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A SABEDORIA PRÁTICA (PHRONESIS) NO PEDAGÓGICO

Luiz Gilberto Kronbauer - UFSM

Inicio pela afirmação de Gadamer, de que ‘o núcleo do problema hermenêutico é que


a tradição como tal tem de ser entendida cada vez de uma maneira diferente, então - sob
o ponto de vista lógico - trata-se da relação entre o geral e o particular.' Daí o recurso
à ética aristotélica para esclarecer que “compreender é aplicar algo geral a uma
situação concreta e particular”. (GADAMER, 1998, p. 465) Aristóteles tratou da
apreciação correta do papel da razão no agir moral, na definição geral do que seja bom
para o ser humano e de como esse conceito pode servir de referência para a boa decisão
nas situações cotidianas.
Aristóteles recoloca “virtude” e “saber” (areté e logos) na sua verdadeira medida,
mostrando que o elemento que sustenta o saber ético e de toda práxis é ambicionar fazer
(orexis) e sua elaboração numa atitude firme (hexis)” (Gadamer, 1998, p. 466). Desse
modo o conceito da ética carrega no seu nome a relação com essa fundamentação da
virtude, no ethos e nas ações práticas.
Para nos entendermos com Aristóteles iniciamos com a distinção que ele faz entre o
ethos (o costume e o saber implicado em toda práxis) e a physis. O comportamento moral
dos seres humanos em sociedade é pautado por normas, mas elas se distinguem das leis
da natureza, que são inerentes aos próprios fenômenos e são leis fixas, enquanto que as
normas morais (o ethos de toda práxis) são estabelecidas socialmente e são, portanto,
históricas e mutáveis. A questão da hermenêutica se coloca exatamente porque tais
normas precisam ser interpretadas e aplicadas por cada ser humano a situações
particulares e concretas. Isso tem tudo a ver com a práxis educativa, com a formação
inicial e permanente...
Talvez não percebamos de início a relação entre a Ética de Aristóteles e a educação
porque o filósofo estabeleceu como primeira exigência a possibilidade de um saber
filosófico acerca do Bem e da práxis em conformidade com ele. A partir daí pôde deter-
se em examinar as situações concretas do dia-a-dia à luz deste saber, a fim de pensar com
esse critério, decidir firmemente e agir.
Seguidamente se ouve a pergunta sobre a utilidade desse tipo de definição: o que é o
Bem. E está certo, porque um saber geral, que não é aplicável à situação concreta, pode
atrapalha mais do que ajudar na nossa ação diante das exigências concretas que emanam
de uma determinada situação. Talvez o nosso problema resida na compreensão da
natureza desse tipo de saber, o saber prático. Ele é um saber filosófico do geral, muito
diferente daquilo que os gregos denominavam de “episteme”: esse conhecimento geral
que se pode ter de um fenômeno da natureza. Aristóteles mesmo expõe essa questão
epistemológica, distinguindo o conhecimento matemático e da natureza, do conhecimento
filosófico que se pode ter da práxis. (EN, I, 1094b) E essa distinção continua muito atual,
porque, por um lado, seria negligência de nossa parte tratar da coisa mais importante da
nossa existência (a nossa própria formação) de qualquer jeito; por outro, sabemos que não
podemos definir com precisão matemática, ao modo de uma lei da natureza, em que
consiste o Bem último, também nomeado auto realização ou de felicidade, que serve de
referência para toda práxis.
Pensemos nessa práxis por excelência, essa atividade mediante a qual buscamos
prover as condições objetivas e desenvolver as condições subjetivas para a realização
humana, ou seja, a educação como formação humana em geral. Como seria se
deixássemos isso acontecer de qualquer jeito, sem intencionalidade, por não haver como
teorizar com rigor sobre essa práxis para nos entendermos sobre sua legitimação e sua
finalidade. Sem uma referência, uma direção de sentido, seríamos semelhantes a ‘exímios
atiradores mas que não tem nenhuma noção de onde está o alvo a ser atingido’ e
atiraríamos a esmo. Assim é a condição humana na falta de uma noção geral do que seja
o Bem para nós.
