

A preferência que os portugueses tinham pelos ayaawo não será mero acaso. Deve
ser pelo fato de eles terem à disposição e em abundância a essência de troca. De fato, nas
imaculadas paisagens de Niassa ricas em fauna bravia, os ayaawo encontravam nela, tudo o
que a natureza pode oferecer e que encantava os mercenários.
Esta verdade não tardou a gerar ódio entre os seus concorrentes. Relatos há que
indicam haver escaramuças durante a década de 1720 entre os chefes makhuwa e os
portugueses, provavelmente pela passagem dos ayaawo em seus territórios. “[…] Os Ayao
surgiram como perigosos rivais no tráfico de marfim, tanto mais que os territórios próximos
do Lago Niassa eram muito ricos em elefantes do que os territórios da Macuana”. (SERRA et
al, 2000, p. 72).
O caso parece sério. Os amakhuwa insatisfeitos com o cenário, sob o comando de
Murimuno, voltaram com o bloqueio das rotas comerciais em prejuízo dos ayaawo, fato que
levou o governador geral português Melo e Castro, sediado na Ilha de Moçambique, a atacar
Murimuno em 1753. Estima-se um contingente de cem soldados regulares e entre seiscentos e
mil auxiliares fornecidos por xeiques aliados. De acordo com a fonte supracitada, os
bloqueios de Murimuno sucederam-se novamente entre 1756 e 1758, desta vez contando com
o apoio de outro chefe makhuwa Mauruça. A compreensão que se pode fazer dessa narração
conflituosa é a de que o referido bloqueio não se restringia apenas ao simples boicote deste
comércio. Aventa-se a hipótese de que pretendiam apoderar-se dos troféus trazidos do interior
de Niassa.
A rivalidade dos ayaawo com os amakhuwa não se resume apenas a estas passagens
e nem exclusivamente com os da costa. A tradição indica que mesmo com os do interior do
território de Niassa instigaram fortes batalhas.
Parece que o caráter de conquista e invasão de outros povos de que os ayaawo se
caracterizaram posteriormente, aprenderam dos amakhuwa, quando estes, na última década do
século XIX, senão mesmo antes, invadiram a sua etnia à procura de comida. Os relatos de
Yohanna Abdallah (1952) considerado clássico no que se refere à história do povo yaawo da
Província de Niassa, numa passagem citada por Amide (2008), dão conta que os walolo
(como os ayaawo chamavam os amakhuwa) foram os primeiros a adquirir espingardas, as
quais utilizavam para guerrear com os ayaawo. Diante da superioridade bélica dos amakhuwa,
os ayaawo que só dispunham de flechas, eram obrigados a fugir para outros territórios onde a
ação destes fosse menos tenaz.
67

Por sua vez, os ayaawo transformaram a sua fuga em batalha, guerreando outros
povos fracos, como é o caso dos anyanja, que só tinham duas saídas: fugir ou submeter-se.
Isto se tornou mais evidente quando os ayaawo adquiriram armas. Conta-se que se revoltaram
contra aquele que outrora movera uma forte incursão contra eles. Trata-se do “Mlolo”
Mauwa, um conhecido chefe dos walolo-meto bastante valente no campo da batalha, mas que
conheceu a força da vingança. Os grupos ayaawo mais notáveis em matéria de incursões
foram os amasaninga, os amachinga e os amakale. Destes três, os pioneiros foram os
amachinga ao se tornarem espertos e adquirirem armas junto dos walolo. (MARTINEZ, 1989;
AMIDE, 2008).
Portanto, no capítulo do comércio, para além de ampliar as esferas de dominação, o
comércio com a costa permitiu uma maior divisão social do trabalho e da própria produção.
Assim, tornou-se imperioso que houvesse grupos especializados que lidassem com cada uma
das atividades. Desse modo, houve grupos especializados em caça e no período do tráfico de
escravos, havia aqueles que iam à presa dos seus semelhantes para os tornarem escravos e
mercadoria.
Na segunda metade do século XVIII, o comércio de marfim perde brilho e em seu
lugar ascende o tráfico de escravos. Tal como no comércio de marfim, os estados do Planalto
de Niassa notabilizaram-se na caça ao homem, o qual comerciavam junto da costa, de onde
poderia seguir ao seu último destino: Ilhas Mascarenhas, Madagáscar, Zanzibar, Golfo
Pérsico, Brasil ou Cuba. (SERRA, et al, 2000). Este autor sustenta que os ayaawo levavam
para comerciar com a costa entre dois mil e três mil escravos por ano, número assustador se
tivermos em conta o período todo no qual durou esta prática desumana. Portanto, apesar disso,
não vale atribuir à escravatura o fraco povoamento de Niassa, pois que as suas vizinhas
províncias de Nampula e Zambézia do grupo linguístico makhuwa-lomwe foram as mais
assoladas pelo macabro “comércio de escravos” na história de todo o processo em
Moçambique e são as duas províncias mais populosas do país.
Se não foi o comércio que criou os Estados Yaawo, a verdade é que ele contribuiu
sobremaneira para o fortalecimento destes Estados. Se entre os séculos XVI e XVIII o poder
dos chefes mantinha-se limitado, a verdade é que nos finais do século XVIII, a partir de 1790,
altura em que o comércio de escravos ganha expressão, este permitiu a centralização dos
Estados e os Estados Yaawo, aparecem como os mais fortes. A partir do comércio, os chefes
acumulavam riquezas, possibilitando-lhes, assim, estabelecer novas alianças e angariar novos
68

clientes. A grandeza do poder político entre os Estados Yaawo media-se pelo número de
pessoas sob seu domínio.
Nos meados do século XIX, os grandes Estados Yaawo, em especial os das dinastias
Mataka, Mtalica e Macanjila e de outras unidades, através do comércio de marfim e o tráfico
de escravos, adquiriram armas de fogo e pólvora, com as quais passaram a fortificar as suas
unidades de força e pilar de dominação, surgindo, assim, grandes unidades políticas. “[…] De
fato, é nessa época que surgiram grandes aglomerações habitacionais onde viviam agrupadas
as esposas dos chefes. O primeiro soberano Mataka tinha 600 esposas dispersas por oito
aldeias, um terço das quais vivia na capital, Muembe.[…]” (SERRA et al, 2000, p. 109).
Para além da extensão territorial e da tamanha grandeza da comunidade aldeã sob
suas alçadas, dos tributos comerciais e da grande propriedade de escravos, o número de
mulheres era outra forma para medir o privilégio de um chefe de Estado Yaawo.
A fonte observa que o Estado de Mataka I, cerca de 1810-1876, tinha uma forte
organização territorial e administrativa, dispondo de um juiz, um ministro do comércio e de
um comandante responsável pela aquisição de escravos. O poder do Estado estava
centralizado na pessoa do soberano e não havia, portanto, chefes subordinados. Dentro do
Estado não havia espécie alguma de tributo. A maior parte dos habitantes do Estado de
Mataka eram escravos. Evidências assinalam que até a altura em que a capital do último
soberano foi tomada de assalto pelos portugueses, havia milhares de casas e quase dois terços
dos seus habitantes eram escravos.
O soberano do Estado era igualmente dono dos poderes mágico-religiosos. Ele
encenava o ritual do culto aos antepassados para que estes coroassem de êxitos as suas
incursões. Nesse diapasão, antes mesmo de as caravanas partirem, todos os homens deviam
confessar publicamente os crimes por si cometidos, sob pena de graves consequências no
desenlace da expedição, caso não o fizesse.
Uma das consequências diretas e imediatas do contato com a costa no âmbito das
trocas comerciais foi a islamização dos Estados Yaawo. Isso levou ao fortalecimento ainda
mais do poder religioso dos soberanos Mataka, Mtalica e Macanjila. Este fenômeno perdura
até os nossos dias, fazendo dos ayaawo um povo do interior altamente islamizado.
69

2.2.7.3. As dinastias do Estado Mataka

Tomo o Estado Mataka para elucidar a estrutura e organização do Estado entre os


Estados Yaawo. No caso do Estado de Mataka, o mais conhecido entre os ayaawo e não só
entre eles, a sociedade estava bem organizada e o poder do estado centralizado.
Mas o que significa Mataka? O nome Mataka tem uma origem histórica fantástica e
está diretamente ligado ao primeiro sultão Mataka, o Che17 Nyambi. Sucede que havia
chegado o tempo de Che Nyambi contrair matrimônio e formar família, tendo para isso ido
numa aldeia vizinha pedir a mão para desposar Mbumba, uma moça famosa pela formosura.
Os encarregados de Mbumba recusaram o pedido de Nyambi por considerá-lo inelegível, pois
para que um jovem fosse aceito num pedido destes, precisava mostrar à comunidade boa
atitude moral e de bom trabalhador, capaz de lutar contra a fome e pelo bem-estar da família -
qualidades que não eram completas em Nyambi. Insatisfeito com o seu pedido e desejando
desposar Mbumba a todo custo, Nyambi decide desbravar grande extensão de terra para
cultivar, trabalhando arduamente, dia após dia, mesmo que para isso se expusesse às
condições de sol ardente. Com efeito, em pouco tempo conseguiu ter boa parte de terra
trabalhada. Em seguida, ele mesmo se autodeclarou Mataka, o trabalhador da terra, pois que
em ciyaawo terra é litaka. Assim, conseguiu granjear boa reputação na sua comunidade e, por
conseguinte, obteve Mbumba como esposa. Uma vez que Mataka se tornou Régulo, passou a
usar este nome com o qual viriam a ser conhecidos os seus sucessores. Assim nascia a dinastia
Mataka. (WEGHER, 1995).
O primeiro na dinastia Mataka foi o Che Nyambi, o Mataka I (1810-1876). Nyambi é
descrito como um soberano poderoso, cruel, guerreiro e esclavagista. O seu poder estava
devidamente estruturado e com uma notável divisão de tarefas: (1) havia um chefe máximo, o
soberano, o senhor do seu povo (Che Mataka, de nome dinástico); (2) o chefe militar – que
cuidava da segurança, quer do soberano quer do Estado em si e das incursões militares,
representado pelo Che Matola Mchelecheta; (3) o chefe do comércio – que cuidava de
organizar as caravanas de comércio, representado pelo Che Mbela; (4) o conselho de justiça e
tribunal, constituído por anciãos confiados de tratar assuntos de justiça e resolução dos
conflitos no Estado, representados pelos anciãos Che Ngomba Kumbulumba, Che Nguela e
Mtelela; (5) o povo, a maioria, que se ocupava das atividades produtivas do Estado. Faço fé

17
O prefixo “Che” que antecede os nomes dos titulares, expressa uma forma de cortesia e equivale a “Senhor”;
exprime cortesia, elevada consideração. (AMIDE, 2008).
70

que os seus sucessores devem ter seguido à risca esta estrutura e que, se a alteraram, não
foram grandes desvios da estrutura inicial; mas se esse foi o casso, fizeram em função das
demandas do momento. A verdade é que uns tentaram ser como o Mataka I, vigoroso e
conquistador; outros, não conseguiram manter o brilho do nome, tendo aberto o espaço para
invasões externas.
Finalmente, era chegado o momento de Mataka partir para o além: adoeceu e morreu
já velho. Chorando-lhe pela morte, homens e mulheres bateram-se o peito pela dor e vazio
sentido com a partida do seu soberano, o protetor e hábil, para a viagem da qual jamais
voltaria. Pela autoridade que representara durante a vida, o funeral foi repleto de honras e
participaram, inclusive, chefes das tribos próximas. Os relatos de Yohanna Abdullah, citado
por Wegher (1995), indicam que junto com o sultão foram enterrados vivos 30 jovens do sexo
masculino e 30 do sexo feminino e tantos outros artigos de luxo. Exagero intencional? Talvez
para simplesmente destacar o quão ele era venerado pelos seus protegidos. Portanto, sabe-se,
que esta era uma prática de alguns régulos da época. Ainda assim, faltam elementos para
medir a veracidade deste fato ora em alusão, que ao ser verdade é muito enfadonho.
De acordo com Amide (2008), o segundo na dinastia Mataka, foi o Che Nyenje, que
como rezam as tradições de sucessão nesta etnia, era sobrinho de Che Nyambi, o Mataka I.
Admite-se que o seu período de vigência tenha início no ano de 1879. Durante a vacatura, o
poder do soberano teria sido assegurado por um dos irmãos do Mataka já falecido, o Che
Kuntelela. Este tratou de solicitar o legítimo sucessor do soberano, pois que este estava de
viagem. Após a sua chegada, coube a Che Kuntelela entronizar Che Nyenje18, que desde então
passou a usar o nome de Mataka. Na verdade, tratava-se de Mataka II. Manso e menos cruel
que seu antecessor, Nyenje estabeleceu um clima dócil durante o seu mandato. Talvez por
esse motivo, o Estado foi invadido por agentes externos, sendo Muembe, capital do Estado
Mataka tomada de assalto.
O terceiro na Dinastia foi Che Bonomali, o herdeiro do nome, o Mataka III. Foi
sobrinho do Mataka I e filho mais velho da rainha Kundenda. De acordo com o padre Amide
(2008), este reinou de 1885 a 1903. Amide, interpretando Yohanna Abdullah, descreve-o
como um homem de características assustadoras, perigoso, inclusive em seus atos. Este
resgata as atitudes guerreiras e de dominação de Mataka I e conquista territórios vizinhos. Era

18
Curioso que o padre Luís Wegher (1995) quase na mesma direção de abordagem diz que o sucessor do Mataka
I foi Che Pekula, seu sobrinho, cuja sucessão teria sido manifeste pelo próprio Mataka I, Che Nyambi, nas
vésperas de sua partida para junto de Deus. As duas versões confluem, entre outras, que este sucessor estava
ausente quando Mataka I moribundo passou-lhe o poder.
71

violento e, diga-se de passagem, mais do que o Mataka I, recorrendo quase frequentemente a


decisões duras. Foi ele quem protagonizou a morte emblemática do tenente Valadim.
O missionário católico da consolata Luís Wegher (1995) e o tenente-coronel João
José de Sousa Cruz (2014) narram os contornos do assassinato do tenente Eduardo António
Prieto Valadim pelo sultão Mataka. Mataka III, no auge das campanhas militares europeia de
dominação, havia mandado publicar que o primeiro branco que se atrevesse a pôr os pés no
seu território, seria morto e decapitado.
Julgando possuir supremacia militar e bélica, o tenente Valadim não deu contas do
recado e quis introduzir-se no território proibido do poderoso Mataka. As consequências não
se fizeram esperar. De acordo com Cruz (2014), rezava-se o ano de 1890 quando o tenente
Valadim, ido da Zambézia, pela sua valentia no campo militar, recebera a missão de pacificar
e submeter à coroa portuguesa o temível chefe yaawo. Finalmente chegou depois de ter
cumprido missão igual com outros chefes da região e graças à indicação de um deles. Tudo
parecia mais uma vitória, pois fora bem recebido pelo régulo, que aceitou os presentes sem
rodeios e festejou o acontecimento com tiros de pólvora seca. Nada fazia prever os
acontecimentos que vieram a ter lugar. Com a chegada do poente, acordaram que a bandeira
seria hasteada na manhã do dia seguinte. A noite foi tranquila e como tinha sido combinado,
pelas sete horas da manhã, Valadim, juntamente com o aspirante de alfândega Tomáz de
Almeida19 e o criado José, procedeu ao içar da bandeira, sem cobertura militar, no mastro
improvisado. O ato pretendia significar o domínio da selva, a vitória e a submissão de mais
um vassalo ao reino de Portugal. Momentos depois alguns súbditos principais de Mataka
acorreram ao local para arriar o símbolo desse aparente domínio de pouca duração, tendo
Valadim, Almeida e José tentado impedir o desacato. Então Mataka, fazendo-se acompanhar
de gente armada, aproximou-se e sem a menor troca de palavras deitou mão ao tenente
Valadim e decepou-lhe a cabeça de um só golpe. Os seus acompanhantes fariam o mesmo ao
aspirante Almeida e ao criado José. O sangue de Valadim regou as terras de Muembe e o
fenômeno ficou registrado como símbolo do poder militar do Mataka.
Com efeito, de acordo com Wegher (1995), uma vez Valadim morto e decapitado, a
caveira da sua cabeça depois de bem limpa, o poderoso Mataka colocou-a na entrada de sua
residência para dar a conhecer a todo mundo que a ali se dirigisse do que ele era capaz.
É apontado como o grande erro de Valadim o seu otimismo que lhe levou a desarmar
os seus homens com alegações de não criarem desacatos na povoação, o que terminou em
19
Em certas passagens aparece como José ou Luís ou Manuel Tomáz de Almeida. Todos se referem à mesma
figura, por isso preferi usar os dois últimos nomes que lhes são comuns.
72

tragédia, pois estes não tiveram como reagir face ao sucedido. Alguns dos sobreviventes
permaneceram no território de Mataka como escravos e outros foram vendidos na mesma
condição.
Em 19 de outubro de 1899, a capital do poderoso Mataka foi tomada e destruída
pelos portugueses. Mataka III refugiou-se na Tanzânia, de onde regressaria só no ano
seguinte, quando começa a reconstrução da sua capital. (AMIDE, 2008). Era o simples
começo do fim do último reduto de resistência dos chefes Yaawo. Como é regra geral, o
famoso Mataka III, o Che Bonomali, foi junto da lei natural, quando a morte bateu-lhe as
portas. Terminava assim o ciclo de acumulação de riquezas e de autoridade tremenda e,
obviamente, abriu possibilidades para outras descendências.
A quarta dinastia coube a Che Mkwepu, em cujas veias corria o sangue de Mataka
IV. Como observou Amide (2008), não há consenso sobre o seu grau de parentesco com o seu
antecessor, havendo autores que afirmam ser irmão de Mataka III e outros, sobrinho deste.
Mas seja como for, ambas as situações, segundo a tradição de sucessão matrilinear, podem ser
aceitáveis. Vejamos: se sobrinho de Mataka III, é o mais indicado e legítimo para a sucessão;
e se irmão deste, pode-se admitir, pois que os dois são sobrinhos do Mataka I.
Este foi o soberano que teve o tempo de reinado mais curto de todos em estudo
(1903-1905). Talvez seja por isso que não há registros de chacinas e guerras; ou pela razão de
não ser homem de ação que os seus inimigos internos precipitaram a sua morte. A única coisa
que se lembra dele é o fato do seu reinado ser descrito como sendo de profunda seca e fome.
À quarta seguiu a quinta dinastia Mataka, que inaugurada em 1905 durou até 1912. O
sultão Mataka V foi Che Chisonga, sobrinho de Mataka III. Foi um aliado dos alemães, e teve
pouca sorte ao chegar ao trono numa época em que o comércio estava em decadência e as
ações do colonialismo cada vez mais ferrenhas. Apesar destes fatores, estima-se que ele foi
um chefe poderoso, não obstante gozar de pouca reputação popular. Em 1912 a capital
Muembe foi mais uma vez saqueada pelos portugueses e Mataka V, que não tinha apoio dos
seus homens, fugiu com boa parte da sua população para Tanzânia a procura de abrigo junto
dos seus amigos alemães, onde viria a morrer mais tarde. (AMIDE, 2008).
Assinalada que foi a fuga do Mataka V, na sequência da invasão portuguesa, o trono
do soberano havia ficado vazio. Foi assim que os portugueses que agora haviam tomado o
controle do mais difícil território, querendo que alguém os intermediasse, deixaram que a
população indicasse um dentre seus membros para ocupar o lugar do soberano foragido. Não
havendo alguém que reunisse os requisitos segundo os costumes, decidiram indicar um
73

parente da linhagem, trata-se de Che Salanje, filho da rainha Ku-Mmila, para receber a coroa
de Mataka VI. Era a sexta dinastia dos Mataka que despontava em Muembe.
Este foi fiel aos portugueses e deixou de dificultar a Companhia de Niassa, como
fizeram os seus antecessores. De poderes reduzidos pela presença portuguesa, Mataka VI não
mostrou vigor hegemônico, mas governou em paz e o seu reinado terminou em 1948. Apesar
desta submissão, o povo yaawo nunca deixou de resistir contra os portugueses e de recusar
tudo quanto trouxessem, como educação, saúde, religião cristã ou cultura portuguesa,
concluiu René Pelissier numa passagem citada por Amide (2008).
O nome de Mataka continua vivo até os nossos dias, mas os respectivos régulos têm
poderes cada vez mais simbólicos, ainda que gozem de uma simpatia junto dos seus membros
e sirvam de elo entre as estruturas governamentais e o seu povo.
A história do atual território de Niassa não se esgota por aqui. Muito recentemente,
durante o processo de libertação do jugo colonial, este povo, com a mesma bravura
demonstrada durante a caça dos escravos e do comércio costeiro, participou engenhosamente
da luta de libertação nacional de 1964-1974 que pôs fim ao colonialismo português em
Moçambique. A mesma valentia dos Mataka, por exemplo, fez com que Niassa fosse uma das
principais frentes de combate e região estratégica de expansão da luta para outros pontos do
país. Pela forma como a luta se desenvolveu nesta província, foi possível que durante um
curto período houvesse zonas libertadas, totalmente controladas pela FRELIMO.
(MONDLANE, 1995). Por tanto, há muito que escorrer tinta a respeito da história da
província de Niassa e esgotá-la seria uma ilusão. Pode-lhe faltar tudo, mas nunca a história;
essa, ela já a tem para sempre.

2.2.8 Lichinga, território: ontem e hoje

Pretendo nos parágrafos que se seguem fazer uma apresentação da Cidade de


Lichinga, por ser nela onde fiz o estudo das práticas culturais do povo yaawo (unyago). A
descrição vai consistir numa breve caracterização da cidade, quanto aos seus aspectos
socioeconômicos e territoriais, tudo para responder aos possíveis anseios dos leitores. Nesse
diapasão, farei uma descrição dos aspectos mais relevantes e básicos, indispensáveis para a
compreensão de um território e seu povo. Esses aspectos a observar são referentes à
territorialidade, demografia e base econômica da Cidade Lichinga.
74

Tal como disse de passagem anteriormente, a Cidade de Lichinga é a capital da


Província de Niassa. Situa-se no planalto homônimo, com cerca de 1350 metros de altitude,
contados a partir do nível médio das águas mar. Localiza-se no extremo ocidental da
província e é circundada por completo pelo Distrito de Chimbonila20, constituindo uma
espécie de ilha dentro deste. Lichinga possui uma área total de 290 km2 e, de acordo com a
Lei nº 26/2013, o território da Cidade de Lichinga coincide com a área do atual Distrito de
Lichinga.
Em termos etimológicos a palavra “lichinga” provém do ciyaawo “n'tchinga” e em
português significa “cerco ou curral”. Lichinga é como os portugueses preferiram chamar.
De acordo com o INE (2010), Lichinga possui uma população de 235.22421
habitantes dos quais 118.578 são homens e 116.646 são mulheres, distribuídos em quatro
Postos Administrativos Urbanos e 15 Bairros, a saber:

1. Posto Administrativo de Sanjala – compreende os bairros de Sanjala,


Namacula, Muchenga, Bairro Popular, Nzinje e Chiulugo;
2. Posto Administrativo Urbano de Chiuaúla – composto pelos Bairros de
Estação, Bairro Lucheringo e Bairro Cerâmica;
3. Posto Administrativo Urbano de Massengere – com os bairros Massenger,
Bairro Assumane e Bairro Sambula;
4. Posto Administrativo de Lulimile – comptreende os bairros de Lulimile,
Nomba e Mitava (CMCL, 2011).

A população de Lichinga é representada por três principais grupos étnicos, que


coincidem com os mesmos que dominam a Província de Niassa; falo dos amakhuwa, ayaawo
e anyanja. O lugar onde foi edificada a Cidade de Lichinga pertence ao grupo étnico yaawo,
sendo por isso que se diz que eles são os legítimos autóctones de Lichinga. Desde as primeiras
eleições em 1998 cujo poder instituiu-se com base na lei 2/97, de 28 de maio, o executivo
autárquico neste território é exercido por um descendente yaawo eleito da lista da FRELIMO,
partido no poder desde 1975.
Lichinga separa-se do mar por cerca de 850 km, contados a partir do Porto de
Nacala, e do Lago Niassa, por cerca de 50 km, contados da margem leste. Segundo Loureiro
(2012), Lichinga possui duas estações básicas: estação de chuvas, que vai de dezembro a

20
Em algumas passagens aparece grafado “Chimbunila”, mas com referência ao mesmo território geográfico.
21
Projeção populacional da Cidade de Lichinga para o ano de 2017.
75

março, e de seca, de maio a novembro. Assim, abril é o mês de transição entre as duas épocas.
A pluviosidade média é regular e, quando conjugada com a riqueza dos solos, oferece à
Lichinga melhores condições agroecológicas. Assim, a agricultura, a pecuária e o comércio
são as atividades básicas da população.
A Cidade de Lichinga surgiu da necessidade de uma capital para o então Distrito de
Niassa. Foi nesse esforço que

Em 17 de Outubro de 1931, por Portaria nº 1482, é reservado e classificado em


primeira classe, destinado à sede do Distrito de Niassa, na Circunscrição de Metónia,
do mesmo Distrito, o território limitado por uma circunferência com 3.000 metros de
raio, tendo por centro um marco a implantar no planalto da serra Lichinga, junto à
estrada de Mandimba a Metangula e a cerca de 146 quilómetros de Mandimba.
(WEGHER, 1995, p. 146).

