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Bioética e

Mundo Natural
Material Teórico
A Responsabilidade pelo Hoje e pelo Amanhã

Responsável pelo Conteúdo:


Prof. Dr. Américo Soares da Silva

Revisão Textual:
Prof. Me. Claudio Brites
A Responsabilidade pelo
Hoje e pelo Amanhã

• Introdução;
• Uma Ética da Responsabilidade.

OBJETIVO DE APRENDIZADO
• A apresentação do pensamento ético de Hans Jonas.
Orientações de estudo
Para que o conteúdo desta Disciplina seja bem
aproveitado e haja maior aplicabilidade na sua
formação acadêmica e atuação profissional, siga
algumas recomendações básicas:
Conserve seu
material e local de
estudos sempre
organizados.
Aproveite as
Procure manter indicações
contato com seus de Material
colegas e tutores Complementar.
para trocar ideias!
Determine um Isso amplia a
horário fixo aprendizagem.
para estudar.

Mantenha o foco!
Evite se distrair com
as redes sociais.

Seja original!
Nunca plagie
trabalhos.

Não se esqueça
de se alimentar
Assim: e de se manter
Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte hidratado.
da sua rotina. Por exemplo, você poderá determinar um dia e
horário fixos como seu “momento do estudo”;

Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar; lembre-se de que uma


alimentação saudável pode proporcionar melhor aproveitamento do estudo;

No material de cada Unidade, há leituras indicadas e, entre elas, artigos científicos, livros, vídeos
e sites para aprofundar os conhecimentos adquiridos ao longo da Unidade. Além disso, você tam-
bém encontrará sugestões de conteúdo extra no item Material Complementar, que ampliarão sua
interpretação e auxiliarão no pleno entendimento dos temas abordados;

Após o contato com o conteúdo proposto, participe dos debates mediados em fóruns de discus-
são, pois irão auxiliar a verificar o quanto você absorveu de conhecimento, além de propiciar o
contato com seus colegas e tutores, o que se apresenta como rico espaço de troca de ideias e
de aprendizagem.
UNIDADE A Responsabilidade pelo Hoje e pelo Amanhã

Introdução
Toda a discussão sobre a ética passa de uma forma ou de outra pelas ações hu-
manas. O impacto dessas ações no presente e seus efeitos no futuro. Hoje, muito
mais do que em épocas passadas, reflete-se sobre esses efeitos; não apenas sobre
as consequências para as outras pessoas, mas também sobre os efeitos na natureza.
É claro que isso também traz para a discussão questões sobre os resultados de se
prejudicar diretamente o meio ambiente e como isso carrega um posterior prejuízo
para a sociedade.

Mesmo sem nunca criar uma métrica para o quão longe nossas ações podem
ressoar no futuro, havia por parte dos antigos autores uma percepção, um tanto
quanto intuitiva, acerca de quais ações poderiam legar seus efeitos de forma dura-
doura (quando criamos uma legislação, por exemplo). O que o período pós-revolu-
ção industrial e, principalmente, com os avanços tecnológicos do século XX, come-
çou a evidenciar é que a extensão dos efeitos de algumas de nossas ações enquanto
indivíduos, mas também, como governos, organizações e sociedade de forma geral
(hábitos de consumo), alargaram dramaticamente a extensão desse “ressoar para
o futuro”. O que levou os autores mais contemporâneos que se debruçaram sobre
esse tema a rever e acrescentar novos parâmetros para sua reflexão (que também
se torna nossa).

Um desses autores foi o filósofo Hans Jonas. De origem judia, Jonas nasce na
Alemanha em 1903 e falece em 1993, nos Estados Unidos.

Figura 1 – Filósofo Hans Jonas


Fonte: iranicaonline.org

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Naquela primeira metade do século XX, Jonas não apenas cultivava seus estudos
filosóficos como convivia com o crescente antissemitismo na Europa e na própria
Alemanha, a ponto de emigrar para a Inglaterra quando Hitler chegou ao poder em
1933. Uma vivência atribulada certamente contribuiu para o seu olhar sobre a ética
e as consequências de nossas ações. Por duas vezes Jonas foi soldado: em 1939,
serviu como voluntário das forças britânicas; e em 1949, depois da declaração da
independência de Israel, na armada israelita. Sua mãe havia falecido depois de ter
sido enviada a Auschwitz ainda durante a Segunda Guerra (OLIVEIRA, 2014).

