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Bioética e

Mundo Natural
Material Teórico
Entre o Dever e a Consequência

Responsável pelo Conteúdo:


Prof. Dr. Américo Soares da Silva

Revisão Textual:
Prof.ª Dr.ª Luciene Oliveira da Costa Granadeiro
Entre o Dever e a Consequência

• Introdução;
• O Caminho Que Deve Ser Trilhado...
• A Utilidade, o Prazer e a Dor.

OBJETIVO DE APRENDIZADO
• Compreender a ética no pensamento kantiano e na percepção do consequencialismo.
Orientações de estudo
Para que o conteúdo desta Disciplina seja bem
aproveitado e haja maior aplicabilidade na sua
formação acadêmica e atuação profissional, siga
algumas recomendações básicas:
Conserve seu
material e local de
estudos sempre
organizados.
Aproveite as
Procure manter indicações
contato com seus de Material
colegas e tutores Complementar.
para trocar ideias!
Determine um Isso amplia a
horário fixo aprendizagem.
para estudar.

Mantenha o foco!
Evite se distrair com
as redes sociais.

Seja original!
Nunca plagie
trabalhos.

Não se esqueça
de se alimentar
Assim: e de se manter
Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte hidratado.
da sua rotina. Por exemplo, você poderá determinar um dia e
horário fixos como seu “momento do estudo”;

Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar; lembre-se de que uma


alimentação saudável pode proporcionar melhor aproveitamento do estudo;

No material de cada Unidade, há leituras indicadas e, entre elas, artigos científicos, livros, vídeos
e sites para aprofundar os conhecimentos adquiridos ao longo da Unidade. Além disso, você tam-
bém encontrará sugestões de conteúdo extra no item Material Complementar, que ampliarão sua
interpretação e auxiliarão no pleno entendimento dos temas abordados;

Após o contato com o conteúdo proposto, participe dos debates mediados em fóruns de discus-
são, pois irão auxiliar a verificar o quanto você absorveu de conhecimento, além de propiciar o
contato com seus colegas e tutores, o que se apresenta como rico espaço de troca de ideias e de
aprendizagem.
UNIDADE Entre o Dever e a Consequência

Introdução
Se, no antigo mundo grego, havia uma dicotomia entre o virtuosismo e o rela-
tivismo, entre a certeza da Verdade e a Verdade construída – e, portanto, provi-
sória –, séculos mais tarde, o campo da Ética tem novos antagonistas disputando
uma hegemonia.

Na modernidade, às portas do mundo contemporâneo, encontramos, de um


lado, a intransigente defesa do Dever – racionalmente articulado – como o único
caminho ético possível para uma sociedade de pessoas racionais. Por outro lado,
curiosamente, também, seguindo pistas racionais, forma-se uma escola do pensa-
mento ético que pensa principalmente na consequência dos nossos atos.

Propomo-nos, então, apresentar de maneira breve, cada uma dessas linhas de


força e permitir com isso a construção de uma ponte entre esses eixos do pensa-
mento ético e algumas das demandas atuais, principalmente, aquelas em torno das
discussões sobre a Vida.

O Caminho Que Deve Ser Trilhado...


O Dever, enquanto conceito ligado à Ética, relaciona-se com a ideia “daquilo que
é melhor que aconteça”, ou até de certa maneira “o mais desejável”, “a melhor das
possibilidades” (LALANDE, 1993). Temos que considerar que não estamos tratan-
do de uma causalidade do mundo natural, ou seja, não é o termo dever enquanto
“isso é esperado acontecer”, por exemplo: “esperamos que um objeto solto caia
na atmosfera em direção ao solo, e não para fora da órbita do planeta”, isso graças
à gravidade.

No caso do exemplo da gravidade e outros fenômenos do mundo natural, são


situações que envolvem forças que não necessariamente iniciam a sua ação pela von-
tade humana de que aconteça (até hoje não se tem notícia de alguém que por simples
vontade pudesse se opor a gravidade e voar – isso é domínio da ficção e da fantasia).
Assim sendo, no mundo natural, muito mais aguardamos que aquele efeito aconteça
(é mais uma questão de tempo), uma vez que a causa esteja presente, em situações
normais, não temos a opção de interferir no fenômeno. Outro exemplo: diante do
aquecimento da água a uma temperatura de aproximadamente cem graus, ela come-
ça a ferver e a evaporar (Sim, em situações convencionais de temperatura e pressão).

