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FRANCA/SP
2021
AMANDA LORENA LEITE
FRANCA
2021
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3
AGRADECIMENTOS
seria possível, obrigada pelo apoio e incentivo de sempre. Não teria chegado até
aqui sem vocês.
A todos que cruzaram meu caminho nessa jornada, muito obrigada.
5
RESUMO
Este Trabalho de Conclusão de Curso é resultado de pesquisa de Iniciação
Científica financiada pelo CNPq (inicialmente) e pela Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processo nº 2019/14276-4. Tem como
objeto de estudo o trabalho da equipe multiprofissional com adolescentes que
cumprem medida socioeducativa de internação em uma unidade da Fundação
CASA, localizada no interior do Estado de São Paulo. Dentro disso, a pesquisa
buscou conhecer o trabalho dessa equipe junto aos adolescentes: verificando se
essa desenvolve um trabalho interdisciplinar como preconizado pelo ECA e pelo
SINASE; conhecendo a política educacional da instituição, tendo em vista um
trabalho interdisciplinar e de garantia da proteção integral; e refletindo como a forma
de trabalho dessa equipe contribui para o processo socioeducativo e de saída dos
adolescentes dos muros institucionais. Para isso, o estudo teve como orientação
teórico metodológica o método crítico dialético em Marx, o qual permitiu fazer uma
análise da totalidade complexa do objeto (sem a pretensão de esgotá-la), abordando
alguns elementos do contexto social, político, econômico e cultural que o envolve e
por meio da investigação da origem histórica e do desenvolvimento interno do objeto
de estudo. Para alcançar os objetivos foram utilizadas a pesquisa bibliográfica e de
campo. Na primeira, buscou-se informações já produzidas e registradas a respeito
do tema para auxiliar na fundamentação e aprofundamento teórico do objeto de
estudo. Na pesquisa de campo, foram entrevistados treze (13) trabalhadores da
Fundação CASA, sendo: seis agentes de apoio socioeducativo, uma assistente
social, uma psicóloga, dois agentes educacionais (um educador físico e uma arte
educadora), uma enfermeira, a coordenadora pedagógica e a diretora. Neste
sentido, a pesquisa apresenta como resultados a rotina de trabalho das diferentes
áreas de intervenção e as dificuldades da equipe em efetivar um trabalho na
perspectiva interdisciplinar, haja vista a falta de conhecimento deste, a dificuldade de
diálogo entre os profissionais com perspectivas diferentes e a sobrecarga na agenda
de trabalho. Além de ressaltar a importância das políticas públicas e do
fortalecimento da rede de proteção e direitos no processo socioeducativo.
ABSTRACT
This undergraduate final Project is a result from a Scientific Initiation research funded
by the National Council for Scientific and Technological Development (CNPq) and by
the São Paulo Research Foundation (FAPESP), process nº 2019/14276-4. Its object
of study is the multiprofessional team work with teenagers from the CASA
Foundation, located in the countryside of the State of São Paulo, who committed and
infraction. Within this, the research sought to know this work team with the
teenagers: checking if it develops an interdisciplinary work, as recommended by ECA
and SINASE; knowing the educational policy of the institution, considering the
interdisciplinary work and the integral protection doctrine; and reflecting about the
way the team contributes to the socio-educational process and the exit of teenagers
from the institution. For this, the research carried out of a critical Marxist dialectic
perspective, which allowed an analysis of the complex totality of the object (without
the intention of exhausting it), addressing some elements of the social, political,
economic and cultural context that involves it and through the investigation of the
historical origin and the internal development of the study object. To achieve the
objectives, we used the bibliographic and Field research. In the first one, we sought
informations that were already produced about the theme to assist the theoretical
fundamentalization. In the field research, thirteen (13) workers from the CASA
Foundation were interviewed: six sócio-education support agents, one social worker,
one psychologist, two educational agents (a physical educator and an art educator),
one nurse, the pedagogical coordinator and the director. Thereby, this research has
as results: the daily work of the different áreas and the team’s difficulties in carrying
out a work in an interdisciplinary perspective, that is caused by the lack of
knowledge, the difficulty of dialogue between professionals with different
perspectives and the overload working hours. It also highlights the relevance of
public policies and the strenghtning of the rights protection network in the socio-
educational process.
LISTA DE FIGURAS
LISTA DE TABELAS
LISTA DE SIGLAS
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO........................................................................................................12
CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................111
REFERÊNCIAS.......................................................................................................114
APÊNDICES............................................................................................................120
ANEXOS..................................................................................................................123
12
1 INTRODUÇÃO
1
As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de
responsabilidade dos autores e não necessariamente refletem a visão da FAPESP.
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2
Dados recebidos por e-mail em 28/04/2020 após solicitação pelo portal do Sistema Integrado de
Informações ao Cidadão: http://www.sic.sp.gov.br/.
3
A categoria “menor” refere-se à criança pobre que era mantida sob a vigilância do Estado, visto que
era considerada potencialmente perigosa, portanto era objeto de leis, medidas filantrópicas,
educativas, repressivas e programas assistenciais. O “menor” não era visto como criança, em que
esta se refere àquela que se encontra sob os cuidados da família e possui sua cidadania reservada.
Com relação à infância pobre, educar tinha por objetivo moldar para submissão ao capital
(RIZZINI,2008, p. 28-29).
4
Alguns juízes da infância e promotores ainda utilizam antigas categorias do Código de Menores
como “vadiagem” e “perambulação” como razão para privação de liberdade (VOLPI, 2015 , p.10).
14
– carregam um grande estigma social pela sua classe, raça/etnia, local da moradia e
configuração familiar fora do molde nuclear burguês, haja vista que a maioria dos
adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas mais severas são jovens
de famílias monoparentais femininas5, pretos6, das periferias.
Com isso, quando o adolescente passa pelo sistema socioeducativo,
principalmente pela internação, ele sofre um segundo processo de marginalização
ao retornar ao mesmo ambiente que o levou à infração, ou seja, sem acesso às
políticas públicas e com uma estigmatização social ainda maior.