Nesse sentido, de acordo com a fonte, em 1932 nasce esta povoação, pelo Decreto nº
1666 de 21 de maio, a sede do Distrito de Niassa, que passou a designar-se de Vila Cabral, em
homenagem ao antigo Governador Geral de Moçambique, o coronel José Ricardo Pereira
Cabral. É de salientar que, até a data, a capital do Distrito de Niassa era Mandimba, sede da
Circunscrição Civil de Metónia, que perdeu este privilégio neste mesmo ano em favor da
emergente Vila Cabral.
Em 1956 é criado o Concelho da Vila Cabral em substituição da antiga Circunscrição
da Vila Cabral. O corpo administrativo que entrou em vigor desde 01 de janeiro de 1957 é
designado por Câmara Municipal de Vila Cabral, estatuto que depois de pequenas mudanças
voltaria, e durou até a data da Independência. Pela Portaria 16369, de 28 de setembro de 1962,
A Vila Cabral é elevada à categoria de Cidade.
Com a Independência e no âmbito do resgate dos valores históricos e territoriais, a
cidade da então Vila Cabral voltou a ostentar o seu nome primitivo, passando a chamar-se de
Cidade de Lichinga, capital da Província de Niassa. Antes concebida para albergar um
número reduzido de pessoas, Lichinga é hoje uma cidade em franco crescimento em
infraestruturas socioeconômicas e com um surdo demográfico acentuado. Depois de ter 260
habitantes em 1969, hoje são mais de 230 mil habitantes. (LOUREIRO, 2012; WEGHER,
1995).
76

CAPÍTULO 3
A PRÁTICA DOS RITOS DE INICIAÇÃO NA COMUNIDADE YAAWO

Os valores culturais comuns podem constituir um elo


unificador nacional. Mas [...] não devemos pensar na “nação”
como uma comunidade cultural. (WEBER, 2008, p. 124).

O campo dos ritos é bastante vasto, tal como se constou no primeiro capítulo deste
trabalho. Assim sendo, no presente capítulo o estudo será sobre os ritos de iniciação na
comunidade yaawo residente na Cidade de Lichinga. A escolha dos ritos de iniciação não tem
outra explicação senão por serem os mais celebrados com toda solenidade e constituírem o
marco importante na vida de cada um dos praticantes e da comunidade em geral.
A hipótese da presença rigorosa dos ritos de iniciação na comunidade yaawo deve-se
à influência do islamismo, que é predominante na região. Como é de domínio comum, a
admissão ao islão é feita pela circuncisão, recitação da fatiha22 e pela iniciação. Com isso, não
quero de forma alguma dizer que foram os árabes que introduziram os ritos de iniciação nesta
comunidade, mas, sim, que eles deram uma nova dinâmica ao admitirem serem os ritos a
forma de fazer puros os indivíduos, juntando-se ao batismo muçulmano. Sabe-se que, muito
antes da presença muçulmana na região já se praticavam os ritos de iniciação (Unyago), sendo
o Lupanda para os homens e Chiputo para as mulheres. (ABDULLAH apud AMIDE, 2008).
Estes ritos tinham quase o mesmo objetivo, o de introduzir alguém nos princípios coletivos e
culturais rezados pela comunidade e certificá-los como válidos para todos os fins sociais
achados convenientes.
Nessa empreitada tomo como referência, além dos resultados constatados, as
pesquisas feitas por aqueles que se interessaram pela mesma matéria. Com isso, não quer
dizer concordar com todas as interpretações desses etnólogos ou antropólogos, pois considero
que algumas passagens serem narradas de forma exagerada, como, por exemplo, quando o
padre católico Luís Wegher (1995, p. 178) ao falar dos ritos de iniciação feminina, não hesita
em afirmar que

[...] São imorais, embora a parte higiénica e educativa tenha importância que não é
pequena, em relação ao estado da futura mulher. O islamismo trouxe um acréscimo
de ensinamentos imorais que servem para favorecer o “grave problema de
poligamia”: a rapariga que recebeu a circuncisão, já não pode recusar qualquer
pedido de alguém que queira meter-se com ela ... ficando assim ao dispor de um e

22
Costuma dizer-se também Al-fatiha: o primeiro capítulo do Alcorão, livro sagrado dos muçulmanos, cujos
sete primeiros versos são recitados no início de cada oração diária.
77

do outro. A recusa pode ser perigosa, tendo-se dado até casos de morte repentina.
(Grifos meus).

Considerando o argumento do referido autor, penso que há uma tendência de reduzir


ou mesmo menosprezar este arsenal cultural do povo yaawo e até ainda do próprio islamismo.
Não quero assumir de forma categórica que esta tendência tenha motivações religiosas ou
uma tentativa de considerar que a cultura pura é coisa que só pertence ao Ocidente. Tal fator
talvez seja para reduzir completa ou parcialmente a importância dos ritos. Este aspecto,
também foi observado por João Baptista Amide (2008) que, usando o seu próprio testemunho
como descendente étnico, depois de analisar algumas passagens do mesmo autor (Wegher,
1999), mostra-se reticente quanto a alguns posicionamentos deste sacerdote, apesar de ambos
serem clérigos e oradores católicos.
Pela idade com que os meninos são levados ao ritual de iniciação, entre seis e oito
anos, nota-se que a comunidade yaawo está longe de fazer coincidir a puberdade fisiológica
com a social. A puberdade fisiológica nas mulheres é marcada pela chegada da primeira
menstruação e sabe-se que esta não é uniforme quanto ao período de chegada em todas as
sociedades e classes sociais. Em algumas sociedades aparece mais cedo e noutras, um pouco
mais tarde. Parece que depende muito também da condição social de cada grupo. Gennep
(2013) admite a hipótese de que em algumas regiões de África ela começa aos 10/11 anos
(casos raros) e com a maior frequência entre os 12-15 anos de idade. Apesar deste pequeno
índice de chegada do período das regras entre 10 e 11 anos de idade, a maior probabilidade é
de que nos ayaawo a puberdade fisiológica seja posterior à puberdade social. Desta feita,

Será, portanto, mais conveniente não dar aos ritos de iniciação o nome de ritos de
puberdade. Longe de mim, porém, negar que existam ritos da puberdade fisiológica,
os quais em alguns casos raros coincidem com os ritos de iniciação. As moças são
então isoladas, às vezes mesmo consideradas mortas e depois ressuscitadas. [...]
(GENNEP, 2013, p. 72).

Nestas comunidades, com rígida observância destes princípios culturais, não poderia
ser negada a importância destes ritos, pois é por meio deles que se faz do indivíduo homem ou
mulher e os torna aptos para a agregação sexual e familiar.
No entanto, sabe-se que grupos há entre os amakhuwa que fazem coincidir a
puberdade social com a fisiológica, pois levam as meninas ao ritual de iniciação após chegar a
elas o período das regras. Caso aconteça uma cerimônia mista entre as menstruadas e não
menstruadas, no tempo de instrução são separadas em dois grupos. Nota-se que o culminar do
78

processo formativo ritual feminino dá-se, efetivamente, depois das primeiras regras. Disto não
vou me ocupar muito em detalhes tal como fez Matinez, na sua consagrada obra O povo
macua e a sua cultura de 1989.
Facilmente nas mulheres fixa-se o período da puberdade fisiológica. Nos homens,
entretanto, a coisa não é tão fácil assim. Nesta conformidade, por convicção, a puberdade nos
homens fixa-se por ocasião do nascimento dos pelos do púbis, da barda e outros sinais. Mas
como disse, esta é apenas por uma opinião coletiva, deve se ter em conta as diferenças étnicas,
grupais e pessoais.
Diante de toda essa incongruência, Gennep (2013, p.73) aconselha que “convém,
portanto, distinguir a puberdade social da puberdade física, assim como se distingue o
parentesco físico (consanguinidade) e o parentesco social, a maturidade física e a maturidade
social (maioridade), etc.” (Grifos do autor). Precisa-se notar com atenção que não se trata da
mesma coisa e é preciso separar uma da outra, para não incorrer no erro de trocar o seu
sentido real e confundir as realidades que por si só são bem distintas.
Para o presente caso que me propus estudar sobre a iniciação nos ayaawo, percorri
três escolas da Cidade de Lichinga a fim de colher dados junto aos iniciados. A minha
preferência pelas escolas deveu-se ao fato de ser local onde poderia encontrar os sujeitos da
iniciação com certa facilidade; não me enganei. Nas escolas, além dos alunos, o outro alvo
foram os gestores das respectivas escolas23. Dos três gestores de escolas que se ofereceram a
prestar alguma informação para a pesquisa, as suas experiências dentro das instituições
variam entre cinco a 11 anos, período suficiente para terem uma larga noção sobre a estrutura
social da comunidade escolar, o que oferece certa segurança às informações prestadas.
Em todos os grupos de discussão, começava sempre com a minha apresentação,
minha proveniência e o objetivo da conversa. Para deixar mais à vontade os intervenientes da
entrevista, começava por fazer uma breve introdução da prática cultural de que os ritos fazem
parte, sem, no entanto, pôr em causa a sua pertinência. Esta medida garantiu uma larga
vantagem para conquistar a confiança dos entrevistados para que falassem à vontade das suas
experiências sobre a questão em debate. A entrevista foi orientada com base no roteiro que
consta no apêndice do presente trabalho, mas isso não impediu que durante a conversação
fossem colocadas outras questões para aprofundar as explicações do fenômeno em destaque.

23
A pesquisa previa colher os pontos de vista dos gestores (diretores e ou adjuntos) das respectivas escolas
selecionadas no âmbito deste estudo. Isto foi possível em duas das três escolas escaladas. Na EPC a Luta
Continua os gestores não estavam disponíveis para entrevista.
79

A escolha da amostra se deu de forma aleatória, desde que fosse da etnia yaawo. No
entanto, constatei que entre os iniciados havia uma predominância da religião islâmica,
seguida da católica. O quadro abaixo explica melhor essa tendência por sexo e escolas
abrangidas.

Tabela 2 – Distribuição dos iniciados por sexo e religião.


Instituição ESG- EPC a Luta EPC Bairro Total geral
Muchenga Continua Popular
H M HM H M HM H M HM H M HM %
Abrangidos 10 9 19 5 8 13 11 11 22 26 28 54 100
4 3 7 2 2 4 1 1 2 7 6 13 24,07
Católica
Religião

6 6 12 3 6 9 6 10 16 15 22 37 68,5
Islâmica
Não _ _ _ _ _ _ 4 _ 4 _ _ 4 7,4
declarada
Fonte: Autor, 2017.

Do quadro pode se ler que, dos 54 entrevistados, 13 professam o catolicismo, o que


corresponde a 24,07%; o grosso número de 37 iniciados professa a religião islâmica, o que
representa 68,5% do total; quatro, o correspondente a 7,4%, duvidaram ou não declararam a
sua religião.
O quadro permite concluir que, de fato, como foi dito, a religião predominante nos
ayaawo é o islão, seguido do catolicismo. Esta é a primeira leitura que se pode fazer. A
segunda, é que o maior número de iniciados nesta comunidade pertence à religião islâmica.
Portanto, ser descente yaawo e professar o islão são os dois grandes indicadores para que os
ritos tenham lugar.
A discussão com esses grupos permitiu reunir um conjunto de informações bastante
ricas em conteúdo para a análise do objeto anunciado, o que me levava a pensar em alargar a
esfera delimitada de modo a incorporar novos elementos da cultura yaawo que iam sendo
anunciados.
A minha abordagem obedece ao quadro de análise de Gennep, ou seja: ritos
preliminares, liminares e pós-liminares. A abordagem divide-se em dois momentos distintos:
o primeiro sobre os ritos masculinos e o segundo, sobre os ritos femininos.
Todos os intervenientes foram unânimes em afirmar que os ritos de iniciação nos
ayaawo da Cidade de Lichinga são realizados nas férias do fim do ano letivo, sendo o mês de
dezembro o de maior preferência, por ser quase na sua totalidade de interrupção letiva.
80

Conforme informou o Conselho da Autoridade Comunitária de Chiuaúla, nos dias que correm
os ritos de iniciação realizam-se praticamente uma vez por ano. Mas há momentos em que,
dependendo da organização dos pais, têm sido realizados em duas épocas: a primeira entre
junho e agosto e a segunda no final do ano. A medida visa abranger as crianças que por várias
razões não puderam participar na temporada imediatamente anterior.
Quanto ao período de duração, varia de acordo com o grupo alvo, conforme se trate
de homens ou mulheres. Os homens indicaram que o período de reclusão dura de um a dois
meses e as mulheres, apenas um mês. A iniciação masculina, conhecida por djando em
ciyaawo, leva um pouco mais de tempo devido ao próprio procedimento, que é delicado: deve
se esperar que todos os meninos cicatrizem os efeitos da circuncisão e cumpram com todas as
provas a que são submetidos. Por sua vez, a iniciação feminina pode levar até duas semanas
(com a supressão de corte do clitóris). Portanto, como as famílias são as mesmas, para
permitir que a festa também seja a mesma, primeiro são submetidos os meninos e na segunda
semana são submetidas as meninas, de modo a fazer coincidir a data de saída. Isto acontece
porque às vezes os mesmos pais podem ter ao mesmo tempo meninos e meninas em iniciação
e fazer festas separadas seria oneroso ou simplesmente impossível, tendo em conta o capricho
que estas possuem.
Respondendo às colocações da pesquisa, os mestres e o Conselho da Autoridade
Comunitária de Chiuaúla – Cidade de Lichinga explicaram que a prática dos ritos de iniciação
não é obrigação no sentido rigoroso da palavra, pois não é feito nenhum policiamento de casa
em casa para obrigar que crianças participem do processo de iniciação. Por outro lado, acaba
sendo obrigação moral e cultural, por ser algo que identifica a comunidade yaawo. É por essa
razão que os indivíduos sentem-se obrigados a cumprir com este dever cultural e é com esse
espírito que os pais sentem a necessidade de levar os filhos aos ritos de iniciação, por
compreenderem, partindo de sua própria experiência, a sua importância para a criação duma
personalidade à moda da comunidade, tal como escreveu Durkheim (1965) cujo teor consta da
nota da epígrafe do presente texto.

3.1. OS RITOS DE INICIAÇÃO MASCULINA

É em ambiente de muita euforia que os pais e encarregados esperam a convocação


dos ritos de iniciação em que os seus filhos serão confirmados homens adultos. Todos os
meninos com a idade habitual com que têm sido levados à iniciação também aguardam com
81

enormes expectativas, pois que sabem de antemão que é este processo que lhes fará iguais aos
demais que já passaram pela iniciação e, por conseguinte, pertencer à classe destes. Segundo
apurou a presente pesquisa, é dos oito aos 12 anos que se dá entrada aos ritos e admite-se,
dependendo das famílias, que seja um pouco mais cedo. A tabela seguinte mostra a
distribuição das idades dos meus interlocutores nas três escolas selecionadas.

Tabela 3 – Distribuição de Idades dos iniciação


Instituição
Idade ESG- EPC a Luta EPC Bairro Total %
(anos) Muchenga Continua Popular geral
8 3 _______ 2 5 19.23
10 4 3 5 12 46.15
11 2 1 ______ 3 11.53
12 1 1 4 6 23.07
Subtotal 10 5 11 26 100

Fonte: Autor, 2017.

Os dados revelam que é durante a terceira infância, que normalmente ocorre entre
seis e 12 anos, que a comunidade yaawo leva os seus filhos para iniciá-los e dotá-los de
atitudes que servirão para a sua formação pessoal ao longo da vida. É curioso observar que a
terceira infância coincide com a fase escolar, período em que a criança começa a interagir
com o seu meio, ganha autoestima, tem domínio de si, adquire novas descobertas e
desenvolvimento; enfim, entra na fase sociável. (PAPALIA; OLDS; FELDMAN, 2006).
Como estes autores descrevem este período bastante importante entre as fases da vida, mesmo
sem o domínio da psicologia de desenvolvimento, os ayaawo ao levarem os seus filhos aos
ritos de iniciação, têm os mesmos objetivos, o de provocar o desenvolvimento humano, apesar
de não terem a noção de respeito ao processo de formação contínua e fazer acontecer tudo de
uma única vez, sobrecarregando, assim, os formandos.
A iniciação masculina yaawo acontece num ambiente de reclusão completa e evita-se
o máximo o contato com outros homens (e nem se ousa falar de mulheres), com exceção
daqueles que estão ligados ao processo e que se encontram devidamente credenciados para as
intermediações. Com vista a garantir essa privacidade, os pais com filhos a iniciar constroem
cabanas num lugar afastado da comunidade. O recinto misterioso, como prefere chamar
82

Wegher (1999), é constituído, segundo Amide (1998), por uma palhota24 comprida do tipo
retangular, sem subdivisões, onde são colocados e circuncidados todos os iniciados.
Circundam a palhota principal as palhotas dos padrinhos e as dos mestres encarregados de
todos os serviços da iniciação. Dentro do recinto é reservada uma área de determinado raio
que em seguida é vedada pelo poder mágico contra feiticeiros que queiram se aproveitar do
momento para semear o seu terror.

3.1.1. Ritos preliminares

Tudo começa quando os pais que têm filhos com idade útil para a iniciação fazem a
mobilização entre si. Uma vez reunido um número significativo dos interessados, vão
comunicar ao régulo25, a quem cabe convocar oficialmente a temporada e formular o convite
aos mestres que operacionalizam as cerimônias e à METRAMO (Medicina Tradicional de
Moçambique) que credencia a equipe dos mestres (Ngaliba e Nakanga)26, tornando legítimo o
processo. A METRAMO, ao credenciar o processo, para além de assumir qualquer
providência de sua área, compromete-se servir de intermediária quando acontecer alguma
coisa, como problemas de saúde entre os participantes, comunicando de imediato às
autoridades de saúde para a devida intervenção, caso o problema exceda as suas capacidades.
Acautelados estes procedimentos, no dia anterior à entrada ao ritual, proclama-se um
convívio entre mestres, candidatos à iniciação, familiares e amigos. Ao redor de uma lareira
os candidatos vão cantando e dançando, anunciando, assim, a despedida aos parentes e
amigos e estes que por sua vez manifestam desejos de boas idas à iniciação. De acordo com
Amide (2008), esta é a chamada dança vespertina, que entre os ayaawo é conhecida como
Manganje. Ao amanhecer, anuncia-se que é chegado o dia de entrada aos ritos e, em seguida,
os candidatos são levados ao local preparado para o decurso do processo. Mas antes de
seguirem, para coroar de êxito o processo, os pais que assim acharem conveniente fazem
limpeza e súplicas nos túmulos dos seus entes queridos e em seguida fazem uma cerimônia de
chá27. Por sua vez, o régulo põe farinha nos iniciados antes de seguirem à sessão de dança de

24
Casa de construção precária que neste caso destina-se a albergar os iniciados fora do seu convívio comunitário.
Costuma se chamar também de cabana.
25
Autoridade tradicional de poder linhageiro.
26
Ngaliba é a pessoa mais importante do processo de iniciação masculina, corresponde ao cirurgião. Nakanga é
o encarregado geral responsável em transmitir e fazer cumprir as orientações supremas.
27
É uma espécie de lanche que se serve depois de se fazer a visita e limpeza às campas dos membros da família
já falecidos. Essa limpeza pode ter vários propósitos: pedidos para o sucesso em vários aspetos de vida ou para
assinalar anuidades de eterna saudade.
83

despedida, como forma de desejar sucessos a cada um. Tal como explicaram os mestres da
iniciação, depois da sessão de despedida, o padrinho da cerimônia faz o mesmo com todos os
convocados, como forma de desejar boas-vindas à iniciação.
Geralmente o processo começa em casa quando os pais do candidato à iniciação o
concentram e mostram a importância de participar dos ritos de iniciação. Também lhe
antecipam a atitude que deve tomar durante o processo, informando-lhe a consideração que
deve ter com os seus mestres e a submissão devida às orientações deles. Só depois o vão
apresentar ao local onde estão reunidos os outros candidatos com o mesmo propósito.
Normalmente os mestres das cerimônias, os educadores devem ser pessoas dotadas
de uma boa personalidade e idoneidade e ser ancião de reconhecida experiência na matéria.
Ao passo que aos padrinhos, aqueles que acompanham e dão o apoio preciso ao iniciado, não
é necessariamente imperioso que sejam adultos tal como são os educadores, podendo ser
jovens, desde que tenham passado pela prova uns anos antes.
O local escolhido deve ser de preferência longe da povoação para evitar o contato
com os membros restantes da comunidade e perto de alguma fonte de água, de modo a
facilitar o aproveitamento deste recurso para vários fins necessários. A medida do isolamento
visa criar um ambiente de tranquilidade, quer para a comunidade, quer para os próprios
iniciados, devido à alguma emissão de sons vocais das canções entoadas durante a instrução.
Por outro lado, a separação do meio familiar, de acordo com Braço (2008),
representa morte ou abandono da infância, sendo o processo pelo qual a criança, vista como
simples símbolo, passa para o símbolo de forças e de potencialidade da linguagem étnica, da
perpetuação das tradições culturais. Julga-se que, enquanto ela permanecer no meio familiar,
continuará apenas um sujeito individual e não será capaz de agir em prol da sua comunidade.
No caso dos ritos de iniciação masculina yaawo, a primeira ação levada a cabo
depois de se fazer ao local do acampamento, segundo Wegher (1999), é o corte do cabelo. Em
seguida opera-se a circuncisão que, obviamente, acontece depois de uma preparação
psicológica para que os iniciados não se assustem com certos procedimentos e encarem-nos
como normais e necessários. São os mestres (angaliba) os responsáveis por estas
circuncisões, fazendo-as com um instrumento cortante bem afiado que se chama chiluala e
que geralmente serve para todos os convocados. Os mestres explicaram ainda que neste
processo não há intervenção do pessoal médico convencional e que, no lugar da anestesia, dão
um medicamento para atenuar as dores e outro para acelerar os curativos. Geralmente em sete
dias a ferida está curada. Pelo que constatei junto dos mestres, os procedimentos dos ritos de
84

antigamente não têm muita diferença com os procedimentos de hoje. A maneira como era
cortado o prepúcio antigamente é a mesma de hoje, sem muita alteração digna de menção,
acrescentaram os mestres.
O uso do mesmo instrumento de circuncisão para todos os iniciados e sem esterilizar,
conforme pude saber dos mestres, olhando para os problemas de hoje, traz um risco de
contaminação de várias doenças, pondo em perigo a saúde e a vida dos iniciados. Dada a
importância da circuncisão, deveriam ser acautelados os procedimentos que permitissem
observar as regras de higiene, de maneira a evitar este risco de contaminação e possíveis
infecções pós-operação. Para isso, o procedimento deveria ser feito em parceria com o pessoal
médico (da medicina moderna).
O corte do prepúcio marca o fim do processo pré-liminar e abre espaço à fase
liminar, caracterizada por vários aspectos de preparação para a vida pessoal e comunitária.

3.1.2. Ritos Liminares

O período liminar comporta várias características de momentos, inclusive das que


são imbuídas nos noviços. Como conta Victor Turner (2013), a liminaridade com certa
frequência pode ser comparada à morte, ao estar no útero, à invisibilidade, à escuridão, às
regiões selvagens ou ainda ao eclipse do sol e da lua. Portanto,

As entidades liminares, como os neófitos nos ritos de iniciação, ou de puberdade,


podem ser representadas como se nada possuíssem. Podem estar disfarçadas de
monstros, usar apenas uma tira de pano como vestimenta ou aparecer simplesmente
nuas para demonstrar que, como seres liminares, não possuem status, propriedades,
insígnias, roupa mundana indicativa de classe ou papel social, posição em um
sistema de parentesco, em suma, nada que as possa distinguir de seus colegas
neófitos ou em processo de iniciação. Seu comportamento é normalmente passivo e
humilde. Devem implicitamente obedecer aos instrutores e aceitar, sem queixa,
punições arbitrárias. É como se fossem reduzidas ou oprimidas até uma condição
uniforme, para serem modeladas de novo e dotadas de outros poderes, para se
capacitarem a enfrentar sua nova situação de vida. Os neófitos tendem a criar entre
si uma intensa camaradagem e igualitarismo. As distinções seculares de classe e
posição desaparecem ou são homogeneizadas. [...] Nas iniciações com longo período
de reclusão, tais como os ritos de circuncisão de muitas sociedades tribais ou a
entrada em sociedades secretas, há frequentemente uma rica proliferação de
símbolos liminares. (TURNER, 2013, p. 98).

Transcrevi longamente o texto de Turner para ficar clara a explicação de como


devem se comportar os neófitos durante o processo liminar. Como ficou explícito, os
iniciados são colocados num estilo de vida latente para daí nascerem homens formados para a
85

dura escola da vida. Assim, os iniciados são considerados como uma autêntica tabula rasa,
uma espécie de um vazio completo, cabendo aos mestres imbuir neles atitudes,
conhecimentos e virtudes que caracterizam o seu meio social. Para esse efeito, eles imitam,
recitam, enumeram os códigos, princípios, signos e interpretam a linguagem secreta.
Uma das características da liminaridade, e obviamente também sua importância, é o
desenvolvimento da vida comunitária a que Turner prefere fazer o empréstimo latino e
chamar de comunitas, o mesmo de comunidade. Ele observa que há nela uma mistura de
submissão e santidade, de homogeneidade e camaradagem. De acordo com o autor, a
preferência pelo termo comunitas é pelo fato de ter uma qualidade existencial, abrange a
totalidade do homem em sua relação com outros homens inteiros. Portanto, a relação entre os
homens totais são geradoras de símbolos e metáforas e de comparações.
Os iniciados de uma mesma época constroem entre si um laço de fraternidade,
respeito e profunda consideração na orla horizontal. Este ambiente de comunhão e de
estrutura relativamente indiferenciada faz estes indivíduos iguais, o que os leva a não terem
complexos quer de inferioridade, quer de superioridade diante dos papeis a desempenhar. A
consideração criada por contemporâneos da iniciação por vezes transcende certos níveis de
familiaridade e prova a evidência de que “um amigo não é alguém que sempre fala a verdade,
mas alguém que protege o bem-estar emocional do outro. O ‘bom amigo’ – alguém cuja
benevolência é disponível mesmo em tempos difíceis – é substituto nos dias de hoje para o
‘honrável companheiro’”. (GIDDENS, 1991, p. 132). Este companheirismo cria relações de
confiança e, por consequência, novos laços de parentesco e amizade para o resto da vida.
O ambiente criado, a seminudez ou nudez em que se encontram os iniciados, é para
criar uma espécie de uniformidade entre eles e evitar que haja o grande, o pequeno, o mais
importante, o menos importante, o filho de chefe, o filho do pobre etc. Deste modo,

O neófito na liminaridade deve ser uma tabula rasa, uma lousa em branco, na qual
se inscreve o conhecimento e a sabedoria do grupo, nos aspectos pertinentes ao novo
status. Os ordálios e humilhações, com frequência de caráter grosseiramente
fisiológico, a que os neófitos são submetidos, representam em parte a destruição de
uma condição anterior e, em parte, a têmpera da essência deles, a fim de prepará-los
para enfrentar as novas responsabilidades e refreá-los de antemão, para não
abusarem de seus novos privilégios. É preciso mostrar-lhes que, por si mesmo, são
barro ou pó, simples matéria, cuja forma lhes é impressa pela sociedade. (TURNER,
2013, p. 104).