Uma Ética da Responsabilidade


Em seu célebre trabalho, O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética
para a civilização tecnológica, Hans Jonas já encaminha com muita clareza (no
próprio subtítulo da obra) qual será o seu itinerário, em relação ao qual faremos
menção a alguns pontos que consideramos mais relevantes.
Chama atenção um dos tópicos abordados, que é O homem como objeto da
técnica, em que o autor afirmar:
[...] Situamos a techne apenas em sua aplicação no domínio não-humano.
Mas o próprio homem passou a figurar entre os objetos da técnica. O homo
faber aplica sua arte sobre si mesmo e se habilita a refabricar inventivamente
o inventor e confeccionador de todo o resto. (JONAS, 2006, p. 57)

Figura 2 – O homem e a técnica


Fonte: Getty Images

Muito do raciocínio jonasiano segue a preocupação tanto temporal (a conse-


quência futura da ação presente) quanto um tipo de preocupação que podemos
dizer que é sobre o próprio Ser das coisas, sua essência ou mesmo seu sentido.
O aspecto temporal se aproxima bastante do consequencialismo, pois, uma ação que
no tempo atual se apresenta como positiva do ponto de vista ético, traz consequên-
cias futuras totalmente diferentes do esperado, causando graves problemas que anu-
lariam um relativo benefício inicial. Por outro lado, o aspecto essencial (nomearemos
dessa forma) questiona o resultado imediato da ação, o qual já traz a tempo presente

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UNIDADE A Responsabilidade pelo Hoje e pelo Amanhã

resultados considerados eticamente questionáveis, guardando ainda a possibilidade


de ampliar esses efeitos – vistos como negativos – ao longo do tempo.
Jonas menciona, por exemplo, o tema ligado ao prolongamento da vida. Mui-
to se falou, e ainda se fala, do desafio que a morte representa para humanidade.
O ser humano é tido como o único ser na natureza que é afligido pela expectativa
da morte ao longo da vida. Nosso desenvolvimento intelectual, o qual nos permite
projetar e especular acerca do futuro, nossa memória, que nos permite registra as
informações dos padrões de acontecimentos passados, tornam-nos dolorosamente
conscientes da nossa própria finitude.
Essa finitude não se manifesta apenas como o encerramento do ciclo da vida.
Ela vem acompanhada da consciência da senescência; o envelhecimento transfor-
ma o jovem no idoso. Por mais interessantes que possam ser determinadas abor-
dagens culturais, bastante válidas para preservar ou restaurar a autoestima e parte
da qualidade de vida, mental e social dos idosos, nenhum eufemismo muda o fato
objetivo de que a maioria dos seres humanos de 75, 80 ou 85 anos não dispõe
mais da resistência óssea, da potência muscular ou mesmo da eficiência funcional
dos seus órgãos, dos quais dispunha quando esse mesmo ser humano tinha 25 ou
30 anos de idade.

Figura 3 – Jovens
Fonte: Getty Images

Figura 4 – Idosos
Fonte: Getty Images

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Aceitar a hipótese de que o nível de fertilidade de uma espécie é um cruzamento
adaptativo com o seu tempo de vida (altas taxas de reprodução e ciclo de vida longo
levariam a uma superpopulação e a um desequilíbrio com o meio), então buscarmos
um grande prolongamento do ciclo de vida, ou mesmo a imortalidade, apresentaria
uma conta muito alta para ser paga pelo ecossistema terrestre.

O próprio Jonas argumenta sobre esse ponto, que “se abolirmos a morte, temos
que abolir também a procriação, pois a última é a resposta da vida à primeira”
(JONAS, 2006, p. 58). Mas essa realidade seria um tanto quanto distópica, porque
seu resultado seria uma sociedade de velhos que não mais teriam a novidade do
convívio com novos indivíduos que viriam a existir; a alteridade não traria mais ne-
nhum tipo de novidade (JONAS, 2006). Então, mais do que consequências futuras
(superpopulação, escassez ainda maior de recursos etc.), teríamos que lidar com
uma mudança qualitativa da percepção que temos de nós mesmos e dos outros,
uma mudança na sociabilidade e na evolução da cultura que, não dispondo mais do
conflito de gerações como força transformadora e de renovação, poderia se tornar
por demais enrijecida e previsível.

