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Olhar de Professor

ISSN: 1518-5648
olhardeprofessor@uepg.br
Departamento de Métodos e Técnicas de
Ensino
Brasil

Manhães Ribeiro, Marcus Aurélio


Menino ou Menina? Gênero e Desenvolvimento Infantil
Olhar de Professor, vol. 7, núm. 1, 2004, pp. 85-101
Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino
Paraná, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=68470107

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Menino ou Menina? Gênero e Desenvolvimento
Infantil1

Boy or Girl? Gender and Child Development

Marcus Aurélio Ribeiro MANHÃES*

RESUMO

Objetiva-se, por meio da pesquisa, identificar a importância das relações de gênero no


desenvolvimento infantil. Numa pequena cidade do sertão pernambucano, busca-se a livre
expressão de crianças no contexto social mais amplo, extrapolando-se os limites do lar e das
relações parentais. Quanto aos subsídios teóricos do trabalho, articulam-se estudos de
gênero - diferenciados de sexo - especialmente os de Nancy Chodorow com a teoria de
desenvolvimento infantil freudiana. Na pesquisa, inserida na metodologia qualitativa, usam-
se estratégias de filmagens, entrevistas e interações sociais espontâneas como meios de
acessar crianças, entre 2 e 7 anos de idade, em suas atividades cotidianas de brincadeiras de
rua ou em situações educacionais de creches e escolas. Norteia-se a elaboração dos dados
coletados pela leitura pontual das filmagens, em cuja organização consideram-se idade,
gênero e as interações entre meninos e meninas. Como resultados, identifica-se e confirma-
se a diferenciação de comportamento entre os gêneros, a qual é caracterizada de acordo com
a idade dos envolvidos, e constata-se que essa diferenciação pode ser estimulada por alguns
valores ou práticas sociais, vinculados pela prática pedagógica. Observando-se atentamente
a relação das crianças com as figuras adultas, verifica-se os efeitos de identificação secundá-
ria. Conclui-se que é importante a continuidade de estudos que correlacionem gênero e
desenvolvimento infantil, seja para aspectos clínicos ou educacionais. Adicionalmente, reco-
menda-se uma reaproximação das teorias psicodinâmicas com o estudo das questões de
gênero, na busca de subsídios para a educação.

Palavras-chave: gênero – desenvolvimento infantil – sexualidade – educação.

ABSTRACT

It aims through the research, to identify the importance of the relations of gender on

1
Baseado na dissertação de mestrado de mesmo título, sob orientação da Profa. Dra. Isaura
Rocha Figueiredo Guimarães - Faculdade de Educação UNICAMP, Campinas - SP, fev. 2004.
* Mestre em Educação pela UNICAMP. Pesquisador em Educação e Desenvolvimento Hu-
mano. E-mail: mmanha@ig.com.br
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child development. In a small town of Pernambuco, it searches the children’s free
expression in the wider social context, beyond the home limits and the parental relations.
About the theoretical subsidy of the work, it articulates the gender studies – differently
of sex – specially from Nancy Chodorw with Freud’s child development theory. In the
research, inserted into the qualitative methodology, it has been utilized filming strategies,
interviews and spontaneous social interactions as way to access children, between two
and seven years old, in their daily activities of street play or in educational situations of
crèche and schools. It leads the elaboration of collected data by the punctual reading of
filming, in which organization it is considered age, gender and the interactions between
boys and girls. As results, it is identified and confirmed the differentiation of behaviors
of between gender, which is characterized according to the age of the involved and it is
ascertained this differentiation can be stimulated by some values or social practices,
linked by pedagogical practice. To observe closely the children’s relation with the
adults people, it is verified the effects of secondary identification. It has been concluded
that it is important the continuity of studies those correlate gender and child development,
being to clinical or educational aspects. To add, it is recommended a re-approximation
of psychodynamics theory with the studies of gender perspectives, searching elements
to education.

Key words: gender – child development – sexuality – education.

