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TEORIA E PRÁTICA NA FORMAÇÃO DOCENTE: PENSANDO SOBRE O ESTÁGIO

Prof. Me. Valricélio Linhares

É bastante comum a ideia de que estágio, em qualquer modalidade, é o momento da prática,


em que os estudantes vão aplicar o que aprenderam na instituição na qual está se formando.
Nos cursos de formação de professores, quando os estudantes são perguntados sobre o que
esperam da disciplina de estágio supervisionado, como a compreendem, o que farão, é quase
unânime o entendimento expresso acima, o de que se trata da hora da aplicação, da prática.
Notem que neste entendimento há uma separação entre o momento da formação teórica e o
momento da aplicação da teoria, uma separação entre teoria e prática. Quase sempre os cursos
de formação de professores são taxados como muito teóricos e pouco práticos, ou
excessivamente teóricos. O senso comum recebe esta ideia que parece ser confirmada na
realidade. Mas a verdade é que há um entendimento equivocado do que sejam teoria e prática.
O que faz com que essa impressão pareça verdadeira é que de fato muitos programas de cursos
assimilaram uma concepção fragmentada do conhecimento, da formação de professores, o que
influencia na organização do próprio currículo.

A origem dessa concepção fragmentadora, que separa teoria e prática, não está nem na escola,
nem nos cursos de formação de professores, embora nelas apareçam fortemente. Estes
espaços de aprendizagem, na verdade refletem uma noção de teoria e de prática produzida nas
relações sociais mais amplas. Na sociedade, ou melhor, no mundo da produção material, a
separação entre teoria e prática corresponde à divisão entre trabalho intelectual (planejar,
conceber, dirigir, orientar, pensar) e trabalho manual ou instrumental (fazer, realizar, cumprir
ordem, executar). É uma divisão própria de uma sociedade baseada na propriedade privada
que implica em que um grupo ou classe social tem não só a posse sobre os meios de produção,
como também se apropriam do trabalho e dos frutos do trabalho dos trabalhadores, e se
apropriam do conhecimento, determinado quem tem acesso ao saber científico acumulado
historicamente (saber intelectual) e quem deve exercer apenas a função social de execução, de
fazer, de obedecer, de cumprir a tarefa prática.

O fato da propriedade privada, portanto, determina a forma da divisão social do trabalho que
varia de acordo com o grau de desenvolvimento das forças produtivas que são: meios de
trabalho (instrumentos, ferramentas, instalações), objetos de trabalho (matérias naturais e
matérias já modificadas pelo trabalho humano)1. Assim a humanidade experimentou o trabalho
escravo, o trabalho servil e o trabalho assalariado. Cada modo de produção correspondente a
estas modalidades de trabalho determinaram à sua imagem e semelhança uma divisão entre
trabalho intelectual e trabalho manual, entre teoria e prática. Por este modo, compreendemos
por que teoria e prática aparecem como sendo duas coisas distintas.

Na sociedade atual o campo teórico é valorizado na qualificação do trabalho e na formação dos


intelectuais que vão exercer as funções de planejamento e direção daqueles que vão apenas
executar. Mas buscando manter essa diferenciação e reproduzir o tipo de sociedade desigual e
a chamada meritocracia em que se sobrepõe o mais qualificado (com formação mais

1
MARX, Karl. O capital. Livro I, vol. I. Tradução de Reginaldo Sant’Anna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
NETO, José Paulo. BRAZ, Marcelo. Economia política: uma introdução crítica. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2009.
intelectual) ao menos qualificado (com formação mais manual), os que dominam a sociedade
procuram manter essa divisão e evitam que as camadas populares tenham acesso ao saber
mais intelectual. A separação entre atividade teórica e atividade prática está no DNA da
sociedade de classes e se expressa mais claramente na relação em que um operário não precisa
compreender sobre a propriedade dos materiais químicos para realizar uma pintura de carro,
ou misturar pigmentos de tinta comandando uma máquina configurada por um intelectual da
automação. O que é isso senão um empobrecimento dos atributos que devem formar um
trabalhador manual? Assim, se formam um trabalhador que não precisa questionar a sua
condição de trabalho, muito menos o salário, mas em vez disso apenas cumprir a sua função,
executando tarefas sem questionar toda a cadeia de relações que determinam a sua condição.
Seu fazer não é somente prático, também tem um conteúdo teórico, intelectual, mas a questão
é que o trabalhador foi formado com um conteúdo mais prático que teórico para um fazer mais
manual que intelectual. Tem-se aí uma redução, uma simplificação da formação do
trabalhador.

Então, o problema da relação teoria e prática não está propriamente no fato de a prática ser
distinta da teoria, mas na própria divisão entre formação intelectual e formação manual, entre
o pensar e o fazer, está no próprio conteúdo da formação intelectual também separada da
prática, o que faz com que se confirme o senso comum de que “na prática, a teoria é outra”, e
está em todas as profissões, no campo da educação, em praticamente todos os programas de
formação de professores. É importante notar, também, que uma parte desse entendimento é
resultado de uma concepção equivocada do que seja a teoria e a prática. Além de haver esta
separação, ainda há esse problema de concepção, mas é da primeira que deriva a segunda.