Por outro lado, fica a questão de nós humanos estarmos sempre procurando
meios para mitigar os sofrimentos e as adversidades da existência, tais como: me-
lhor alimentação, melhor proteção contra as intemperes do clima, condições de
deslocamento etc. A ciência médica, ao desenvolver melhores tratamentos clínicos
para males como o Alzheimer ou o Parkinson, ou ainda, o controle via medica-
mento de problemas como diabetes ou hipertensão, está contribuindo diretamente
para uma melhoria na qualidade de vida das pessoas e até (por que não?) com um
prolongamento, por via indireta, de vida desses pacientes. É possível apontar tais
ações e outras como sendo eticamente erradas? Qual seria então o “limite” para
esses desenvolvimentos?

Podemos aplicar o mesmo raciocínio a próteses? Quando essas próteses atin-


gem o ponto de serem consideradas “excessivas”, ou melhor, qual a quantidade ou
a extensão que levaria o ser humano a ser avaliado como “artificial demais”?

Além dessas questões, também estão “em cima da mesa” outras, como: o con-
trole do comportamento e a manipulação genética. Dentro desse escopo, de mani-
pular a própria humanidade, o desenvolvimento tecnológico contemporâneo pode
conjurar fantasmas do totalitarismo. Se lembrarmos da vivência do próprio Jonas
em sua juventude na Alemanha quando o nazismo surgia, não é de se estranhar sua
preocupação com desenvolvimentos científicos que possam produzir tecnologia de
controle do comportamento das pessoas, ou buscar por eugenia.

Em momentos de insegurança devido à violência, até onde devemos ir para nos


proteger enquanto sociedade? Quais os caminhos a serem tomados? Há casos em
que o controle do comportamento, seja por remédios, seja por intervenção neuro-
lógica deveriam ser aplicados? Quais os limites que podemos avançar moralmente
nessa direção?

O mesmo problema acontece com a manipulação genética, pesquisas médicas a


partir do estudo do genoma humano trazem consigo o potencial de enfrentar diversas

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enfermidades, hoje incuráveis ou de difícil tratamento. Contudo, a manipulação em si


traz a sombra da eugenia, de tratamentos prévios que possam afastar ainda na fertili-
zação a possibilidade de indivíduos desenvolverem doenças graves, serem rapidamente
assimilados a técnicas com fins ao “melhoramento” da espécie, quiçá a produção de
indivíduos com características excepcionais, e por que não? Com um temperamento
subserviente o suficiente para serem uma nova casta de soldados.

Certamente, descrevendo dessa maneira, algumas coisas parecem elucubrações


paranoicas de uma ficção científica distópica, todavia muitos acontecimentos que
pareceriam fantasia para as pessoas das décadas de 1950 ou 1960 do século pas-
sado são hoje uma realidade. Basta lembrarmos do uso atual de drones militares
controlados à distância – com grande autonomia de voo e carregando mísseis – por
parte da força área norte-americana.

Aproveitamos o ensejo para trazer do pensamento jonasiano algumas reflexões


que incluem a capacidade transformadora da ação humana em um espectro mais
amplo. Para tanto, iremos nos debruçarmos sobre o inventário do desenvolvimento
da técnica moderna feito pelo autor em outra excelente obra: Técnica, medicina e
ética: sobre a prática do princípio responsabilidade.

Aqui Jonas distingui duas classificações sobre a técnica (e a tecnologia): “A di-


nâmica formal da tecnologia como empresa coletiva que avança conforme ‘leis de
movimento’ próprias” (JONAS, 2013, p. 25). Ou seja, o que e sob qual método a
técnica evolui através do tempo, e o:
[....] conteúdo substancial da tecnologia, o qual consiste nas coisas que
aporta para o uso humano, o patrimônio e os poderes que confere, os
novos objetivos que abre ou dita e as próprias novas formas de atuação
da conduta humana. (JONAS, 2013, p. 26)

Enfim, tudo aquilo que a mudança tecnológica deixa à nossa disposição e como
isso interfere no modo como vivemos e tomamos nossas decisões.