Despertamos para a questão de (GUIMARÃES, 1997, p. 41).


gênero quando lemos pela primeira vez Tal questionamento nos levou a
um texto de Isaura Guimarães (1997). pensar em princípios socializadores
Naquela reflexão, ela denunciava a primários que agem tanto no seio fa-
resistência da psicologia a uma com- miliar como na sociedade mais ampla.
preensão mais ampla da sexualidade Resgatamos conceitos de Nancy
humana, destacando os caminhos da Chodorow (1990), ao propor a com-
criança para compreender o que é preensão que se estabelece sob a afir-
homem ou mulher, e já nos indicava mação base de que “gênero é o sexo
compromissos a serem assumidos na sociológico”. Conforme entendemos,
elaboração de nossos essa concepção de gênero distancia-
questionamentos: se radicalmente das afirmações
Estarão as causas das diferenças estabelecidas naquelas correntes te-
comportamentais dos sexos nos óricas que se fundamentaram, exclu-
hormônios, advindas de uma sivamente, nas diferenças de sexos
tipificação sexual inata ou sur- como decorrentes dos fatores bioló-
gem no processo de conformida- gicos. Agregando a afirmação de
de às expectativas de papéis so- Nancy Chodorow, em metáfrase a
ciais, que se incorporam à perso- Isaura Guimarães, compreendemos
nalidade pela aprendizagem? que tais reflexões englobam constru-

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ções da cultura e diferenças entre senvolvimento psicológico de um in-
homem e mulher na relação com a or- divíduo.
ganização social, considerando que
as implicações sobre determinações 1. METODOLOGIA
de gênero são fruto das relações so-
ciais, passíveis de reprodução em Garantindo subsídio às discus-
ambiente escolar ou familiar. sões teóricas, decidimos checar as
Então, nos lançamos sobre impli- informações em campo, indo ao en-
cações de gênero que assumissem contro da sociedade, a fim de esclare-
importância no desenvolvimento in- cer as inter-relações entre o gênero e
fantil, definindo como problema e ob- o desenvolvimento infantil, atitude
jetivo de pesquisa analisar o desen- que estabeleceu os sujeitos para nos-
volvimento da criança em sua cor- so estudo: crianças de 2 a 7 anos.
respondência com gênero. Inicialmente, especulávamos uma
Como já sinalizamos, partimos de forma de abordagem às crianças. Fi-
Nancy Chodorow que, para justificar cava evidente que não poderíamos
sua afirmação base, construiu um di- abordá-las na rua, pois em nossa ci-
álogo com Sigmund Freud. Assim, dade as crianças são tuteladas por
definimos o modelo conceitual para o adultos, especialmente as mais jovens,
desenvolvimento infantil a partir da que muito nos interessavam. Perce-
teoria freudiana. bemos que necessitávamos de flexi-
Para responder ao problema de bilidade e de caminhos para conside-
pesquisa, questionamos afirmações rar nossas próprias impressões no ato
freudianas, já cristalizadas, pois a te- da pesquisa. Já considerávamos a di-
oria freudiana clássica propõe leitu- versidade no campo de pesquisa, par-
ras severas para o par macho–castra- cialmente na rua e parcialmente em
do, caracterizado de forma valorativa escolas, ambientes esses em que as
“superior-inferior”. Desviando das crianças puderam ser encontradas
definições que fazem alusão à entretidas em suas brincadeiras ou
dicotomia valorativa, nos concentra- tarefas escolares, a fim de serem ob-
mos na fundamentação da diferencia- servadas e analisadas.