Porém, no campo ético, a teoria do dever segue um trajeto distinto: “[...] o dever
é a obrigação moral considerada em si mesma e, em geral, independentemente de
uma regra de ação particular. [...]” (LALANDE, 1993, p. 253). Esse é o domínio das
decisões, das aspirações. Determinada coisa deveria acontecer de uma determi-
nada maneira e não de outra. Isso porque é perfeitamente possível que aconteça
de outra forma, uma vez que o acontecimento, a ação, depende de uma resolução
humana, uma escolha, e enquanto escolha sempre pode acontecer algo diferente

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do almejado. Almejar, esperar, desejar não garante que aquilo que acreditamos,
que deveria acontecer, realmente ocorra.

No final do século XVIII, o filósofo de língua alemã, Immanuel Kant, nascido em


Königsberg (localizada na antiga Prússia), tornou-se um dos principais expoentes
da teoria do dever.

Figura 1 – Retrato de Kant


Fonte: Getty Images

É possível estabelecer um parentesco entre a teoria kantiana do dever e a ética


grega antiga, principalmente enquanto princípio de contenção dos impulsos. Se fos-
se perguntado ao velho Kant “por que nós, seres racionais, não agirmos da melhor
maneira de forma espontânea?”, vários estudiosos concordam que a resposta seria:
[...] porque não somos seres morais apenas. Também somos seres na-
turais, submetidos à causalidade necessária da natureza. Nosso corpo e
nossa psique são feitos de apetites, impulsos, desejos e paixões. Nossos
sentimentos, nossas emoções e nossos comportamentos são a parte da
natureza em nós, exercendo domínio sobre nós, submetendo-se à causa-
lidade natural inexorável. [...] (CHAUÍ, 2003, p. 316)

Figura 2 – Dúvida sobre como agir


Fonte: Getty Images

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UNIDADE Entre o Dever e a Consequência

Se há semelhanças entre o virtuosismo grego e o pensamento kantiano, enquanto


reconhecimento que a melhor ação se origina da racionalidade, e que devemos conter
os impulsos imediatistas das paixões para alcançar uma melhor condição moral. Tam-
bém é importante destacar a grande importância dada pelo pensador alemão acerca
da liberdade. Em uma das suas mais belas passagens, Kant reflete sobre o fascínio e a
dualidade que existe entre a causalidade da natureza e a causalidade por liberdade.
Duas coisas enchem o ânimo de admiração e veneração sempre nova e
crescente, quanto mais frequente e persistentemente à reflexão ocupa-
-se com elas: o céu estrelado acima de mim e a lei moral em mim. Não
me cabe procurar e simplesmente presumir ambas como envoltas em
obscuridade, ou no imediatamente transcendente além de meu horizon-
te; vejo-as ante mim e conecto-as imediatamente com a consciência de
minha existência [...] (KANT, 2015, p. 191)

O velho filósofo prussiano, que entre outros temas escreveu sobre como nós
podemos conhecer as coisas na natureza, ao se voltar para a ética e o estudo da
moral, ele se refere como: “lei moral em mim”. Isso não foi somente um recurso
estilístico. De fato, para ele, aquilo que podemos chamar ora de moralidade, ora de
consciência moral, não tem outra origem a não ser no próprio ser humano.

Um pouco à moda dos antigos gregos, Kant isola os impulsos naturais – causa-
lidade natural – como exterior às decisões morais. Note-se que essa exterioridade
não é apenas para fenômenos e condições ambientais (frio intenso, chuva, gravida-
de etc.), mas, também, para os fenômenos biológicos que são parte do ser humano
(fome, sede, sono, sexualidade etc.). Nesses casos, a biologia corpórea pode funcio-
nar como intrusa, para a racionalidade, assim como também seriam considerados
intrusão os gestos ou as ações feitas por terceiros. Ele dará o nome de heteronomia
para ações cujas motivações sejam oriundas não da própria racionalidade, mas de
um ajuste para com a natureza ou com toda a sorte de motivações externas. Por
exemplo, ao optar ajudar a outrem a obter felicidade, se esse gesto for motivado
pelo interesse em obter apoio político, então o motivo da ação não foi a felicidade
em si, mas um efeito colateral a ser obtido na forma de uma chantagem. O apoio
político do exemplo não foi dado livremente, mas “arrancado” à custa de pressões
externas, o que, para o pensamento kantiano, também seria considerado imoral.