Essas reflexões são, portanto, resultados de algumas indagações, as quais
caracterizam o problema de pesquisa, tais como: É possível falar de
interdisciplinaridade na equipe dos profissionais que fazem parte do processo
socioeducativo desses adolescentes, conforme previsto no Sistema Nacional de
Atendimento Socioeducativo (SINASE)? De que forma a interdisciplinaridade
contribui ou pode contribuir para uma ressocialização efetiva? O que poderia ser
feito, institucionalmente e no âmbito das políticas públicas no contexto neoliberal
para os jovens que cumprem medida socioeducativa e suas famílias a fim de reduzir
os casos de reincidência?
Nesse sentido, essa pesquisa teve como objeto de estudo o trabalho da
equipe interdisciplinar com adolescentes privados de liberdade em cumprimento da
medida socioeducativa internação em uma unidade da Fundação CASA localizada
no interior paulista. Dentro disso, a pesquisa tem como objetivo geral conhecer o
trabalho da equipe multiprofissional junto aos adolescentes que cumprem a medida
socioeducativa internação e suas famílias. Isto posto, possui alguns objetivos
específicos, são eles: verificar se a equipe multidisciplinar desenvolve de fato um
trabalho interdisciplinar como é preconizado pelo ECA e pelo SINASE; conhecer a
política educacional da Fundação CASA e as atividades realizadas/ oferecidas pela
instituição tendo em vista um trabalho interdisciplinar que garanta a proteção
integral; refletir, com base nos dados coletados, se a forma de trabalho da equipe
5
A Fundação CASA informou não possuir dados sistematizados sobre as configurações familiares dos
adolescentes, contudo, tendo em vista a experiência de estágio com esse público - em que conhecer
as configurações e condições familiares dos adolescentes era parte dos instrumentos de trabalho
utilizados – e os resultados da pesquisa de campo deste estudo, é possível afirmar a ausência da
figura paterna na configuração familiar da maioria desses jovens.
6
De acordo com dados obtidos através da Lei de Acesso à Informação no endereço eletrônico
http://www.sic.sp.gov.br/, 3627 adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa na
Fundação CASA são pretos ou pardos, o equivalente a 69,95% do total.
15
2 A CONSTRUÇÃO DA PESQUISA
7
http://www.fundacaocasa.sp.gov.br/View.aspx?title=a-funda%C3%A7%C3%A3o&d=10. Acesso em:
11 de maio de 2020.
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8
O questionário se encontra no Apêndice deste trabalho.
22
De acordo com José Paulo Netto, essas categorias não são eternas, mas “[...]
são historicamente determinadas e esta determinação se verifica na articulação
específica que têm nas distintas formas de organização da produção” (NETTO,
2011, p. 49). Marx define as categorias como “elementos estruturais de complexos
relativamente totais, reais e dinâmicos, cujas inter-relações dinâmicas dão lugar a
complexos cada vez mais abrangentes em sentido tanto extensivo como
intensivo”(MARX, 1993 apud Netto, 2011, p. 117). As categorias são, portanto,
elementos que constituem e auxiliam a explicação de algum fenômeno ou
movimento da realidade e que também orientam processos reflexivos.
A perspectiva crítica marxiana, como é colocada por Netto (2011), possui três
categorias fundamentais que são utilizadas junto às categorias teóricas: a totalidade,
a contradição e a historicidade, as quais não devem ser tomadas de forma isolada,
visto que estão articuladas.
A totalidade não é uma mera junção de fatos, ela se constitui em um todo
articulado, isto é, é um complexo constituído por complexos. A totalidade é dinâmica
e está em constante transformação, cujo movimento resulta do caráter contraditório
de todas as totalidades que compõem a totalidade. Por fim, uma questão essencial
está relacionada à descoberta das relações entre os processos ocorrentes nas
totalidades, relações estas que não são diretas, isto é, “elas são mediadas não
apenas pelos distintos níveis de complexidade, mas, sobretudo, pela estrutura
peculiar de cada totalidade” (NETTO, 2011, p. 57).
Ressalta-se que todo o processo de investigação obedeceu aos critérios do
Comitê de Ética em Pesquisa,bem como o Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido. Através dos procedimentos metodológicos interpretativos brevemente
explicitados aqui, foi possível analisar e compreender o trabalho da equipe
multiprofissional em uma unidade da Fundação CASA do interior paulista.
Tendo em vista que a devolução dos resultados da pesquisa, que é um dever
ético segundo o Código de Ética do Assistente Social, e que “a pesquisa acadêmica
precisa de um alcance social, isto é, levar à sociedade pesquisada conhecimentos
que levem essa a mobilizar ações para transformar a realidade e também contribuir
para a emancipação humana” (BOURGUIGNON, 2006, p. 50), a devolutiva deste
processo reflexivo tem se dado por meio da participação em eventos científicos com
a apresentação de trabalhos e elaboração de artigos.
23
9
Em 2020, se tornou Universidade Corporativa da Fundação CASA.
24
10
Dados obtidos através do Boletim Estatístico da Fundação CASA de 15/05/2020, encontrado no
site da instituição através do link <http://www.fundacaocasa.sp.gov.br/View.aspx?title=boletim-
estat%C3%ADstico&d=79>. Acesso em 18 de maio de 2020.
25
atuar de forma a tentar reduzir a distância existente entre a equipe técnica (equipes
pedagógicas e psicossociais) e os agentes de apoio socioeducativo - principais
atores da área da segurança. Com a reestruturação da instituição, portanto, a
segurança deveria deixar de atuar isoladamente e na perspectiva única de
contenção para atuar em conjunto com a equipe técnica ao fazer parte da Equipe de
Referência e sob o panorama de prevenção, com o caráter de proteção do
adolescente (FUNDAÇÃO CASA, 2014).
Com a Lei Complementar nº 1243, de 2014, passou a ser possível a
celebração de convênios com organizações da sociedade civil para o
compartilhamento da gestão dos Centros Socioeducativos, desde que essas
organizações atendessem ou promovessem os direitos de crianças e adolescentes.