ção para meninos e meninas que está, Optamos pela pesquisa qualitati-
principalmente, articulada com a cons- va, cuja metodologia se insere em
trução mítica do complexo de Édipo. paradigma científico, nos permitindo
Nancy Chodorow (1978), em seu uma maior aproximação dos sujeitos.
questionamento a Freud, apontou fa- Através de González Rey (2000), com-
lhas na teoria, por negligenciar a liga- preendemos que pesquisas qualitati-
ção entre a sociologia e a psicologia, vas em psicologia constituem via de
conjunções nas quais os fenômenos acesso para dimensões do objeto que
sociais devem afetar o padrão de de- estão inacessíveis no uso das pes-
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quisas quantitativas. Planejamos direções para nossa
A demarcação metodológica nos câmara de vídeo tape nos contextos
permitiu a interpretação dos fenôme- da escola e da rua. Na escola, que
nos observados e organizados con- entendemos como o campo principal
forme as leituras teóricas da teoria de de pesquisa, tínhamos grupos de cri-
desenvolvimento freudiana e propo- anças organizados por faixa etária.
sições de Nancy Chodorow. Considerávamos que a faixa etária
Escolhemos pesquisar numa pe- compreendida entre 4 e 7 anos seria
quena cidade de Pernambuco, Ventu- ideal para os sujeitos serem observa-
rosa, onde tínhamos realizado uma dos, pois, segundo as discussões te-
experiência anterior e fomos autoriza- óricas, poderiam ocorrer fenômenos
dos a acessar dependências escola- de resolução do conflito edípico, ou
res, participar de atividades e promo- de separação/identificação com a mãe,
ver dinâmicas necessárias ao traba- embora saibamos que não haja corre-
lho de pesquisa, com as crianças da lação precisa entre as fases de desen-
faixa etária de nosso interesse. volvimento e a idade cronológica.
Venturosa está localizada a 243 km A rua e as atividades
da capital pernambucana, Recife, com extracurriculares foram entendidas
acesso pelas rodovias BR 424 e 217, como campo secundário de pesqui-
na região do Agreste Setentrional, sa, pela liberdade e flexibilidade das
com uma população estimada no últi- observações. O mundo aberto se apre-
mo censo em 13.013 habitantes. A ci- sentava de forma espontânea, não ti-
dade se inscreve na região que é as- vemos controle sistemático dos su-
solada pela seca nordestina. jeitos. Insistimos numa leitura da rea-
Na pesquisa qualitativa, as técni- lidade, conforme os fatos se mostra-
cas normalmente utilizadas estão aber- vam e eram registrados, pois entendí-
tas e maleáveis; assim, de modo ge- amos que o vídeo coletaria as imagens
ral, permitiram o estabelecimento de e cenas e, então, procederíamos à se-
um vínculo com a criança nos momen- leção de todas as cenas que julgásse-
tos iniciais. Decidimos utilizar o vídeo mos pertinentes.
como meio de registro das situações Além da pesquisa propriamente
significativas para a pesquisa. na rua, tivemos oportunidade de nos
Observávamos os grupos e, aos relacionar com crianças que estavam
poucos, introduzíamos as gravações vinculadas a dois projetos distintos:
e depois a reprodução para as crian- Ciranda da Criança e Programa de
ças. De fato, quando reproduzíamos Erradicação do Trabalho Infantil -
as gravações, o processo era muito PETI. Esses dois grupos tinham ca-
divertido - as crianças ficavam muito racterísticas funcionais distintas da
felizes ao se identificarem nas ima- educação formal, desenvolvendo ati-
gens. vidades extracurriculares, também fora