Para Kant, em qualquer cenário, somente podemos falar de uma conduta genui-
namente moral se ela for realizada de maneira autônoma, uma vez que:
Autonomia da vontade é aquela sua propriedade graças à qual ela é para
si mesma a sua lei (independentemente da natureza dos objetos do querer).
O princípio da autonomia é portanto: não escolher senão de modo a
que as máximas da escolha estejam incluídas simultaneamente, no querer
mesmo, como lei universal. [...] Pela simples análise dos conceitos da mo-
ralidade pode-se, porém, mostrar muito bem que o citado princípio da
autonomia é o único princípio da moral. Pois desta maneira se descobre
que esse seu princípio tem de ser um imperativo categórico, e que este
imperativo não manda nem mais nem menos do que precisamente esta
autonomia. (KANT, 2007, pp. 85,86)

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Ou seja, para o pensador de Königsberg, a liberdade é um passo fundamental
para que o sujeito racional possa fazer escolhas. A “pressão” que interfira nessa von-
tade individual inibe a possibilidade da pessoa livremente escolher esse ou aquele tipo
de ação. Por exemplo, uma pessoa sendo ameaçada, tendo a sua própria vida posta
em risco, não mais decide com base naquilo que sua consciência racional compreen-
de como certo. Apenas age ou fala conforme as ordens do captor ou do algoz, tudo
para evitar o sofrimento e a morte. Nessas circunstâncias, falará ou fará coisas que
vão contra sua própria consciência moral, tudo para salvar a própria vida.

Portanto, fundamentalmente, deve-se preservar a espontaneidade da tomada de


decisão sobre os mais diferentes temas; as pessoas não podem ter suas decisões
formatadas por imposições externas à sua vontade.

Figura 3 – A ideia de Liberdade


Fonte: Getty Images

É sempre importante lembrar que essas tomadas de decisão que guiam


nossas ações não são somente decisões burocráticas sobre coisas, sobre ob-
jetos. São também, e muitas vezes principalmente, decisões que envolvem a
rede de interações sociais na qual estamos inseridos, ou seja, são decisões sobre
relacionamentos tanto com os outros como em relação a nós mesmos.

Não para menos, Kant defende também que “[...] o homem, e, duma maneira
geral, todo o ser racional, existe como fim em si mesmo, não só como meio para o
uso arbitrário desta ou daquela vontade.” (KANT, 2007, p. 68.).

Isso nos leva à ideia que tratar o outro como um objeto da nossa vontade, ou
ainda, como um meio, para alcançar outros fins, é desconsiderar o seu valor como
ser racional digno de ser reconhecido enquanto tal. Ou melhor, ajudar ou apoiar o
próximo apenas pensando em conseguir vantagens – “Ah, agora que eu o ajudei
ele ficará me devendo o favor...” – não é uma atitude ética. O outro foi conside-
rado um meio para um fim, ou uma ponte para o sucesso da minha ação, em
linguagem ainda mais direta: não é ético usar as pessoas ao seu redor.

Retomando o raciocínio do autor, podemos então – como fez o próprio Kant –


sintetizar esses princípios numa fórmula. Não esqueçamos que não se trata de uma

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UNIDADE Entre o Dever e a Consequência

lista de regras do tipo pode ou não pode; tal ação é ruim e tal ação é boa (conforme
uma lista previamente estabelecida). Assim como os gregos antigos haviam feito, o
pensador nos oferece um modelo de análise das nossas ações. Se quisermos saber
se algo está de acordo ou não com a ética, basta aplicarmos na análise a “fórmula”
sugerida pelo autor.

No caso de Kant, essa fórmula é chamada de imperativo categórico (KANT,


2007) e poderia ser descrita como: “Age apenas segundo uma máxima tal que
possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal” (KANT, 2007, p. 59).

E ainda como um desenvolvimento dessa máxima: “Trate o outro como um fim


em si mesmo e nunca como um meio!” (adaptado, KANT, 2007, p. 59).

O que a teoria kantiana do dever nos oferece e uma abordagem racional


que fundamenta uma sabedoria há muito presente até no senso comum, que é:
“Não faça com o outro aquilo que não deseje que seja feito com você”.