Aqui estamos diante do problema central da reflexão sobre a formação humana
em geral (que engloba, sem dúvida, a nossa profissionalidade docente) e deparamos com
a questão do método nele implicado, como parte integrante desse problema e não como
algo exterior a ele, ou como algo apenas instrumental; estamos diante da relevância moral
do próprio problema do método sempre que se trata da práxis. (GADAMER, p. 467) O
método diz “como”, portanto, refere-se aos meios. Tanto na ética aristotélica quanto na
educação isso não é secundário. Não basta que os meios sejam tecnicamente eficientes, é
preciso que sejam ‘bons’, isto é, moralmente virtuosos.
Outra questão que seguidamente nos ocorre é de como se pode fazer educação com
seriedade, especialmente formação de docentes, se, tal como no terreno do problema
ético, não podemos contar com um conhecimento preciso, que possa nos dar
previsibilidade e segurança na prática diante de cada situação concreta? A partir da Ética
a Nicômaco esse quesito de precisão está fora de lugar aqui. Aqui há que se contentar em
“tornar visível o perfil das coisas” para ajudar o agente com os traços ou o esboço do
mero perfil. É deste modo que Gadamer (1998, p. 467) interpreta a passagem em que
Aristóteles distingue o saber matemático do saber acerca do bem e as metodologias
correspondentes, acima referida.
O que está em jogo em toda a práxis (Ética, Educação, Política) é que o problema de
como deve ser possível a ajuda deste saber para a práxis já é um problema moral, uma
vez que “faz parte dos traços essenciais do fenômeno ético, que aquele que atua deve
saber e decidir por si mesmo e não permitir que lhe arrebatem essa autonomia por nada.”
(GADAMER,1998, p. 467) O autor tem o cuidado de não se intrometer na consciência
moral de quem precisa decidir e agir, e ao mesmo tempo entende que tal saber não isenta
o agente de pensar esse “perfil” para a sua prática. Claro que esse saber geral deve poder
nos ajudar diante dos problemas concretos, mas supõe também que aquele que receber
essa ajuda precisa ter maturidade existencial e autonomia suficiente para não esperar
dessa indicação geral mais do que esta pode e deve dar. Dito de modo positivo, “por
educação e exercício ele já deve ter desenvolvido uma determinada atitude em si mesmo,
e seu empenho constante deve ser mantê-lo ao largo das situações concretas de sua vida
e conservá-la através de um comportamento correto. (Gadamer, 1998, p. 467) A partir
dessa interpretação da parte final da Ética a Nicômaco podemos, por analogia direta,
avançar na reflexão sobre a questão da teoria e de sua aplicação na educação.
Já percebemos que, segundo Aristóteles, o problema do método é determinado pela
natureza do assunto, mas ao adotar uma lógica menos rigorosa para a filosofia prática,
que ele chama de “retórica”, não significa que esteja abrindo mão do saber filosófico dos
fundamentos da práxis. Na ética são imprescindíveis os dois momentos, o do ethos (saber
acumulado) e o da reflexão: a tradição e a teorização crítica. Mas no espírito da
Hermenêutica, a tradição não é um objeto que temos diante de nós. Antes, estamos dentro
dela, pertencemos a ela, de tal modo que o saber prático não é uma forma de alheamento
com relação a realidade da práxis. No saber prático estamos às voltas com algo que nos
afeta imediatamente; com algo que nós temos de fazer. Por isso ele se diferencia da
episteme das ciências da natureza, que se limitam a constatar o que um determinado ente
é, por exemplo, um elemento químico: suas propriedades, sem que estejamos implicados
nesse conhecimento. Para os gregos e para a ciência moderna esse é um saber acerca das
coisas que não se alteram (fisis), que pode ser demonstrado com rigor matemático e
também ser aprendido de modo igual por qualquer pessoa.