Posto o convênio, as diretrizes de funcionamento das unidades são estabelecidas
pela Fundação CASA por meio das três superintendências, ficando cada centro
compartilhado com a autonomia para executar a elaboração de seu Plano
Pedagógico de acordo com a realidade de cada município. Com isso, de acordo com
o Boletim Estatístico da Fundação CASA do mês de maio de 2020, a instituição
possuía nesta data 25 centros socioeducativos com gestão compartilhada.
11
De acordo com o Boletim Estatístico da Fundação CASA de 15/05/2020, 94,98% dos(as)
adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa na instituição são do sexo masculino,
enquanto 5,02% são do sexo feminino. Dados encontrados no site da instituição através do link
http://www.fundacaocasa.sp.gov.br/View.aspx?title=boletim-estat%C3%ADstico&d=79. Acesso em 18
de maio de 2020.
27
12
Essa reflexão será aprofundada na quarta seção.
29
“Tem muita gente que acha que os meninos ficam à toa aqui, não
ficam de jeito nenhum. É da manhã até a noite com alguma coisa,
envolvido em alguma coisa, né? À noite que é mais lazer, um filme,
mas sempre tem alguma coisa, né? Então as pessoas... muita gente
acha que aqui não tem nada, ou que é uma escola de crime. Não é
nada disso. O nosso tempo, a agenda deles é totalmente
pedagógica.”–(CLAUDIA)
Com essa fala, fica-se a dúvida do perfil necessário para outras religiões
adentrarem aos muros da instituição, tendo em vista que essa está diretamente
ligada à uma organização católica.
Essa é a dinâmica da Unidade da Fundação CASA pesquisada. Na sequência
será refletida a historia das políticas públicas voltadas para a infância e a
adolescência do Brasil, com ênfase na infância pobre e marginalizada inserida em
um contexto capitalista de avanço neoliberal.
34
Além disso, colocam que a classe não é determinada pela renda, mas o
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“bandidos”. Nas ruas, Sandro dependia de ações filantrópicas; se envolveu com uso
de substâncias psicoativas; passou a furtar e roubar para sobreviver; sofreu diversas
violências policiais; foi recolhido pela polícia e privado de liberdade na FEBEM - local
onde sofreu mais violações de direitos –; e sobreviveu à Chacina da Candelária –
assassinato de 8 jovens em 1993 no centro do Rio de Janeiro, próximo à Igreja da
Candelária. Assim como muitos jovens, tinha o sonho de se tornar um rapper,
contudo este foi interrompido pelo seu assassinato pós sequestro do ônibus,
sequestro este resultado de um momento de desespero do jovem, o qual se viu
obrigado a manter pessoas reféns para negociar uma fuga ao ter o ônibus cercado
pela polícia após a sinalização de suspeita do jovem por um passageiro. Depois de
muitas horas de tentativa de negociação, influenciada pela forte presença e
interferência midiática, o sequestro teve um fim trágico, com a morte de uma refém e
de Sandro.
A culpa da incompetência policial recaiu sobre Sandro, afinal, a
responsabilidade de toda aquela situação foi atribuída exclusivamente a ele, sem ser
levado em conta, em momento algum, a negligência estatal por não proteger, mas
violar infâncias e adolescências específicas ou a negligência da própria sociedade,
por naturalizar crianças e adolescentes vivendo nas ruas e reagindo fechando os
vidros de seus carros de luxo nos semáforos para crianças que pedem dinheiro e/ou
tentam sobreviver com a venda de balas e doces. Com isso, essa parte da
população – crianças e adolescentes miseráveis - passa a ser tratada pelo Estado -
principalmente através da figura da polícia e do sistema judicial punitivo - e pela
população como meros “bandidos”, “drogados” – sem levar em consideração os
motivos do uso de substâncias psicoativas, que podem funcionar como meio de
amenizar o sofrimento de se viver nas ruas e aliviar o frio -,enquanto quem violenta
esses meninos e meninas ao decidir não enxergá-los de forma não estereotipada,
possui um lar, afeto, se alimenta mais de uma vez ao dia e dorme em camas
aquecidas. Com isso, o histórico de violações de direitos dessas crianças e
adolescentes não é considerado quando se reflete superficialmente suas vidas, que,
mesmo após 30 anos de ECA – legislação que deveria garantir a proteção integral
de todas as infâncias e adolescências -, sofrem incontáveis formas de violências,
que são menosprezadas ou naturalizadas.
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15
Brasil é o 10º país que mais mata jovens no mundo; em 2014, foram mais de 25 mil vítimas de
homicídio. Disponível em: https://nacoesunidas.org/brasil-e-10o-pais-que-mais-mata-jovens-no-
mundo-em-2014-foram-mais-de-25-mil-vitimas-de-homicidio/. Acesso em: 29 jul. 2020.
16
O uso abusivo de substâncias psicoativas, que deveria ser tratado como questão de saúde, é na
verdade tratado como crime.
42
17
Fonte: Assessoria de Inteligência Organizacional da Fundação CASA, 2020.
17
Tabela recebida via e-mail em 15/05/2020 após solicitação pelo portal do Sistema Integrado
de Informações ao Cidadão: http://www.sic.sp.gov.br/.
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reflexo da sociedade civil, em que esta pode ser definida como a esfera da produção
e da reprodução da vida material, isto é, o “modo como as coisas são produzidas,
distribuídas e consumidas, e as relações sociais para tanto estabelecidas”
(DURIGUETTO; MONTAÑO, 2011, p. 35) e, com isso, o Estado expressa e perpetua
as contradições da sociedade civil.
Como abordado por Ianni (1997), a burguesia, ao controlar os meios de
produção e as relações de trabalho, se torna classe dominante e estende o seu
poder ao Estado, o qual passa a ser condição básica para o exercício da dominação
e hegemonia burguesa, fazendo uso da coerção e da opressão quando necessário.
Entretanto, isso não impede que o Estado atenda simultaneamente aos interesses
burgueses e de outras classes sociais, pois como afirma Marx (apud IANNI, 1979, p.