Ao abordar essa dinâmica formal da tecnologia, Jonas retoma o próprio desen-


volvimento da técnica no período pré-moderno e como a mesma ficou diferente
com o advento da modernidade.
[...] o conceito de “técnica”, grosso modo, denomina o uso ferramentas
e dispositivos artificiais para o negócio da vida, junto com sua inven-
ção originária, fabricação repetitiva, contínua melhora e ocasionalmente
também adição ao arsenal existente, tão tranquila descrição serve para a
maior parte da técnica ao longo da história da humanidade [...]. (JONAS,
2013, p. 27)

Para o autor, o desenvolvimento técnico ao longo de todo o período pré-mo-


derno segue uma lógica do optimum. Atingir o melhor resultado possível, seguin-
do com excelência a prática anteriormente desenvolvida e passada pela tradição.
O ferreiro, o carpinteiro, o vidreiro, os artesãos de uma maneira geral, tinham em
mente um resultado de excelência que viria com a execução meticulosa e cuidadosa
da sua arte de fabricação.

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Figura 5 – Técnica pré-moderna
Fonte: Getty Images

Não estava, portanto, presente “uma ideia proclamada de um futuro progresso


continuado nas artes; mais importante ainda: nunca houve um método intencional
de produzi-lo” (JONAS, 2013, p. 29), os antigos artesãos não faziam experimentos
de tentativa e erro de maneira sistemática e sim, pouco convencional, apenas para
ver se era possível alcançar resultados melhores. Ao longo do tempo, descobertas
foram feitas de forma acidental, outras técnicas foram aperfeiçoadas mediante ini-
ciativas isoladas, mas, novamente, não era um impulso metodicamente estabeleci-
do. Disso inclusive resulta o fato de que as mudanças fossem no campo militar ou
na agricultura, embora mesmo assim acontecessem muito lentamente, ou em gran-
des intervalos de tempo. Essa é uma lógica de desenvolvimento bastante diferente
do desenvolvimento técnico moderno.

A Modernidade e a “Inovação” Permanente


Ao se debruçar sobre como se deu o desenvolvimento técnico e tecnológico na
Era Moderna, Jonas se depara com uma lógica evolutiva bastante diferente do pe-
ríodo anterior. O autor destaca alguns pontos relevantes dessa diferença:
• Novos passos não conduzem a um ponto de saturação ou de equilíbrio (JONAS,
2013, p. 29);
• Há uma grande velocidade da difusão das novidades tecnológicas, não apenas
pela intercomunicação, mas também por uma pressão concorrencial (JONAS,
2013, p. 30);
• Não há mais uma linearidade entre meios e fins, “[...] novas técnicas podem
inspirar, produzir, inclusive forçar novos objetivos nos quais ninguém havia
pensado antes, simplesmente por meio da oferta da possibilidade [...]” (JONAS,
2013, p. 30);
• A própria noção de progresso torna-se peculiar “[...] progresso tampouco aqui
é uma expressão neutra, que possamos simplesmente substituir por ‘mudan-
ça’”. Por que forma parte da natureza do caso, como uma lei da série na qual
cada estágio é superior ao precedente sobre os critérios da própria técnica [...]
(JONAS, 2013, p. 31).

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UNIDADE A Responsabilidade pelo Hoje e pelo Amanhã

Analisaremos um pouco mais esses postulados. Primeiramente, o que temos


no item A, sobre não haver ponto de equilíbrio, diz respeito ao “novidatismo”.
A inovação se torna, na prática, um fim em si mesmo, a novidade deixa de ser –
pelo menos como foi a técnica pré-moderna – um meio novo para se alcançar um
resultado de excelência (um fim). A inovação mal se cristaliza na cultura e já temos
um anseio por outra coisa mais nova ainda. O que nos conduz ao item B: muito da
inovação entrou em um processo de retroalimentação com a acelerada difusão de
informação, conhecimento e tecnologia. Parte das inovações permitiram um nível
assombroso de intercomunicação, de maneira tal que uma novidade tecnológica
pode ser compartilhada em escala global em questão de meses – isso quando um
produto não tem o seu lançamento planejado para ser simultâneo em diferentes
pontos do globo terrestre –, o que acelerou ainda mais a pressão econômica con-
correncial, levando à busca ainda mais veloz por igualar aquela novidade criada e
mesmo superá-la, tanto da parte das outras empresas que buscam um novo produ-
to que supere o lançamento da empresa rival, como a própria empresa que acabou
de lançar um produto novo e já começa a fazer planos para superá-lo antes que
seus concorrentes o façam e assim garantir a liderança do mercado.