Nestas condições o neófito nada sabe, aceita tudo, não se desagrada com nada,
aprende a contentar-se com tudo, mesmo que insuportável. Como descreveu Wegher (1999),
86

durante o processo de instrução, toda falta é punida e nada de incorreto é perdoado. O autor
descreve como uma autêntica escola onde os neófitos são ensinados à resistência, à
obediência, à virilidade, à paciência, à submissão e educação, sendo ainda instruídos sobre as
tradições, instituições e ritos sagrados da tribo, para melhor assumirem o seu papel na vida
adulta.
Digno de notar que tal como acontece no militarismo em que é abolida a propriedade
para passar a vida aquartelada, nos acampamentos dos ritos elas também são abolidas. Os
bens ali possuídos servem para todos. A comida que a família de cada um dos iniciados
prepara serve a todos os convocados, sem distinção alguma. Também é estimulado o alto
sentido de disciplina e obediência. Aqui, os mestres servem-se de todos os mecanismos para
manter a ordem e disciplina e “eles articulam a convivência social e dotam os indivíduos de
saberes para agirem em comunidade, com a comunidade e para a comunidade”. (BRAÇO,
2008, p. 94; grifos do autor).
O fim do processo de reclusão da iniciação é ditado sobretudo pela cicatrização de
todos os circuncidados. Apesar de se referir aos ndebus, um grupo bantu da África Central
(Zâmbia) cujo procedimento se relaciona com o dos ayaawo, Turner (2013, p. 32) salienta que
“a secagem de glande é um símbolo da aquisição de um auspicioso status masculino de adulto
e uma das finalidades dos ritos de circuncisão [...] porque a glande de um menino não
circuncidado é considerada úmida e podre e, portanto de um mau agouro, dentro do
prepúcio”. O incircunciso dentro da comunidade ayaawo, e de outras que têm a circuncisão
como regra, não goza de uma boa reputação perante às mulheres, podendo até ser objeto de
conversas particulares.

3.1.2.1 Ensinamentos

Notei que os meios usados para a transmissão da sabedoria popular são as canções,
por vezes, acompanhadas de danças, os mitos, os provérbios e ditados populares. É a partir
deles, mediante a aplicação da pedagogia popular, que são transmitidos os conselhos,
histórias, virtudes da vida, valores morais, princípios éticos e tudo aquilo que se relaciona
com o ser e estar na sociedade. Neste caso, o papel dos mitos é o de explicar, com base no
saber popular, a origem e funcionamento do mundo, do princípio da vida e das coisas, da sua
estrutura e, naturalmente, do seu fim.
87

Na sua maioria, o ensino nos ritos de iniciação masculina é feito durante a noite. São
várias as matérias ministradas relacionadas com a vida individual como uma unidade
biológica e como sujeito psicossocial. Nessa vertente, aos iniciados são ensinados os cuidados
que devem ter com as mulheres, bem como os proveitos que dela podem desfrutar. São
também ensinados sobre quando devem e não devem se relacionar com elas, sobre o papel do
homem e da mulher numa relação conjugal. Aconselham que, quando chegar a vez de formar
família, devem antes consultar aos mais velhos sobre a sua pretendida, que dirão se podem ou
não, mediante os antecedentes familiares e pessoais. Esta verdade foi testemunhada por um
dos filhos da casa, ao escrever:

O que sei, é que no Rito de iniciação, se ensinava que antes de casar deve a pessoa
preparar-se moralmente, economicamente no sentido de ter machamba 28, nem que
fosse pequena, ter uma casa e naturalmente todo o mínimo necessário numa casa;
preparar ao nível legal da tradição com os tios e pais. E mais ainda, não é suficiente
que a menina seja bonita e bem comportada bem como o rapaz, mas também precisa
saber-se a que família pertence e qual é a conduta moral daquela família. Nunca o
povo yawo admitia que acontecesse um nascimento de filho que não seja num
casamento testemunhado e ratificado. (AMIDE, 2008, p. 78).

Portanto, para além de ouros aspectos, a iniciação visa preparar o indivíduo para ser
esse sujeito social útil para a comunidade, capaz de trabalhar em prol da sua própria vida e de
sua família. Essa instrução poderá ser completada ao longo do tempo, sendo os pais e
parentes, os responsáveis em consolidar essas competências. O comportamento e habilidades
são indicadores de um tipo ideal para fins sociais na comunidade yaawo. A sua ausência em
um indivíduo pode resultar em um isolamento social. Basta lembrar a história de Che
Nyambi, o Mataka I, quando quis desposar Mbumba.
O estudo inclui ainda conhecimentos sobre doença e a morte. Os formandos
aprendem a lidar com um doente, mesmo que este esteja em agonia; aprendem a lidar com um
morto: que procedimentos e atitudes são necessários desde a primeira até a última hora.
Aprendem ainda, a importância dos ritos de iniciação de que estão participando e o que
significam. Inicialmente, na comunidade yaawo, quem deveria formar família seria aquela
pessoa que já passou pelos ritos de iniciação. Foi nesse sentido, provavelmente para que todos
passassem pelos ritos, que se desenvolveu um tabu, segundo o qual “quem não foi iniciado
não faz filhos”. Um iniciado não podia casar-se com quem não se iniciou e vice-versa. Porém,
hoje, pela confluência étnica, essa premissa tende a perder o seu rigor, explicaram os mestres.

28
Campo cultivado para a produção de produtos agrícolas de natureza variada.
88

Como acontece com qualquer aprendizado, pode se dar o caso em que certos
iniciados não observem os princípios que os levaram a permanecer isolados dos seus pais e do
seu meio habitual por boas noites e dias em busca de um saber que os conduzisse pelo resto
da vida. Caso assim aconteça, lembram os mestres que nos tempos registrados pela história a
tendência era levá-los e submetê-los novamente, com vista a repreendê-los pelas atitudes
incongruentes com o tipo de personalidade que deles se esperava. Aproveitava-se, geralmente,
a ocasião de outro turno de iniciados e, quando estes fossem visitar ou entregar comida (por
uma ação combinada), ficavam retidos para serem reeducados, por vezes, com medidas duras.
Hoje isso a sociedade não exige muito, dependendo da compreensão dessa necessidade pelos
pais e encarregados.
Ora, se uma das condições de ser acompanhante ou padrinho é necessariamente
passar pela iniciação, logicamente a quem não se iniciou não é permitido participar ou fazer
visita ao processo ou ainda levar qualquer coisa para alguém em iniciação. Em casos da
necessidade de fazê-lo, não se deve atravessar determinada fronteira estabelecida. Chegado a
um dado ponto de raio, que não lhe permite ver nem ouvir nada do centro da iniciação, deve
solicitar uma licença para alguém do interior vir em busca do mantimento. Caso se atreva a
introduzir-se, as consequências são desmedidas, começando pela prisão até à submissão
compulsiva.
É incrível a narrativa do missionário da Consolata padre Luís Wegher sobre as
consequências da invasão do espaço proibido dos ritos de iniciação, um testemunho de quem
viu com os próprios olhos um caso de quem sentiu na carne e osso. Leia-se:

Em Lichinga, num passeio ao pé da carcaça do avião [...] travei conversa com um


homem que me pedia para lhe dar pomada para a ferida. “Que ferida?” – perguntei,
enquanto olhava de um lado para o outro, quando fixei nele o olhar, ele respondeu:
“É esta, senhor Padre, a ferida que tenho”.
Qual não foi a minha admiração ao ver que ele tinha aberto as calças, para me
mostrar os órgãos genitais cobertos de ligadura. “O que é isto?” – perguntei.
E contou-me: “O Senhor Padre sabe que nós Anhanja não temos a circuncisão, como
a têm os Ayao e os Macua. Ontem passei perto de um recinto onde havia muitos
rapazes para a cerimónia de circuncisão. Eu queria ver o que acontecia lá dentro e,
através do capim, espreitava... quando furiosamente, vieram dois e levaram-me para
uma palhota que estava ali perto. Disseram-me com ares de zangados: “Você devia
morrer, pois fazer o que fez é proibido”. Pedi desculpa, dizendo que eu era Anhanja
e não tinha a circuncisão. Logo e à força tiraram-me as calças e com uma faca
cortaram-me o prepúcio: “Noutros tempos o castigo era a morte! Vai-te embora. No
hospital fazem o tratamento! Todo a sangrar vim embora”. (WEGHER, 1995, p.70;
grifos do autor).
89

Para as mulheres nem se pode falar que perigo isso representa. Por mais que seja
iniciada, não deve nunca chegar perto do lugar onde são iniciados os homens. Do mesmo
modo, a um homem é vedado se aproximar do local onde estão sendo iniciadas as mulheres
(retomarei isso na seção própria). O grande medo é de a mulher servir de objeto de estudo ou
sofrer estupro, isto “porque o homem tem ganância de uma mulher e uma mulher de um
homem”, explicaram os mestres em nossa conversa.
Para evitar isso, havendo a necessidade de uma mãe levar comida ao iniciado, pela
falta de alguém que o fizesse, ela não deve ir além do raio permitido e, quando ali chegar, dar
sinal através das palmas da mão e, logo de imediato, após o som do batuque que serve para
informar que foi ouvida, abandonar o lugar, deixando a encomenda solta, que será recolhida
pela equipa de apoio. Pela idade com que os neófitos vão ao ritual nesta comunidade, estes
podem não constituir perigo para essa ganância prazerosa, talvez os seus mestres e
acompanhantes representem maior risco. Porém, em comunidades vizinhas em que os aptos à
iniciação vão com uma idade duas vezes que a destes, podem, sim, constituir perigo não
menor, não obstante o perigo dos acompanhantes e mestres continuar. Ao se consumar este
ato, mostra-se contrário aos princípios pregados de “respeito a todos intervenientes da
sociedade”. E como a iniciação constitui uma escola e os atos aqui praticados servem de
aprendizado, receio que os iniciados assimilem esta tendência, passando a considerar como
um ato normal e o estupro, como cultura.
São vários os ensinamentos e códigos que os ritos de iniciação oferecem. No quadro
de usos e costumes, dada a predominância muçulmana, os iniciados aprendem que não devem
consumir carne de galinha degolada por mulher. Segundo a explicação, ao degolar a galinha,
deve-se proferir algumas palavras em oração que a mulher não as pode fazer, limitando-se
apenas em cortar a cabeça sem recitar o fatiha, o que torna a ave impura para o consumo. Pela
doutrina da religião muçulmana, a mulher é considerada impura pela sua condição natural,
não podendo, por isso, participar de atos sagrados. Diante desta questão, urge perguntar: se
ela não pode degolar a galinha para não a tornar impura, e vir a prepará-la, não a torna
igualmente impura? Discutindo esta questão com os participantes, chegaram a dizer que na
pior das hipóteses é preferível que a galinha seja degolada por uma criança (homem) que não
sabe recitar a oração, porque, neste caso, o pecado é menor que aquele da galinha degolada
por uma mulher. Nota-se aqui que o problema não é o de saber recitar a oração, mas, sim, o de
discriminação da mulher, pois ela infelizmente continua sendo excluída de vários processos,
como de dirigir uma oração, só para citar um exemplo.
90

No que tange ao domínio das relações de gênero, na iniciação, os neófitos são


explicado que dali em diante são adultos, que já estão preparados e, se um dia forem cruzar
com uma mulher, que não tenham receio de enfrentá-la. Dizem ainda: “ide e libertais o
sêmen”. São encorajados a não terem receio de ver a mulher na sua totalidade, pois isto
permitirá avaliá-la se está em boas condições ou não.
Explicam que, quando casados, se acharem na cabeceira da cama missangas
vermelhas, isso significará que a mulher está menstruada, pois ela serve-se delas para
informar tal fato. Dias depois, se encontrarem no mesmo local missangas brancas, significa
que delas a mulher se serviu para informar que terminou o período das regaras. Portanto,
durante o período das regras, não podem manter relações sexuais com as suas mulheres, uito
menos quando tiverem aborto. Em algum momento, as missangas vermelhas e brancas são
substituídas por lençóis das respectivas cores das missangas.
Portanto, lamentaram os mestres que, hoje, jovens confiando o avanço da medicina,
simplificam as normas de abstinência sexual em respeito do período das regras ou outra
situação em que a mulher é considerada não estar em condições para o ato sexual.
Antigamente, por exemplo, “depois do aborto ficava-se dois meses sem o ato sexual, mas
hoje, devido a essas mudanças, pelos menos deve se ficar entre 40 a 45 dias e depois do parto
normal ficava-se entre quatro a seis meses, mas hoje aconselhamos a suportarem pelo menos
dois meses”, diziam os mestres.
Antigamente uma mulher não podia provocar aborto. Caso isso acontecesse,
chamava-se toda a comunidade para repreendê-la em público, salvo o caso do aborto
involuntário. Em todos os casos a mulher não deve salgar comida antes de passar pelo
tratamento tradicional. Entretanto, hoje, de acordo com os mestres, “uma mulher nestas
condições de menstruação, aborto, parto, mesmo sem tratamento, salga comida e, por isso,
logo cedo, sem idade para tal, jovens perdem dentes, sofrem de dores de coluna e outros
problemas, provocados por situações que muito bem podiam ser evitadas”.
Ora, por tudo isso que aqui ficou explícito cujo saber só se adquire nos ritos, será
obrigatório passar por eles? Atualmente não. A participação nos ritos de iniciação depende da
livre e espontânea vontade do candidato ou dos seus pais e representa um momento de festa.
Só participam os que se sentem preparados para o efeito. Antigamente, porém, era quase
obrigatório passar pelos ritos de iniciação para todos os efeitos sociais. Hoje essa tendência
está desaparecendo pela convivência com outros grupos étnicos que não têm tais ritos como
característica cultural. Mas muitos acabam aderindo para não serem discriminados. O saber da
91

iniciação torna-se necessário, por exemplo, nos funerais. “Esta é uma realidade, temos que
admitir, a sociedade está misturada e os costumes também”, concluíram os professores da
escola tribal yaawo.
Desde que o iniciado passa pela prova, é lhe ensinado a não se sentar junto das
mulheres e obviamente é impedido de aprender as suas linguagens secretas. Por conseguinte,
não pode também lhes ensinar as linguagens dos homens. Passa, assim, o iniciado a conviver
com a sua classe, moços da sua idade ou até mais velhos, os quais o conduzem pelos
caminhos a seguir.
Para evitar criar terror e trauma nos meninos que ainda não foram circuncidados, aos
iniciados é negado revelar os segredos da iniciação, como, por exemplo, o corte do prepúcio.
Talvez seja por isso que às vezes tende a existir uma separação entre os dois grupos, dos
iniciados e dos não iniciados.
Uma das matérias da iniciação é o respeito e consideração. De fato, os novatos são
instruídos que os mais velhos são pessoas que pelo seu valor social merecem a nossa digna
consideração, a quem devemos dar o apoio necessário. Essa consideração não se limita apenas
ao meio familiar, ela é extensível a toda sociedade e a todos os grupos, sem distinção alguma
(velho, jovem ou criança). Ela parte de casa ao se respeitar os pais. Para isso, são ensinados
que não devem de maneira alguma entrar no quarto dos seus pais. A medida visa evitar
encontrar os pais em estados de vergonha. Havendo necessidade por razões inadiáveis, deve
se pedir licença vezes quantas necessárias e só entrar assim que for permitido, caso esteja
alguém.
Os iniciados se lembraram de que foi nos ritos onde ficaram sabendo que, após o
regresso à casa, não deviam dormir no mesmo quarto com suas irmãs. De princípio não
deviam dormir na mesma casa com os seus pais, tendo, para isso, de construir as sua palhotas,
onde poderiam receber livremente as suas visitas e amigos. Este é o princípio do cultivo nos
novatos do espírito de autonomia e liberdade, sinônimo da dissociação dos pais aos poucos e
uma clara indicação da maturidade, pois que em breve partirão para se juntarem à outra
família em casamento.
Em matéria de ser e estar, eles são educados no sentido de serem os últimos a
abandonar a mesa para poderem recolher os utensílios usados. Abandonar antes dos pais é o
mesmo que responsabilizá-los pelo desfazimento da mesa, o que contrasta vivamente com as
regras de respeito aos mais velhos, conforme aprendido nos ritos. São educados também no
sentido de não se rirem em plena mesa de refeições, porque os mais velhos sentir-se-ão mal,
92

julgando que se ri deles pela sua forma de comer devido à idade. Mas isto pode ter outra
importância para além da explicação aqui dada, como evitar o engasgue. Nessa ordem de
ideias, o iniciado, para gozar de uma boa reputação social, deve ser trabalhador. Para isso,
deve começar na casa dos seus pais, ajudando nos trabalhos domésticos, cultivando os campos
etc.
Os ritos de iniciação estão praticamente cobertos de valores superiores da educação.
Este ponto de vista permite afirmar que certas proibições são para evitar acidentes ou porque
ferem a moralidade. A prova disso é a proibição aos iniciados de arremessar pedras ou outros
objetos por simples prazer. Parece não fazer sentido, mas a medida visa evitar acidentes daí
resultantes, não só entre os noviços, mas também com os demais membros que
involuntariamente podem ser atingidos pelos arremessos. Pressuponho que a medida nasceu a
partir de uma observação de fatos do gênero. Os iniciados são proibidos também de espreitar
pessoas, sobretudo mulheres, tomando banho em lugares abertos, como num rio, e de subir
em árvores nas proximidades deste lugar com a mesma finalidade. Esta medida visa preservar
a moral e eliminar tendências curiosas que correm nos adolescentes e jovens.
Da voz dos próprios iniciados soube que, para além de abster-se do ato sexual
durante o período das regras da mulher, também são proibidos de fazer sexo com crianças.
São aconselhados também a não violentarem a mulher e a não abandonar ou devolver à casa
dos pais enquanto estiver doente, visto que a tomou como esposa num bom estado de saúde.
Se for o caso, que a devolva como a encontrou, ou seja, bem. Esta medida tem uma
importância bastante significativa: evita que, por uma incapacidade qualquer movida por
estado de saúde, o homem encontre saída abandonando a esposa. Mesmo que a tendência
fosse anterior ao estado de saúde, ele não pode abandoná-la durante este momento, enquanto
ela não voltar ao bom estado. Nesse momento da pesquisa, percebi a condição de submissão
vivida pelas mulheres nesta comunidade (e que não difere muito de outras realidades), mesmo
que o propósito educativo dos ritos de iniciação seja o de incutir nos iniciados a obrigação de
respeitá-las.
Geralmente é-lhes criado um ambiente de meninos bem-educados e obedientes.
Recusar um pedido para fazer algo é quebrar as normas. E mais: quando se for a cumprir um
pedido e ao longo do percurso tropeçar, não se pode de maneira alguma atribuir a culpa à
pessoa que lhe pediu, mas encarar como um simples acidente que apareceu no lugar do pior.
Um princípio criado basicamente para evitar desobediências e permite encarar as
circunstâncias com certa naturalidade.
93

Para garantir que os iniciados não divulguem os segredos da iniciação, foi criado um
credo de que basta pronunciar uma só palavra relacionada com o aprendizado dos ritos fora do
círculo dos iniciados, que no mesmo dia um dos seus pais morrerá. Faz-se crer que é por isso
que tudo se tratou no isolamento, para evitar esse mistério.
Geralmente, pelo que ficou aqui dito, os ritos ensinam sobre o valor do amor consigo
mesmo e com a sociedade em geral; sobre a sexualidade, principalmente sobre as regras de
relações de gênero, como símbolo do amor conjugal e guardião da reprodução; sobre o
respeito generalizado; sobre a responsabilidade social na família e na comunidade; sobre a
preparação para saber lidar-se naturalmente com as circunstâncias da vida humana, como as
doenças e o fenômeno da morte, a ter coragem diante das situações que ponham em causa a
integridade familiar e comunitária.
Os ritos de iniciação também formam um ser social, aquele que sabe preservar as
amizades, pois precisa compreender logo cedo que ninguém poderá viver numa sociedade
isolando-se dos outros; que é no convívio com os outros que aprendemos a encarar os
fenômenos da vida e partilhamos experiências sociais; que é no coletivo que reside a forja
propulsora da solidariedade. Quem não vive com a comunidade não faz parte do mundo social
e torna-se apático. O iniciado aprende ainda a história da sua comunidade, no sentido de saber
qual é a origem da sua tribo, quem são as referências entre os seus antepassados, quais são as
práticas e os traços culturais que eles deixaram como legado para estas gerações presentes e o
que estas devem fazer para que tais práticas e traços cheguem às gerações vindouras nas
mesmas condições em que receberam. Eles também recebem informações de que esses
antepassados apesar de não existirem, estarem mortos, vivem entre eles na condição de
espíritos e são intermediários entre estas gerações presentes e o Supremo Criador. Por isso, ao
fazerem preces e evocarem o seu nome, obtêm resposta pela satisfação das suas súplicas.
Não obstante o seu valor, é notável uma tendência de discriminação entre os
iniciados e os não iniciados, na medida em que os não iniciados não podem cuidar de um
morto, não podem abrir um túmulo (embora hoje isso seja teórico em função da
interculturalidade), não podem banhar no mesmo local onde estão banhando os iniciados. Nas
circunstâncias em que estiverem partilhando a mesma água corrente, o incircunciso não deve
estar posicionado no curso superior, para evitar que a sua impureza atinja os iniciados, os
literalmente puros; não pode casar-se na mesquita, entre outras restrições. Com todas estas
proibições, só há uma saída para evitá-las: iniciar-se. Talvez seja esse o objetivo delas.
94

Após estar completa a instrução, que obviamente cobre o maior intervalo de tempo
da temporada, e depois dos mestres se certificarem que nada resta por ensinar, autorizam o
encerramento da fase de aprendizagem, para dar lugar aos ritos de encerramento da iniciação.