36) “não se pode dar a uma classe sem tirar de outra, da mesma forma que não se
pode tirar tudo de uma classe, sob pena de extinguí-la”. Essa conciliação, portanto,
propicia a continuidade e a aceleração da acumulação capitalista através da
produção de mais-valia, além de evitar o agravamento da luta de classes.
É nesse contexto capitalista, de luta de classes e com o Estado
representando os interesses burgueses que surgem as políticas sociais, que são
respostas às expressões da questão social e às reivindicações sociais, em que a
burguesia faz algumas concessões sociais para poder manter seu papel
hegemônico e permitir o crescimento da acumulação de capital, ou nas palavras de
Behring e Boschetti (2011, p. 67) “entrega os anéis para não perder os dedos”.
Para falar das políticas sociais para a adolescência no Brasil é necessário
fazer um resgate histórico da gênese e do desenvolvimento das políticas sociais no
mundo, a fim de compreender os seus impactos na particularidade brasileira. Com
isso, de acordo com Potyara Pereira (2009), a política social pode ser dividida em
três fases.
A primeira fase está relacionada à algumas legislações sociais da Inglaterra -
berço da Primeira Revolução Industrial -, as quais eram punitivas, restritivas e
estavam relacionadas à assistência social, cujas ações eram minimalistas e
sustentadas na ajuda - não no direito - e tinham como contrapartida o trabalho
forçado, inclusive de crianças, adolescentes e idosos. A Lei dos Pobres inglesa pode
ser considerada como a primeira iniciativa do Estado enquanto proteção social,
contudo, ao invés de proteger as classes mais vulneráveis, protegia a sociedade dos
46
pobres, os quais eram subclassificados por lei e controlados através das Poor
Houses, criadas em 1576, e das Workhouses, de 1662. Com a Revolução Industrial
e no contexto de subsunção do trabalho ao capital, essas legislações, mesmo que
ínfimas e repressivas, são abandonadas e o pauperismo se torna a expressão mais
acentuada da questão social (BEHRING; BOSCHETTI, 2011, p.51).
Essa realidade impulsiona a organização e a luta dos trabalhadores por
melhores condições de trabalho, os quais foram responsáveis pelo surgimento de
novas regulamentações sociais e do trabalho pelo Estado (MARX, 1987 apud
BEHRING; BOSCHETTI, 2011, p.51). Com isso, é nítido que a luta dos
trabalhadores e dos movimentos sociais, ao longo da história, foram muito
importantes e necessárias para a expansão dos direitos sociais.
Dentro do ideário liberal assumido pelo Estado capitalista de meados do
século XIX até a terceira década do século XX, entra-se na segunda fase da política
social, com a ideia alemã bismarckiana de Seguro Social. Contudo, antes de abordar
a política social securitária, é relevante expor alguns elementos essenciais do
liberalismo, conforme colocado por Behring e Boschetti (2011, p. 61-62), como: o
predomínio do individualismo, em que acredita-se que o bem estar individual
maximiza o bem-estar coletivo, isto é, se todos atingirem seu bem-estar
individualmente, todos os indivíduos atingem uma situação de bem-estar; a
liberdade e a competitividade como fatores predominantes; a naturalização da
miséria, que passa a ser vista como resultado da moral humana e não como
resultado do acesso desigual à riqueza socialmente produzida; a minimização do
Estado, cujas intervenções devem se restringir a regular as relações sociais com
vistas a garantir a liberdade individual, a propriedade privada e assegurar o livre
mercado; a visão das políticas sociais como incentivadoras do ócio e do desperdício,
pois se propaga que elas desestimulam o interesse pelo trabalho e geram
acomodação e, por isso, devem funcionar apenas como um paliativo proveniente da
caridade privada. Em decorrência disso, Behring e Boschetti (2011, p. 51) colocam
que
homens negros. Na atualidade, a guerra às drogas pode ser traduzida como pretexto
de guerra contra a população negra, uma vez que a Lei n. 11.343 de 2016
estabelece diferenciação subjetiva entre traficante e usuário (quem decide é o juiz),
o que contribui para a explosão do sistema carcerário e socioeducativo (os
adolescentes presos por tráfico de drogas representavam 42% do total de jovens
atendidos pela Fundação CASA em maio de 2020 - ver Figura 2).
Outro fator da particularidade brasileira está relacionado ao que Santos
(2012) chama de “revolução passiva”, tendo em vista a recorrente exclusão popular
dos processos de decisão política no Brasil. Isso se deu através da antecipação das
classes dominantes aos movimentos ou potenciais movimentos sociais com a
“criação” de sindicatos pelo Estado como forma de controle e também através dos
vários períodos ditatoriais no país como forma de lidar com os antagonismos de
classe, resultando na fraca cultura democrática brasileira. Com isso, fica nítida a
centralidade da ação estatal na constituição do capitalismo brasileiro, ainda que a
consolidação deste tenha sido tardia no Brasil. O Estado, portanto, além de atuar
desestruturando e reprimindo as parcelas da sociedade que não expressam os
interesses burgueses e promulgando direitos e serviços sociais como “concessões”
e não como resultado da luta de classe, ele assume despesas e investimentos em
infraestrutura para a instalação do capitalismo no país, em que os custos passam a
ser socializados para toda a população, principalmente para os setores mais
subalternos (SANTOS, 2012, p. 121). Com isso, o espaço público do Brasil se torna
privatizado, isto é, operado pelas classes dominantes, em que os sindicatos são
vinculados ao aparelho estatal, os encargos da dívida externa se tornam
responsabilidade pública, e os saldos de exportação são apropriados pelo setor
privado.
O Brasil, ao não ter sido berço da Revolução Industrial, mas ter tido o
desenvolvimento das relações sociais com base em um sistema de escravidão e
agrário exportador com subordinação e dependência do mercado mundial, teve o
peso do escravismo na sua cultura, valores, ideias, ética, condições de trabalho e no
desenvolvimento desigual da sociedade sem uma radicalização das lutas operárias,
além do fato de a heteronomia – sujeição de indivíduos à vontade de um grupo -, ter
se tornado uma marca estrutural no capitalismo brasileiro que se mantém na
atualidade (BEHRING; BOSCHETTI, 2011). Nessa conjuntura, a burguesia brasileira
53
19
Ao utilizar o termo “criança” ou “infância”, como é feito por Rizzini, inclui-se também a adolescência.