Diante desta ciência teórica, o saber prático, da educação, da ética e da política,
implica sempre o ser humano e o que este sabe de si enquanto ser que age; saber que não
há como comprovar. Isso porque “aquele que atua lida, antes, com coisas que nem sempre
são como são, pois que podem também ser diferentes. Nelas descobre em que ponto pode
intervir na situação. Seu saber deve orientar seu fazer”. (GADAMER, p. 468) Este é o
problema do saber prático, não só o saber de moral, mas especificamente o saber
pedagógico, de qualquer processo de formação, pois nesse caso o próprio ser humano,
como agente, está implicado. É um saber que precisa poder ser aplicável para não ser
inútil, mas a sua aplicação não consiste naquilo que os gregos denominavam de tekne,
que é o saber do artesão ou de tudo que produz algo que pode ser alienado.
Se o saber da educação fosse dessa natureza ele poderia nos prescrever como cada ser
humano deveria produzir a si mesmo, assim como o artesão aprende a fazer para fabricar
algo ou como aprendemos a fazer iguarias especiais aplicando receitas. Mas o ser humano
não pode projetar um ideal para si mesmo. Claro que o saber do artesão é, de fato, um
saber real, enquanto arte e habilidade, e que também tem por base a experiência. Assim
como o saber da práxis, é um saber prévio e que pode orientar a ação. É, portanto,
aplicável às situações concretas. Neste ponto é que está a atualidade hermenêutica de
Aristóteles, ao mostrar que tanto o saber técnico quanto o saber ético “contêm a mesma
tarefa da aplicação”, que é “a dimensão problemática central da hermenêutica”.
Mas a aplicação em um caso e no outro não é a mesma coisa. Gadamer acentua a
diferença que há entre a téchne que se aprende pelo ensino e a que se aprende pela
experiência, isto é, fazendo, e conclui que o saber prévio que alguém adquiriu (num curso
para produzir algo) não é necessariamente superior, na prática, ao saber de um iletrado
no assunto, mas muito experimentado. Mas “nem por isso se chamará "teórico" o saber
prévio da téchne, menos ainda ao se levar em conta que a aquisição de experiência aparece
por si só no uso desse saber”. (p. 471) Mas Aristóteles acrescenta que a boa técnica
depende do saber ou que o bom êxito acompanha aquele que aprendeu seu ofício. (EN,
1095a) Gadamer continua: “o que se adquire adiantadamente na téchne é uma autêntica
superioridade sobre a coisa, e isso é exatamente o que representa um modelo para o saber
ético”. Assim como para o artesão ou o técnico em geral, também para as decisões
corretas na práxis só o senso comum da experiência não é suficiente. Em ambos os
casos a atuação é guiada por um saber prévio e visa um fim determinado, mas não
podemos nos produzir a nós mesmos da mesma forma como um sapateiro produz
um sapato. Também o saber sobre si mesmo é diverso do saber produtivo, técnico. Mas
não se consegue distinguir com facilidade a diferença entre o saber técnico e a sabedoria
prática (o saber de práxis), pois assim como na práxis, também na técnica se lida com o
que pode ser alterado. No caso do saber técnco, o artesão que sabe produzir algo, sabe
algo bom, e o sabe "para si" de modo que, sempre que tiver as possibilidades
correspondentes, ele poderá produzi-lo de fato. Ele lançará mão do material adequado e
escolherá os meios corretos para a realização; ele também deve saber aplicar o que
aprendeu em geral à situação concreta. O mesmo vale também no caso da práxis. Ter que
tomar decisões morais e pedagógicas supõe que se tenha as condições, que já se tenha
aprendido antes, por educação e pela experiência, o que é correto de modo geral. É isso
que nos habilita a encontrar o que é adequado na situação concreta; ver concretamente o
que nela é correto, decidir e agir. Como na téchne, precisa lançar mão e escolher os meios
adequados, e seu agir tem de estar orientado tão sopesado como o do artesão.
Isso posto parece que estamos falando de tipos de saber que não diferem entre si. Mas
ao levar em conta muitos aspectos para caracterizar a phronesis e sua aplicação Aristóteles
vai apontando as diferenças. Enquanto que o conhecimento técnico se aprende e pode ser
esquecido, a prática não pode ser apendida (ensinada abstratamente) nem pode ser
esquecida “porque diante dela não estamos como que diante de um objeto do qual
possamos nos apropriar ou desfazer. (na nossa formação é assim, de modo modificado ou
não, tudo é conservado) No saber prático nós mesmos nos encontramos na situação de
quem tem de atuar e, para fazê-lo, temos que ter e aplicar um saber de práxis prévio.”