3.1.3. Ritos Pós-liminares

Esta é a fase que se dá tudo por encerrado. Porém, antes disso, observam-se alguns
rituais que servem para marcar esse momento de transição: do campo de volta à aldeia.
Gennep em o conhecido Os ritos de passagem (2013) faz uma alusão da concepção dos
wayaawo sobre os ritos de agregação, em que os pós-liminares se inscrevem. Continuamente
Gennep explica que os ritos de agregação entre os wayaawo têm por finalidade “introduzir a
criança no mundo”. (2013, p. 63). Depois de simbolicamente morto e ressuscitado, o neófito
será reintroduzido no mundo da sua comunidade com outra encarnação. Os ritos pós-liminares
são os que se encarregam disso.
Assim que confirmado que tudo está conforme, que todos os procedimentos da
instrução estão acautelados e todos os iniciados devidamente cicatrizados, procede-se o
encerramento da temporada. Mas antes se observam as cerimônias finais, que, começando no
lugar de processamento, vão terminar na comunidade em atos solenes.
Depois de longos dias de reclusão, finalmente, é chegado o momento de se despedir
do local que foi abrigo durante pelo menos um mês e que, apesar de toda a vida dura ali
levada, poderá deixar saudades. Então, confere-se todo o material usado durante o processo e
aqueles que por sua natureza podem ser reaproveitados são selecionados e separados para
serem levados de volta à casa. O resto, incluindo as vestes dos iniciados durante o processo
ritual, é queimado junto com a cabana sagrada onde decorreu o processo.
A respeito da queima da cabana, João Baptista Amide (1998) diz que acontece com
os neófitos lá dentro, onde permanecem com o nakanga (ancião considerado pai). Enquanto
eles permanecem lá dentro, os padrinhos do lado de fora deitam lume sobre a cabana,
entoando canções cujo conteúdo é uma informação que alerta que a cabana está pegando fogo.
Em seguida, o nakanga sai primeiro e fica ao lado da porta controlando a saída dos seus
afilhados do primeiro ao último, que saem à velocidade da bala. Metros depois encontram
uma barreira de fogo, a qual cada jovem deve saltar com toda coragem.
Cumprido este procedimento, os iniciados são cobertos por um pano da cabeça até os
pés para que não sejam identificados, porque ainda não está no tempo. Ao ritmo dos sons dos
95

batuques e canções de alegria, os noviços são conduzidos à comunidade aldeã. Sabe-se


também que nesse trajeto de volta à casa, os iniciados têm uma passagem obrigatória pela
casa do régulo, aquele que autorizou e convocou a temporada e que, acima de tudo isso, ungiu
de graça cada um deles para que o mal não lhes acontecesse. Esta aparição à casa do régulo
não é só para uma simples apresentação, mas também para agradecer, o informando que,
como ele desejara, nenhum mal aconteceu. Este é o momento em que os pais dos iniciados
agradecem ao régulo com algum presente de gênero alimentício ou víveres, bens preciosos ou
valores monetários. Isso se dá por duas razões: a primeira, por permitir que a iniciação tivesse
lugar e a segunda, pelo sucesso do processo, como se ele representasse Deus na terra.
Antecede ao dia de saída da iniciação, uma manifestação acompanhada de dança
bastante animada, cujos fazedores com veste fantasiada e mascarada, ao ritmo dos batuques,
circulam nas principais artérias da comunidade e até em vias públicas, num ambiente de total
agitação em que nem o sol, nem a chuva, nem a tempestade e nem o roncar das viaturas pode
parar este ambiente. Por vezes, durante essa agitação, os bailarinos transportam lixo, que
simboliza a mudança da casa do mato para a casa da comunidade, e o ambiente serve
igualmente para lançar um alerta a todos os residentes que no dia seguinte a comunidade
receberá mais um grupo de noviços que acaba de terminar a sua formação.
Depois da apresentação e cumprimentos de boas-vindas ao régulo, os noviços são
colocados todos dentro de uma casa onde haverá uma noite de dança, que por sinal é no
mesmo local onde se fez a despedida. Durante a noite, os familiares e amigos agrupam-se ao
pé desta casa e juntos, obedecendo aos critérios estabelecidos, um por cada vez solta a voz e
os iniciados respondem em coro com uma canção, com a qual fazem uma retrospectiva do
momento vivido no acampamento, narrando o sofrimento e a dura educação que tiveram
durante o processo todo.
Com o nascer do novo dia, os meninos são conduzidos ao rio para serem submetidos
ao banho, um banho que, segundo a fonte, é invulgar. Informaram os mestres das cerimônias
que, restando três dias para o fim, é autorizado o pré-banho e que no dia de saída, após o
banho completo, eles vestem roupas novas e seguem para casa. Lembraram que durante todo
o processo ritual (30 dias ou mais) o iniciado deve permanecer sem tomar banho.
O novo banho significa uma ressurreição, o renascimento de um novo ser. A queima
da roupa usada durante os ritos e da cabana significa a separação do mundo anterior. Tudo o
que o iniciado era antes da sua submissão aos ritos está destruído. Agora ele, obviamente,
representa uma nova encarnação, razão pela qual na maior parte das vezes muda de nome para
96

assinalar essa renascença. No caso dos muçulmanos, os iniciados recebem água na cabeça
para completar a aceitação do ingresso a esta religião, começada com a submissão aos ritos.
Lembro o que já foi dito neste texto, que a circuncisão é uma das condições para o ingresso ao
islão.
Quando se volta do rio à aldeia, reacende-se a balada, caracterizada pelos
movimentos de ida e volta de gente animada e agitada. Muitos dos participantes desse
movimento pintam-se, mascaram-se, tatuam-se, enfim, expressam a sua maior satisfação e a
agitação atinge a povoação toda para assinalar o momento mais sublime da cultura. Depois
seguem em ambiente de festa às suas casas onde estarão familiares e amigos para recebê-los e
juntos desfrutarem de um banquete preparado para esse fim.
Para essa ocasião, ao iniciado é preparada uma nova roupa e não raras vezes de gala,
com todos os caprichos dos padrões modernos, e, caso seja muçulmano, com a simbologia na
cabeça, por ocasião da sua admissão a este núcleo religioso (vide foto 1). Nesse dia o iniciado
é a pessoa mais importante da comunidade, sendo-lhe prestada a devida honra.
Importante ressaltar que, na aldeia, de acordo com Amide (1998), aos iniciados
sentados numa varanda sobre uma esteira são dados de comer e igualmente recebem presentes
de familiares e conhecidos, que pode ser em dinheiro ou em artigos. Essa é a forma de
manifestar os parabéns ao iniciado por ter ingressado no mundo dos socialmente adultos.
Observados todos os procedimentos e uma vez acomodados os iniciados, segue-se a
uma sessão de comensalidades e beberagens. Este habitual rito de comer e beber juntos
traduz-se numa pequena espécie (senão grande) de “sacramento de comunhão” em que todos
(familiares e amigos) devem participar para assinalar a efeméride. Esta festa que assinala o
fim dos ritos de iniciação tornou-se, assim, um dos pontos mais altos de manifestação da
cultura e convívio social entre as famílias yaawo. As cerimônias assumem um caráter
extraordinário e, daquilo que se pode ler no semblante dos seus fazedores, satisfaz plenamente
a mente e a alma, sendo assumida como algo que pertence e identifica este povo.
A festa organizada com pompas e circunstâncias exalta os progenitores pela dádiva
de serem pais de um filho já adulto (pelo saber e não pela idade), que é apresentado à
comunidade como um novo integrante social e que cumpre com todos os requisitos exigidos
pelos costumes. Acredita-se que esta é uma das razões pelas quais os pais levam os seus filhos
mais cedo aos ritos de iniciação, com a ganância de assinalar este momento. Isso chega, às
vezes, a ser uma competição de nível de organização de festa entre as famílias. A família que
melhor organizar a sua festa, com uma grande variedade de comeres e beberes e uma boa dose
97

de ritmo musical sabe que a ocasião ficará registrada por muito tempo na memória dos seus
participantes. Os mestres de cerimônia, os padrinhos, os líderes comunitários e outras figuras
importantes quando convidadas se sentam à mesa de honra durante o banquete. Os gastos são
enormes se se considerar o poder econômico da comunidade e pode se perguntar se isso não
conduz à bancarrota e consequente início de um período sombrio no seio da família. É assim
que a festa dos ritos ganhou uma forma extraordinária ao ponto de movimentar membros da
mesma família que mesmo morando em lugares distantes da sua comunidade a distância os
possa impedir de levar os seus filhos para juntá-los aos outros em iniciação ou simplesmente
para participar desta festa por ocasião da iniciação de um parente. Cumprido este ritual, dá-se
por completo a formação do candidato que agora passa a integrar a vida ativa da comunidade.

Foto 1 – Iniciado acompanhado de padrinho e familiares

Fonte: FONTES, 201329.

29
Obtive do autor a autorização de uso das imagens utilizadas na sua monografia defendida na Universidade
Pedagógica em 2013.
98

3.2. RITOS DE INICIAÇÃO FEMININA

As mulheres não ficam alheias diante do processo de iniciação, elas também


preparam e executam a iniciação feminina. Enquanto o processo de iniciação dos meninos
acontece à noite e num lugar isolado da comunidade, o das meninas acontece durante o dia
numa casa indicada para o processo dentro da aldeia, onde se encontram todas as candidatas
para a iniciação. A princípio, esta casa tem sido do primeiro pai a propor ou a manifestar
vontade de submeter a filha ou filhas aos ritos de iniciação.
O Nsondo (iniciação feminina ayaawo) não se diferencia do djando (iniciação
masculina) somente na constituição dos seus agentes; difere também em outros aspectos,
como o lugar de processamento, conteúdo (embora haja alguma convergência), pessoas
fazedoras, período de duração, rigor e ambiente.
Até a data da iniciação, a única responsável pela educação da menina é a mãe
(embora o papel do pai não seja desprezível), com a qual tem total afinidade e busca
inspiração para seus atos. É a mãe que a ensina a ser na e com a comunidade e a leva à
descoberta do seu mundo, o mundo da mulher. A menina está junto da mãe todo dia a
auxiliando no que for necessário nas tarefas de casa.
Para colher informações sobre este processo, constitui um grupo que se reuniu com
as iniciadas nas escolas selecionadas da Cidade de Lichinga e obteve igualmente os pontos de
vista e explicações das mestras do processo de iniciação cujas informações constituíram a
espinha dorsal da presente análise.
A idade das iniciadas que fizeram parte dos grupos de discussão criados para a
pesquisa em três escolas da cidade variou de seis a 12 anos, conforme resume a tabela quatro.
As iniciadas são predominantemente da religião islâmica, são de famílias dependentes
grandemente da agricultura e seus derivados e, em segundo lugar, do comércio de pequena
escala. Quanto ao grupo das mestras, foi constituído por uma anciã dotada de profundo
conhecimento da matéria dos ritos, fruto de uma longa experiência na área, e por outras duas
mestras em fase de aprendizagem que, embora um pouco novas, são de reconhecido talento e,
segundo soube, exercem a função ao lado da mestra principal, substituindo-a em casos de
ausências.
99

Tabela 4 – Distribuição de idades das iniciadas


Instituição
Idade ESG- EPC a Luta CPC Bairro Total %
(Anos) Muchenga Continua Popular geral
6 __ 1 __ 1 3,57
8 2 2 __ 4 14,28
9 3 1 __ 4 14,28
10 3 3 2 8 28,57
11 1 __ 6 7 25
12 __ 1 3 4 14,28
Subtotal 9 8 11 28 100
Fonte: Autor, 2017.

A tabela mostra, segundo informaram as iniciadas, a idade com que elas foram aos
ritos de iniciação. A mais nova foi com seis anos e a mais velha com 12 anos de idade, sendo
que a maioria se iniciou aos seus 10 anos. É clara a indicação de que estas são levadas ainda
mais cedo e exatamente na idade com que devem ir para a educação escolar. Nos parágrafos
subsequentes, descrevo o processamento dos ritos de iniciação feminina.

3.2.1. Ritos Preliminares

Após a mobilização dos pais com filhas em idade útil para a iniciação de acordo com
os costumes da comunidade, segue-se de imediato a comunicação às autoridades comunitárias
de quem se obtém a autorização do processo, tal como acontece com o procedimento da
iniciação masculina descrita anteriormente. De acordo com Wegher (1999, p.17), “Quando a
menina tem 8 a 9 anos é levada pelos pais para a casa da mulher do chefe da aldeia ou régulo.
Ali é escolhida uma madrinha, que leva a candidata para uma casa isolada e fechada, onde se
encontram outras meninas, mais ou menos da mesma idade. [...]”. O autor explica que neste
lugar só podem entrar mulheres idosas e as que já passaram pelos ritos de iniciação. O papel
da madrinha é servir de elo entre a iniciada e a família, dando o apoio necessário,
principalmente moral, de modo que a sua afilhada se porte conforme as normas durante o
processo. Também ajudam a dar ensinamentos e conselhos juntamente com a mestra-mãe.
(AMIDE, 1998). Em semelhança do que acontece na noite que antecede os ritos de iniciação
masculina, também para assinalar a separação dos pais e familiares, no primeiro dia há danças
movidas pela alegria, pelo fato de chegar a vez em que a sociedade, através de pessoas
100

indicadas, encarrega-se de proporcionar às candidatas variados conhecimentos de vida que


lhes condicionarão um lugar social entre os membros da comunidade.
Durante a cerimônia é proibida a frequência de pessoas não autorizadas no recinto.
Então, durante este período, onde ficam o pai, irmãos mais velhos e mais novos da iniciada da
casa onde ocorrem os ritos de iniciação? As crianças menores são deixadas nas casas dos
parentes ou vizinhos chegados, onde recebem os devidos cuidados. Os irmãos mais velhos já
iniciados e o pai da iniciada, durante o dia, período em que decorre o ritual feminino, podem
passar o tempo no local onde estão sendo iniciados os mais novos (caso haja) ou fazendo os
seus deveres longe do alcance deste lugar. A estes são servidas as refeições nas casas dos
parentes ou vizinhos mais próximos. Durante as noites podem retornar à sua casa, de onde se
retirarão logo nas primeiras horas do dia seguinte, para evitar o contato com as iniciadas. Este
lugar é devidamente preparado pela anciã detentora dos poderes mágicos de forma a proteger
as iniciadas de quaisquer forças maliciosas. Em casos de se registrar invasão de uma pessoa
não autorizada na casa interdita (sobretudo homem), uma vez abordada, é levada à casa do
régulo para ser submetido ao interrogatório de modo a se apurarem as reais motivações do
procedido. Em casos de inocência, a assembleia absolve e em casos contrários, são tomadas
medidas de acordo com a gravidade da ilicitude. Mas isto se torna difícil de acontecer, porque
toda a comunidade fica informada, sabe que procedimentos devem ser observados em relação
ao lugar de iniciação e que consequências advêm da sua violação. Além disso, é hábito
sinalizar as casa com bandeirolas e caricaturas que se põem a flutuar num lugar bem alto e
visível, indicando haverem filhos e filhas em iniciação.

3.2.2 Ritos Liminares

Um pouco mais cedo do que outras comunidades circunvizinhas, como algumas tribos
dos amakhuwa, que para levar as suas filhas aos ritos de iniciação esperam a chegada da
menarca, os ayaawo levam logo em tenra idade para irem se acostumando com os
ensinamentos, pois a iniciação feminina decorre em diferentes fases de desenvolvimento
fisiológico. A criança, a quem desde o seu primeiro dia de vida coube à sua mãe a
responsabilidade de imbuir nela o sentido da vida, através do carinho, repreensão,
sensibilização etc., agora são confiadas as mestras e madrinhas para completarem a sua
formação humana com valores superiores da comunidade através dos ritos cujos principais
meios de transmissão são: a canção, a dança, provérbios e parábolas.
101

As matérias tratadas têm sido genéricas e envolvem as questões relacionadas com o


ser e estar na comunidade, a sexualidade – no sentido da iniciada conhecer melhor o seu
corpo, como se comportar na comunidade enquanto mulher, qual é o seu papel e lugar, o que
lhe é ou não permitido fazer na sociedade, como se manifestar diante das circunstâncias de
vida como doença e morte, o que lhe espera no futuro na sua qualidade de mulher, entre
outras matérias de importância social.
Estes ritos, de acordo com Gennep (2013), subdividem-se em quatro fases30 ou etapas:
1) Chiputu – que começa entre sete e nove anos e vai até a primeira menstruação. Caracteriza-
se pelo período de reclusão, instrução sexual, deformação sistemática dos pequenos lábios (no
pretérito), danças eróticas, entre outros; 2) Matengusi. Nesta fase promove-se a festa pela
ocasião da primeira menstruação. Se entre o chiputo e o matengusi a menina se casar, após as
primeiras regras ela é posta em reclusão, são-lhe ensinados os tabus relativos ao período das
regras; 3) Chitumbo: acontece depois da primeira gravidez. Ao sexto mês a futura mãe é posta
em reclusão e recebe instruções sobre os assuntos da maternidade e outros tabus das mulheres
grávidas; 4) Wamwana. Congrega os ritos de parto e ritos de primogenitura. Estes envolvem
os ritos de restituição do direito das relações sexuais entre os casais. Antigamente, a
restituição do direito sexual acontecia após seis ou sete meses, quando a criança pudesse
sentar. Mas hoje, pode se esperar até pelo menos dois meses, como ficou anteriormente. Os
ritos de primogenitura são muito comemorados entre os povos, pois que estes representam o
fim dos ritos de crescimento e de casamento. Os melhores presentes são os que se destinam
aos primogênitos, e como diz Gennep, dos primeiros frutos (primícias).
Notei que os ritos de iniciação feminina acontecem num processo contínuo. Na
primeira fase, dada a idade, a iniciada é apenas ensinada os aspectos básicos ligados ao seu
corpo e sua relação com a sociedade e, sobre a vida adulta, ela aprende na devida idade.
Muitas das matérias e códigos coincidem com os dos rapazes, para que de verdade, entre os
iniciados haja unidade de linguagem. Por conseguinte, em alguns aspectos não irei tomar
muito tempo.
Durante os aconselhamentos, a iniciada deve permanecer cabisbaixa, demonstrando
assimilar tudo o que lhe é dito. Ela não pode falar durante esse momento, devendo limitar-se

30
Sobre as etapas dos ritos de iniciação feminina, Wegher (1995) refere que se subdividem-se em três partes,
nomeadamente: Manawa, Nsondo e Litiwo. Não caracteriza cada uma das fases e usa Nsondo, que é o nome de
todo o processo de iniciação feminina, como nome de uma das fases. Mas ao que nos explica em seu segundo
volume (1999), ao relacionar estas passagens com o tipo de dança dos ritos, pode se entender que o Manawa
corresponde ao Chiputo, Nsondo ao Matengusi e o Litiwo ao Chitumbo. Por falta dessa clareza preferi a
classificação de Gennep, feita com base em Weule (1908), que apesar de antiga, é clara.
102

em bater as palmas com todo respeito, como sinal de que está acompanhando tudo e concorda
incorporar as novas atitudes na sua forma de ser e estar.
Neste período, ao se separar do seu meio habitual, ela fica proibida de fazer qualquer
trabalho doméstico como ajudante da mãe ou de seus deveres do dia a dia; ela só tem acesso à
comida já pronta e trazida ao local onde se encontra pelos familiares e responsáveis.
Praticamente, nos ritos de iniciação, a menina deve aprender o respeito que deve
prestar primeiro aos seus progenitores, em segundo, aos parentes e, em terceiro, a todos os
intervenientes da sociedade, sem discriminação de sexo, idade (velho, jovem ou criança) ou
posição social. A menina deve aprender a não proferir palavras injuriosas e nem provocar
pessoas e a ser, sobretudo, honesta e obediente, não podendo deixar que a sua mãe, por
exemplo, cuide da louça diante do seu olhar indiferente. Ela é igualmente instruída sobre as
melhores formas de receber visitas e hóspedes para que os mesmos sintam-se honrados e
tenham vontade de voltar sempre. Uma das condições para a dignidade, entre outros aspectos,
está na higiene, fator primordial para criar um ambiente saudável. Sobre a higiene aprendem
que esta começa com a vida pessoal, tornando-se asseada aos olhos de todos, e tal como
disseram as iniciadas em suas palavras, é preciso “lavar as partes íntimas da mulher”. A
uma mulher iniciada é proibida subir na árvore, porque dado o seu lugar aberto 31, pode
coincidir enquanto o seu pai ou outra pessoa de respeito esteja tomando banho e constituir um
mau aspecto, pois que é extremamente proibido espreitar gente tomando banho. Outra razão é
para evitar, como é próprio dos adolescentes, que curiosos do sexo masculino procurem
alimentar os olhos na descoberta da pessoa do seu oposto. Ela não deve estar próximo de onde
conversam pessoas adultas e nem sacudir a sua roupa em frente do pai (caso sente-se sobre a
poeira).
A menina aprende na iniciação: a fazer trabalhos domésticos (preparar comida e
outros haveres); a não entrar no quarto dos pais de qualquer maneira e sempre que for ao
banheiro pedir licença vezes suficientes, de modo a evitar colisões; a não fazer o ajuste de
roupa ou amarrar capulana32 em frente do pai e de outras pessoas de respeito em geral.
Na segunda fase, conhecida também por período das regras, normalmente a menina
aprende os tabus próprios da fase. Aqui, a menina já é praticamente madura. Ela aprende a
cuidar do seu lar, do marido, enfim, ela sabe cuidar de tudo o que diz respeito à vida marital.

31
A boa parte dos banheiros nesta comunidade são externos e abertos, tornando assim, vulneráveis à visibilidade
a uma determinada altura. Por outro lado, estes podem acontecer em rios, mas em lugares pré-definidos para
cada um dos sexos.
32
Pano de cerca de um metro e meio amarrado à cintura como veste e símbolo da mulher. Atualmente tem
múltipla utilidade e inclusive os homens usam para costurar camisas ou para outras utilidades.
103

É nesta fase que ela toma conhecimento que é preciso informar ao marido quando estiver de
menstruação, evitando se deitar com ele durante este período. Além disso, neste período, ela
não deve salgar comida, deve providenciar a higiene pessoal, mudando com frequência
significativa os pensos e, por fim, deve ter o cuidado de não mostrar nem um pingo de ciclo
menstrual ao homem, para não lhe causar susto. As iniciadas afirmaram aprenderem nos ritos
que não devem se casar muito cedo, mas somente na idade certa (apesar de que a realidade é
outra).
Constatei haver um cruzamento com o aprendizado dos rapazes. As meninas são
instruídas que quando estiverem no ciclo menstrual devem colocar uma missanga vermelha na
cabeceira, de modo a chamar atenção ao marido e se este tiver passado pelos ritos saberá que
a esposa está de período. Quando tiver terminado, deve colocar no mesmo lugar uma
missanga branca que explica o fim do período das regras. Como foi explicado anteriormente,
as missangas podem ser substituídas pelos lençóis das respectivas cores das missangas.
Quando a menina atinge a primeira gravidez, ela é submetida a outros ensinamentos
sobre como se portar durante o período pré e pós-parto. Portanto, nesta comunidade (podendo
ser também de outras) a chegada de um filho completa a felicidade de uma mulher e esta se
sente dona de si mesma e segura no seu lar após o primeiro filho. Aqui os tabus são mais
relevantes, pois que o futuro da criança depende da conduta dos pais durante e depois da
gestação. A mulher é submetida a uma restrição alimentar e a falta de observação de tais
recomendações pode causar consequências drásticas à criança. A título de exemplo: a mulher
grávida não pode comer resto da carne do animal devorado por um leão, pois a criança
nascerá com manchas no corpo; durante a gravidez, a mulher não pode usar pimenta na sua
alimentação, caso contrário, a criança nascerá com vista avermelhada e defeituosa; não pode
comer carne de zebra e nem olhar para este animal, senão a criança nascerá listrada; não pode
olhar para um macaco, porque a criança nascerá com aparências deste animal quer em
aspectos físicos, quer em atitudes. Durante o período de gestação, a mulher não pode
remendar algum vestuário roto, pois isto pode causar um parto demorado e custoso; não deve
também beber água em pé, posto que este líquido pode cair violentamente sobre a cabeça do
bebê e causar-lhe a morte. (WEGHER, 1995). Estes são apenas alguns dos exemplos dos
tabus proibitivos para a mulher grávida e a falta de observância destes e de outros, pode
causar, para além do referido, outras eventuais doenças ao recém-nascido.
Mas também sabe-se que, durante este período, os cônjuges devem se portar como
deve ser, caso contrário, isso pode causar consequências imensuráveis. Em casos de se dar um
104

nado-morto33, para além de se atribuir a possibilidade da ação do feiticeiro, mas também pode
se atribuir a culpa aos pais que provavelmente não se portaram bem durante a gestação. Em
casos de situações extremas de morte da parturiente durante o trabalho do parto, a culpa é
atribuída ao marido com acusação de infidelidade. Não foi possível averiguar o quão
verdadeiro é isto, mas wegher (1995) testemunha que em tempos passados quando assim
acontecesse, o homem era obrigado a pagar entregando a sua irmã à família enlutada. Se não
tivesse uma irmã, era obrigado a comprar uma mulher e entregá-la. Adicionalmente, diz-se
que durante a gravidez o homem não pode cometer adultério, caso o faça, a mulher correrá o
risco do aborto repentino.
Depois do parto a mulher deve observar um intervalo de tempo suficiente
(antigamente de seis a sete meses) para retomar a atividade sexual. Caso este período não seja
observado e insistir em realizar o sexo no curto prazo, o homem corre o risco de contrair uma
doença chamada cinyela que pode levar-lhe às consequências graves e até à morte. Este tabu
foi criado para evitar que a mulher tivesse filhos antes do desmame da criança anterior. A este
processo de gravidez precoce, os ayaawo chamam de ndumbidwa. (WEGHER, 1995).
Curioso notar que, antigamente, (assim como hoje), conforme testemunharam as
iniciadas, foi desenvolvido um tabu no qual quem não passasse pelos ritos de iniciação não
podia fazer filhos e antigamente, nem podia casar-se e, inclusive era excluída de algumas
responsabilidades sociais. Conta-se que, no passado, uma criança nascida de uma mãe não
iniciada não tinha mesmo valor de outras crianças e esta era chamada de citumbili, termo
yaawo que significa macaquinho. Neste caso, uma criança já nasce condenada pelo pecado
cometido por sua mãe, pecado este que vai lhe acompanhar para o resto de sua vida. A única
forma de uma mulher evitar que os filhos nascidos de si fossem chamados de macaquinhos
seria passar pelos ritos, para evitar que fosse também chamada de inculta.
É por esta razão que, as iniciadas são explicadas a importância dos ritos de iniciação
e o que estes ritos representam em suas vidas. Elas ficam sabendo que eles são para a sua boa
educação e são um legado que vem dos antepassados e como tal, deve ser observado por todo
integrante da comunidade. Tal educação deve ser assimilada e aplicada no dia-a-dia. Os ritos
são a única porta para a busca de competências sociais, que investem no indivíduo poderes
para participar dos funerais, visitar e ser madrinha de uma iniciada - o que garante o destaque
social e faz da mulher, digna do nome. A desvantagem de não iniciar é perder todos estes
direitos aqui descritos que só são reservados às iniciadas.