57
“Há meninos, por exemplo, que chega aqui e é tão complicado isso ai
porque às vezes ele vem do orfanato, ele não tem uma referência
específica, há menino que só tem mãe, outros é criado com vó...
então o aspecto de família aqui dentro é muito ruim, cê entendeu? É
por causa disso também, eu acho 70, 80, 70 por cento um dos
motivos de tá aqui: aspecto familiar. Então estudar o aspecto da
família é sempre muito complicado, porque a família dos menino que
vem aqui, o aspecto familiar deles é muito confuso, cê entendeu?
58
“Adolescente ta aqui pensando na família lá, tem uns que tem filho,
tem uns que deixa a mãe com o irmão pequeno em casa
desamparado porque tem muitos que lá fora que é, assim, que é o
pai da família, né? Porque muitos que não tem o pai, né? 80% dos
adolescente aqui o pai abandonou a família, a mãe teve que ir morar
com a vó, a vó também talvez é viúva... sempre foi uma situação
difícil que vive o adolescente, o pai... a maioria aqui é pai separado
dos que tem aqui, o pai morreu ou o pai tá na cadeia porque é mal
exemplo pra eles.” (Emanuel)
20
A “situação de abandono” era um processo de julgamento das famílias, em que comissários de
vigilância (pessoas sem formação e perspectiva crítica da realidade) investigavam as casas, a
alimentação e a higiene dessas famílias para classificá-las como capazes ou incapazes de criarem
seus filhos (BERNAL, 24, p. 43).
61
21
O trabalho é uma dimensão importante da vida humana, uma vez que é a fonte de sobrevivência
e/ou realização profissional. Por isso, é preciso trabalhar a questão da inserção no mercado de
trabalho não como uma forma de reprodução do capital. Para isso, Volpi (2015, p. 45-46) coloca que
a participação dos adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas na definição, no
planejamento, no conhecimento técnico-científico e na definição do destino da produção é parte
importante de uso educativo do trabalho “onde as exigências pedagógicas relativas ao
desenvolvimento pessoal e social do educando prevalecem sobre o aspecto produtivo, superando
desta maneira as velhas dicotomias entre os que sabem e os que fazem, entre o trabalho manual e o
trabalho intelectual”.
62
Menores foi proibido o trabalho de crianças menores de 12 anos, com carga horária
permitida de seis horas diárias. Contudo, os trabalhos nas instituições de internação
ainda eram uma realidade colocada como enobrecedora, ao invés de exploradora
(BERNAL, 2004, p. 115, 116).
A sexualidade nessas instituições totais é um tema que também deve ser
debatido. Na pesquisa de Bernal (2004) sobre a vida dos internos nas instituições do
Serviço Social de Menores de São Paulo entre 1938 e 1960, ela constatou que havia
uma forte repressão à sexualidade, haja vista a obsessão pela preservação da
virgindade feminina e o controle da masturbação. Em contrapartida, foram relatados
vários casos de pederastia em que a vítima normalmente era tida como culpada.
Além disso, a homossexualidade era lamentavelmente tratada como defeito,
anormalidade ou perversão sexual. Ademais, com relação às adolescentes grávidas,
essas tinham de lidar sozinhas com a gestação, pois a assistência que recebiam
chegava de forma repressiva, o que resultou em muitos relatos de fugas e, quando
tinham os filhos nas instituições, tinham pouco contato, pois logo eram
encaminhadas para trabalhar, exceto em alguns casos em que era permitido levar
os filhos para a casa do contratante da soldada (BERNAL, 2004, p.151-155).
Junto a isso, juízes de menores usavam argumentos ditos científicos para
justificarem a intervenção na vida das populações mais vulneráveis, em que eram
feitos exames do estado físico, mental e moral dos menores e dos pais e tutores
responsáveis pela guarda, além da análise econômica destes últimos. Existia,
inclusive, um Laboratório de Biologia Infantil que investigava as causas que levaram
a criança ao vício e ao crime analisando questões hereditárias, e com base nessas
investigações extremamente conservadoras e preconceituosas com aparência de
ciência, juízes decidiam o destino de milhares de crianças e adolescentes. Com
isso,
Com isso, as crianças tuteladas pelo Estado eram comparadas aos imigrantes,
sendo consideradas “estrangeiras na própria terra” (RIZZINI, 2009, p. 258) e, dessa
forma, eram incorporadas na vida dos campos para o trabalho.
Esses patronatos funcionaram por 12 anos, sendo fechados em 1933 sob a
alegação de que não passavam de “meros asilos” ao invés de escolas de ordem,
estudo, produção e civismo, como foram teoricamente planejados para ser.
Em 1927 é decretado o Código de Menores, legislação específica para a
infância e adolescência que focalizava o “menor em situação irregular” - os pobres,
os abandonados e os infratores -, que deveriam ser recuperados através da
internação em instituições correcionais. Esse código, “ao mesmo tempo que indicava
a proteção por meio de uma legislação específica às crianças e adolescentes,
contribuía para fomentar estereótipos sobre a infância pobre, abandonada, vadia,
pervertida e infratora” (BERNAL, 2004, p. 24-25,43).
Em 1941 foi criado o Serviço de Assistência a Menores (SAM) com o objetivo
de centralizar a assistência do “menor”, que era tratado na esfera jurídica pelos
Juízes de Menores e pela atuação isolada de algumas instituições. Apesar da
responsabilidade de organização dos serviços de assistência aos “menores” ter sido
retirada dos juízes, o atendimento a esse público continuou subordinado ao
Ministério da Justiça. O SAM, portanto, passou a controlar as ações dirigidas à
infância e adolescência vulneráveis, tanto no setor público quando no privado, ao
funcionar como um órgão central orientador.