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da escola. Assim os consideramos pela ordenação lógica dos dados
distintos das creches, distintos da coletados, a partir do contexto teóri-
escola e próximos da rua. co que discutimos, qual seja, busca-
No período compreendido entre 4 mos colher os aspectos significativos
e 14 de dezembro de 2001 visitamos na realidade para as implicações do
diariamente escolas do Município de gênero no desenvolvimento infantil.
Venturosa. Tivemos muita colabora- Desse modo, as falas e demais expres-
ção dos 11 professores, dez mulheres sões dos sujeitos sugerem evidênci-
e um homem, que eram responsáveis as para categorias de análise do pro-
pelas 158 crianças, com faixa etária blema que se aglutinaram em torno da
compreendida entre 2 e 7 anos. idade cronológica das crianças.
A distribuição de alunos nas cre- Desde os primeiros registros, ado-
ches apresentou 53% de meninos e tamos e mantivemos comentários que
47% de meninas, com ligeiro predo- denominamos “Frases para o Imagi-
mínio numérico de meninos. Entretan- nário”, que se referem a impressões
to, ao reconsiderarmos a distribuição espontâneas que surgiram na mente
em duas faixas etárias, notamos vari- do pesquisador, quando da revisão
ações expressivas. A faixa de 5 a 7 do material filmado. Consideramos a
anos apresentou predomínio numéri- importância dessas expressões, pois
co significativo de meninas, com 61%; de forma livre de quaisquer constran-
os meninos totalizaram 39%. A faixa gimentos, elas emitem opinião num
etária de 2 a 5 anos apresentou inver- ponto focal da ocorrência registrada,
são de predomínio, com 65% de meni- mesmo que possam denunciar a ação
nos e 35% de meninas. inconsciente do pesquisador e até
o campo secundário, onde dispú- mesmo julgamento de valor.
nhamos de mínimas oportunidades de Tratamos de nossas imagens-re-
intervenções seqüenciais, não pude- gistros em quatro macro etapas que
mos classificar todos os sujeitos com se referem aos seguintes indicadores:
a precisão de idade e, desse modo, faixa etária, gênero, contexto relacional
apenas generalizamos a distribuição, e expressão dos (as) professores (as).
em que nos deparamos com 60% de Nas faixas etárias, dividimos os regis-
meninas e 40% de meninos. tros em três pontos focais que nos
Com a revisão do material grava- dão conta de atitudes e reações dos
do, pudemos construir uma síntese de meninos, das meninas e das atitudes
atitudes e reações das crianças ob- e ações estabelecidas entre meninos
servadas nas creches, rua e ativida- e meninas, o que poderíamos deno-
des extracurriculares, bem como as minar de aspectos relacionais, seguin-
atitudes dos (as) professores (as). do a nomenclatura utilizada por
O processo de elaboração e sele- Georges Boris (2000).
ção desse material pode ser explicado Apresentamos a seguir, exemplos
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das sínteses e comentários dos da- nominação. “Isso é de menina!”
dos analisados. As “frases do imagi- As meninas trazem bonequinhas.
nário” estão indicadas entre aspas, “Somos mamães”.
para distinção da observação e carac- Tais itens nos revelam o interesse
terização da opinião instantânea do das meninas em relação às pessoas.
pesquisador. Falando pela negação, as meninas não
constroem monstros, não manuseiam
2. ATITUDES DOS MENINOS armas ou dispositivos para ataque e
destruição. A meninas brincam com
Em brincadeiras com lego, os objetos que imitam figuras humanas.
meninos constroem: dragão, Com as bonecas, exercem afabilidade
avião, monstros e super heróis. e maternagem.
“Isso é de homem”.
Os meninos trazem carrinhos e 4. ATITUDES COMPARATIVAS EN-
robôs e monstrinhos. “Ah , de TRE MENINOS E MENINAS
menino”.
Nesses itens, podemos notar que Nos grupos espontâneos, forma-
o tipo de brinquedo que está disponí- dos por crianças com até 3 anos
vel aos garotos atraem movimento e e seis meses, há meninos e meni-
ações propostas por tais objetos. nas. “Somos anjos, não temos
Quando utilizamos a palavra ação, re- sexo”.
almente estamos destacando movi- Nos grupos espontâneos, forma-
mentos bruscos e velozes, pois assim dos por crianças com mais de 3
notamos o desenrolar do brincar com anos e seis meses, há separação
esses objetos que se deslocam no ar, de gêneros. “Menina para lá e
em cenários imaginários, atacando e menino para cá”.
destruindo inimigos, também imaginá- O item referente aos grupos es-
rios. O super-herói, menino, desloca- pontâneos formados por crianças
se de um “hominho” para um avião mais jovens confirma uma observa-
ou dragão. O objeto comporta-se ção anterior, quando notamos um
como uma tela de projeção na qual comportamento heterônimo das crian-
fantasias de auto-imagem ou de uma ças mais novas. De fato, esses itens
figura, quem sabe a paterna, estão estão demarcados pelo limite aproxi-
projetadas. mado de 3 anos e seis meses, que foi
o apurado naquela oportunidade.
3. ATITUDES DAS MENINAS Essa linha demarcatória nos revela
que, até por volta desse limite de ida-
Em brincadeiras com lego, as de, as crianças estabelecem uma neu-
meninas constroem: pessoas, me- tralidade quanto à escolha de compa-
ninos, meninas, objetos sem de- nheiros por sexo e gênero. A partir de