Mais uma vez, a ética se apresenta diferente da moralidade por não nos oferecer
uma lista de coisas boas ou coisas ruins, e sim um método racional para avaliarmos
a correção ou não das ações segundo também critérios racionalmente estabeleci-
dos, fossem eles o virtuosismo do equilíbrio ao estilo de Aristóteles, seja o dever
racional como demanda o pensamento kantiano.

Podemos agregar aqui mais uma linha de pensamento, pela qual se deve buscar
a felicidade geral, porém, avaliando o possível resultado das ações, suas consequ-
ências. Ou melhor, avaliar se os resultados das ações são mais benéficos que preju-
diciais, não apenas para o indivíduo que executa a ação, como também para a so-
ciedade com um todo. Essa linha de pensamento ético é nomeada de Utilitarismo.

A Utilidade, o Prazer e a Dor


O filósofo inglês Jeremy Bentham (1748-1832) que viveu entre os séculos XVIII
e XIX, inaugurou uma nova linha de força do pensamento ético, o Utilitarismo.

O Utilitarismo, apesar de ter sua fundação atribuída a Bentham, ao longo dos


anos, recebeu muitas contribuições, reflexões feitas por outros pensadores que a
tornaram de certa maneira mais uma “escola de pensamento” – um tronco comum
de onde partem várias ramificações – e menos a obra de um autor só.

Entre seus ilustres colaboradores, estiveram John Stuart Mill (1806-1873) e


Henry Sidwick (1838-1900). Cada um à sua maneira acrescentando uma diferente
perspectiva sobre pontos do utilitarismo. Mesmo assim, nem eles, nem outros co-
laboradores se afastaram tanto do tronco principal, cuja tese fundamental está em
que a ética deve ser guiada por um equacionamento de quanto prazer (benefícios)
e quanta dor (malefícios) podem resultar de uma determinada ação. Dessa forma,
comecemos então pelo início, nas palavras do fundador do Utilitarismo:

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A natureza colocou o gênero humano sob o domínio de dois senhores
soberanos: a dor e o prazer [...]. O princípio de utilidade reconhece
esta sujeição e a coloca como fundamento desse sistema, cujo objetivo
consiste em construir o edifício da felicidade através da razão e a lei.
Os sistemas que tentam questionar este princípio são meras palavras e
não uma atitude razoável, capricho e não razão, obscuridade e não luz.
(BENTHAM, 1984, p. 03)

E ainda:
Pode-se afirmar que uma pessoa é partidária do princípio de utilidade
quando a aprovação ou a desaprovação que dá a alguma ação, ou a al-
guma medida, for determinada pela tendência que, no seu entender, tal
ação ou medida tem a aumentar ou a diminuir a felicidade da comunida-
de; ou, em outras palavras, pela conformidade ou não conformidade com
as leis ou os ditames da utilidade. (BENTHAM, 1984, p. 05)

Figura 4 – A felicidade da comunidade como um todo


Fonte: Getty Images

Esses trechos extraídos da obra mais importante de Bentham – Uma Introdu-


ção aos Princípios da Moral e da Legislação, publicada em 1789 – demonstram
muito do que seria a essência do pensamento utilitarista.

Compreenderemos melhor a linha de raciocínio do utilitarismo, destacando tam-


bém aquilo que o utilitarismo não é. O Utilitarismo não é uma ética do egoísmo.

Tal associação pode advir – pelo menos para os falantes da língua portuguesa –
de uma compreensão mais estreita da ideia de utilidade.

No senso comum, associamos muito facilmente utilidade com ferramentas. O mar-


telo, a pá, uma chave de fenda, são ferramentas úteis, pois nos auxiliam na execução
de determinadas tarefas. Dessa forma, entendemos que, no imaginário coletivo, uti-
lidade se vincula a esse suporte para tarefas práticas do cotidiano. Nesse contexto, o
senso comum foi prontamente apartando a ideia de utilidade de qualquer coisa mais

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UNIDADE Entre o Dever e a Consequência

espiritualizada, ou mesmo intelectualizada, ao ponto de a mistura da ideia de utilidade


com algo moral ser uma associação ofensiva para muitas pessoas.

A própria ética do dever kantiana nega que uma pessoa ajudar outra por inte-
resse próprio, e não por considerar essa pessoa em si mesma, seja um ato moral,
pois, no contexto, uma pessoa estaria utilizando a outra tal qual uma ferramenta.