Além disso, uma vez que a concepção positivista que rege a ideologia burguesa
divide a sociedade em três setores sem uma perspectiva de totalidade (Estado como
primeiro, mercado como segundo e sociedade civil como terceiro), o autor coloca
também que:
Além disso, no Art 4º, a lei coloca como dever da família, da comunidade, da
sociedade em geral e do poder publico:
Posto isso, o Estatuto prevê que a medida aplicada ao adolescente deve levar
em consideração a sua capacidade de cumpri-la, as circunstâncias e a gravidade da
infração, e que a internação deve ser a última medida aplicada e apenas quando se
tratar de ato infracional de grave ameaça ou violência a pessoa; por reiteração no
cometimento de infrações graves; e por descumprimento reiterado e injustificável da
medida posta anteriormente. Entretanto, quem julga a gravidade desses atos
infracionais são juízes de acordo com suas concepções de mundo, as quais muitas
vezes ainda estão voltadas para o código de menores e reproduzem o racismo
institucional e a criminalização da pobreza. Essa realidade pode ser vista no
documentário “JUÍZO”, de 2008, dirigido por Maria Augusta Ramos, o qual mostra a
atuação despreparada, preconceituosa e extremamente desrespeitosa de uma juíza
do Rio de Janeiro nas audiências com adolescentes que cometeram atos
infracionais, caso que não é isolado e mostra como preconceitos – sobretudo o de
classe e o racismo - se reproduzem institucionalmente.
As medidas socioeducativas, conforme apontadas por Volpi (2015),
“constituem-se em condição especial de acesso a todos os direitos sociais, políticos
e civis” (2015, p. 17) e tem como finalidade maior a formação para a cidadania
(2015, p. 37). Entretanto, além disso não se efetivar na realidade (principalmente na
internação), mostra como é necessário pensar nesses direitos em momento anterior
76
isso, a realidade objetiva e subjetiva de vida dessas famílias quase não é levada em
consideração22. Quando foi sugerido aos participantes da pesquisa que falassem
sobre as suas opiniões a respeito do adolescente que comete ato infracional e
reincide, a culpabilização da família (principalmente da mulher) esteve presente em
quase todas as falas, com destaque para algumas:
“Há meninos, por exemplo, que chega aqui e é tão complicado isso ai
porque às vezes ele vem do orfanato, ele não tem uma referência
específica, há menino que só tem mãe, outros é criado com vó...
então o aspecto de família aqui dentro é muito ruim, cê entendeu? É
por causa disso também, eu acho 70, 80, 70 por cento de um dos
motivos de tá aqui: aspecto familiar. Então estudar o aspecto da
família é sempre muito complicado, porque a família dos menino que
vêm aqui, o aspecto familiar deles é muito confuso, cê entendeu?
Existe uma ausência muito grande, por exemplo: do pai, da mãe,
normalmente são separados.” (ANTÔNIO)
22
Não é a intenção deste trabalho romantizar as relações familiares desses adolescentes – uma vez
que a família, muitas vezes, pode ser a principal violentadora de direitos de suas crianças e
adolescentes ,entretanto essa realidade não deve ser generalizada. Por isso, esse trabalho propõe a
necessidade da busca pela análise mais profunda das condições materiais e subjetivas dessas
famílias; de tentar compreender quais as violências cotidianas e estruturais as quais estão sujeitas e
de como elas conseguem se colocar em um mundo cuja hegemonia burguesa insiste em afirmar que
elas pertencem apenas às periferias das cidades ou em trabalhos subalternos que contribuem para a
reprodução da sociabilidade burguesa capitalista. Como colocado por Prado (2017, n.p), a família,
assim como toda instituição social, apresenta tanto aspectos positivos (como núcleo afetivo, de apoio
e solidariedade) quando negativos (muitas vezes são elementos de coerção social, geradora de
conflitos e ambigüidades).
85
Dos que tem aqui, o pai morreu ou o pai tá na cadeia porque é mal
exemplo pra eles.” (EMANUEL)
“A gente faz todo um trabalho com eles, ai ele vai cair na vida lá,
tipo, no sistema e eu costumo falar que a família tem que tá muito
perto, muito próximo com estrutura.” (DANIEL)
“Ah. É muito difícil eles conseguir sair. É muito difícil. Porque por
mais aqui que ta tem droga, aqui tem os tratamento dos enfermeiro,
que vai acompanhando, passando remédio, mas quando o
adolescente sai... porque existe a dependência e abstinência e existe
a questão da idade, o moleque é novo ainda, existe a questão do
87
dinheiro, que é fácil, né, porque você ganha muito fácil numa noite,
inclusive pessoas ai que vai comprar droga deles, então eles ganha
dinheiro fácil. Nessa idade quer ter dinheiro mesmo. E existe a
família, que num tem uma estrutura específica, já existe o tempo
quando você tenta curar uma pessoa, quando você tenta é... um
menino, uma pessoa de 16, 17 anos já é muito mais difícil, né?
Quando você pega um de 14 ou de 15, ne?... Então o desafio é muito
grande, porque tem vários... tem o meio que o menino vive, tem a
família dele que tem pouca estrutura, tem a questão do dinheiro,
tem a questão aqui das oportunidade.” (ANTÔNIO)
“‘Ah não, dona, não quero mais mexer com droga, vou respeitar
minha mãe, não quero mais saber do crime’, mas muitos deles não
têm o aporte lá fora da família mesmo, pelo contrário, muitas vezes a
família leva a voltar pro crime, né? Que eles falam sobre o crime...
então muitas vezes a própria família... é algo assim, muito triste, mas
é real e não é raro.” (CATARINA)
“Eu não consigo dar atenção total aos 20 meninos, 21 meninos que
eu tenho, sabe? Aí eu fico pensando no CRAS e no CREAS que tem
600 mil, sabe? e não tem... E a gente sabe que depende muito da
família em si, né? Igual, aqui a gente orienta, fala “vai atrás,
busca”. Tem família que vai, tem família que vai atrás e que fica
lá no pezinho do CRAS, consegue até umas coisinhas. Mas
aquela que a gente fala e fica esperando o CRAS ir atrás, sabe?
