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A HERMENÊUTICA COMO TAREFA TEÓRICA E PRÁTICA (1978)

A palavra “hermenêutica” é antiga. É retratada como interpretação, exposição,


tradição ou simplesmente compreensão, anterior à ideia de uma ciência metodológica.
No final do século XVIII e princípio do XIX a ocorrência da palavra
“hermenêutica” mostra que o uso da expressão era corrente e designava somente a
faculdade prática de compreender, isto é, para conhecer os demais. Arte da compreensão
não é necessária somente para o trato com textos, mas também no trato com pessoas.
Uma capacidade natural do homem.
Há oscilação de palavras “hermenêutica”, entre um significado prático e um
significado teórico. É evidente que a aprendizagem de algo sem possuir um talento
natural leva a resultados muito modestos. A falta de talento natural para falar é difícil de
compensar com o ensino metodológico. O mesmo acontece com a arte da compreensão,
a hermenêutica. Essas questões denunciam a importância da metodologia.
Como o uso da linguagem, também essa questão histórica indica que o conceito
de método que serve de base para a ciência moderna acabou dissolvendo um conceito de
“ciência” que se orienta justamente na direção dessa capacidade natural do ser humano.
Frente a dialética platônica (mundo das ideias), entendida como saber teórico,
Aristóteles reivindicou para a filosofia prática uma autonomia peculiar e iniciou uma
tradição (séc. XIX – XX).