Mas, no pano de fundo do pensamento de Bentham e dos demais adeptos do


utilitarismo, o termo útil se assemelha com ajuda, e com servir, numa concepção
mais ampla. Daí o próprio Bentham se referir aos “dois senhores” que governam
os homens (BENTHAM, 1984) como o prazer e a dor, e ambos numa acepção que
vai além do sentido físico de sofrimento ou da ausência de sofrimento.

O sentido de prazer e dor no pensamento benthamiano inclui a vida emotiva e


a moralidade com vistas a se alcançar a felicidade.

Principalmente nesse ponto do caminho que o pensamento utilitarista se afasta


da ética do egoísmo. Uma ética centrada no egoísmo ou em um tipo de hedonismo
imediatista conclamará o indivíduo a buscar o prazer e a afasta a dor de si mesmo.
Como caminho para encontrar a felicidade, esse tipo de ação de autopreservação
apenas constrói um modelo de comportamento pelo qual cada um buscará a pró-
pria felicidade, mas sem o impasse causado pela presença do outro. Isso significa
que, se, para alcançar meus objetivos (obter maior prazer, maior satisfação), isso
gerar grande sofrimento a outra pessoa, a ética do egoísmo não sinalizará que esse
caminho seja imoral! Ou ainda, utilizar-se de outra pessoa como uma ferramenta
para alcançar um resultado seria considerada uma atitude movida pela racionalida-
de. Como já vimos, isso não se alinha ao pensamento da ética do dever, e o ponto a
se destacar é: isso também não está de acordo com o pensamento utilitarista,
porque, como o próprio Bentham estabelece: trata-se do “aumentar ou diminuir a
felicidade da comunidade”.

Portanto, além de considerar como suas ações podem ajudá-lo a alcançar a fe-
licidade (aumentado tudo o que é prazer e diminuído a dor), o utilitarista pensará,
também, no impacto que suas ações têm na coletividade ao seu redor.

Esse cálculo das consequências de nossas ações está no centro do utilitarismo ben-
thamiano, que é denominado como utilitarismo do ato (BARBIERI & CAJAZEIRA).

Mas esse exercício do assim conhecido utilitarismo do ato impõe um grande


desafio, que é o da própria avaliação das consequências das ações. Em alguns
casos, certamente, fica evidente a possibilidade de o agente da ação estar ciente
dos efeitos da mesma sobre a outra pessoa, e se responsabilizar por isso. Mas
como avaliar isso (a ação) em um prazo longo no tempo? Um aparente benefício
hoje pode se provar um malefício mais tarde. E quanto aos efeitos sobre terceiros,
sobre a comunidade? O utilitarismo do ato pode se ver às voltas com um inferno
deliberativo, criando um critério ético extremamente difícil de ser posto em prática,
seja pela falta de conhecimento do agente acerca das consequências possíveis, seja
a dificuldade de calcular isso cotidianamente.

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Figura 5 – O desafio de se avaliar o impacto das ações o tempo todo
Fonte: Getty Images

Esse pode ser o motivo do aparecimento de abordagens alternativas dentro e


fora do escopo utilitarista.

Ainda dentro do utilitarismo surgiram variações que levaram à formação de um


chamado utilitarismo indireto.
Um utilitarista também fará bem ao longo de uma vida se adotar o prin-
cípio de não prejudicar ou trair os seus amigos. Esta política permite-lhe
construir amizades genuínas aumentando assim tanto a sua própria felici-
dade quanto a dos seus amigos. Esses benefícios superam qualquer bem
extra que ele poderia fazer em alguma ocasião isolada traindo um amigo.
(MULGAN, 2012, p. 166)

Embora, num primeiro momento, uma leitura desse tipo pudesse despertar até
certa simpatia, inclusive por sua simplicidade, uma observação um pouco mais de-
morada indica uma perigosa aproximação com um egoísmo expandido, no qual
as lealdades para com o grupo próximo fundamentariam o norte de conduta do
indivíduo. Mas, então, como lidar com um amigo próximo que se torna criminoso?
Essas lealdades localizadas não seriam bastante convenientes para aqueles repre-
sentantes públicos que escolhem o caminho da corrupção? A corrupção desses re-
presentantes, protegidos por um código de lealdade dos amigos próximos, não pre-
judica sobremaneira a comunidade como um todo? Essas limitações do utilitarismo
na sua versão de utilitarismo do ato e na versão do utilitarismo indireto contribuíram
para propostas fora do escopo do utilitarismo, mais próximas da filosofia política,
como é o caso de uma das abordagens do filósofo John Rawls.