Figura 6 – Busca permanente por inovação


Fonte: Getty Images

Esse cenário traz à tona as características presentes no item C, a novidade não


se estende apenas sobre o que já existe, tanta pressão e empenho começam a criar
coisas que antes não existiam, isso abre espaço para novas possibilidades, e tais pos-
sibilidades se convertem depois em necessidades. Exemplifiquemos usando o nosso
cenário atual – o qual nem o próprio Jonas presenciou com tanta intensidade –,
a rede mundial de computadores se expande e torna-se a internet que conhece-
mos hoje, surge o YouTube e as redes sociais, a telefonia móvel e os aparelhos
de smartphones, agora pense o quanto esses componentes já estão intricados em
nosso cotidiano. Pensou? O quanto do nosso comportamento social não foi moldado
por essas novidades e, também, o quanto isso impactou em nossa conduta como
consumidores e nos serviços oferecidos pelas mais variadas empresas?

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E, por fim, o item D, o progresso como marcador de superação permanente.
A técnica atual, para ser reconhecida como tal, deve sempre ser superior à anterior.
Não é apenas uma “impressão” de superação, trata-se de um parâmetro objetivo
de eficiência, a novidade tecnológica deve atingir uma maior eficiência em relação
a algum aspecto da tecnologia da geração anterior, mais rápida, mais leve, mais
barata etc. Mesmo em casos em que fica evidente o questionamento ético, como a
letalidade do arsenal militar atual, isso não muda o fato de que, do ponto de vista
da eficiência da proposta – destruir mais e mais rápido –, a nova tecnologia militar
progrediu em relação à anterior. No domínio ético, a discussão não é se esse é
ou não um progresso do ponto de vista técnico – até porque objetivamente é –, o
ponto seria se esse era um progresso desejável do ponto de vista social.

Hans Jonas busca articular de forma mais ampla “por que a técnica moderna
é objeto da Ética” (JONAS, 2013). Expande a reflexão sobre os itens citados con-
siderando os riscos da técnica moderna ser como é. Primeiramente, ele chama a
atenção para a “ambivalência dos efeitos” (JONAS, 2013, p. 51), a técnica mo-
derna em sua interação com a tecnologia não é essencialmente nem boa nem má.
Tal qual uma ferramenta, pode ser utilizada para fins considerados moralmente
corretos ou para fins extremamente reprováveis. O ponto que Jonas defende para
mudar o olhar sobre a responsabilidade dos desenvolvimentos técnico-científicos é
precisamente a falta de clareza sobre alguns efeitos:

A dificuldade é esta: não apenas quando a técnica é malevolamente usada


de modo ruim, quer dizer, para fins maus, mas mesmo benevolentemente
usada para seus fins mais legítimos e próprios, ela tem um lado amea-
çador em si, que a longo prazo poderia tem a última palavra. (JONAS,
2013, p. 52)

Esse cenário tende a ser agravado, também, segundo Jonas, pela inevitabilida-
de de aplicação. Diferente de uma capacidade que podemos optar em utilizar em
um dado momento e deixar de usar em outro, os acúmulos de novas tecnologias
têm se dado com tamanha celeridade que não estamos realizando a devida reflexão
sobre a maturação de seus efeitos e, na maioria dos casos, incorporando-as ao coti-
diano: nas interações sociais, na produção e no consumo, como um novo “normal”.

Jonas compreende que “as exigências sobre a responsabilidade crescem com o


poder” (2013, p. 55). Por isso, além da ambiguidade dos efeitos e dessa tendência
a uma inevitabilidade de aplicação, a técnica moderna traz consigo a preocupação
do seu alcance, das suas dimensões globais no espaço e no tempo. O alcance
espacial da tecnologia atual muitas vezes somente pode ser mensurado em escala
global. Não são apenas produtos, serviços ou hábitos de consumo que podem ser
compartilhados globalmente, mas a questão é o que suporta essas estruturas glo-
bais? São recursos naturais não renováveis que precisam ser extraídos maciçamen-
te de diferentes partes do globo? Como é feita essa extração em tão grande escala?
As consequências dessa extração são devidamente avaliadas? Contidas quando é o
caso? Adicionamos aí a dimensão temporal, porque as gerações futuras herdarão

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UNIDADE A Responsabilidade pelo Hoje e pelo Amanhã

os resultados de importantes decisões que tomamos hoje, sem, no entanto, estarem


aqui para serem consultadas... O que torna essas decisões ainda mais relevantes.