33
Refere-se ao caso em que a mulher dá parto um filho sem vida.
105

Dito isto, vale a pena deixar claro que nos dias que correm a prática dos ritos de
iniciação feminina, esta não é uma obrigação no sentido rigoroso da palavra. Pelo contrário,
ela é de livre e espontânea vontade da família, de acordo com a sua trajetória tribal. É
verdade, contudo, que havia antigamente uma represália para as que não passassem pelos ritos
de iniciação, pois que podiam sofrer calúnias, afetando de certa forma a sua moral. Entretanto,
hoje em dia é possível observar o convívio entre ambos os grupos. Admite-se nos nossos dias
que uma mulher não iniciada case-se com um homem que já passou pelos ritos ou vice-versa.
Antigamente, todos tinham que passar pelos ritos - claro para falarem a mesma linguagem.
Ora, o código que a mulher usa para informar ao marido sobre os hóspedes da lua (regras) são
as missangas vermelhas e brancas. Este código só pode ser decifrado por quem já foi iniciado.
Esta necessidade e de outras práticas, como de chamar as pessoas não iniciadas de “adultas
crianças”, fazem dos ritos uma obrigação de forma implícita. Ora, aliado a isto, é engraçado
ouvir das iniciadas ao descreverem uma pessoa não iniciada, ao dizerem que “uma pessoa não
iniciada é vista como uma pessoa que não sabe nada, como uma criança, uma pessoa sem
conhecimentos”. Para depois acrescentarem: “uma pessoa não educada, adulto-criança e sem
respeito”.
Tal como acontece na iniciação masculina, em casos de comportamentos
inadequados por parte das iniciadas, estas são levadas novamente no último dia de outra
cerimônia, onde são reforçados os princípios de conduta sadia e corrigidas as atitudes não
salutares demonstradas e reclamadas pelos pais ou constituintes da comunidade. Geralmente,
o último dia é reservado para aconselhamentos finais e aproveita-se fazer uma recapitulação
das aprendizagens mais destacadas ao longo dos dias de reclusão.
Pelo que constatei, este processo é organizado de acordo com as idades. Conforme
explicaram as instrutoras que, quando o mesmo processo junta iniciadas de idades diferentes,
estas são separadas em dois grupos, sendo das mais jovens de um e das mais velhas do outro
lado para evitar que as mais velhas sintam-se incomodadas ao se tratar de alguns assuntos a
seu respeito em frente daquelas mais jovens ou partilhar a mesma informação com estas.
Deve-se lembrar que a iniciação feminina decorre em etapas e cada uma com as matérias em
função do estado fisiológico. A separação visa evitar que o assunto da segunda etapa, por
exemplo, não seja partilhado com uma criança dos seus oito anos, esta que acabará ficando
assustada, senão escandalizada. Como explicaram as mestras, às vezes algumas meninas têm
ido depois de casadas, merecendo um tratamento diferenciado das mais novas.
106

Em termos gerais, entre os códigos ministrados nos ritos de iniciação feminina,


pretendo fazer análise das seguintes proibições do período das regras:
1. Não fazer sexo com o marido, devendo dormir sozinha e em separado;
2. Não passar por cima do marido enquanto estiver deitado, porque isto pode lhe causar
um mal;
3. Não salgar comida durante este período, para evitar fatalidades;
4. Não é permitido colocar panela ao lume, devendo confiar outra pessoa para o ato;
Estes são apenas alguns dos tabus proibitivos da mulher no período das regras do
conjunto de uma longa lista. Como se pode depreender, alguns deles fazem todo o sentido
para a componente de higiene, outros, para garantir a coesão da relação ao promoverem a
fidelidade entre os cônjuges. Outros, simplesmente duvida-se a sua importância e as suas reais
implicâncias em casos de violação. Tal é o caso de não salgar comida, não colocar panela ao
lume, etc.. Não nego a possibilidade de ter sentido dentro da comunidade, isso seria falta de
reconhecimento e respeito aos princípios culturais de cada comunidade. Mas a meu ver, isso
reduz a mulher à condição de impura com a chegada do período das regras. O mesmo ocorreu
com a Lei hebraica de Moisés que condicionava a mulher à impura durante o fluxo menstrual.
A Lei citada considerava a mulher no estado de fluxo de sangue, imunda. Estaria, portanto,
sete dias na sua separação e, durante este período, qualquer que a tocasse, seria considerado
imundo até à tarde. Seria impuro também, tudo aquilo sobre o qual ela se deitasse, assentasse
ou tivesse contato. Portanto, seria igualmente impuro aquele que tocasse tudo o que ela
tivesse contato, devendo lavar as suas vestes e banhar em água. O homem que se deitasse com
ela durante este período permaneceria imundo por sete dias. Findo o fluxo de sangue, a
mulher ficaria mais sete dias e no oitavo dia, levaria presentes ao sacerdote para purificá-la.
(LEVÍTICO 15:19-30). Quer a Lei de Moisés, quer as normas dos ayaawo, ambas sacrificam
em grande medida a vida da mulher, que passa mais tempo observando as regras que lhe são
impostas do que pensando ou envolvendo-se em aspectos com os quais poderia contribuir
para o desenvolvimento da sua classe e da comunidade em geral.
Portanto, porque talvez seja difícil de cumpri-las, muitas das vezes as normas
estabelecidas entre os ayaawo são violadas e antigamente quando descoberta, a mulher era
punida com uma repressão pública e acusações de tendências de prejudicar e pôr em risco a
vida de pessoas e principalmente quando se tratava de aborto. Diz-se que o Mataka I, Che
Nyambi, o poderoso, morreu porque uma mulher impura (que acabava de fazer aborto) havia
lhe preparado comida e depois que a comeu, causou-lhe a morte. Este tipo de doença
107

provocada por mulher impura chama-se ndaka, um mito desenvolvido entre os ayaawo.
(WEGHER, 1995; AMIDE, 2008).
Em nosso tempo, avaliando pela confluência cultural, há uma convivência em mesmo
espaço entre iniciadas e não iniciadas. Entretanto, ficará ao critério de cada uma que melhor
saberá como se comportar com a pessoa que não passou pelos ritos de iniciação. Num tom de
desagradadas, as anciãs lamentaram que, nos tempos em que vivemos hoje, há muitas
informações que interferem com a educação dos ritos de iniciação. É o caso das mídias que
transportam culturas de outro mundo e corrompem as suas filhas. É por isso mesmo que as
iniciadas de hoje fazem muita diferença com as de ontem, em termos de preservação e
obediência aos ensinamentos. As iniciadas do antigamente acatavam e punham em prática
exemplarmente quase tudo o que as mestras diziam. Transformavam os códigos em seus
guias de conduta e comprometiam-se a todo custo a cumprir com as regras nas suas relações
conjugais, fator determinante para que fossem harmoniosas e durassem o tempo que
pudessem, senão para toda a vida. Hoje, são apenas algumas que seguem os ensinamentos e
não nos admira a inconsistência das relações conjugais ou incompatibilidade das relações
sociais, concluíram as anciãs.
Assim, sucede que se uma iniciada e uma não iniciada estiverem partilhando o mesmo
espaço de banho, a iniciada deve sempre proteger-se, pois que a não iniciada terá uma
curiosidade de ver as eventuais mudanças operadas na iniciada. Por essa razão, as iniciadas
são instruídas no sentido de conservarem e não divulgarem o segredo, não podendo revelar
nada a qualquer pessoa que for, por mais íntima que seja. Caso uma amiga ainda não iniciada
procure saber o que se faz concretamente na iniciação, a resposta deve ser: não se revela e se
quer saber, melhor submeter-se. Este mito criado de que não se revela o segredo dos ritos,
garante o sigilo do processo, permitindo que o mundo de fora não saiba o que acontece no
interior da iniciação e, assim, mantendo a sua importância. Por outro lado, se não se
mantivesse o segredo, pela natureza dos conteúdos, causaria susto em pessoas não iniciadas,
particularmente crianças.
Na voz das próprias iniciadas, dizem-se felizes por terem passado pelos ritos, pois isso
lhes proporcionou uma educação e conhecimentos que lhes fazem de adultas em relação
àquelas que não passaram. É olhando na sua importância que as novatas recomendam a sua
continuidade de modo a perpetuar os valores educativos e culturais de que se revestem, de
modo que a sociedade continue sempre observando as boas práticas. Doravante, as iniciadas
aconselharam às meninas não iniciadas a se submeterem à iniciação, por onde aprenderão a
108

respeitar, buscarão o conhecimento da vida, enfim, onde aprenderão como se comportar na


sociedade.
Portanto, conforme o objetivo inicial de descrever os ritos de iniciação, o que ficou
destacado nesta sessão são os procedimentos dos ritos de iniciação feminina, que consistem
na instrução sobre as principais matérias ligadas ao mundo da mulher de forma particular e
sobre a vida na comunidade e na sociedade em geral. Ficou vincado que este processo
acontece em etapas, respeitando as idades e os ciclos fisiológicos. Os ensinamentos
basicamente encetam-se nos aspectos sobre a corporalidade, a moralidade e demais aspectos
relacionados com a educação.

3.2.3. Ritos Pós-liminares

No final da iniciação feminina, as iniciadas são submetidas ao ritual final, que inclui:
danças e manifestações pelas principais artérias da comunidade; o banho que separa tudo o
que era anterior do novo ser; uma nova roupa para representar a solenidade do evento. A
iniciada veste-se de gala e adorna-se de joias, pois o momento é muito especial e assim
também o fazem as suas acompanhantes ritualísticas (Foto 2). Com passos muito lentos, a
madrinha, familiares, amigos e curiosos, conduzem a noviça com cantos e danças de alegria à
casa onde encontrarão outros esperando para recepcioná-la e onde se encontra preparada
comida e bebida para os convidados e visitantes.
Os presentes saúdam a iniciada com manifestações de alegria. Este é o momento
também de lhe presentear pela honra de se tornar mulher. Os pais são os mais felizes neste
processo, pois, é uma honra tornar-se pai de uma moça devidamente reconhecida como
adulta. O momento é igualmente propício para apresenta-la ao público em geral como mulher
pronta para ser esposa num futuro próximo. As expectativas são de que ela será boa dona de
casa, companheira fiel e mãe carinhosa.
109

Foto 2- Iniciada acompanhada de madrinha e familiares.

Fonte: FONTES, 2013.

3.3. DA IMPORTÂNCIA À PROBLEMÁTICA DA GLOBALIZAÇÃO

Não tomarei muito tempo discutindo o termo e contornos da globalização. Contudo,


em linhas gerais, a globalização pode ser definida como um fenômeno da intensificação das
relações sociais em escala mundial, difundindo assim facilmente os acontecimentos e
informações entre locais distantes. (GIDDENS, 1991). De acordo com o autor, a globalização
é uma das consequências fundamentais da modernidade, caracterizada pela difusão das
instituições ocidentais através do mundo, onde as outras culturas são esmagadas.
A tendência da globalização é tornar a população do mundo cada vez mais unida em
uma única sociedade. De acordo com Outhwait e Botomore (1996) a palavra globalização
entrou no vocabulário corrente nos anos 80 do século passado e as mudanças a que ela se
refere têm grande cunho político. A globalização enquadra igualmente os debates dos temas
110

sobre a “sociedade pós-industrial e do desenvolvimento e subdesenvolvimento”. A sua


utilização firmou-se em diferentes campos como o da economia, geografia, marketing, e
sociologia, tornando assim, uma questão de moda. Portanto, o universalismo no pensamento
social, o internacionalismo no pensamento político, o comércio mundial no pensamento
econômico, são conceitos preliminares, onde o mundial é substituído pelo global.
Posta a possibilidade de comunicação global, a recepção instantânea de imagens e
vozes distantes muda o conteúdo da cultura, pois que à medida que a globalização através dos
sistemas modernos cria interconexões, desafiando, deste modo, os limites espaciais e
temporais, introduz novos elementos culturais e ao mesmo tempo, provoca o desuso de
outros.
Essa difusão em curto período de tempo de novos contornos culturais impacta
diretamente no status social. Portanto, esta influência da globalização na cultura pode ser
negativa (quando concorre para desfalecer uma determinada prática costumeira) e positiva,
(quando essa influência permite interculturalidade34).
A confluência cultural no mundo, fruto do fluxo contínuo da globalização, pode
alterar o quadro geral das práticas seculares dos povos, das quais destaco os ritos de iniciação,
cujo procedimento tende a conhecer um desvio, frente à sua importância declarada pela
comunidade. De acordo com Gennep (2013, p. 150) “os ritos de iniciação, conforme o termo
indica, são também os mais importes porque asseguram a presença ou a participação
definitiva nas cerimônias das fraternidades e dos mistérios”. Após o indivíduo passar pelos
ritos de iniciação, ele estará revestido de poderes para participar em outros rituais de
cerimônias diferentes. Pode por exemplo, participar de cerimônias de iniciação, dos funerais,
enfim, tomar parte decisiva da vida comunitária. Tratando-se de mulheres, só pode participar
nas cerimônias dos ritos de iniciação aquela que já foi submetida à iniciação, pode participar
do ato do parto, quem já é mãe, e assim por diante.
No tocante à iniciação yaawo, esta reveste-se de dupla face de ritos positivos e
negativos. Positivos porque certas máximas dos ritos de iniciação yaawo são tão rica fonte da
moral social para uma conduta sadia dos seus integrantes e, negativos, porque se revestem de
uma lista considerável de tabus proibitivos em nome do bem dos próprios indivíduos na sua
singularidade ou coletividade, alguns dos quais retardam o progresso e emancipação social.

34
A interculturalidade é um processo pelo qual duas ou mais culturas entram em interação de uma forma
horizontal e equilibrada. Para isso, nenhuma das culturas deve se colocar acima de qualquer outra, devendo,
assim, a integração e a convivência das pessoas ser em pé de igualdade.
111

O contato entre povos de proveniência diversa - implicando o surgimento dos novos


ciclos econômicos, a multiplicação de novas unidades religiosas, a alteração da ordem política
vigente, a invasão de tecnologias modernas, entre outros elementos, contribuem para a
alteração sistemática da ordem social e cultural dos povos, situação da qual os Ayaawo não
foram exceção. Nessa ordem das coisas, novos contornos e desdobramentos são introduzidos
para sobrevivência da sociedade frente aos novos desafios. Nesse âmbito, novos valores
devem ser criados; novas ações devem ser readaptadas às novas realidades; novos padrões de
vida nascem; novas realidades são acopladas, etc. Evidências disso, explicam-se a partir da
adesão dos ayaawo ao comércio internacional, primeiro com os árabes e depois com os
portugueses, como já ficou referenciado neste texto. No contato com os árabes tiveram como
consequência direta a islamização deste povo, que a partir de então os cultos aos deuses não
seriam apenas atos praticados em árvores sagradas como nsolo, mas como também passou a
ser evocado um Deus criador e onipotente, em lugares institucionalizados como as mesquitas.
Os ritos de iniciação que embora viessem sendo praticados foram contornados ao padrão
árabe, em função dessa islamização, pois que o islão adota a iniciação como uma
obrigatoriedade em semelhança do seu profeta Maomé que havia sido circuncidado.
Uma das consequências diretas desse contato intercultural é a alteração gradual do
quadro de prática dos ritos de iniciação. A cada momento, os ventos que transportam os
elementos culturais propagam-se com muita facilidade em todos os quadrantes do mundo,
quase na mesma unidade de tempo, valendo-se da importância dos meios da globalização.
Sendo assim, em consequência disso, em cada uma das décadas, o ritmo da ritualização tende
a ganhar novos contornos, incorporando ou suprimindo algumas verdades que outrora
dominara o ciclo social. É assim que Amide (2008, p. 75) testemunha que

Pessoalmente gosto de apreciar e valorizar o esforço que se fez e continua a ser feito
na purificação destes elementos dos Ritos, uma vez que, por experiência obtida nos
anos da década 80 e 90 e até mesmo no século XXI, noto uma grande diferença em
muitos aspectos dos ritos tendo em conta aquilo que se fazia nos séculos remotos e
que foi matéria dos livros de que hoje temos acesso.

O que o autor acaba de dizer é relativo à algumas práticas dos ritos de iniciação,
como o corte de clitóris que, como descreveu Wegher, era um ato muito doloroso e que, com
o passar do tempo, foi se esmorecendo. E acredita-se ainda que, pela frente, o tempo será o
grande responsável em alterar certas tendências dos ritos de iniciação que hoje é prática
comum e objeto de crítica. Entretanto, não há dúvida que estes hábitos continuarão patentes
na agenda das comunidades em causa, como o garante real das virtudes e sabedoria e, ao
112

mesmo tempo, como uma herança das gerações anteriores, cuja continuidade é assegurada
pela importância do arquivo oral. Essa continuidade será, sem dúvida, pelo seu caráter de
atribuir valor à existência da vida, o seu rico valor da educação (respeito a todos integrantes
da sociedade), o seu valor da paz (tolerância e amor ao próximo), entre outros.
Como havia observado Giddens (1991) que as fichas simbólicas35 juntamente com
outros sistemas criam o desencaixe dos sistemas sociais, pois removem as relações das
imediações do contexto, evidentemente estas (as fichas simbólicas) corrompem a prática dos
ritos de iniciação yaawo. Em conversa com um membro da AMETRAMO, este explicou que,
nos dias atuais e por vezes consideráveis, são alguns mestres em coordenação com os líderes
comunitários que convocam, ou antes, fazem o chamamento para os ritos de iniciação com a
finalidade de colherem dividendos que lhes são devidos com a realização destes ritos. É
notório que, a influência capitalista tornou material o processo ritual, passando a tomar um
caráter mercadológico e monetarizado. Por isso os mestres, por iniciativa própria ou à mando
do líder comunitário, sensibilizam alguns membros da sua comunidade para tomarem
iniciativa da iniciação ou eles mesmos se encarregam em convocar. E, dizia ainda que, eles (a
AMETRAMO), sendo do conhecimento da mais alta estrutura comunitária, não têm nada de
contrário, senão passar-lhes a credencial para a execução da temporada. É assim que às vezes,
durante o curso do ano letivo, as escolas ficam despovoadas por contas do chamamento aos
ritos de iniciação, acrescentou o médico.
Também fica evidente, que não foi em vão a análise que Marx havia feito sobre o
dinheiro, ao considerar que a força deste é diabólica e pode alterar o curso normal das coisas.
Em Manuscritos econômico-filosóficos (2008) o sociólogo alemão descreve as qualidades do
dinheiro enquanto valor geral e equivalente universal. Em Shakespeare (1832), Marx buscou
trechos em que este poeta quinhentista descreve o dinheiro como uma “poeira maldita,
prostituta comum de todo o gênero humano que semeia a discórdia entre a multidão de
nações”. (MARX, 2008, p.158).
Portanto, de acordo com Marx, o dinheiro é na verdade o vínculo de todos os
vínculos. Ele pode atar e desatar todos os laços e, por isso, é também o meio universal de
separação. Esta é uma verdade irrefutável em si, pois que o dinheiro penetra o impenetrável,
torna perfeito o imperfeito, aproxima os separados e separa os próximos. Por contas do
dinheiro, quanta conduta não constitui desvio moral e social? O dinheiro é instrumento de
união, sim, porque até pode unir gente de conduta indevida.
35
É referente aos meios de intercâmbio que circulam indiscriminadamente. Tal é o dinheiro que reduz o valor
das coisas a uma unidade de mensuração universal.
113

É esta maldita prepotência do dinheiro que tem corrompido aquela sociedade e


aliciou os mestres e líderes comunitários de quem depende o processo ritual e dele tiram
proveito, a incentivarem a prática dos ritos de iniciação antes que chegue o momento ideal.
Como vimos, por cada iniciado os líderes e mestres recebem tributos pela operação efetuada
nos noviços. É assim que a cada dia esta prática tende a conhecer um desvio das reais
intenções. É claro que não podia ser também tão estático, mas que fossem mudanças no
sentido de deixar de lado atos que representam violência física ou psicológica, por um lado, e
que acompanhassem a evolução interna da sociedade e não em busca de benefícios ou simples
convívio, por outro.

3.4. O PROBLEMA DE PROCEDIMENTO

De tudo quanto foi dito, não resta mais dúvida (em minha convicção) sobre a
importância da prática dos ritos de iniciação e a necessidade de sua manutenção, olhando
pelos seus aspectos positivos. Mas isso não implica que deixe de manifestar a minha
inquietação quanto aos problemas de procedimentos que se aplicam na prática dos ritos de
iniciação. Segundo os dados produzidos pela pesquisa, a idade com que os meninos vão aos
ritos de iniciação varia de oito a 12 anos e de seis a 12 anos para as meninas. Esta realidade
suscita uma situação dicotômica, a saber: para uma boa aprendizagem visando uma apreensão
adequada dos iniciados, é preciso que esta comece de fato, na idade certa, desde os primeiros
anos de vida e a idade dos seis a oito anos, parece ideal, porém, as matérias de que estes
iniciados são submetidos são três vezes mais que a sua idade, sobretudo nos meninos em que
a iniciação acontece em uma única etapa. Ao final da temporada, temos crianças adultas:
crianças, pela idade e adultas, pelos conhecimentos adquiridos. É por essa razão que nesta
mesma comunidade antigamente a iniciação tinha lugar a partir da idade da juventude que era
para melhor adequar a idade com a aprendizagem. Contudo, hoje em dia, ao ritmo da
modernidade, acontece muito mais cedo.
Ora, argumenta Amide (1998), coitado dos rapazes nessa idade menor, não conseguem
apreender nem a metade do que se ensina no unyago. A questão associa-se ainda com a forma
como as coisas são tratadas, de forma direta, como elas são tal como a natureza as fez e o
homem as nomeia, sem, no entanto, fazer-se o uso de uma linguagem suave. Conforme este
autor, desde os últimos tempos, os temas dos ritos de iniciação quase se tornaram ridículos,
quando dirigidos aos meninos e meninas dos seus sete ou oito anos de idade. Continuamente o
autor ressalta que
114

As vezes tenho a impressão que com a linguagem que se serve para transmitir
aqueles grandes valores acabam por assustar os nossos filhos. O que pode aprender
uma criança dos seus sete a 10 anos ao falar-lhe do namoro, do casamento, da
morte... ?-Nada, senão uma curiosidade e traumatismo. [...] (p. 88).

Por outro lado, o autor caracteriza algumas canções dos ritos que, segundo ele, fazem
uso de linguagens escandalosas. O autor prossegue dizendo que na iniciação encontramos
canções cuja letra faz uma espécie de radiografia completa explicando as partes mais sagradas
do corpo humano, e, transcrevo: “o mais grave ainda é que descrevem o processo do acto [sic]
sexual humano, duma maneira incrível, para as crianças, as quais não têm ainda maturidade
suficiente para compreender certos termos”. (AMIDE, 2008, p. 88). Não obstante, Amide
reconhece haverem na iniciação canções bem elaboradas, lindas, cheias de arte e ricas do
ponto de vista da moral e outras ainda, que narram o heroísmo, cantadas em linguagens
moderadas.
Nessa conformidade, a pedagogia e a metodologia deviam ser adequadas às idades
das crianças. Diante desta situação, remeto uma opinião na qual os ritos de iniciação
começando nessa idade, deveriam ser feitos em fases, tal como acontece com a iniciação
feminina que é feita em etapas, segundo o processo de evolução fisiológica. Ou na
impossibilidade disso, acontecessem um pouco mais tarde, já na pré-juventude. No entanto,
eles não devem ser combatidos na íntegra e tal como observou Amide, no mínimo devem ser
corrigidos para torná-los cada vez mais úteis às pessoas do tempo presente, aperfeiçoando-os
como patrimônio cultural. Na minha forma de analisar, concordando com o que escreveu
Braço (2006) as candidaturas para o ingresso no processo ritual, seriam definidas pela idade
cultural, expressa pela maturidade demonstrada pelo jovem-candidato nas suas relações no
grupo social.
O fator idade é sem dúvida o que contribui para a desassimilação quase completa da
matéria, contrariando o que era de esperar com a aprendizagem dos meninos. Esta tendência,
como ficou em breves passagens anteriores, também os mestres reconheceram a ineficácia das
candidaturas na idade dissonante, afirmando que, antigamente, os iniciados podiam se
comportar devidamente, diferente dos de hoje. A razão reside no fato de que nessa altura iam
aos ritos de iniciação indivíduos bem crescidos, o que contribuía para que acatassem e
conservassem os ensinamentos. A idade contribuía igualmente, para que fossem instruídos a
construir uma casa, por exemplo, para além de outros domínios de homens adultos, ao passo
que nos dias que correm, vão com uma idade menor, pelo que se esquecem com facilidade ou
115

não valorem os ensinamentos. Parece-me que na atualidade, o que conta mais é assinalar o
momento em si e não as habilidades dos iniciados.
Certamente, no entender dos mestres que se mostraram apreensivos com a conduta
indevida dos seus iniciados, atribuíram em parte a culpa à fluidez dos meios de comunicação,
como rádios, televisões (novelas), cinemas que tendem a contribuir para a alteração do quadro
tradicional da cultura yaawo. No passado, “não era possível encontrar na comunidade yaawo,
uma mulher a mostrar coxas; moços com as ‘descaídas’ [calças ou calções abaixo da cintura],
com brincos, mechas ou tranças, como acontece nos tempos em que vivemos”, disseram os
mestres.
Portanto, para uma salvaguarda dos valores culturais e educativos presentes nos ritos
de iniciação, há uma toda necessidade de caráter urgente, para adequar os procedimentos dos
ritos de iniciação, começando pela idade que precisa ser revista e, em seguida, as abordagens
que devem ser adequadas para obedecer a moral e as idades dos iniciados e por fim, a
humanização de todos os aspectos procedimentais. A necessidade surge na medida em que a
ineficiência dos métodos e a inobservância das regras mais elementares num processo de
matéria delicada como este, os resultados podem ser desagradáveis e não animadores, para
não dizer desastrosos. Surge ainda outra questão: até que ponto os direitos humanos dos
indivíduos são respeitados durante os ritos de iniciação?
É pensando no seu valor educativo e cultural que proponho discutir a seguir a relação
entre a educação tradicional36 ou informal (termo que prefiro) de que os ritos de iniciação
fazem parte e a educação formal ou escolar.

3.5. RELAÇÃO ENTRE EDUCAÇÃO INFORMAL E EDUCAÇÃO FORMAL

Como anunciei, na presente, pretendo discutir de forma relacionada a educação


informal e a educação formal. Ao analisar, irei focar a minha atenção nos aspetos específicos,
ou seja, o que faz a educação informal diferente do sistema de educação formal e quais são os
possíveis pontos de encontro. É minha intenção ainda, analisar que relações há entre os dois
sistemas que logo a priori parecem antagônicos; que mecanismos usar para a sua convivência
espacial e; que esforços estão sendo feitos pelas autoridades tutelares de modo a fazer

36
O termo “educação tradicional” designa modelos de educação que seguem um padrão epistemológico ético-
moral e estrutural baseado em tradições culturais dos povos locais e é usado como oposto de “educação formal”,
um tipo de educação que segue modelos epistemológicos, morais e estruturais da modernidade. (CASTIANO,
2006).
116

proveito dos conteúdos da educação informal que por excelência são de caráter local e
cultural na educação escolar.
Nota-se com preocupação, a tendência de se privilegiar o ensino escolar, sem, no
entanto, dar-se alguma consideração ao ensino informal, como a iniciação Yaawo que ainda
granjeia simpatias entre seus praticantes. Esta é uma clara evidência de que vivemos o tempo
todo decalcando o Ocidente e deixando de lado aquilo que nos pertence e melhor nos
caracteriza. Essa tendência de amar uma vertente educativa e desprezar a outra ou dedicar-se a
uma e adiar a outra, com privilégio à educação formal apontada como ideal e em prejuízo da
que é própria dos autóctones, leva-me a fazer a mesma pergunta que Durkheim fez em
Educação e Sociologia (1965, p. 36), ao dizer: “de que serviria imaginar uma educação que
levasse à morte a sociedade que a pratica?” O autor prossegue com argumentos de que o
postulado tão acessível de uma educação ideal conduz ao erro ainda mais grave. Isto porque,
ao questionarmos a educação ideal nas variações de tempo e lugar, constatar-se-á que os
sistemas educativos nada têm de real em si mesmos. Eles variam com o tempo e lugar de
acordo com as necessidades do momento das sociedades. É aqui que reside a importância da
epígrafe, já o disse, mas vale a pena repetir que

Na verdade, porém, cada sociedade considerada em momento determinado de seu


desenvolvimento, possui um sistema de educação que se impões aos indivíduos de
modo geralmente irresistível. É uma ilusão acreditar que podemos educar nossos
filhos como queremos. Há costumes com relação aos quais somos obrigados a nos
conformar; se os desrespeitarmos, muito gravemente, eles se vingarão em nossos
filhos. Estes, uma vez adultos, não estarão em estado de viver no meio de seus
contemporâneos, com os quais não encontrarão harmonia. Que eles tenham sido
educados, segundo ideias passadistas ou futuristas, não importa: Num caso, como no
outro, não serão do seu tempo e, por consequência, não estarão em condições de
vida normal. (DURKHEIM, 1965, p. 36; grifos meus).