John Rawls (1921-2002), pensador norte-americano, notabilizou-se por seus es-


tudos acerca da teoria da justiça.

Mesmo não sendo um pensador utilitarista, algumas de suas proposições são bas-
tante interessantes no nosso contexto, como, por exemplo, a do equilíbrio reflexivo.

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UNIDADE Entre o Dever e a Consequência

Seguindo a síntese feita por Tim Mulgan da proposta rawlsiana:


1 – A razão para promover o bem – O fato de que uma ação promoverá a
felicidade humana oferece-nos uma razão para executá-la [...]. 2 – O prin-
cípio da prevenção de danos – Se pudermos evitar que algo ruim acon-
teça, sem sacrificar nada de importância moral comparável, devemos
fazê-lo. 3 – O princípio da ajuda aos inocentes – Se formos de prestar
assistência a uma pessoa inocente em grande necessidade em grande ne-
cessidade, com um custo insignificante para nós mesmos, então devemos
fazê-lo. 4 – Os números efetivamente contam – Se você deve escolher
entre a vida de um grupo de pessoas e as vidas de outro grupo, você deve
escolher o grupo maior. (MULGAN, 2012, pp.81,82)

A solução proposta por alguns utilitaristas para superar os desafios da aplicação


prática do utilitarismo do ato e das críticas, levantadas por outros autores como
Rawls, foi a de focar no aspecto mais voltado para as instituições (algo já presente
no pensamento de Bentham), ou seja, deixar as instituições e a legislação vigente
arcar com o desafio de seguir os parâmetros do utilitarismo, essa abordagem ficou
conhecida como utilitarismo da norma ou normo-utilitarismo.
“Os atos bons ou corretos são os que estão em conformidade com a regra es-
colhida pelo grupo social na base da melhor consequência conjunto.” (BARBIERI
& CAJAZEIRA, 2012, p.113), ou seja, na perspectiva do utilitarismo da norma, os
legisladores e as instituições irão se embrenhar na complexa tomada de decisão sobre
normas que respeitem a essência do utilitarismo que é produzir o máximo de prazer
(bem-estar) ao máximo de pessoas possível. Nessa situação, o agente verdadeiramen-
te ético é aquele que se faz um fiel seguidor dessas normas, sem tanto se preocupar
com o cálculo das consequências, pois esse cálculo já estaria “embutido” na norma.
Para todos os efeitos e em todas as suas variações, o utilitarismo é uma ética te-
leológica. Uma ética que visa fins, que tem uma finalidade. A finalidade é promover
a maior felicidade possível para o maior número possível de pessoas, o que, por
sua vez, levaria a se buscar o maior benefício possível ao maior número de pes-
soas. Tudo isso pelo pressuposto de que nossas ações geram efeitos. Efeitos esses
que podem nos aproximar do fim pretendido ou nos afastar dele, eis o porquê do
cálculo sobre as consequências dos nossos atos. Isso também levou o utilitarismo a
ser associado a um consequencialismo, uma ética em que o efeito pode ser tão o
mais importante quanto a intenção da ação.
Enquanto um consequencialismo, a ética utilitarista não se prende a princípios
absolutos de certo e errado, cada situação demandaria um curso de ação diferente;
mesmo considerando o norte mais geral oferecido por regras utilitaristas previa-
mente pensadas.
O curioso é que, embora o foco seja diferente da ética do dever, as duas aborda-
gens – que não são imunes a críticas – podem convergir em muitos pontos.
O primeiro deles é de, justamente, não apresentar uma lista muito específica de
pode ou não pode, como fazem os mandamentos morais. O segundo ponto que
coloca ambas na condição de pensamento ético é oferecer critérios para avaliação