(GADAMER, p. 171) Isso mostra que só se pode aplicar o que já se possui previamente,
daí os saberes necessários à atividade educativa, por exemplo, seja ela de formação de
docentes, seja de qualquer nível de educação básica. São saberes práticos que tem as
características do saber ético, no sentido de não os possuirmos para aplica-lo diretamente
às situações concretas, como se fosse uma questão meramente técnica.
A sabedoria prática não é um saber específico e diretamente aplicável. Ele tem a
feitura de “imagens diretrizes”, pelas quais podemos nos guiar na prática, diante das
situações concretas. Quando um técnico ou artesão faz um desenho do objeto que ele deve
fabricar ele sabe de antemão no que vai dar, porque a ideia do que ele vai fabricar está
determinado, tanto como projeto quanto pela finalidade de uso do bem a ser produzido.
Pode parecer que a sabedoria prática, o saber ético, seja semelhante; parece estar tão
determinado a ponto de estar definido em normas e regras a serem aplicadas em situações
concretas. Porque então fazer esta distinção entre “téchne” e “phronesis”?
Mas precisamos considera que as situações concretas da práxis, na educação, por
exemplo, não podem ser determinadas pelo sujeito da práxis assim como um técnico
determina o objeto a produzir e os materiais, as ferramentas e os procedimentos para
atingir seu fim. Mesmo que o técnico tenha que se adaptar a circunstâncias concretas que
podem interferir sobre a execução do plano prévio, isso é muito diferente da imprecisão
na aplicação do saber prático. O educador, assim como no caso da aplicabilidade das leis
no direito, está numa situação muito diferente, pois as situações concretas, por vezes
dramáticas, exigem adaptações do saber e concessões, inclusive nas prescrições
metodológicas mais seguras que ele adquiriu. Isso é muitas vezes necessário para
encontrar uma saída adequada a um problema. Aristóteles se refere a isso ao tratar da
equidade como forma de correção da lei, no caso do direito. Para fazer justiça é preciso
ter sabedoria, a fim de poder ir além da aplicação dogmática das leis. Isso nos parece
ainda mais decisivo quando se trata da atividade na qual e pela qual os seres humanos se
formam: a educação. Aqui se necessita de uma sabedoria teórico-prática perfilada pela
imagem de como proceder em situações concretas, mas que nos predisponha a reformular
o próprio saber na direção do alargamento de nosso horizonte de compreensão. O saber
prévio de educadores/as está continuamente “numa tensão necessária com respeito à
correção do atuar, porque é geral e não pode conter em si a realidade prática em toda a
sua concreção.” (Gadamer, p. 473)
Assim como é necessário atualizar a lei positiva do Direito quando a realidade
histórico-cultural muda e já não há como aplicá-la de forma dogmática às situações
concretas. Por isso que se diz que os saberes que orientam a práxis educativa são
históricos. Até Kant, que buscava justificativa tão rigorosa para o conhecimento
científico, ao tratar da educação elogia a necessidade de fazer experiências em assuntos
educacionais porque nenhuma geração pode criar um modelo completo de educação para
as gerações seguintes (KANT, Immanuel. Sobre a Pedagogia. Piracicaba: Unimep, 1996,
p. 30), do mesmo modo que não pode haver um Direito Positivo absoluto.
Para Aristóteles até mesmo o Direito Natural é alterável (GADAMER, p. 474) na
medida em que a natureza das coisas deixa certa margem a essa mobilidade. Embora
possa ter mais estabilidade, sequer o direito natural pode ser empregado de forma
dogmática (p. 476). Ele tem uma função crítica diante da deficiência de toda lei vigente,
para evitar discrepâncias entre os direitos. De passagem essa questão nos interessa aqui
por mostrar que todos os conceitos que a humanidade tem sobre o que ele deve ser não
constituem um ideal arbitrário, meramente convencional. São imagens diretrizes que
valem como referência sempre provisória, que só se concretizam na situação particular
daquele que atua, como é no caso da prática de educadores. Isso é assim porque não há
‘normas inalteráveis escritas nas estrelas’. Esse é o caso dos aportes teóricos básicos –
antropológicos, epistemológicos, psicológicos, etc. da educação.