Educar nossos filhos como queremos, corresponde ao ideal, aquilo que gostaríamos
que fosse, mas isso, infelizmente, nem sempre é assim. As ideias que norteiam os critérios,
sistemas e processos educativos, não somos nós que os criamos individualmente, eles são o
produto da experiência da vida comum e necessidades coletivas e são na sua maior parte, uma
herança das obras das gerações passadas. Assim, o que deveria suceder, seria uma adequação
dos currículos em função das realidades de cada uma das comunidades, com vista a acomodar
o ideal e preservar o legado. Estou a dizer: os sistemas deveriam observar com tamanho rigor
o que as sociedades específicas consideram de primordial para a educação dos seus filhos,
quando e de que modo gostariam que esta fosse feita. Mas com isso, não quero propor à
educação formal o simples papel de reprodução social proposta pela educação durkhemiana.
117

O que acho certo é a educação formal explorar o que é comunitário e articular para contribuir
na formação de uma educação que promove mudanças. Face aos desafios modernos, o papel
da educação não deve ser unicamente para formar o indivíduo para saber ser e estar, mas deve
contribuir também na formação para o saber pensar e agir.
Por outro lado, o casamento entre os dois contrários, a educação formal e informal,
poderia ter evitado as acusações mútuas em que de um lado, a educação formal acusa a sua
contraparte de interferir no processo de ensino, ao levar os novatos à iniciação no período
letivo e, por outro, a educação informal ao acusar a educação formal, de dotar nos noviços
apenas de conhecimentos gerais e sem mínima da moral necessária e de tudo fazer para o
desenlace da cultura de iniciação. Esta discussão prova a falta do envolvimento da
comunidade na concepção dos programas de ensino e de que eles são imposições.
Admitir que a educação não é a mesma que interessa a todas as comunidades, é um
princípio harmonioso e que acomoda as diferenças. Tal como observou Durkheim, ela varia
de acordo com as classes sociais; a educação da cidade não é a mesma do campo; a do
burguês não é a mesma do camponês. Aceitar as diferenças e respeitar o comunitário poderia
reduzir as resistências que as comunidades podem prestar face aos novos contornos
educacionais e, reduzir os índices de abandono escolar após a iniciação, tal como apurou a
pesquisa durante o trabalho de campo. Fazer fé na possibilidade de uma educação homogênea
numa sociedade heterogênea seria uma ilusão. Admitir esta hipótese seria negar a existência
de diferenciações sociais e culturais desde os tempos da Pré-História e que devem ser
preservadas. Apesar dessas diferenças sociais, é preciso admitir que não existe povo sequer
que não tenha determinado números de ideias, sentimentos e práticas que a educação deve
imbuir a todas as crianças, seja qual for a sua categoria social na qual estão inseridos. Mesmo
numa sociedade fechada, geralmente há sempre um ponto em comum que serve de referência
para toda a comunidade; pode ser um princípio cultural ou religião, na qual todos se sentem
obrigados a congregar.
Com relação a isso, há uma ideia que predomina no discurso moderno segundo a
qual a África é um continente composto por sociedades dicotômicas coexistentes, sendo: uma
sociedade tradicional predominante no meio rural e outra sociedade moderna, predominante
no meio urbano. Do ponto de vista do conhecimento, esta dicotomia é expressa pela
existência conflituosa de saberes, valores e práticas de natureza local-tradicional e outro tipo
de saberes, valores e práticas de natureza e validade universal.
118

O discurso que considera a sociedade africana como sendo dicotômica, direta ou


indiretamente, leva ao pressuposto da existência de uma dualidade social (tradicional versus
moderna) com saberes, práticas e valores aparentemente contraditórios e em conflito, não
articulados ou até mesmo incompatíveis entre si. Nesta ordem de ideias, Hountondji (2002)
chama atenção pela necessidade de se transcender a “coexistência silenciosa” entre os saberes,
práticas e valores de natureza institucional-moderna e de natureza tradicional-local nos países
africanos. (CASTIANO, 2006).
Um dos grupos alvos da presente pesquisa foi o dos gestores das escolas abrangidas e
deles obtive seus pontos de vista com relação aos ritos de iniciação e a sua influência no
processo de ensino e aprendizagem das suas escolas. Para começar, constatei que o atual
calendário dos ritos de iniciação (final do ano) é imposto no sentido de não interferir no
ensino escolar, pois, o período normal seria o final das colheitas, entre os meses de junho e
agosto, fazendo assim deste processo, igualmente a festa das colheitas.
Este período parece mais ideal para o decurso dos ritos de iniciação, sobretudo
masculinos, olhando pelo seu processo que inclui a queima da cabana que serviu de abrigo
durante o período, bem como parte dos pertences dos iniciados no final do processo,
representando a destruição da vida e o comportamento anterior da iniciação, o que tornaria
difícil, senão impossível, com as descargas das chuvas. Além dos ayaawo algumas tribos da
região também preferem realizar os rituais de iniciação na época seca, inclusive as cerimônias
de matrimônios. Segundo escreveu Vitor Turner, (2013) a circuncisão dos meninos tsongas37
acontece durante os frios meses de junho a agosto. O período torna-se ideal ainda pelo fato de
não ser crucial em relação às atividades agrícolas, o garante econômico destas sociedades,
comparativamente à época de chuvas, onde as atividades produtivas são mais intensas. Outro
testemunho é de Canda (2006, p.64), sobre o povo matswa38 referiu que os meses de junho a
agosto é o período que se realizam os ritos de iniciação masculina, pois que “a rápida
cicatrização e poucos riscos de infecção da glande são as maiores razões que levam a
preferência ao tempo frio para as operações da circuncisão”. Estas são algumas entre as
explicações da ênfase de realização dos ritos de iniciação nesta época do ano.
Sabe-se que os ritos de iniciação na comunidade yaawo decorrem em duas épocas,
uma entre dezembro a janeiro e a outra entre junho a agosto e com a duração de um mês cada
e, se estes tiverem lugar nesta última temporada, certamente haverá alunos que ficarão fora

37
Uma das tribos da região Austral de África e que igualmente está representada no sul de Moçambique.
38
Um dos grupos étnicos representado na Província de Inhambane.
119

dos seus recintos escolares, pelo menos por uma quinzena, tendo em conta que neste período
do ano não existem interrupções que vão além dos 15 dias.
Portanto, de acordo com os gestores das escolas, para evitar que a comunidade
agende os ritos de iniciação no período escolar, em cada início do ano, na assembleia de
abertura solene do ano letivo é publicado o calendário escolar e, ao longo do ano, nos
encontros de balanço do aproveitamento pedagógico, este é sempre relembrado e aos pais e
encarregados de educação, líderes comunitários e religiosos, são conscientizados para que
observem o mesmo e levem os seus filhos aos ritos de iniciação somente nos períodos
vacantes e com maior preferência, ao final do ano, por ser o período de maior interrupção.
Apesar deste esforço de conscientização, é notória a realização dos ritos de iniciação
em período escolar, fato que concorre para que certos alunos submetidos à iniciação não
voltem à escola após a formação dos ritos. Uns não voltam pelo complexo de superioridade
por sentirem-se satisfeitos com relação à aprendizagem para a vida que foram providenciados
pelos ritos ou não quererem se juntar aos demais incircuncisos e, outros, por sentimentos de
vergonha e receio de provocarem curiosidades nos seus colegas ainda não iniciados que
quererão saber deles de tudo quanto aconteceu desde a sua última separação.
Em parte, por hipótese, um dos fatores do complexo é a mudança do nome. O
iniciado ao mudar de nome como regra geral cria uma atitude de estranhamento para com o
ambiente escolar, onde colegas, professores e a comunidade escolar em geral, o tornarão
chamando pelo nome anterior, o da infância, o que de certo modo contraria o seu estatuto
adquirido pela iniciação. Chamar-lhe pelo antigo nome é o mesmo que negar-lhe ser adulto e
considerá-lo de “criança”, o que entre os ayaawo, é uma grande ofensa moral. Para evitar
esse conflito, o “novo homem” 39 da comunidade prefere fazer-se fora desse meio (escolar).
Na Escola Secundária, ao contrário, como informou o gestor, não é notório o
abandono das aulas pelos alunos por conta dos ritos de iniciação e me lembrei de que o
indicador desta tendência deve ser a idade dos seus integrantes (a partir dos 13 anos), pois a
escola recebe alunos depois de serem submetidos aos ritos de iniciação. Se nas escolas
secundárias não se podem registrar ausências devido aos ritos de iniciação, o mesmo não se
pode esperar das escolas primárias onde estão concentradas crianças de idade fértil aos ritos.
De acordo com um dos gestores das escolas escaladas pela presente pesquisa, isto se deve ao
fato da “educação tradicional criar interferências à educação científica”. E prosseguiu com a
explicação, demonstrando que, por exemplo, os ritos ensinam a pôr logo em prática o que a
39
Uso o termo no sentido de me referir ao homem ideal em substituição de um ser não ideal, segundo os critérios
considerados pelas respectivas comunidades.
120

criança aprendeu na iniciação, enquanto a educação escolar ensina a deixar para mais tarde;
ritos – “vocês são adultos”; educação escolar “vocês são crianças”. O gestor caracterizou os
regressados da iniciação em meio escolar como “teimosos, psicologicamente agem segundo o
aprendido nos ritos”, acham-se adultos e não aceitam submissão. Mas, como soube, as
direções das escolas em coordenações com os Conselhos de Escola, consciêncializam os pais
e lideres de modo a persuadirem a comunidade para que levem os alunos de volta à escola
após os ritos de iniciação, em casos de acontecerem ao meio do ano.
E como é que as outras crianças encaram o colega chegado dos ritos de iniciação?
Certos colegas o encaram com certa naturalidade e outros, pelo enigma criado pelos ritos, o
encaram como adulto, capaz de participar junto com os mais velhos nos vários rituais da
comunidade. O veem como um sujeito que sabe interpretar os mistérios da vida. Pela presença
do iniciado regresso, os colegas ficam psicologicamente curiosos nele, pois que ele se
manifesta segundo o comportamento assegurado pelas práticas dos ritos de iniciação
(posiciona-se como um independente), exige que seja tratado conforme o novo estatuto social
e repreende o tratamento que lhe é anterior (dando-se o caso de mudança de nome).
Constatei, portanto, haver ali um litígio de preservação dos valores. Por um lado, a
comunidade pretende resguardar os seus valores socioculturais praticando os ritos de iniciação
e, por outro, as autoridades pretendem promover a educação escolar, empurrando deste modo
que os ritos de iniciação sejam praticados no final do calendário escolar, que, por conseguinte,
é um período contraindicado para a plena realização desta prática costumeira, pelas razões
que mencionei anteriormente.
O coletivo que juntou o Conselho do líder da comunidade de Chiuaúla e dos mestres
das cerimônias realçou que é difícil contornar a mente das pessoas, pois isso é um hábito que
se arrasta desde longa data e a comunidade pratica em justa fidelidade aos seus ancestrais e
com isso pretendem assegurar os traços culturais para cada uma das gerações vindouras. Uma
vez que os ritos de iniciação são anteriores à educação escolar, o justo seria a educação
escolar adequar o seu calendário em respeito ao calendário dos ritos de iniciação e não o
contrário. Por exemplo, o ano letivo poderia ter o seu início em agosto e encerrar entre maio e
junho; assim, os lideres comunitários, os mestres e a comunidade yaawo em geral, deixariam
de ser acusados de promotores de desobediência ao calendário da educação escolar. “Eles têm
medo da chuva, nós também temos”, reafirmou o conselho de anciãos supracitado, que depois
encerrou com gargalhadas.
121

Apesar dos gestores das escolas escaladas pela presente pesquisa lamentarem a
interferência dos ritos de iniciação no processo de ensino, eles reconhecem a sua importância
na complementação da educação escolar e o seu papel na preservação do patrimônio cultural
da comunidade yaawo e que melhor identifica esta comunidade na região. Doravante,
acrescentaram que os seus fazedores “devem ensinar o respeito que devem ter entre eles e aos
mais velhos sem, no entanto, incitar nos iniciados que estão crescidos. Porque ser iniciado não
significa crescimento”. Devem também respeitar o calendário escolar e a idade, e que,
estabelecessem o mínimo de 12 anos para dar-se a iniciação.
Ora, constata-se que ambas as formas de educação confluem em um objetivo
comum, o de preparar o indivíduo para o seu papel e bem servir à sociedade. Diferem, no
entanto, nas metodologias de abordagem e procedimentos. Assim sendo, o ideal seria uma
elaboração conjunta das atividades entre os fazedores das duas formas de educação, de forma
a estabelecerem os critérios de atuação e encontrar uma plataforma para que o processo de
cada uma não prejudicasse a outra.
É preciso, conquanto, que os elementos culturais da comunidade sejam integrados
progressivamente no ensino formal, permitindo assim um casamento entre ambas as
instituições. Partindo-se do princípio de que os ritos de iniciação em geral e da comunidade
ayaawo em particular, fazem parte da cultura desses povos eu argumento que, parte dos
elementos de valores comuns juntamente com outros elementos da cultura local, fossem
integrados nos programas curriculares da educação formal.
Por falar da cultura como matéria dos conteúdos da educação informal, torna
necessário estabelecer alguns preceitos mais gerais da cultura para uma melhor compreensão
da análise em curso. Portanto, o termo cultura arrasta um longo percurso histórico, mas é só
em meados do século XIX que a palavra "cultura" (Kultur em alemão) é usada como
sinônimo de “civilização” (de civilization, termo preferido pelos franceses). O termo, para
ambos os casos, pretendia se referir aos indivíduos mediamente instruídos ou de classe média,
que tinham um estilo de vida distinto. (ELIAS, 1994; BOUDON, 1990).
E. F. Tylor (1871) citado por Keesing e Strathern (2014, p.35) definem a cultura
como “aquele todo complexo que inclui os conhecimentos, crenças, arte, moralidade, lei,
costume e quaisquer outras habilidades e hábitos adquiridos pelo homem como membro da
sociedade” A cultura, em certo sentido, pode se referir ao desenvolvimento material e técnico
e à transmissão do patrimônio social.
122

Os culturalistas são de opinião que, enquanto modo de vida de um povo, a cultura é


uma aquisição humana, relativamente estável, mas sujeita a mudanças contínuas que
determinam o curso das nossas vidas sem se impor ao nosso pensamento consciente. Em
suma, o sentido moderno do termo “cultura” reporta os modos de comunicação, do saber das
sociedades em rápida transformação e os objetos simbólicos produzidos por uma sociedade
para veicular valores.
Para Boudon (1990), uma atenção especial incide nos mitos, noções, imagens e
modelos espalhados em certos grupos sociais (cultura popular, cultura de elite) e por certos
canais de difusão do saber: a cultura de massa que é simultaneamente transmitida pelas mídias
e a que se dirige a um largo público.
No entanto, não nos surpreende a diversidade de todo esse aparato cultural, ela é
possível porque os seres humanos são dinâmicos em seus meios e aprendem a vida a partir de
meios culturais. Viver de acordo com a natureza é uma dádiva, mas viver de acordo com a
cultura, essa é obra exclusiva dos humanos. Pelo fato da cultura não ser homogênea em todas
as comunidades da sociedade, essas representações particulares constituem identidades40
desses povos, pois que os torna únicos e distintivos dos demais.
Portanto, mais do que simples artefato, um vasto conjunto complexo de padrões e
valores, um largo leque de costumes, tradições, usos e hábitos, cultura é um fator dinamizador
das relações humanamente adquiridas cuja continuidade é garantida pela tradição oral e o seu
papel é de harmonizar o comportamento socialmente aceite e é a educação que deve garantir a
continuidade e a difusão desses valores. Nestes termos, pode-se compreender que

Incontestavelmente, existe, entre educação e cultura, uma relação íntima, orgânica.


Quer se tome a palavra “educação” no sentido amplo, de formação e socialização do
indivíduo, quer se restrinja unicamente ao domínio escolar, é necessário reconhecer
que, se toda educação é sempre educação de alguém por alguém, ela supõe sempre
também, necessariamente, a comunicação, a transmissão, a aquisição de alguma
coisa: conhecimentos, competências, crenças, valores, que constituem o que se
chama precisamente de “conteúdos” da educação. Devido ao fato de que este
conhecimento parece irredutível ao que há de particular de contingente na
experiência subjetiva ou intersubjetiva, imediata, constituindo, antes, a moldura, o
suporte e a forma de toda experiência individual possível, coisa que nos precede, nos
ultrapassa e nos institui enquanto sujeitos humanos, pode-se perfeitamente dar-lhe o
nome de cultura. (FORQUIN, 1993, apud BRAÇO, 2008, p.45).

40
O termo identidade deriva da raiz latina idem, que significa igualdade ou continuidade. A palavra tem uma
longa história filosófica que examina a permanência em meio à mudança e a unidade em meio à diversidade. No
período moderno, o termo está estreitamente ligado à ascensão do “individualismo”, e admite-se que sua análise
tem início com os textos de John Locke e David Hume. Porém é só no século XX, que o termo entra em uso
popular, reforçado especialmente desde os anos 50, na América do Norte. (OUTHWAITE; BOTTOMORE,
1996).
123

O autor compreende que toda reflexão sobre a educação e cultura pode, assim, partir
da ideia segundo a qual, o que justifica fundamentalmente, o empreendimento educativo é a
sua responsabilidade de ter que transmitir e perpetuar a experiência humana considerada
como cultura, compreendida não como simples soma bruta de tudo o que pode ser realmente
vivido, pensado, produzido pelos homens desde o passado, mas como aquilo que, pode aceder
a uma existência pública. A educação e a cultura aparecem como duas faces, rigorosamente
recíprocas e complementares, de uma mesma realidade. Uma não pode ser pensada sem outra
e toda reflexão sobre uma desemboca imediatamente na consideração da outra. (BRAÇO,
2008). A escola distanciar-se da cultura corresponde ao seu distanciamento com relação ao
seu vínculo criador. A escola serve-se da cultura para a sua autoafirmação e a cultura serve-se
da escola para se autoafirmar e sobreviver.

3.6. ESFORÇOS DE MOÇAMBIQUE NA INTEGRAÇÃO DO CURRÍCULO


CULTURAL

Há uma tendência de aproveitamento da cultura local no currículo das escolas


moçambicanas, mas até agora o que mais se explora é uma pretensão de introduzir
progressivamente as línguas moçambicanas no ensino, como previu a Lei 6/92 de seis de
março, que introduziu o Sistema Nacional de Educação (SNE). (BRAÇO, 2008). Mas, a
cultura dos povos não se limita apenas na língua; ela, como um conjunto de bens patrimoniais
da comunidade, estende-se numa longa lista de que não estaria em condições de descrever no
presente trabalho. São esses elementos que devem ser acoplados nos currículos locais.
Compreende-se, portanto, de currículo local como uma componente do Currículo
Nacional que integra conteúdos da comunidade, visando aprofundar os conteúdos
centralmente definidos, visando estimular as atitudes do aluno em conformidade com os
valores da comunidade onde está inserido. Esta é, na verdade, uma medida acertada (embora
não integralizada), uma vez que, na história da educação formal na sociedade moçambicana, a
regra era outra, pois, desde o tempo colonial, os povos locais nunca tinham sido chamados a
participar com os seus valores na sua própria educação, sendo-lhes impostos os valores a
incutir nos seus filhos, que, em grande parte, em nada significavam em suas vidas, senão levá-
los a submeter-se diante do sistema colonial.
Começado em 1992, o esboço da interculturalidade da educação, viria a ser reforçado
em 2003, ao ser traçado o plano curricular nacional do SNE, uma inovação na forma de
124

abordar a diversidade cultural, na busca de um currículo que mapeasse as representações


culturais que, doravante passariam a integrar o conhecido currículo local. De acordo com o
Instituto de Desenvolvimento da Educação (INDE), o relatório das pesquisas antropológicas
sobre a interação entre a cultura “tradicional” e a escola oficial concluiu que

Há um desfazamento da acção educativa relativamente à cultura e tradições


culturais que influi no valor atribuído pelas comunidades à escola e na consequente
retenção/abandono escolar [...] Os principais factores culturais apontados são a
língua de ensino, os ritos de iniciação, as práticas socioeconómicas e a divisão social
do trabalho e os esteriótipos relacionados com o género. (INDE, 2003, p.11; grifos
do autor).

Portanto, o relatório constatou que não havia interação sequer entre a cultura
“tradicional” (entendida como aquela veiculada no meio familiar e na comunidade onde o
aluno está inserido) e os saberes veiculados pela “escola oficial”. Estas duas unidades
comportavam-se como dois mundos completamente diferentes e incomunicáveis.
Compreendeu-se então, que a questão da língua é um dos fatores que maior influência
exerce sobre o processo de ensino e aprendizagem, sobretudo, nos primeiros anos de
escolaridade, na medida em que a maior parte dos alunos moçambicanos que entra na escola
pela primeira vez, fala uma língua materna diferente da língua oficial de ensino (Português).
O fator língua faz com que muitas das competências e habilidades adquiridas pelas crianças
antes de entrarem na escola, não sejam aproveitadas pelo idioma que limita as suas
competências comunicativas, retardando assim, na descoberta do talento e dotes dos alunos.
O INDE (2003) compreende que o processo educacional, em qualquer sociedade, só
terá sucesso se for conduzido através duma língua que o aluno melhor conhece, respeitando-
se, deste modo, os pressupostos psicopedagógicos e cognitivos, a preservação da cultura e
identidade do aluno e os seus direitos humanos. Está provado que a língua não é somente um
instrumento de comunicação, mas como também um veículo de aspectos culturais. Entre
outros aspectos, o vocabulário, as frases idiomáticas, as metáforas, são os que melhor
expressam essa cultura.
Por outro lado, constatou-se que os ritos de iniciação, parte dos “sistemas de
educação informal”, com o objetivo de transmitir normas e valores de uma sociedade,
preparando, deste modo, a criança para a vida adulta, são outro fator cultural de conflito entre
a escola e as tradições culturais, dada a diferença entre práticas culturais da comunidade e a
que é veiculada pela escola.
125

Estas constatações forçaram a necessidade de aproveitamento do potencial cultural


da comunidade no processo escolar, e a medida visava, realmente, responder aos clamores da
sociedade pelo silêncio dos seus conteúdos culturais nas matérias ensinadas aos seus filhos
que em nada interessavam a sua convivência comunitária. Foi assim que o INDE, o garante
das políticas de ensino em Moçambique, reconheceu que para a maior parte da população
moçambicana o currículo vigente não trazia nada de novo, uma vez que o conhecimento
adquirido não tinha nenhuma utilidade prática no seio familiar e nem na comunidade, fato que
contribuía para o crescimento dos índices de evasão escolar, principalmente nas regiões
rurais, mesmo em algumas zonas urbanas, tal como acontece nas escolas primárias da Cidade
de Lichinga, segundo constatou a pesquisa junto dos gestores das respectivas escolas.
A evasão nas escolas, descrita anteriormente, seria uma reivindicação da ausência de
sua cultura no ensino, posto que a cultura ali ensinada cria-lhes estranhamentos e isso é para
não assimilarem o que não lhes diz respeito. Logo, porque sua cultura é posta em causa, estes
indivíduos preferirem fazer-se ausentes de tais instituições que proliferam essas assimetrias. A
evasão seria, por hipótese, uma resistência à essa educação de cultura alheia. Tendo em conta
que o valor das coisas é relativo, nem todo conteúdo programático da educação têm uma
importância no seio da comunidade que se acha imposta a agregar valores extraculturais,
mesmo que a intenção seja de criar uma uniformidade nacional, pois que “mesmo no discurso
sobre a cultura nacional ou globalizada, não se pode esquivar do olhar sobre os traços que
caracterizam, identificam e distinguem culturalmente um grupo social”. (BRAÇO, 2008, p.
45).
A inclusão de elementos de cada uma das culturas se torna assim, não só necessário,
mas imperioso, pois que segundo observou Mazula (1995. p. 35),

A Dimensão Antropológica assume um papel de destaque nas condições de


sociedade de oralidade, como a moçambicana, nas quais a educação aparece
integrada nas formações culturais e a cultura assume a função pedagógica de educar
o Homem que a sociedade quer; acultura e a educação organizam-se, ao mesmo
tempo, de tal maneira que dificilmente se delimitam as suas fronteiras. A relação
entre elas é intrínseca.