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das ações o que exige um aprendizado e uma reflexão por parte das pessoas. Por
exemplo, para ética kantiana do dever, o roubo é antiético não porque seja pecado,
mas por não ser uma conduta capaz de racionalmente ser considerada universal.
Já para o utilitarismo, a consequência do roubo é produzir benefícios a quem rouba
às custas de se prejudicar a vítima (ou vítimas nos casos de corrupção na gestão
pública) e, portanto, inaceitável.
Mas, como todos os modelos podem ser passíveis de críticas, ambos os formatos,
quando levados ao extremo, carregam seus dilemas, o que expõe os seus limites.
Uma extremada ética do dever que buscasse pela simples generalização para es-
tabelecer um fundamento da ação teria problemas com situações do mundo contem-
porâneo – por exemplo, na conduta médica, um paciente em situação que demanda
cuidados maiores deveria ser privado de saber a verdade sobre um ente querido que
faleceu enquanto esse paciente se recupera? Notoriamente, a contrariedade pode
agravar o estado de saúde já comprometido do paciente, ou seja, colocando a vida
do mesmo em risco. Mas está se mentindo para aquele paciente, e isso não é anti-
ético? Para uma leitura pura da ética do dever sim, pois uma leitura pura não prevê
“situações especiais” e o princípio ou é aplicado universalmente ou não é aplicado.
Do lado da ética das consequências, o utilitarismo, propõe sempre buscar a máxi-
ma felicidade ao maior número de pessoas. Nesse caso, por exemplo, se um indiví-
duo é um criminoso, mas fisicamente saudável, então a sociedade deveria colocar os
interesses coletivos acima dos interesses individuais? Deveríamos submetê-lo à euta-
násia para retirar seus órgãos e transplantá-los para outras boas e produtivas pessoas
da sociedade que contribuiriam melhor para o todo? A história é repleta de exemplos
de supostos interesses coletivos que cometeram as maiores atrocidades, afinal, a qual
coletividade nos referimos? O número de beneficiários justifica a ação por si mesma?
Talvez a ética do dever precise da ponderação acerca das consequências dos
atos ou dos princípios adotados, da mesma maneira que a ética das consequências
precise do freio dos princípios estabelecidos pelos valores da coletividade como um
tipo de limite sobre o cálculo dos resultados.
O mundo contemporâneo com toda a sua complexidade, principalmente, na-
quilo que se refere ao tratamento da Vida e da própria Natureza, demanda uma
constante reflexão sobre qual o melhor caminho a se seguir. Parece-nos que uma
única escola de pensamento não consegue sozinha responder a todas as questões,
seja um relativismo ou um virtuosismo antigo, seja o dever ou as consequências
pensadas pelos modernos.
O século XX, com o seu vertiginoso desenvolvimento científico, ampliou ainda
mais o desafio, não apenas da compreensão do mundo, mas de como agir nele.
Por isso, na etapa seguinte, traremos para a discussão uma última linha de
pensamento ético, que, combinada em maior ou em menor medida com as ou-
tras linhas de pensamento, pode nos oferecer não respostas definitivas, mas
instrumentos para buscarmos uma melhor compreensão sobre a ética, a vida e a
natureza no mundo (atual) que nos rodeia. Essa pode ser a grande contribuição
da ética da responsabilidade.

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UNIDADE Entre o Dever e a Consequência

Material Complementar
Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade:

 Livros
Fundamentos da ética
BRAGA JUNIOR, A. D. Fundamentos da ética. Curitiba: InterSaberes, 2016. (e-book)
Bioética: fundamentos e reflexões
JORGE FILHO, I. Bioética: fundamentos e reflexões. Rio de Janeiro: Atheneu,
2007. (e-book)
Bioética: uma diversidade temática
RUIZ, C. R; TITTANEGRO, R. Bioética: uma diversidade temática. São Caetano do
Sul, SP: Difusão, 2007. (e-book)
Homo ecologicus: ética, educação ambiental e práticas vitais
PELIZZOLI, M. L. Homo ecologicus: ética, educação ambiental e práticas vitais.
Caxias do Sul, RS: Educs, 2011. (e-book)

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Referências
BARBIERI, J. C.; CAJAZEIRA, J. E. R. Responsabilidade social empresarial e
empresa sustentável: da teoria à prática. 2.ed. atual e ampl. São Paulo: Saraiva, 2012.

BENTHAM, J. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação.


Tradução de Luiz João Baraúma. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1984.

CHAUÍ, M. Convite à Filosofia. 13.ed. São Paulo: Ática, 2003.

KANT, I. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Traduzido do alemão


por Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2007.

LALANDE, A. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. Tradução de Fátima Sá


Correia et al. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

MULGAN, T. Utilitarismo. Tradução de Fábio Creder. Petrópolis: Vozes, 2012.

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Você também pode gostar