É importante perceber essa diferença entre o saber prático acerca da atividade
formativa, e o saber técnico. No primeiro caso o agente está implicado porque diz respeito
à vida em sua totalidade e a sabedoria prática é o repositório pessoal no qual cada agente
pode “buscar conselho consigo próprio” especialmente sobre os meios moralmente bons,
virtuosos, em vista do fim. E nisto ele difere essencialmente do saber técnico no qual se
decide sobre os meios eficientes para atingir determinado objetivo externo ao agente. Aí
reside a diferença fundamental entre uma educação humanista e um ensino tecnicista. No
segundo modelo o docente não está pessoalmente implicado. Ele aplica métodos de
ensino considerados tecnicamente eficazes para alcançar objetivos claramente definidos.
Em muitas práticas docentes supõe-se que o saber técnico pode dispensar o saber ético,
porque não se precisa “buscar-conselho-consigo-mesmo” e ainda se tem a vantagem de
ter maior precisão prévia acerca dos fins, e dos meios para atingi-los. Por outro lado, o
saber ético em esse mesmo caráter de lhe dar uma receita prévia, próprio dos saberes
técnicos. (p. 477)
Isso também distingue a ética das virtudes da teoria moral estritamente
consequencialista (pragmatismo) e o uso ético da razão de seu uso meramente
instrumental ou técnico. No modelo da phronesis, a subjetividade do agente está
implicada nesta relação entre meio e fim sem que haja fórmula a ser aplicada, porque
“não há uma determinação prévia daquilo em que a vida no seu todo está orientada”. Há
que buscar conselho em si mesmo e responsabilizar-se pela decisão e pela autoria da ação.
Nesta perspectiva não há como dispor com anterioridade de um conhecimento de meios
idôneos porque não há esse saber prévio. Daí a importância da sabedoria prática para
perceber, em cada situação concreta, para que lado deve pender a balança, para o fim que
se visa (que tem a característica de traços de um perfil) e dos meios idôneos, isto é,
moralmente virtuosos. Segundo Aristóteles (EN 1141a 15 e 1142b 30) a phronesis
consiste em deliberar bem no que se refere aos meios que conduzem ao fim estabelecido
pela sabedoria prática. Não é a mera capacidade de eleger os meios corretos, mas é
propriamente uma hexis ética, que tem em vista também o Fim, pelo qual se orienta aquele
que atua, em virtude de seu ser ético.
Por isso que não há simplesmente como ensinar a alguém em que consiste o fim pelo
qual nos guiamos e orientamos a nossa vida e delineamos as diretrizes de nossa atuação.
Não pode haver um uso dogmático e uma imitação mecânica desse tipo de saber, ao modo
de receitas a serem aplicadas em cada caso. A ética de Aristóteles se refere a ‘formas
típicas de justo meio, que convém adotar nação humano, mas o saber ético que se guia
por essas imagens diretrizes é o mesmo saber que deve responder aos estímulos da
situação de cada momento’. (p. 478) A ponderação, a parir do saber prático, é que ode
garantir que se atinja os fins desejados. E isso tem a ver com o “saber-se” (reflexivo), isto
é, com a sabedoria prática aplicável na situação concreta, pois é esse saber do que pode
ser em cada caso que exige a nossa atuação, à luz do que é correto. Por mais geral que
seja o saber prático, se é tal, é aplicável na particularidade de cada situação; é um saber
que “nos permite ver” o imediatamente exequível em cada situação. Portanto, não é um
mero ver, é o “saber” do que é em cada caso, cujo contrário não é o erro ou o engano, mas
a incapacidade de ver como, por exemplo, quando se está dominado por suas paixões.
(Aristóteles. EN, 1142 a 25s.)