Não há atividade puramente teórica nem atividade puramente prática (GRAMSCI, 1988)2. A
teoria é uma forma de explicação da realidade, que procura corresponder a uma máxima
aproximação entre o sujeito que conhece e a realidade tomada como objeto de conhecimento.
A prática é uma atividade que se orienta pelo conhecimento teórico (do mais simples ao mais
complexo) para realizar o que foi previamente determinado no plano da concepção, o como
deve ser. A teoria tem origem na prática, nos problemas colocados pelo fazer cotidiano, e a
prática tem a mediação do conhecimento teórico. De outro modo, o que se quer dizer é que há
uma unidade entre teoria e prática, e essa unidade é chamada de práxis. “Toda práxis é
atividade” (intelectual ou manual), “mas nem toda atividade é práxis” (VÁZQUEZ, 2007, p. 219)
3
. A atividade da consciência, ou o pensamento em si se constitui apenas em atividade teórica
porque não pode, por si só, produzir uma transformação da realidade. É uma forma de
atividade, mas não é práxis. O critério da verdade é a prática, “É na práxis que o homem deve
demonstrar a verdade [...]” (MARX, 1987, p. 161)4. Então, a teoria separada da prática, tem a
mesma importância que nada. Ou melhor, serve no campo da reflexão sobre a realidade
apenas como especulação ou, ao mesmo tempo, serve para justificar uma falsa visão sobre a
prática e sobre a realidade.

2
GRAMSCI, Antônio. Os intelectuais e a organização da cultura. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 5. ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1985.
3
VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Filosofia da práxis. Buenos Aires: Conselho Latinoamericano de Ciências Sociais-Clacso. São Paulo:
Expressão Popular, 2007.
4
MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos. Tradução de José Arthur Giannotti. São Paulo:
Abril Cultural, 1987.
Nos cursos de formação de professores é bastante comum a separação entre teoria e prática,
entre pensamento e realidade. A forma mais nítida desta separação está na posição que ocupa
o estágio, em muitos casos no final do curso. Mas reflete, na verdade uma cisão que está na
concepção do curso e no interior mesmo das disciplinas teóricas, cada uma separada da
realidade, separada da prática como atividade consciente. Em outras palavras, grande parte
dos programas de cursos de formação de professores funda-se em concepções teóricas
distanciadas da realidade educacional e social mais ampla. Concentram-se em aspectos
superficiais ou parciais da realidade e reproduzem nos estudantes uma falsa compreensão, ou
uma noção muito simplista da realidade.

Outro problema que é a dificuldade de entendimento da teoria em certas áreas de


conhecimento. A complexidade de alguns campos do conhecimento são maiores que em
outros. E na educação, como no campo das ciências humanas essa complexidade é ainda maior.
Os fenômenos sociais são mais complexos porque abordam a vida do próprio sujeito do
conhecimento. A sociologia tenta lidar com esse problema no que se chama de relação sujeito-
objeto. O biólogo analisa a vida e os elementos que as condicionam, lhe parecendo
relativamente simples compreender a sucessão de relações, mas quando ele busca
compreender que essas relações envolvem as relações sociais mais amplas aí encontrará maior
dificuldade. Em face disso, a tendência é de procurar encaixar o seu método (próprio das
ciências naturais) a uma complexidade que exige método próprio, dando prosseguimento a
uma atitude de separação entre teoria (método de explicação) e prática (como realidade
social). Resulta daí, especialmente para o senso comum, que teoria e prática (porque a prática
é agir sobre a realidade, e a realidade é dinâmica e complexa) são distintas e inconciliáveis,
como vimos acima. Na verdade, isso é uma generalização sem fundamento científico, porque o
que se tem neste caso é um problema de método de conhecimento, se este método permite ou
não uma maior aproximação da realidade, ou da verdade. Essa dissociação entre teoria
(ciência) e prática (realidade) dá origem a toda sorte de reducionismos que resultam em uma
teoria separada de realidade e de uma prática social separada da teoria.

No campo da educação, esta separação entre teoria e prática produz um duplo efeito negativo:
por um lado impede o entendimento fundamentado da complexidade do fenômeno
educacional e da própria instituição escolar; e por outro lado, como observam Pimenta e Lima
(2008, p. 41)5. “resulta em um empobrecimento das práticas na escola.”

Por isso é que a primeira experiência de estágio na formação de professores se inicia com a
observação em que se busca conhecer a realidade escolar explorando informações sobre sua
organização, funcionamento e o trabalho dos sujeitos em seu interior. Nesta fase é que
verificamos como e em que medida as teorias que estudamos estão mais ou menos próximas
da realidade e também aprenderemos o que está relacionado e o que não está relacionado
com as teorias, exercitando a práxis como critério da verdade, e conhecendo uma parte do que
é uma instituição de ensino. Esta é a primeira dimensão do estágio, conhecer a realidade
escolar, para depois experimentar a prática em sala de aula, articulada com toda a formação
teórica inicial de um curso, não como quem sabe, mas como quem vai aprender.

5
PIMENTA, Selma Garrido. LIMA, Maria Socorro Lucena. Estágio e docência. 3. ed. São Paulo: Cortez Editora, 2008.

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