Até os nossos dias buscam ver no “método” da ética aristotélica (Estado,


portanto, deve tornar possível o desenvolvimento e a felicidade do indivíduo),
introduzida por ele como “filosofia prática” e na qual a virtude da racionalidade prática,
a phronesis, ocupa um lugar central, nada mais que um exercício de racionalidade
prática.
Mas, se examinarmos o modo de fundamentar a distinção entre as ciências
teóricas e as não teóricas, veremos que se fala unicamente da diversidade dos objetos
desse saber. Para Aristóteles, segundo o qual o método deve reger-se sempre por seu
objeto, e o tema aparece claro no que se refere aos objetos. Trata-se de uma investigação
da arché, ou seja, não do saber aplicado do médico, do artesão ou do político, mas do
que se pode dizer e ensinar em geral.
Para ele é óbvio que nesses âmbitos o saber em geral não exige nenhuma
autonomia própria, mas supõe sempre sua realização na aplicação concreta.
Há uma resistência em aplicar o conceito moderno de teoria à filosofia prática,
que já pretende ser prática por sua própria autodeterminação. Por isso, estabelecer
condições especiais de cientificidade, que sejam válidas para essas esferas, sobretudo
quando Aristóteles as caracterizava com a vaga indicação de que são ciências menos
exatas, é um problema extremamente árduo.
A filosofia prática necessita de uma legitimação de caráter próprio. Essa ciência
prática está relacionada com o problema global do bem na vida humana, que não se
restringe a uma esfera determinada. A expressão “filosofia prática” significa que para os
problemas práticos não convém fazer-se um uso determinado de tipo cosmológico,
ontológico e metafísico. À pretensão de promover “ciência do bem no âmbito da vida
humana”, esse mesmo bem. A ética não se limita a descrever as normas vigentes, mas
busca fundamentar sua validez ou introduzir normas mais justas. A filosofia prática é
aqui somente um exemplo de uma tradição desse saber que não se ajusta ao conceito
moderno de método.
A capacidade de linguagem e a capacidade de compreensão possuem obviamente
a mesma amplitude e universalidade. Podemos falar sobre tudo, e o que alguém diz
deve, de princípio, poder ser compreendido. A retórica (arte de argumentar) e a
hermenêutica tem aqui uma relação muito estreita. O domínio técnico dessa capacidade
de falar e compreender se manifesta plenamente no uso da escrita, na redação de
“discursos” e na compreensão do escrito. A hermenêutica pode ser definida justamente
como a arte de trazer novamente a fala o dito ou o escrito.
A concepção da filosofia prática baseia-se de fato na crítica aristotélica à ideia
do bem de Platão. A questão do bem se coloca como se fosse a realização suprema
daquela mesma ideia do saber que perseguem as ciências em suas esferas respectivas.
Só pode falar realmente com autoridade aquele que conheceu como bom e justo aquilo
que ele deve comunicar de modo convincente, podendo, portanto, responsabilizar-se por
isso.
Escrever discursos também pode ser uma arte. Mas alguém só poderá adquirir
essa arte se, além da debilidade da palavra falada, conhecer também a debilidade de
todo escrito, podendo assim vir em seu auxílio, com o dialético que sustenta o discurso
socorre a debilidade de todo o discurso.
É preciso ver a distinção entre filosofia teórica, filosofia prática e filosofia
poiética (ideia de criar ou fazer), que se inicia em Aristóteles e deve determinar o grau
teórico-científico de sua filosofia prática (Em que teoria é a busca pelo verdadeiro
conhecimento, práxis é a ação destinada a resolução de problemas e poíesis então seria
o impulso do espírito humano para criar algo a partir da imaginação e dos sentimentos).
A retórica é inseparável da dialética; a persuasão, que é um convencer, é inseparável do
conhecimento da verdade. A compreensão deve ser concebida a partir do saber. O
verdadeiro orador dialético busca conduzir sua própria vida, persegue o “bem”.
Interessa-nos conhecer aqui o uso que os reformadores fizeram da retórica
aristotélica. Essa passou da arte de “fazer” discursos para a arte de acompanhar um
discurso, compreendendo-o, quer dizer, passou para a arte da hermenêutica. Aqui
confluíram duas correntes: a nova escrita e a nova leitura, iniciadas com a invenção da
imprensa, e a virada teológica da Reforma frente a tradição e na direção do princípio
bíblico.
Pois, quando os leitores da Sagrada Escritura eram leigos, já não se tratava de
pessoas instruídas na leitura por tradições artesanais de certas profissões nem
dispunham de preleções (aulas) discursivas que lhes facilitassem a compreensão. O
leitor não encontra ajuda na impressionante retórica do jurista nem na do pastor de
almas, nem na do literato.
A leitura representou uma dificuldade ímpar para diversas correntes da
modernidade. Isso significa que a dificuldade de trazer o escrito à fala foi o que na
época moderna elevou a arte de compreender à autoconsciência metodológica.
Aristóteles indica a perspectiva a partir da qual é preciso compreender suas
afirmações. É bem diferente a tarefa de interpretar uma lei, a Bíblia ou uma obra poética
“clássica”. O “sentido” desses textos não se determina para uma compreensão “neutra”,
mas somente a partir da perspectiva de sua pretensão de validade.
A aplicação da lei pressupõe sempre uma interpretação correta. Cabe afirmar,
nesse sentido, que toda aplicação de uma lei ultrapassa a mera compreensão de seu
sentido jurídico e cria uma nova realidade.
Com o radicalismo da volta reformista ao Novo Testamento e com o abandono
da tradição magisterial da Igreja, a própria mensagem cristã veio de encontro ao leitor
com uma nova e heterogênea radicalidade. Isso excedia amplamente os recursos
filológicos e históricos necessários também para qualquer texto antigo, escrito em
língua estrangeira.
A hermenêutica reformista acentuou que a mensagem da Sagrada Escritura se
contrapõe à pre-compreensão natural do ser humano. O que promete justificação não é a
observância da lei nem as obras meritórias, mas unicamente a fé. A tarefa específica da
hermenêutica teológica irá tornar-se evidente pelo fato de a interpretação da Sagrada
Escritura, em virtude da pregação, aparece agora como o centro do culto divino, nas
igrejas cristãs.
Schleiermacher sabia perfeitamente que a arte da compreensão não se podia
limitar à ciência. Essa arte desempenha um papel de destaque na vida interpessoal. Seu
novo objeto são os “textos”, uma entidade anônima, que o investigador deve enfrentar.
Quando partimos da panorâmica do desenvolvimento da hermenêutica moderna
e remontamos à tradição aristotélica da filosofia prática e da teoria da arte, é necessário
perguntarmos até que ponto a tensão existente em Platão e Aristóteles entre um conceito
técnico de ciência e um conceito prático-político, que inclui os fins últimos do ser
humano, pode ser útil no terreno da ciência moderna e de sua teoria.
Deve-se dominar, antes, essa arte para poder acertar. Aplicando essa imagem à
filosofia prática, também aqui devemos partir do princípio de que o ser humano se guia,
em suas decisões concretas, de acordo com seu ethos (hábito, costume), pela
racionalidade prática e para isso não depende das orientações de um mestre.
O orador deve ligar-se sempre a essa antecipação se quiser ter sucesso na
persuasão e convencimento sobre questões discutidas. Também a compreensão da
opinião do outro ou de um texto se realiza dentro de uma relação de consenso, apesar de
todos os possíveis mal-entendidos, e busca o entendimento acima de qualquer dissenso.
A pretensão universal da hermenêutica consiste assim em ordenar todas as
ciências, em captar as chances de êxito cognitivo de todos os métodos científicos,
sempre que possam ser aplicados a objetos, e em utilizá-los em todas as suas
possibilidades.
Tudo que as ciências podem conhecer, a hermenêutica deve leva-lo à relação de
consenso, onde todos nós estamos. A própria hermenêutica não é um simples método
nem uma série de métodos, como ocorreu no século XIX desde Schleiermacher e
Boeckh até Dilthey e Emilio Betti. A hermenêutica é antes filosofia. Trata igualmente
das questões prévias à aplicação de qualquer ciência. Trata-se das questões que
determinam todo o saber e o fazer humanos, essas questões “máximas” que são
decisivas para o ser humano enquanto tal e para sua escolha do bem.

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