Figura 7 – A repercussão de nossas escolhas


Fonte: Getty Images

As ciências humanas, de forma geral, reconhecem que a ruptura entre o mundo


medieval e a entrada no mundo moderno foi ajudada por uma mudança de pers-
pectiva em relação ao conhecimento, impulsionada pelo próprio desenvolvimento
das ciências naturais. No período em que houvera uma mescla excessiva entre
religiosidade e ciência, o conhecimento (e até a ética) era tratado de uma maneira
teocêntrica. Os parâmetros religiosos se impunham à ciência e à ética.

O período seguinte traz consigo o advento do humanismo, com ele uma pers-
pectiva antropocêntrica. O ser humano é colocado como preocupação central para
o conhecimento e a ética. Para Jonas, nosso poder em escala planetária modifi-
ca essa perspectiva antropocêntrica como foi entendida até agora. Colocar o ser
humano no centro de todas as preocupações e de todas as responsabilidades en-
quanto direitos e deveres parecia razoável, quando os poderes das ações humanas
pareciam afetar, principalmente, o próprio domínio humano.

O avanço do conhecimento científico moderno não apenas ampliou nosso ho-


rizonte de entendimento, mas, na interação entre ciência e técnica, deu às ações
humanas poderes profundos de mudança na natureza – que vão desde a criação de
novas substâncias, passando pelas alterações colaterais, no solo, nos oceanos, na
atmosfera; e tudo isso em uma escala gigantesca.

Para o pensamento jonasiano, se somos a causa inicial de uma determinada ação,


temos graus de responsabilidade sobre os seus efeitos. Não podemos mais pensar
“apenas em nós mesmos”, pois o que fazemos afeta intensamente o mundo natural
ao nosso redor. Se podemos afetá-lo, somos responsáveis por tudo que está à mercê
do nosso poder. O princípio de responsabilidade de Hans Jonas inclui tanto a respon-
sabilidade pela causalidade de determinados efeitos (o que o aproxima do consequen-
cialismo), como o dever demandado pelo poder de fazer algo. Enquanto possibilida-
de da ação, escolher uma ação é relevante; por simetria, quando não escolhemos agir

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(a omissão), torna-se tão relevante quanto, pois, a consciência de podermos mudar o
rumo de certos acontecimentos nos faz diretamente responsáveis por eles, visto que
a mudança – ou não – estava dentro do espectro daquilo que dependia do nosso agir
e, portanto, das nossas decisões.

Assim sendo, a responsabilidade da humanidade no mundo contemporâneo se


agiganta, dado que suas decisões agora afetam além do curso dos acontecimentos
históricos, sociais e culturais, o próprio curso da natureza, seja no seu aspecto
ecossistêmico, seja até a maneira como a humanidade se percebe enquanto tal,
na medida em que – como já dito –, pode ela (humanidade) mudar a si mesma do
ponto de vista biológico. Ou seja, alcançamos um patamar em que cada vez mais
somos responsáveis pela própria evolução da Vida.

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UNIDADE A Responsabilidade pelo Hoje e pelo Amanhã

Material Complementar
Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade:

 Livros
Fundamentos da ética
BRAGA JUNIOR, A. D. Fundamentos da ética. Curitiba: InterSaberes, 2016. [e-book]
Bioética: fundamentos e reflexões
JORGE FILHO, I. Bioética: fundamentos e reflexões. 1. ed. Rio de Janeiro: Atheneu,
2007. [e-book]
Homo ecologicus: ética, educação ambiental e práticas vitais
PELIZZOLI, M. L. Homo ecologicus: ética, educação ambiental e práticas vitais.
Caxias do Sul, RS: Educs, 2011. [e-book]
Bioética: uma diversidade temática
RUIZ, C. R, TITTANEGRO, R. Bioética: uma diversidade temática. 1. ed. São Caetano
do Sul, SP: Difusão Editora, 2007. [e-book]

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Referências
JONAS, H. O princípio de responsabilidade: ensaio de uma ética para a civiliza-
ção tecnológica; tradução do original alemão Marijane Lisboa, Luiz Barros Montez.
Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006.

______. Técnica, medicina e ética: sobre a prática do princípio responsabilidade;


tradução do Grupo de Trabalho Hans Jonas da ANPOF. São Paulo: Paulus, 2013.

OLIVEIRA, J. Compreender Hans Jonas. Petrópolis: Vozes, 2014.

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