Por isso, explorar elementos da cultura local, não diria todos seus elementos, mas
aqueles julgados relevantes para a salvaguarda da própria sociedade seria bastante
enriquecedor para o currículo escolar e interessaria a maioria que, tendo suas razões, não se
importa com o currículo grandemente ocidentalizado. E, esta comunidade, ao ser envolvida
neste processo, sentir-se-ia dona dos destinos da sua própria educação. Nesse sentido, o
126

desafio em Moçambique é levar a educação à comunidade e não o seu contrário e, assim, deve
pensar-se num padrão genuinamente moçambicano no cerne da conjuntura global. Pensar
num currículo cultural é um desafio das entidades que tutelam a educação.
Segundo Braço (2008), o currículo também é cultura, é algo recheado de valores que
tem sentido para um determinado grupo social e, ninguém pode ensinar verdadeiramente se
não ensina alguma coisa que seja verdadeira ou válida para os seus próprios olhos. Da mesma
forma, ninguém pode aprender algo que não seja verdadeiro ou válido para os seus olhos. De
acordo com a fonte, esta tese também é partilhada por J. Gimen Sacristán, ao se referir
especificamente à educação escolar que, “uma escola sem ‘conteúdos culturais’ é uma
proposta irreal, além de descomprometida”. (p.49; grifo do autor). É uma escola irreal porque
não reflete nada dos valores da comunidade; descomprometida, porque não se preocupa com
o tipo ideal41 do ser social que a sociedade através de consensos cria para a sua coesão
interna.
Durante uma boa parte da história da educação em Moçambique, a componente da
educação informal teria sido relegada para o esquecimento ou combatida de forma
desenfreada. Há relatos que indicam que em tempos de dominação colonial na Província de
Niassa houve uma ofensiva de combate aos ritos de iniciação. Não se sabe se tratava-se de
uma incompreensão do seu valor, ou simplesmente movidos pelo espírito de ignorância, mas a
verdade é que os missionários católicos após se terem instalado no território de Niassa e
implantarem o catolicismo, tentaram por vezes sem conta, impedir que os seus crentes
praticassem os ritos de iniciação, por considerarem de práticas pagãs e estavam convencidos
que no seu lugar podiam substituir com a moral cristã baseada nos princípios da igreja. E,
quando um crente fosse descoberto a praticar os ritos de iniciação, este era excomungado.
Mas a força da cultura foi tão forte quanto o credo evangélico. Foi assim que depois de algum
tempo, a igreja profundamente estudou os ritos de iniciação e concluiu que a sua prática não
lesava a doutrina da igreja.
Pode-se admitir, ainda, que esta era uma forma de conquistar mais crentes, como se
dissessem: “vinde à Igreja que os vossos ritos não serão mais postos em causa”. João Baptista
Amide, aproveitando o seu conhecimento doutrinal, explica em que medida é que a igreja
faria um recuo para se reconciliar com o que acabara de combater tão pouco antes. Segundo
ele, o Concílio Vaticano II, no tocante à cultura, fez ver aquilo que chamou de “alguns

41
Entenda-se como a construção de uma ação orientada pelo fim de maneira estritamente racional. Permite
compreender a ação real influenciada por irracionalidades de toda espécie, que se operam como desvios, no caso
de comportamento puramente racional. (WEBER, 2015).
127

deveres mais urgentes dos cristãos com relação à cultura”. Desta feita, o Concílio de Vaticano
reconhecia o direito dos homens à cultura e, pode se ler no documento: “[...] é dever [...] que,
tanto no campo econômico como no político, no nacional como no internacional, se
estabeleçam os princípios fundamentais segundo os quais se reconheça e se actue em toda a
parte efectivamente o direito de todos à cultura correspondente à dignidade humana [...]”.
(AMIDE, 2008, p. 93). O estabelecimento desse direito deveria ser sem discriminação de
raça, sexo, nação, religião ou situação social.
O silêncio dos conteúdos locais nos planos curriculares foi além das fronteiras do
colonialismo e não foi só a Igreja Católica que tentou combater. Recentemente, na primeira
República após a independência de Moçambique, o plano curricular nada refletia sobre a
cultura e saberes locais, limitando-se em reformular o mesmo conteúdo dominador e, por
vezes, fazendo o empréstimo das palavras de Frank e Fuentes (1989), aventurando-se a ir em
lugares onde nem os anjos se atrevem ai ir, ao conceber um plano que visava formar cientistas
e engenheiros em áreas que não tinham expressão no país. Querendo pôr em prática o seu
projeto de formação do “Homem Novo”42, o governo de orientação socialista combateu a todo
custo as manifestações culturais apelidadas de práticas tradicionais e obscurantistas, quer
dentro da escola quer fora dela e, em seu lugar, pretendia promover o domínio da arte, técnica
e a ciência. Ao par disso, era expressamente proibido o uso dos idiomas nacionais nos recintos
escolares.
O governo, ao combater os ritos de iniciação entendia que o lugar das crianças era na
escola, onde seriam transmitidos todos os valores de que a iniciação se encarregara. Tal como
foi com a igreja, o governo por mais que tomasse duras medidas, não conseguiu exterminar os
ritos que considerava serem uma tradição por combater, explicou Amide.
Para a questão da ponderação do governo, estou ciente que, para além de fazê-lo com
o propósito igual da igreja, o de alargar o seu campo de influência política, devem ser
associadas às mesmas razões que o levaram a se reconciliar com a própria igreja, que outrora
combatera sem tréguas. Tal fator é o enfraquecimento do regime (o socialismo) que combatia
essas práticas simbólicas. Por outra, rendeu-se pela relutância popular, pois estou convicto
que as fortes medidas só davam para criar mais um distanciamento entre o governo e o povo
que a sua aproximação.

42
O “Homem Novo” de acordo com a política da FRELIMO seria um homem livre do obscurantismo, da
superstição e da mentalidade burguesa e colonial, um homem que assume os valores da sociedade socialista.
(GÓMEZ, 1999).
128

Portanto, o governo da FRELIMO ao se propor combater a tradição e o


obscurantismo, contava com a vigilância dos Grupos Dinamizadores (GD). Caso o GD
detectasse algum grupo realizando às escondidas os ritos de iniciação, os seus fazedores
corriam o risco de seguirem aos centros de reeducação43. O mesmo destino mereceu os
chamados “vagabundos” ou de grupos religiosos (como as Testemunhas de Jeová), que se
recusavam a prestar vênia aos símbolos criados pelo novo governo. Entretanto, como a
cultura é como sol, que depois da tempestade volta a brilhar, depois de um tempo de
apanágio, os ritos de iniciação voltaram a florescer entre os seus fazedores. Não vou me
alongar muito com os detalhes desta matéria, para não ressuscitar o deposto.
Portanto, durante este período, grupos étnicos ou mesmo a sociedade moçambicana
inteira teria sido deixado de lado na elaboração dos conteúdos de ensino e se estes fossem
referidos, era apenas em breves passagens ou como exemplos quando se tratassem de temas
de contexto universal.
Estou crendo que a aberturas das entidades governamentais em readmitir a prática
dos ritos de iniciação como complemento da educação formal após a terem banido, resultou
da observação da degradação dos valores morais que punham em causa o tecido social, em
decorrência da falta da educação tradicional transmitida através dos ritos de iniciação. Uma
criança yaawo, por exemplo, cresce com a educação de respeitar todas as tradições. Cresce
consigo o conhecimento de que o homem tem obrigações de observar, respeitar, conservar e
manter aqueles aspectos positivos que constituem a sua identidade cultural44 e o dever de
transmitir às gerações novas.
Entretanto, o principal desafio, que se coloca ao currículo local, é tornar o ensino mais
relevante, como o de formar cidadãos capazes de contribuir para a melhoria de sua própria
vida, a vida da sua família, da sua comunidade e do país em geral, dentro do espírito da
preservação da unidade nacional, manutenção da paz e estabilidade nacional, aprofundamento
da democracia e respeito pelos direitos humanos, bem como da preservação da cultura
moçambicana, partindo da consideração dos saberes locais das comunidades onde a escola se
situa. Para isso, a escola tem à sua disposição um tempo para a introdução de conteúdos
locais, que se julgam relevantes para uma inserção adequada do educando na respectiva
comunidade. (INDE, 2003).

43
Eram locais previamente identificados para acolher os supersticiosos, vagabundos e por vezes condenados. Os
centros de reeducação eram por excelência, potencial em recursos agrários e os reeducados dedicavam-se ao
trabalho da terra para a produção de comida.
44
Designação que se refere aos aspectos de nossas identidades que surgem no nosso pertencimento a culturas
étnicas, raciais, linguísticas, religiosas e nacionais. (HALL, 2015).
129

O INDE estabelece que os conteúdos locais devem ser formulados em conformidade


com as aspirações das comunidades, o que implica uma negociação permanente entre as
instituições educativas e as respectivas comunidades. A fonte sublinha que as matérias
propostas para o currículo local, devem ser integradas nas diferentes disciplinas curriculares,
o que pressupõe uma planificação adequada das lições para a eficácia do processo de ensino.
A visão da relevância do currículo local fundamenta-se na percepção de que “a
educação tem de ter em conta a diversidade dos indivíduos e dos grupos sociais, para que se
torne num fator, por excelência, de coesão social e não de exclusão”. (INDE, 2003, p. 7). Esta
medida tem em vista contornar a leitura que se faz sobre o sistema de educação, no qual,
muitas vezes, acusam-se os sistemas educativos formais de impor aos educandos os mesmos
modelos culturais e intelectuais, sem prestar atenção suficiente à diversidade dos talentos, da
imaginação, atitudes, predileções, da dimensão espiritual e habilidade manual dos indivíduos.
A introdução do currículo local nas escolas moçambicanas é uma das medidas de
descolonizar o ensino, predominado pelos conteúdos universais e pela Língua Portuguesa
como o veículo. Falar um bom português, dominar os conteúdos da história, geografia e
outras matérias gerais referentes ao mundo europeu, eram até então os indicadores de uma boa
educação ou instrução e uma condição sine qua non para o ingresso no mundo do trabalho.
Esta é sem dúvida, uma colonialidade do saber e da mente, posto que, inúmeras vezes, os que
eram minimamente instruídos recebiam, por consequência disso o status de civilizado,
negavam a sua própria cultura e identidade. Por isso, uma reforma destes instrumentos de
ensino, tornou imperioso para estimular a autoestima cultural.
O inquérito feito pelo Ministério moçambicano de Educação para aferir sensibilidades
da comunidade sobre que matérias gostariam de ver refletidas no Currículo Local, entre
outros elementos, a comunidade apontou matérias relacionadas com habilidades locais (a
confecção de cabos de enxadas, machados, pilões, tecelagem, o artesanato, olaria); a história
local (o interesse de conhecer os eventos históricos, danças, etc.); a toponímia local (origem
dos nomes da região, dos rios, das montanhas, etc.); conhecer a geografia e a língua local e;
dominar a prática da agricultura e seus derivados predominantes na região. (CASTIANO,
2006).
Como se pode depreender, a comunidade esforçou-se em indicar matérias relacionadas
com a profissionalização, o saber fazer da comunidade onde o aluno está inserido, para fazer
deste, útil do ponto de vista da comunidade a que serve e servirá. Decerto, o MINED
enveredou pelo mesmo caminho, o que parece ser fiel às propostas, ao incorporar no novo
130

currículo, o grande grosso de noções profissionalizantes. Assim, sem grandes riscos de


engano, o mundo da produção intelectual e espiritual ficou de certa forma, ofuscado. Com a
mesma certeza, pode se inferir que a educação comunitária para o currículo local é
fundamentalmente profissional, orientada para o mundo material (o saber fazer), relegando as
outras formas de saberes (usos e costumes, religiosos, e espirituais) para uma fase incógnita.
Dito por outras palavras e com todo reconhecimento do trabalho desenvolvido pelo MINED
neste sentido, o levantamento das necessidades relevantes de aprendizagem ficou aquém da
exploração dos “símbolos” de orgulho das comunidades, que se pode considerar como
referências coletivas e de identidade. Por hipótese, se esses elementos educativos e culturais
tinham sido indicados pelas respectivas comunidades durante o levantamento, então a seleção
e a censura os terá posto de lado de forma deliberada. Sabemos que os símbolos e as
representações sociais são fontes bastante ricas de coesão social e ajudam em boa medida na
interpretação sociocultural das comunidades. Este posicionamento parte de um olhar sobre as
modificações operadas nos respectivos planos curriculares no âmbito do currículo local.
O que deve ser incorporado nos conteúdos do currículo local, não devem ser apenas
elementos que dizem respeito ao saber fazer, privilegiando as artes comunais, mas que
também versem sobre a componente do saber ser e estar, que obviamente passaria da
exploração do potencial cultural e da memória coletiva sobre os aspetos mais relevantes da
comunidade. A medida poderia levar ao equilíbrio da formação humana.
A grande novidade do Plano Curricular do Ensino Básico (PCEB) é a introdução
enfática de “Ofícios” como disciplina. No entender das autoridades, esta tendência surge ao se
constatar que havia necessidade de aprimorar o saber fazer das comunidades, como forma de
capitalizar as habilidades dos seres humanos e torná-los hábeis para suas próprias vidas. O
outro componente é a de “Educação Musical” que, com base no ritmo, melodia e harmonia,
pretende “desenvolver a sensibilidade e capacidade artística das crianças, jovens e adultos,
educando-os no amor pelas artes e no gosto pelo belo”. (INDE, 2003, p. 34). O proponente
entende que em sociedades multiétnicas e multiculturais como a moçambicana, a música
ajudaria não somente a compreender e apreciar a riqueza e diversidade do patrimônio cultural
nacional, como também na consolidação dos laços de solidariedade e unidade nacionais. Esta
iniciativa é boa, pois como sabemos, os conteúdos da educação e valores gerais podem ser
passados pela música, mas receio em um aspecto: o nível de preparação dos seus facilitadores
e o envolvimento da comunidade na seleção desses conteúdos. Também é novidade neste
Plano Curricular em referência, a presença da “Educação Moral e Cívica”. O propósito da
131

disciplina é de contribuir na formação dos alunos para a cidadania. Mas segundo consta neste
documento, nos níveis iniciais e intermédios do ensino primário, ela seria tratada de uma
forma transversal, em todas as outras disciplinas curriculares e em todos os momentos do
contato professor/aluno ou pais e encarregados de educação/aluno. Só no último nível do
ensino primário (6ª e 7ª classes), embora preservasse o seu caráter transversal, seria tratada
como disciplina independente e específica. Bem aproveitada esta disciplina, poderia ser um
espaço em que os principais valores da comunidade seriam veiculados e se não se desse o seu
caráter descontínuo, pois que nos níveis subsequentes deixa de existir, o que contrasta com os
seus propósitos: a formação da cidadania.
O Currículo Local, com bases na concepção destes documentos é, na verdade, um
plano ambicioso, olhando pelos seus propósitos, orientados para uma formação consciente dos
cidadãos ativos e úteis socialmente. Mas em algum momento, não passa de uma letra morta,
pois que na sua maioria não acontece segundo o plasmado ou não é implementado na íntegra.
O triste exemplo que tomo é da introdução no ensino secundário de Línguas Moçambicanas
que, segundo o INDE (2007, p. 39), “visa promover nos alunos a consciência do valor das
línguas e cultura moçambicanas, no contexto multilíngue e multicultural, contribuindo para a
sua melhor inserção na sociedade”. De acordo com o Plano Curricular do Ensino Secundário
Geral (PCESG), para além de desenvolver habilidades comunicativas e por meio disso
conduzir à eficácia da comunicação num contexto multilíngue, a introdução das Línguas
Moçambicanas preconiza contribuir para o reforço da unidade nacional na diversidade
linguístico-cultural; dotar nos alunos de conhecimentos da Língua Moçambicana na sua
vertente oral e escrita, de modo a tomar como fator de comunicação em diferentes situações
de sua vida. Se na verdade esta tendência tornasse uma realidade, seria crucial para a
compreensão e interpretação das matérias da comunidade. Mas, pela experiência própria de
passagem no ensino secundário, a introdução de línguas moçambicanas continua um projeto.
Olhando pelas experiências da implementação do currículo local com base nas
perspectivas do PCEB e PCESG, várias escolas devem estar a enfrentar dificuldades da ordem
dos conteúdos locais. O que parece é que os professores enfrentam dificuldades em trabalhar
com os conteúdos locais, pois estes exigem algum trabalho sério de pesquisa, análise e
sistematização; rompendo, assim, com o tradicional ciclo vigente de trabalhar com conteúdos
já “acabados”. Na verdade, a pesquisa do mundo espiritual, di-lo Castiano (2006), é a mais
delicada, mas igualmente necessária, porque tem muita relevância para a vida da escola e das
crianças. Fazem parte do mundo espiritual, conteúdos da educação “tradicional” para o
132

desenvolvimento físico-corporal (jogos e competições); culto aos espíritos; instâncias de


controle sobre desvios sociais; práticas de renovação e purificação moral; valor espiritual das
plantas; conhecimentos sobre hábitos, valores e símbolos espirituais de animais; conteúdos
sobre ritos de iniciação, religiões locais e; tudo que se relaciona com a ciência local.
A observação destes critérios poderia permitir a integração dos conteúdos locais no
currículo nacional, uma vez que de momento estes saberes locais apresentam-se em
desvantagem, porque ainda não estão convencionalmente sistematizados para dialogar em pé
de igualdade com saberes nacionais ou universais. A integração curricular poderia conduzir ao
empoderamento dos alunos nas respectivas comunidades, de modo a torná-los críticos e
analíticos em relação aos saberes modernos e aqueles apelidados de “tradicionais”. O desafio
é tornar a escola um espaço dessa coexistência e, só assim, o currículo local se tornaria um
espaço integrador crítico e racional e não simplesmente como um espaço de assimilação e
consumismo passivo da cultura.
A ideia de africanizar os currículos aos poucos, não é uma descoberta do MINED, já
no início do século XX, de acordo com Castiano (2006), Blyden, um eminente reformador da
educação em África, tendo notado que a educação colonial era que nem uma criança meio
europeia e meio africana (uma criança em dois mundos), ele propôs que se repensasse num
currículo que fosse mais relevante para as sociedades africanas. Assim, ele propôs a
introdução de disciplinas como Leis, Hábitos e Sistemas Políticos Indígenas; Religiões,
Mitologia e Música africanas; assim como História, Geografia, Geologia e Botânica também
de África. Especialmente a História interessou a Blyden porque via nela como uma forma de
preservar a cultura africana contra a propalada ideia de que a África não tinha História e nem
cultura. Em sua opinião, a forma como a História era tratada nas escolas, na qual o africano
entra na História Universal a partir da modernidade com o advento da escravatura, tinha
efeitos negativos nos próprios africanos, porque não lhes transmitia o orgulho sobre o seu
próprio passado. (AKIMPELU, 1981apud CASTIANO, 2006).
No tempo colonial, as versões do currículo para as crianças negras ou indígenas eram
concebidas de forma consciente e sistematicamente para responder ao projeto do
“imperialismo cultural”, quer dizer, com a intenção declarada de dominar e inferiorizar
saberes, valores e práticas de povos autóctones. Embora em algum momento a educação
colonial tivesse alguma tendência profissionalizante, na verdade o sistema nunca valorizou as
cosmovisões, tradições e culturas locais.
133

A preocupação de africanizar os conteúdos educacionais nas escolas em África, não


parou por aqui. Com efeito, surge uma nova escola preocupada com a reapropriação 45 da
educação no contexto africano. Segundo Masolo (1995) citado por Castiano (2006), esta
escola foi iniciada por Crahay, ao publicar em 1965 um artigo intitulado A decolagem
conceitual: condições de uma filosofia bantu, onde propõe que os africanos possam produzir
um sistema epistemológico próprio, possam reconstruir o discurso propriamente africano,
identificando e depois empregando os esquemas conceituais ou postulados básicos do
raciocínio indígena africano. Este raciocínio de Crahay viria a ser continuado por Eboussi-
Boulanga, Towa, Hebga e Mudimbe.
Este esforço tinha em vista tirar a África da neutralidade educativa de sua própria
sociedade e torná-la promotora de seus valores morais e culturais. A neutralidade africana em
participar na sua educação com seus próprios valores, fez deste continente mero consumidor
passivo de processos educativos do mundo de fora, que não diziam nada a seu respeito. Dessa
forma, através da conjuntura sociopolítica, a África foi levada a estranhar o que lhe pertencia
e a identificar-se com o que lhe era estranho.
De tudo quanto disse, permitiu compreender a real necessidade de inclusão dos
valores culturais nos currículos de ensino formal e os esforços do Ministério de Educação
(MINED) nesse sentido. Mas aqui, ainda algumas perguntas podem ser feitas a respeito: em
que medida é que nesta nova empreitada, a comunidade é envolvida na seleção dos conteúdos
que sejam do seu interesse para fazer parte do currículo cultural? Quem pensa por ela? Será
que o que é selecionado como matéria do currículo cultural interessa para o conhecimento da
comunidade onde o currículo é aplicado? Esse currículo não cria repulsa nos seus receptores?
Quem são os ministrantes deste currículo? Dominam a realidade local? É a própria
comunidade? Se estas questões não forem observadas, o esforço será em vão. A verdade é
que a implementação do currículo local envolvendo a própria comunidade como ponto focal,
iria amainar a atual acusação mútua entre os fazedores da educação escolar e da cultura de
sabotagem do campo do outro, pelo menos na comunidade yaawo. Se os conteúdos não
provocarem interesse nos seus consumidores, isso provocará evasão das escolas.
A ideia de implantação do sistema bilíngue nas escolas é uma tentativa do MINED
pôr de fato os alunos em contato com as culturas moçambicanas. Mas isto, conforme
reconheceu o INDE, só é possível se o professor e os alunos partilharem a mesma língua.

45
O sentido de apropriação que aqui pretendo tomar, não é o mesmo de se apoderar de algum bem, mas de
adaptar ou adequar algo para tornar apto para um determinado fim.
134

Por outro lado, segundo constatou Castiano (2006), a participação curricular pela
comunidade, constitui porta aberta por onde irão entrar os saberes locais na escola. Entretanto,
a participação da comunidade na concepção dos conteúdos observa formas importantes, como
o uso dos idiomas maternos na instrução de certas disciplinas; a participação dos artesãos
locais (como pessoas de recursos) para ensinarem certos conteúdos por eles dominados;
adoção de oficinas locais como centro de recursos, nas quais os alunos possam realizar visitas
de estudo; o ensino da história local pelas pessoas mais velhas; o ensino de usos e costumes
locais pelos habitantes idosos, etc. Com efeito, o envolvimento direto da comunidade como
fazedora e ou facilitadora dos conteúdos do seu domínio, os propósitos do novo currículo
seriam de verdade, um contributo efetivo mensurável.
Por outro, tal como escreveu Canda (2006), as recomendações e as instruções que os
iniciados recebem nos últimos dias de sua formação nos ritos de iniciação cujo teor confere-
lhes o status de adultos sociais deveriam ser refletidos nos conteúdos da educação moral e
cívica da escola oficial, valorizando os aspetos positivos e criar-se uma doutrina moral única
para todos. Lembremos que a cultura é o garante das relações intergeracionais e quebrar as
dicotomias é o primeiro passo para caminhar rumo à igualdade social garantida pela educação
inclusiva.
A integralização do currículo local e a criação de um equilíbrio cultural na formação
do agente social é uma responsabilidade do governo, pois sabemos que na maioria das vezes a
cultura e a identidade têm sido objeto de articulação das autoridades detentoras do poder que a
ela determinam-lhe as características e informações com as quais gostariam de ver refletidas
nas suas sociedades e deixar para as gerações esperadas como futuras. Essa cultura e outras
manifestações sociais têm sido difundidas pelas instituições de ensino. As temáticas a serem
assimiladas são previamente selecionadas e censuradas pelas autoridades, para que, chegue ao
seu último destinatário apenas o essencial julgado possuir valor educativo e conhecimento
válido para a sociedade. Essa seleção, ou antes, essa censura, precisa ser objetiva para não se
correr o risco de deformar o real sentido das coisas.
As escolas e o fenômeno intelectual contribuem significativamente para a
homogeneização da sociedade e reduzem sobremaneira as distâncias culturais entre as classes
e permitem também resgatar os valores histórico-culturais das gerações precedentes. Aqui
vale a pena destacar, por outro lado, o papel dos meios modernos de comunicação que
implicitamente assumem o papel da escola, e de que maneira.
135

Se admitirmos a hipótese de que a frequência aos museus e aos teatros reforça o


potencial cultural dos seus participantes, cujo horizonte se vai ampliando à medida que for se
acumulando experiências ai adquiridas e, por conseguinte, a mudança do estilo de vida, pese
embora Bourdieu (2014) reconhecer que a frequência a esses lugares é de pessoas alta ou
mediamente instruídas, igualmente o contato dos alunos com os símbolos de sua cultura,
reforça o sentimento destes com relação às minorias comunitárias e o sentido de
pertencimento. Portanto, a existência de uma ligação tão forte entre a instituição e a contato
frequente com as tradições, mostra que só a escola pode criar a aspiração à cultura menos
escolar.
Pela escola sabemos, por exemplo, que, o que as crianças aprendem, têm a tendência
de fazê-lo logo de imediato. Assim, o contato frequente com os fazeres da cultura levará os
alunos a replicarem o que veem e manipulam, numa clara apreensão dos valores
socioculturais da comunidade em que estão inseridos. Pensando nisso, para evitar assimetrias
sociais, é preciso incentivar o acesso à escola a todos os níveis, uma vez que “[…] enquanto
perdurarem as desigualdades frente à escola (única instituição capaz de criar a atitude
cultivada), apenas contribuirão para disfarçar as desigualdades culturais que não conseguem
reduzir realmente e, sobretudo, de maneira duradoura.” (BOURDIEU, 2014, p.69).
Nessa vertente, urge a necessidade do reforço das políticas sociais para a eficácia
desses sistemas e das capacidades institucionais para o bom desempenho escolar, de modo a
tornar estas instituições verdadeiros centros culturais e de difusão do capital social46.
A escola deve estar preparada de maneira a criar indivíduos conscientes consigo
mesmos e com a sociedade, e não para abrigar a ignorância. Sobre a importância das
instituições escolares na difusão da cultura e, por conseguinte, da identidade, Bourdieu na sua
célebre obra A economia das trocas simbólicas (2009) descreve que, numa sociedade em que
a transmissão da cultura é monopolizada por uma escola, as afinidades profundas que unem as
obras humanas (condutas e pensamentos) têm seu princípio na instituição escolar investida da
função de transmitir conscientemente e em certa medida inconscientemente ou, de produzir
indivíduos dotados do sistema de esquemas inconscientes, o qual constitui sua cultura, ou
melhor, seu habitus47, ou seja, de transformar a herança coletiva em inconsciente48 individual