Na prática temos que responder em cada situação ao que ela nos pede, por isso que o
saber ético abrange, ao mesmo tempo, os meios e os fins e com isso se diferencia do saber
técnico. Quando se afirma que o saber prático se identifica com a experiência, supõe-se
que ele traz em si mesmo certa classe de experiência, que não se confunde simplesmente
com ter vivenciado, mas implica em ter aprendido com as vivências mediante
“contemplação” contínua. Daí a importância do entendimento, da virtude da
ponderação reflexiva, sempre implicada na phronesis. (essa é a razão pela qual o tipo
Homer Simpson jamais poderá ter sabedoria prática e virtude moral)
Essa capacidade da ponderação reflexiva ultrapassa a virtude do saber ético enquanto
diz respeito somente ao eu-mesmo, que deve agir. Ela consiste também na capacidade de
deslocar-se completamente para a concreção da situação em que o outro tem de atuar.
Por se tratar de uma concreção momentânea e não de um saber em geral, ele difere
essencialmente do téchne e de sua aplicação. É como na relação pedagógica, em que se
espera do educador conhecimento teórico e experiência das implicações desta relação,
mas, sobretudo, a capacidade de propiciar um ambiente de confiança a ponto de poder
perceber que o educando também deseja entrar no jogo e crescer enquanto joga. Gadamer
(p. 480) faz uma comparação com o aconselhar, que supõe a confiança própria da
amizade: “Só um amigo pode aconselhar o outro ou, dito de outra maneira, somente um
conselho com intenção de amizade pode ter sentido para o Aconselhado”. O ter que agir
está, neste caso, com o aconselhado, ou com o educando, mas supõe-se que ele reconheça
no outro, amigo, educador, uma pessoa compreensiva, que sabe ponderar e julgar,
enquanto afetado pelo outro, capaz de pensar com ele, dentro desta relação de pertença
que o une com o outro. Por isso que toda relação pedagógica é essencialmente ética, de
responsabilidade mútua.
Para além da disposição para o ensino, no sentido pragmático de desenvolver nas
crianças e nos jovens as habilidades técnicas e sociais, a formação de educadores precisa
cuidar especialmente das implicações éticas da relação pedagógica. Educadores precisam
de “penetração de espírito”, isto é, a disposição para reconhecer e considerar a situação
concreta do outro, ser tolerante e compassivo. E isso não é um saber meramente técnico.
É sabedoria prática. Aristóteles (EN, 1144a, 23-24) dá um contraexemplo para enfatizar
que não se trata de simples habilidades como de uma pessoa que tem as condições e dotes
naturais do saber ético, que percebe suas vantagens e á de ganhar a cada situação suas
possibilidades com incrível habilidade, e que em cada situação sabe encontrar uma saída,
mas que pode degenerar para o uso meramente técnico destas habilidades. Um tal
educador tem “deinós”, mas não tem phronesis; ele pode exercer suas habilidades sem
se guiar pelo seu ser ético. Pode desenvolver seu poder sem freios e sem orientação por
fins éticos. Pode ser uma pessoa tecnicamente excelente, mas moralmente deplorável,
porque “nada é tão terrível, tão espantoso, e até tão aterrador, como o exercício de
capacidades geniais para o mal”. (Gadamer, p. 481)
Retomando a questão da aplicação, concluímos que ela está presente em todo processo.
Não há formação docente nem prática docente que não seja aplicação. Quando estudamos
um texto teórico estamos, enquanto aprendemos, aplicando seu conteúdo ao nosso
contexto particular, não como algo geral a ser depois aplicado na prática pedagógica. Ao
modo da figura de Hermes, a simples entrega da mensagem numa linguagem inteligível
ao público em questão é a essência da interpretação, da aplicação ao contexto. E isso tem
a implicação, sim, de habilidades de tradução, mas tem estofo ético em todos os
momentos do processo de autoformação e práticas pedagógicas. Se pretendemos entender
algo num texto, num referencial teórico, ‘estamos obrigados a relacioná-lo com nossa
situação concreta’. (p. 481)

Referências:
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Abril Cultural, 1989
GADAMER, Hans-Georg. VERDADE E MÉTODO –Vozes, 2015. (Segunda Parte,
Item 2.2.2. Atualidade hermenêutica de Aristóteles)

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