É muito difícil. E eu vejo que a reincidência acaba um pouco nisso
aí, porque aqui, querendo ou não, o adolescente respira mais fundo –
eu costumo brincar - a gente falar ‘Cê tá bem? O que aconteceu?’
Sabe?... A família ta sem dinheiro nós tenta procurar uma cesta, não
só de forma... né? Às vezes consegue muito pela igreja, sabe? Nem
é pelo CRAS mesmo, porque às vezes a gente encaminha e não
tem. Então assim, acontece qualquer coisa a gente tá aqui para
socorrer, né? Quando as famílias também dão abertura para querer
pedir ajuda, porque tem algumas que sofre e a gente nem fica
sabendo, né?” (LÚCIA)
Sobre isso, Mioto (2015) faz uma análise do impacto do projeto neoliberal na
condução das políticas de seguridade social, em que há uma regressão do Estado
na provisão do bem-estar e um amplo processo de privatização (que ocorre tanto via
mercado quanto via familiar) das políticas sociais, as quais vêm adquirindo caráter
familista, refletindo diretamente no campo de oferta dos serviços sociais, haja vista
a:
insuficiência/ausência de serviços, especialmente públicos/estatais
de caráter universal; forte investimento de recursos em subsídios à
oferta de serviços por entidades não governamentais, os quais
tendem a ser focalizados, seletivos, precários e normalizantes; e
também da incorporação das famílias no cotidiano dos serviços
ofertados (MIOTO, 2015, p. 707-708).
“Por que que eu falo que difere um pouco do hospital? Lá fica muito
assim na questão de medicar, né? Medicalizar o paciente, recuperou
vai embora. Aqui a gente tem sim, mas assim, a gente trabalha um
conteúdo – eu, pelo menos, procuro trabalhar mais o cuidado integral
mesmo, que é o preconizado pelo SUS, né?, e o conceito atual de
saúde pela OMS que é o bem estar bio, psico, físico, espiritual do
adolescente. Então a gente abrange, tenta abranger todas essas
áreas.” (CATARINA)
ela se sente fora da lei. Ela tem que justificar muita coisa... ela
prefere se afastar. Então a gente tenta ir mediando esse contato para
que depois esse fluxo permaneça, esse atendimento tenha
continuidade.” (Cecília)
“eu acredito muito no lado externo. É mais lá do que aqui, né, igual:
aqui a gente consegue trabalhar, porque o menino ele ta sem droga,
ele ta sem acesso a tudo que ele tem lá fora, né? As más influências,
o ambiente dele... Aqui ‘ta fácil’, vamo por entre aspas, né? Aqui a
gente consegue... e lá fora? Como que vai ser esse retorno? A gente
preparou? A família ta preparada pra receber, né? Tem família que a
gente ajuda daqui de dentro, porque o menino ta aqui e a família
DEPENDE do corre dele. Aí como que cê faz com o adolescente?
Como que você cobra dele uma postura diferente? Uma tentativa a
mais, assim, né?... se ali tá faltando, né? Então acho que o nosso
trabalho é bem complicado e frustrante, né?” (Ana)
Posto tudo isso, a solução encontrada pela equipe para suprir a necessidade
de acompanhamento do adolescente no pós medida, é a sugestão para o judiciário
da aplicação de outra medida socioeducativa: a liberdade assistida. Esta é vista
pelos trabalhadores como um meio de os egressos da internação acessarem
direitos, uma vez que o sistema de garantia de direitos do município não viabiliza a
possibilidade ou a construção de uma perspectiva de melhoria de condição de vida
desses jovens e de suas famílias.
“Tipo: eu acho que deveria ser um trabalho fora daqui, eu acho que
deveria continuar. Mesmo a gente, vamos dizer assim, aplicando
outras medidas, que é a LA, que é Liberdade Assistida, que tem o
acompanhamento, eu acho que precisaria, na minha opinião, dum
trabalho mais profundo com os meninos quando sair daqui,
entendeu? Porque eu acho que é o grande problema da questão do
acompanhamento. Acompanhar mais o adolescente pra não tá
podendo voltar, ne? [...] Às vezes acontece da gente conseguir
alguma coisa, um curso, um trabalho, mas na medida ali a gente
sempre tenta “ó, eu acho que esse adolescente precisa mais de um
acompanhamento quando ele sair daqui”, ai a gente sugere algumas
medidas, né, tipo semiaberto ou LA, que seja e tal.” (Daniel)
parte mesmo. Eles vão pensar em alguma coisa... porque aqui, eles
vem pra cá eles tem o curso, tem tudo de bão e do melhor pra eles
aqui dentro, entendeu? Pode ser que eles não tem agressão
nenhuma, eles são bem atendidos pelas parte técnica, os agente
tudo trata com respeito os adolescente, entendeu? Tem as oficinas
que eles participam, alimentação é ótima também. Ai o que vem
nessa parte de impunidade é quando ter 18 anos, ai eles vão cair no
sistema, se for voltar ai vai ser o crime que eles vão cometer. Ai eles
vão pro sistema, ai no sistema que eles vê o que que é ficar preso
de verdade.” (Emanuel)
“Como a gente trabalha aqui, a gente conversa muito com eles, né?
Então assim, a gente conhece profundamente a questão. Por isso
que a gente tava falando do negócio de idade, né, não é só assim, o
ECA tem que ser discutido na íntegra, até tem que ser separado
criança com adolescente.” (Antônio)
Diante de tudo que foi apresentado aqui, torna-se necessário refletir sobre
quem são as pessoas que estão trabalhando com adolescentes privados de
liberdade, sobre as suas concepções de mundo e sobre as formas de contratação e
preparo desses profissionais para lidarem com a realidade complexa que envolve a
vida desses meninos e suas famílias, sem estereótipos e preconceitos e em uma
verdadeira perspectiva de proteção integral e garantia de direitos.