46
Capital social é o conjunto de recursos potenciais que estão ligados à posse de uma rede durável de relações
mais ou menos institucionalizadas de interconhecimento vinculadas a um grupo, como um conjunto de agentes
unidos por ligações permanentes e úteis. (BOURDIEU, 2014, p.75)
47
Pierre Bourdieu define habitus como “sistemas de disposições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a
funcionar como estruturas estruturantes, isto é, como princípio gerador e estruturador das práticas e das
136

e comum. Nestas condições, não será surpresa a escola agir como se fosse um império, como
se a cultura fosse unicamente produto da escola. Infelizmente, grosso modo das escolas
moçambicanas preservam estas características e concorrem para a criação de sujeitos acríticos
e dominados por ideologias que só servem para reproduzir a submissão.
Portanto, ninguém ignora, porém, que a cultura é o fator determinante das nossas
identidades. As nossas manifestações culturais, a nossa forma de fazer, de ser e estar depende
como esses valores nos foram transmitidos, ou seja, o que nós somos não é exclusivamente
nossa obra, mas sim e, sobretudo, o que nos foi determinado pela cultura. Assim, a cultura é
parte fundamental de manutenção e multiplicação do capital social. Bourdieu (2014) lembra
que o volume do capital social que um determinado agente individual possui, depende da
extensão da rede de relações que ele pode efetivamente mobilizar e do volume do capital
cultural ou simbólico daqueles com quem está ligado. A nossa personalidade como seres
sociais depende do meio em que vivemos e de quem convivemos e partilhamos as nossas
emoções. E a escola sendo parte da tal reprodução, precisa ser não só abrangente, mas,
sobretudo, inclusiva do ponto de vista cultural.

representações que podem ser objetivamente 'reguladas' e 'regulares' sem ser o produto da obediência a regras
[..]" (1983, p. 60).
48
O inconsciente é o locus das necessidades-potencialidades humanas reprimidas. (VIANA, 2002). Quando o
inconsciente é referente ao conjunto de indivíduos, grupos, classes ou toda a sociedade, chama-se inconsciente
coletivo e quando é referente ao indivíduo, inconsciente individual.
137

CONCLUSÃO

O meu foco neste trabalho incidiu sobre os ritos de iniciação na Comunidade yaawo
residente na Cidade de Lichinga, Província de Niassa em Moçambique. A abordagem
obedeceu três momentos fundamentais, dos quais o primeiro ocupou-se de tratar sobre os
fundamentos dos ritos em geral e de iniciação em particular. No segundo, teve uma passagem
obrigatória na caracterização espacial e socioeconômica de Moçambique, Niassa e a Cidade
de Lichinga, como forma de apresentar o alvo em estudo. No terceiro e último, ocupou-se no
estudo do tema central do trabalho, os ritos de iniciação na comunidade yaawo.
Portanto, concordando com Durkheim (2000) os ritos em si tomados na sua extensão
podem ser definidos como normas de conduta que prescrevem as formas como o homem deve
se comportar com as coisas sagradas. Eles prescrevem as maneiras de agir e ser na
comunidade e estão presentes na maior parte dos cenários da nossa vida. As práticas mágico-
religiosas são feitas de ritos; o começo e o fim de um procedimento sociopolítico
(entronização do poder) é marcado por um rito específico, assim como para os estágios de
vida (nascimento, puberdade, noivado, casamento, paternidade e morte), que tem sempre um
rito presente para assinalar o momento; a progressão ou conquista de um novo estatuto de
vida social (ingresso ao sacerdócio, a um nível de formação e sua conclusão, etc.) é regido por
ritos particulares. Eles não têm a mesma forma de procedimento, variam de acordo com as
comunidades fazedoras, podendo um rito ser mais comum numa comunidade que noutra ou
simplesmente ser diferente na sua forma de execução.
Especialmente os ritos de iniciação, como di-lo Pereira (1998) podem-se compreender
como um conjunto de cerimônias pelas quais se inicia alguém de acordo com os mistérios de
uma dada comunidade. Estes tipos de ritos têm a função, como diz o nome, de introduzir
alguém na sua comunidade. Eles debruçam-se sobre as formas de ser e de estar na e com a
comunidade, sobre os valores da vida, da cultura, dos costumes e tradições. Os ritos de
iniciação são um meio pelo qual os respectivos fiéis entram em contato com o seu gênio
protetor. Pela iniciação, o indivíduo passa da infância para a vida adulta e passa a integrar
parte ativa dos membros da comunidade.
A passagem pelos ritos de iniciação confere ao iniciado o estatuto de possuidor de
conhecimentos socioculturais da comunidade e por isso, eles representam uma educação
informal, aquela praticada no meio familiar e comunitário com base nos princípios específicos
de cada comunidade.
138

A comunidade yaawo em estudo é uma das mais fiéis aos princípios dos ritos de
iniciação. É assim que a cada ano são organizados em uma ou duas épocas de ocorrência, com
a finalidade de introduzir os noviços na comunidade. Decorrem em separado entre os ritos de
iniciação masculina e feminina. Enquanto a iniciação masculina decorre em reclusão e em
acampamentos fora da comunidade e em lugar isolado, a iniciação feminina decorre também
em reclusão, mas numa casa identificada dentro da comunidade aldeã. Para as duas iniciações,
é extremamente proibido chegar perto do local onde decorrem alguém de gênero oposto e
especialmente os masculinos, extensível às pessoas não autorizadas a fazerem-se ao local,
sobretudo aos não iniciados.
A iniciação yaawo é representada como uma verdadeira educação, pois dota nos
indivíduos de competências e conhecimentos práticos para a sua inserção na comunidade.
Nesta perspectiva, como disse Golias (1993) tal como a educação, a iniciação tem por
objetivo formar o indivíduo para a integração pessoal, social, e cultural. Na integração
pessoal o indivíduo reúne todas as múltiplas influências do seu meio para integrá-las na sua
maneira de pensar, de agir e de se comportar; a integração social permite ao indivíduo
participar ativamente nas atividades e na vida do grupo a que pertence; enquanto que a
integração cultural cria um padrão da personalidade que é a maneira de viver, de pensar e de
ser do grupo.
Nos últimos tempos, a prática dos ritos de iniciação yaawo tem sido influenciada pela
onda global através da qual condicionou a interculturalidade entre os povos. A presença
muçulmana na região na sequência do encontro deste povo com os árabes trouxe um novo
domínio na prática dos ritos de iniciação. Desde então, a iniciação yaawo agregou
componentes árabes, ao servir do momento para admissão dos iniciados ao islão, aliás, a
circuncisão é a condição necessária para a conversão ou admissão a esta seita religiosa. A
tendência condicionou igualmente que os ritos fossem praticados mais cedo que no pretérito,
pois que hoje as famílias colocam em primeiro lugar o convívio em si. Este fator contribui
para que os iniciados não assimilem os conteúdos da aprendizagem como era de desejar.
Consta que os do antigamente assimilavam e cumpriam os ensinamentos, eram exemplares
nas suas condutas, ao passo que os de hoje, cumprem com relativa regularidade, o que
contribui para o desencaixe social.
O fluxo cultural determinado pela confluência de vários grupos étnicos tende a
contribuir para o esmorecimento de certo rigor dos princípios dos costumes yaawo, dos quais
só podia casar-se alguém que já iniciou. Hoje, pode um (a) iniciado (a) casar-se com uma
139

pessoa que não tem os ritos de iniciação como cultura. Tanto quanto a norma de participar nas
cerimônias fúnebres unicamente por pessoas iniciadas, tende a seguir o mesmo destino, entre
tantos outros exemplos.
O evangelho dos ritos de iniciação cumpre o papel de reforçar a coesão social entre os
membros da comunidade, disseminar entre os seus participantes o espírito de solidariedade e
despertar o sentimento de pertença. Cumpre igualmente, o papel de socialização entre os
iniciados, ao criar um ambiente de elevada consideração entre os contemporâneos da iniciação
e, com a comunidade em geral, ao reunir familiares e amigos em festa que serve para assinalar
o fim do processo de iniciação. Os ritos de iniciação servem para definir linhas mestras da
moral e regras de conduta social segundo os critérios estabelecidos pela comunidade.
Os ritos de iniciação significam a conquista da maioridade social. Pela iniciação o
indivíduo muda de status social, passa da infância para a vida adulta, toma parte ativa da vida
da sua comunidade e goza de plenos direitos. Tais ritos significam ainda, o momento mais
alto de manifestação cultural e exaltação das minorias da identidade da comunidade, pois que
estes, pelas suas peculiaridades de que se revestem entre os ayaawo, servem de característica
e identidade deste povo. Iniciar, portanto, significa tornar-se homem ou mulher, no verdadeiro
sentido da palavra. Ser homem ou mulher nos termos em que aplico aqui transcende o simples
gênero e me refiro no sentido de ser um homem ou uma mulher em função de sua preparação
para assumir o seu verdadeiro papel que lhe diz respeito na sociedade, de acordo com os
consensos criados pela comunidade.
Se do ventre de uma mãe nasce uma simples criança, nos ritos de iniciação nasce um
verdadeiro ser social, formado na forja da vida ativa. É olhando na sua importância que exerce
na vida da comunidade yaawo que se deve preservar a sua prática como um legado cultural.
Mas para isso, precisam ser acautelados alguns procedimentos, como os de circuncisão.
Segundo constatei o processo é executado pelos angaliba cujo instrumento serve para todos
iniciados e sem a esterilização. Em minha opinião, pelo perigo que isto representa, este
processo devia ser feito em coordenação com o serviço de saúde e as operações da circuncisão
confiadas ao pessoal médico (da medicina moderna) e os mestres, cuidarem do resto das
instruções.
O que deve se observar também é o controle da ideologia. Os mestres devem evitar
criar o extremismo, incutindo na mente dos iniciados que são adultos e melhores que os não
iniciados, que os não iniciados não têm valor social ou o mesmo que são “adulto-crianças” ou
“adultos desmiolados”, mas que vinquem o valor cultural dos ritos, sem estas adjetivações.
140

Pois que nem sempre a iniciação é sinônimo de culto e nem a não iniciação de inculto. Nem
sempre a boa conduta depende unicamente da iniciação, apesar da sua contribuição nesse
sentido não ser pouca. Ela depende também dos antecedentes pessoais, familiares e do meio.
Isto porque há iniciados cujo comportamento está à margem dos valores éticos e morais, em
relação aos não iniciados, tal como observaram os mestres da iniciação quer masculina quer
feminina. Há comunidades circunvizinhas e de convivência yaawo que não têm a iniciação
como cultura e tem gente bem educada e de bom caráter. Ao se pôr em evidência o
extremismo, no lugar de criar a harmonia social intertribal, acentua-se a discriminação, o que
constitui uma ameaça à convivência na diversidade.
Ao lado do controle ideológico e do extremismo, devem ser tomadas providencias
para a humanização de todo o processo de iniciação, tornando suaves os procedimentos para
que não representem quaisquer formas de violência física psicológica dos iniciados. Quando
for para submeter aos iniciados às diversas provas, as medidas devem se adequar às idades
para não serem postos em ameaça os Direitos Humanos dos indivíduos, e da criança em
particular, tendo em conta que, pelas idades dos iniciados, deve-lhes ser garantido o direito à
infância e a proteção contra qualquer tipo de violência.
141

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146

GLOSSÁRIO

Aphiyamwene- madrinha do soberano. Tem o poder consultivo e de executar os rituais.


Ashene Mbumba-dono da família. Mbumba por si só significa família alargada.
Atata- Tio em Emakhuwa
Citumbili-macaquinho (diminutivo de macaco). No sentido pejorativo, os ayaawo usam para
designar um filho nascido de uma mãe não iniciada.
Chiluala-espécie de navalha com a qual o ngaliba opera a circuncisão.
Chiputo-primeira etapa dos ritos de iniciação feminina. É caracterizada pela instrução em
aspectos básicos sobre a socialização e a corporalidade.
Chitumbu-terceira etapa dos ritos de iniciação feminina. É marcada pela primeira gravidez e
destina-se a instruir sobre as regras do período de gravidez e sobre a maternidade.
Ciyaawo-idioma do grupo étnico yaawo.
Cinyanja-idioma do grupo étnico nyanja.
Djando- ritos de iniciação masculina yaawo.
Emakhuwa-idioma do grupo étnico makhuwa
Liwasa-Família formada por pai, mãe e filhos.
Lupanda-antigos ritos de iniciação masculina.
Makhuwa-grupo étnico majoritário de Moçambique, localizado a norte do rio Licungo e que
cobre totalmente a Província de Nampula e parcialmente as Províncias da Zambézia, Niassa e
Cabo delgado. O termo makhuwa designa igualmente ao integrante deste grupo étnico,
Amakhuwa no plural e Emakhuwa, ao idioma. Por vezes escreve-se Makhuwa-Lomwe, quando
se pretende associar a um dos seus subgrupos (Lomwe) mais predominante na Zambézia.
Manganje- Dança vespertina que simboliza a despedida dos candidatos à iniciação aos seus
pais, parentes e amigos. Realiza-se na última noite que antecede a partida ao local onde irá
decorrer o processo.
Matengusi-segunda fase de iniciação feminina, marcada pela chegada da primeira
menstruação.
Matswa-Grupo étnico da província de Inhambana
Mwene-Soberano em Emakhuwa
Nakanga-ancião e encarregado geral dos iniciados, pai da iniciação.
Ndaka-Doença provocada por uma mulher impura (de ciclo menstrual ou pós-aborto) por não
cumprir com as regras como não salgar comida ou outra providência.
147

Ndebus-grupo étnico de origem bantu da África Central (Zâmbia).


Ndumbidwa-Gravidez precoce a pós-parto.
Ngaliba- (Angaliba no plural) mestre da cerimônia dos ritos de iniciação masculina; o
cirurgião.
Nihimo-nome comum dos membros da mesma descendência
Nikholo-antepassado masculino comum, fundador ou condutor do nloko.
Njomba-tio em ciyaawo
Nloko-família em emakhuwa, formada por descendência uterina.
Nsolo-árvore sagrada onde são evocados os espíritos dos antepassados.
Nsondo-ritos de iniciação feminina yaawo.
Nyanja- Terceiro grupo étnico da Província de Niassa localizado no extremo ocidental junto
do lago Niassa. O idioma é cinyanja e nyanja em cinyanja significa lago.
Unyago-nome genérico do qual é conhecido todo o processo dos ritos de iniciação. Festa de
iniciação.
Tsonga-Uma das tribos da região Austral de África e com representação no sul de
Moçambique.
Wamwana-quarta etapa dos ritos de iniciação feminina, marcada pelo primeiro parto.
Envolve todo o procedimento desde o nascimento do bebê até a restituição do direito sexual
do cônjuge.
Yaawo-Grupo étnico que se diz originário do monte Yaawo em Muembe e considerado
autóctone da Província de Niassa. O termo yaawo é igualmente referente ao membro deste
grupo, ayaawo no plural e Ciyaawo o idioma.
148

APÊNDICES

Instrumento de produção de dados-01

Roteiro da entrevista aos iniciados


Nᵒ da ficha:________ Data: ____/____/_____
Grupo Alvo: Homens_______; Mulheres______. No de participantes________.
Dados do Pesquisador
Nome: Óscar Morais Fernando Namuholopa. Instituição: Universidade Federal de Goiás-
Goiânia, Brasil. Vínculo institucional: Estudante do Mestrado em Sociologia-FCS.
Finalidade da Pesquisa: Conclusão do nível de Mestrado em Sociologia.

Exortação
Este trabalho depende da sua boa vontade, saliento ainda que, a sua informação será de
grande utilidade, só serve para fins acadêmicos e garante-se o máximo sigilo. Ao
aceitar esta entrevista tem a liberdade de responder as questões que lhe convêm. Faço
exortação para que responda com clareza e sinceridade as perguntas que se seguem
para permitir que se chegue às conclusões mais precisas. Com a sua permissão, vamos
iniciar a nossa entrevista.

Marque com X a sua resposta ou responda corretamente as perguntas.

I. Dados Gerais:
1. Localidade urbana ________________________________ Bairro____________________
2. Escola____________________________________________________________________
3. Intervalo de idade _____-____anos; Clase/s__________
4. Religião: Católica_____ Islâmica____ Protestante ______ Outra_____.
5. Meio de sobrevivência: ____________________________________________________

II. Sobre a prática dos ritos de iniciação na comunidade Yaawo em Lichinga.


1. Na comunidade de yaawo são praticados os ritos de iniciação?
i) Sim ( ); ii) Não ( ).
2. Em caso de sim na resposta anterior, que ritos são?
i) Masculino ( ); ii) Femininos ( ); iii) Masculinos e femininos ( ).
3. Em que momento do ano são praticados esses ritos de iniciação na sua comunidade?___
149

___________________________________________________________________________
4. Qual é o tempo de permanência? i) um (1) mês ( ); um mês e meio ( ); dois (2) meses ( ).
5. (A ser preenchido pelos homens). Com relação aos ritos de iniciação masculina, quais são
as principais Matérias tratadas?______________________________________________
6. (A ser preenchido por mulheres) Com relação aos ritos de iniciação feminina, quais são as
principais matérias tratadas? __________________________________________________
7. Sobre as habilidades dos iniciados na sociedade Yaawo.
a) O que está reservado fazer apenas a pessoa iniciada?_______________________________
b) O que não é permitido fazer a uma pessoa não iniciada__________________________
___________________________________________________________________________
c) Como é vista uma pessoa não iniciada na comunidade yaawo?____________________
d) O que você aprendeu nos ritos de iniciação____________________________________
e) Você está feliz por passar pelos ritos de iniciação? Porque? _________________________
10. Relação entre os ritos de iniciação e educação escolar
a) Há relação entre os ritos de iniciação e a educação escolar?
i) Sim ( ); ii) Não ( )
b) Justifique a resposta anterior __________________________________________________
11. A sua apreciação sobre a prática dos ritos de iniciação:
a) Em sua opinião, acha que os ritos de iniciação devem continuar a serem realizados?
i) Sim ( ); ii) Não ( ).
b) Em casos de sim na questão anterior, Justifique a sua resposta.___________________
12. Conselho aos não iniciados.
a) Quer deixar algum conselho aos não iniciados?
i) Sim ( ); Não ( ).
b) Em casos de sim, registre aqui. ______________________________________________
Muito obrigado pela participação.
150

Instrumento de Produção de dados-02

Roteiro da entrevista aos líderes comunitários e mestres de cerimônia ritual.


Nᵒ da ficha:________ Data: ____/____/_____
Dados do Pesquisador
Nome: Óscar Morais Fernando Namuholopa. Instituição: Universidade Federal de Goiás-
Goiânia, Brasil. Vínculo institucional: Estudante do Mestrado em Sociologia-FCS.
Finalidade da Pesquisa: Conclusão do nível de Mestrado em Sociologia.
Exortação
Este trabalho depende da sua boa vontade, saliento ainda que, a sua informação será de
grande utilidade, só serve para fins acadêmicos e garante-se o máximo sigilo. Ao
aceitar esta entrevista tem a liberdade de responder as questões que lhe convêm. Faço
exortação para que responda com clareza e sinceridade as perguntas que se seguem
para permitir que se chegue às conclusões mais precisas. Com a sua permissão, vamos
iniciar a nossa entrevista.

Marque com X a alternativa da sua resposta ou responda corretamente as perguntas.


I. Dados Gerais:
Nome_________________________________________________________________
(opcional e somente se concordar, caso seja necessário, que o seu nome conste na publicação)
1. Povoado/Aldeia_________________ Posto Administrativo______________________
2. Sexo. Marque com X: Masculino_____ Feminino_____; Idade (anos ): __________.
3. Religião: Católica___ Islâmica___ Protestante ______ Outra_____
4. Papel social: Líder comunitário ( ); Mestre de cerimônia de iniciação ( )
5. Meio de sobrevivência: __________________________________ Escolaridade_________
II. Sobre a prática dos ritos de iniciação na comunidade Yaawo em Lichinga.
1. Na comunidade yaawo são praticados os ritos de iniciação?
2. Sim ( ); ii) Não ( ).
3. Em caso de sim na resposta anterior, que ritos são?
i) Somente masculino ( ); ii) Somente femininos ( ); iii) Masculinos e femininos ( ).
151

4. Em que momento do ano são praticados os ritos de iniciação na sua comunidade?________


_______________________________________________________________________
5. Em quantas épocas são realizados os ritos de iniciação pelo ano e quais são?____________
6. As temporadas dos ritos de iniciação são planificadas em observância do calendário escolar
e conhecimento das escolas dos/das meninos/nas?__________________________________
7. Caso esse período coincida, quais são as providências tomadas para que os alunos
envolvidos não sejam prejudicados? ______________________________________________
8. Qual é o tempo de permanência? i) Um (1) mês ( ); um mês e meio ( ); dois (2) meses
( ); mais de dois (2) meses ( ).
9. Quais são as principais matérias ensinadas nos ritos de iniciação? Assinale todas as
alternativas que correspondem às suas respostas:
i) Como lidar-se na comunidade ( ); ii) Como cuidar dum doente ( ); iii) Como tratar um
morto ( ); iv) Como cuidar um homem (só para mulheres); ( ) v) Como lidar-se com um
parto (só para mulheres) ( ); vi) Como lidar-se com uma mulher (só para homens) ( ); vii)
Ensinar a história e cultura da comunidade ( )-Exemplos:____________________________
viii) Outras matérias ou explicações_______________________________________________
10. Em geral os iniciados mostram assimilação da matéria ensinada e aplicam em suas vidas?
Sim ( ); Não ( ). De que maneira______________________________________________
11. O que exclusivamente é reservado fazer apenas ao individuo iniciado?________________
12. Quais são as medidas aplicadas ao iniciado que não cumpre com as normas da iniciação?
___________________________________________________________________________
13. Quais são as medidas aplicadas ao individuo não iniciado?_________________________
14. Faz a gentileza de descrever alguns dos códigos e segredos tratados nos ritos de iniciação?
___________________________________________________________________
15. Explique as principais etapas do processo de iniciação ____________________________
16. Na comunidade yaawo é obrigatório passar pelos ritos de iniciação?
17. Em geral como é vista uma pessoa não iniciada e que venceu o seu tempo útil dentro da
sociedade
yaawo?______________________________________________________________
18. Os indivíduos não iniciados podem conviver com os iniciados no mesmo espaço na vida
social ativa?_________________________________________________________________
19. Quer deixar alguma mensagem à comunidade em geral sobre os ritos de iniciação?______
Muito obrigado pela sua participação
152

Instrumento de produção de dados-03

Roteiro da entrevista aos dirigentes das escolas abrangidas.


Nᵒ da ficha:________ Data: ____/____/_____
Dados do Pesquisador
Nome: Óscar Morais Fernando Namuholopa. Instituição: Universidade Federal de Goiás-
Goiânia, Brasil. Vínculo institucional: Estudante do Mestrado em Sociologia-FCS.
Finalidade da Pesquisa: Conclusão do nível de Mestrado em Sociologia.

Exortação
Este trabalho depende da sua boa vontade, saliento ainda que, a sua informação será de
grande utilidade, só serve para fins acadêmicos e garante-se o máximo sigilo. Ao aceitar esta
entrevista tem a liberdade de responder as questões que lhe convêm. Faço exortação para
que responda com clareza e sinceridade as perguntas que se seguem para permitir que se
chegue às conclusões mais precisas. Com a sua permissão, vamos iniciar a nossa entrevista.

I. Dados Gerais:
1. Nome_________________________________________________________________
(opcional e somente se concordar, caso seja necessário, que o seu nome conste na publicação)
2. Sexo. Marque com X a sua resposta: Masculino_____ Feminino_____;
3. Nome da instituição ____________________________________________________
4. Responsabilidade que ocupa na instituição. __________________________________
5. Tempo dentro da instituição_______________________
6. Localização da instituição (Localidade, Bairro) __________________________________
7. Religião predominante na área. Assinale com X a sua alternativa: Católica___
Islâmica______ Protestante ______ Outras______.
8. Principal meio de sobrevivência da de sobrevivência da comunidade:_________________
9. Nível de escolaridade da comunidade yaawo em relação às outras etnias na
região_________
i) Mau ( ); Medíocre ( ); razoável ( ); Bom ( ); Muito bom ( ) Excelente ( ).
153

II. Sobre a prática dos ritos de iniciação na comunidade Yaawo em Lichinga.


1. Na comunidade yaawo são praticados os ritos de iniciação?
Sim ( ); ii) Não ( ).
2. Em caso de sim na resposta anterior, que ritos são?
i) Somente masculino ( ); ii) Somente femininos ( ); iii) Masculinos e femininos ( ).
3. Em casos de sim em 1, em que período do ano são praticados?_______________________
4. Quanto tempo levam os ritos de iniciação?
i) Um (1) mês ( ); ii) um mês e meio ( ); iii) dois (2) meses ( ); iv) mais de dois (2) meses ( ).
5. Esse período não coincide com o curso do calendário escolar? Sim ( ); Não ( );
6. Caso coincida, os alunos abandonam a escola e quais têm sido as providências da direção?
__________________________________________________________________________
7. O calendário escolar tem sido publicado na comunidade em cada início do ano tendo em
vista o agendamento dos ritos fora do calendário escolar? Sim___ Não___.
8. Se sim em 7, de que maneira?__________________________________________________
9. Todos os alunos submetidos aos ritos de iniciação após o processo voltam à escola?
i) Sim____; Não ___. Quais serão os motivos em casos de não. ______________________
10. Qual tem sido a atitude dos iniciados ao voltarem à escola após os ritos?____________
_________________________________________________________________________
11. Como é que as outras crianças encaram o colega chegado dos ritos de iniciação?________
_______________________________________________________________________
12. Em geral, acha importante a prática dos ritos de iniciação na comunidade yaawo?
Porque?_____________________________________________________________________
13. Quer deixar algum recado para a comunidade em geral sobre a prática dos ritos de
iniciação?___________________________________________________________________
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___________________________________________________________________________

Muito obrigado pela sua participação


154

ANEXOS
Anexo 1-Moeda da Companhia de Niassa-1894

Fonte: REIS, (s/d, p.149).


155

Anexo 2-Território da Companhia de Niassa

Mapa 4-Moçambique e as companhias monopolistas

Mapa 5-Área da companhia de Niassa

Fonte: Cruz, 2014.

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