O prefixo inter, como colocado por Potyara Pereira (2014, p. 33-34), remete à
uma relação dialética (relação esta que não diz respeito a um amontoado de partes,
mas em um todo unido, cujas partes que o constitui se ligam organicamente e
nenhuma delas possui sentido e consistência quando isoladas) e essa totalidade
dialética comporta atitudes recíprocas e antagônicas - uma vez que são essas
contradições que a tornam dialética. A autora ressalta que a superação dialética não
significa aniquilações das particularidades, e sim ultrapassagens que se apoiam
nessas particularidades, dado que o particular/específico apenas tem valor quando
relacionado ao universal. A interdisciplinaridade “se impõe não como uma proposta
de destruição da especialização, já que esta configura o particular que se realiza no
universal e vice versa, mas como um convite ou um alerta ao especialista para que
este se torne também sujeito da totalidade” (PEREIRA, 2014, p. 36). A
interdisciplinaridade sugere, portanto, uma relação de reciprocidade entre diferentes
saberes.
O campo social não é privativo de uma única área e a interlocução entre as
áreas diversas que trabalham no processo socioeducativo de adolescentes em
conflito com a lei é estratégia importante para que essas áreas não se cristalizem no
interior de seus conhecimentos, os quais não são absolutos (ON, 1998, p. 156). On
coloca a interdisciplinaridade como uma
25
É importante destacar que em se tratando do trabalho interdisciplinar com adolescentes, a
convivência/diálogo com o múltiplo não deve significar a aceitação de ideias e perspectivas
103
“Trabalhar em equipe não é muito fácil. É... não adianta falar que isso
se dá de maneira, assim – não to falando por mim, to falando por
equipe agora – que isso se dá de maneira perfeita excelente, que
aqui sai mil maravilhas. É mentira, se alguém dizer isso pra você,
isso é mentira. É um relacionamento um pouquinho conflituoso, por
causa que a cabeça das pessoas são muito diferente. Cê tem uma
equipe que trabalha diretamente com o adolescente durante todo
tempo, que acompanha a rotina dele do começo ao final, né? Você
tem uma equipe técnica que trabalha – que é o serviço social e a
psicologia – que o serviço é um pouco diferente, né? É mais de
chamar o moleque, de ver uma coisa aqui, outra... tem relação... só
tem com a família do adolescente, ne? Que faz todo um trabalho
completamente diferente do da gente. Então é uma relação assim, às
vezes um pouquinho conflituosa. É... justamente por causa dos ponto
de vista e ideias diferentes, cê entendeu? [...] Quem ta na área, é
assim... porque funciona assim: somente quem ta na área que
conhece profundamente aquele trabalho, quem tá por fora, é...
você... pra entender melhor vai ter que conversar bastante,
108
“Acho que o que falta muito – não sei se é porque eu to nessa fase
de reflexão - é de cada um se apropriar mesmo da sua área para
conseguir trabalhar com a outra, entendeu? Porque às vezes, como
tá tudo junto e misturado a gente não consegue diferenciar o que é o
que. Aqui, funcionário tem muita dificuldade de saber quem que é
serviço social e quem que é psicologia. Então tem hora que ‘Ah, você
é psicóloga’ e eu ‘Não, sou assistente social’, até porque como aqui
somos chamados de técnicos, então é tudo técnico, não consegue
ter essa diferenciação, né? Tanto que é um caminho que a gente
está percorrendo, só que eu acho que falta muito. ‘Nossa, eu preciso
ser mais assistente social do que só ficar lá em atendimento ao
adolescente ou atender a família de forma pontual, assim, né? Então
eu acho que isso que esbarra de ter essa.... como que fala? Isso,
interdisciplinaridade. Porque cada um às vezes não tem apropriação
da sua área para poder, sabe, ta com a outra e, assim, ter essa
discussão, né? Mas ta caminhando. Espero. Amém. (risos)” (LÚCIA)
“É... a gente tenta, assim, a minha opinião né, a minha visão. A gente
tenta fazer esse trabalho interdisciplinar, a gente tenta... é...
geralmente é quando um menino apresenta algum conflito, ou
quando ele apresenta alguma dificuldade, alguma limitação, aí a
gente busca a equipe, né? Às vezes um menino que não apresenta
nenhum problema, num tem dificuldade, num... num te dá nenhum
probleminha ali, cê vai seguindo com ele, né? E ai a gente fica
sabendo das coisas, geralmente no estudo de caso, numa conversa
de corredor, alguma coisa assim. Agora, o trabalho mesmo
interdisciplinar eu acho que é falho, em alguns momentos aqui, eu
acho que a gente tinha que trabalhar mais o perfil de cada um, sabe?
Como que a gente atende cada um. Assim como eu tenho o perfil de
109
“A gente, a gente tenta muito, assim... Eu vou pôr por mim, eu tento
bastante desenvolver esse trabalho. A gente tem alguns entraves
aqui: os adolescentes tem toda uma rotina, e muitas vezes – então,
por exemplo, pra eu conseguir trabalhar com o pedagógico tem que
associar a agenda dos adolescentes, com a agenda do pedagógico,
com a minha agenda e isso é um pouco difícil muitas vezes, mas por
exemplo, toda sexta feira a gente tem uma reunião de avaliação aqui
dos adolescentes – a equipe só, os adolescentes não participam -,
isso propicia um pouco esse trabalho interdisciplinar, porque assim, a
gente tem... um adolescente entrou, ele vai ter uma equipe de
referência: o que que ele vai ter? um efermeiro, vai ter uma
assistente social, um psicólogo, um educador e, geralmente, são três
ou quatro da segurança. Então, essa equipe de cinco, seis pessoas,
ela tenta se articular para desenvolver algum trabalho com o
adolescente, embora tenha dificuldade.[...] A agenda, a gente
encontra muita, assim, resistência, por parte principalmente da
segurança, não que não seja aceitada, mas às vezes dificulta muito
porque tem seu conceito, muitas vezes aquela ideia: ‘Ah, é infrator,
pra que, né, investir?’. Muitas vezes é realmente devido, assim, é um
medo de acontecer algo mesmo que possa prejudicar a segurança
de todos.” (CATARINA)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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