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determinado desenvolvimento afetivo nos como eles devem proceder e ex-
ou psicológico, a criança passa a es- clui a menina do mundo feminino.
tabelecer um comportamento de se-
gregação quanto a gênero e, espon- 6. DISCUSSÃO
taneamente, coloca-se nos espaços
da sala de aula, mesas ou cantos, agru- A classificação sexual dos seres
pando-se com os iguais em gênero: humanos em homens e mulheres é uma
meninos e meninas separados. proposta da biologia que estabelece
delimitações e interpretações rigoro-
5. EXPRESSÃO DOS(AS) sas para ambas as classes, desde o
PROFESSORES(AS) início do desenvolvimento dessa área
de conhecimento. Assim, tomam-se
Quanto às ações dos (as) referências pautadas nos aspectos
professores(as), destacamos ocorrên- anatômicos e fisiológicos das diferen-
cias significativas em relação aos as- ças entre os sexos como prioritárias,
pectos educacionais e às diferenças deixando-se os fatores psicológicos
por gênero, seja reforçando compor- ou subjetivos, os endócrinos e, adici-
tamentos, seja, no pior dos casos, for- onalmente, aqueles decorrentes das
necendo referências que inseriam as interações sociais fora de considera-
crianças no mundo relacional de ções.
superiroridade-inferioridade, inade- Para as áreas de educação e psi-
quadas no nosso entender. cologia, essa é uma visão
De repente ele destrói tudo, né reducionista. Entretanto, em breve
Robson? “Robson você é um ter- análise das ciências nos deparamos
ror mesmo!” com tal conceito extrapolado para
As meninas não têm comporta- muitas áreas do saber, socialmente
mento assim. Só Patrícia. “Mas difundido e enraizado culturalmente.
Patrícia não é uma menina, en- Recorremos ao estudo de Georges
tão tudo bem”. Boris (2000) sobre vivências masculi-
Nesses dois itens de observação, nas na contemporaneidade, no qual o
entendemos que aquelas professoras autor efetuou análises sobre o homem
reforçavam atitudes negativas. Com a partir da categoria de gênero, dis-
a frase “De repente ele destrói tudo, cutindo as noções de sexo, identida-
né Robson?” a professora afirma e, de, condição, subjetividade e papéis
ao mesmo tempo, pede uma confirma- masculinos. Neste momento, tomamos
ção do garoto. Do mesmo modo, no sua contribuição para nosso
item seguinte, quando a professora posicionamento crítico em relação à
afirma sobre Patrícia, a está diferenci- excessiva valorização biológica na
ando do comportamento esperado conceituação de sexo, e a decorrente
para as meninas, indica para os meni- conotação de dominância de um sexo
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sobre o outro: al, histórica, política - pois têm
Tradicionalmente, o pensamento caráter ideológico - e cultural-
ocidental tende a se dividir entre mente construídos. (BORIS,
duas abordagens aparentemen- 2000, p. 18).
te distintas da dualidade dos se- O autor nos alerta para três dimen-
xos - o modelo da semelhança e o sões essenciais na noção de gênero,
modelo da diferença entre ho- às quais devemos estar atentos: a di-
mens e mulheres - mas, em ambos mensão relacional e as dimensões
os casos, sempre se buscou afir- contextual e histórica, que estabele-
mar a superioridade do homem, cem correlação intrínseca entre si.
o que justifica sua histórica do- No conceito relacional de gênero
minação sobre a mulher. (BORIS, se estabelece que, ainda que o macho
2000, p. 35). e a fêmea possam ter características
Contemporaneamente, já pode- universais, “não se pode compreen-
mos nos valer do conceito de gênero der a construção social da masculini-
para designar os mundos masculino dade ou da feminilidade sem referên-
e feminino, superando a estreiteza do cia ao outro pólo relacional”. Machos
conceito sexo. Ao falar em gênero, são definidos em relação às fêmeas e
estamos considerando os efeitos das vice-versa.
construções culturais sobre os ho- Seguindo a pesquisa intercultural,
mens e as mulheres, bem como incor- Nancy Chodorow (1989) sugere que
porando ao conceito de sexo a forma não há diferenças determinantes dos
como os homens e as mulheres vêem comportamentos de homens e mulhe-
e vivenciam a organização social. De res, mas que muitas das característi-
fato, o conceito de gênero trata das cas que normalmente são tidas como
relações entre homens e mulheres, de próprias de um gênero ou de outro
como foram construídas ao longo da são fruto do modo de diferenciar os
história, e de como se apresentam em machos e as e fêmeas humanas, na
diferentes lugares. cultura específica à qual pertencem.
Georges Boris confirma o que Nesse percurso, a autora afirma
estamos defendendo, ao afirmar: que, em todas as situações de sociali-
A noção de gênero, diferentemen- zação, o socializador primário é uma
te da concepção de sexo, mais do mulher. Os homens podem ajudar a
que se limitar à referência ao cuidar das crianças, mas eles têm um
mero exercício da prática sexu- compromisso de trabalho em outro
al, inclui a investigação das ati- lugar, que não o lar. Com as mulheres
tudes, dos comportamentos, das ocorre exatamente o oposto. Seu com-
relações, dos valores, dos estere- promisso primordial está no lar, no
ótipos, dos conceitos e dos pre- cuidado com os filhos.
conceitos, que também são soci- Para Nancy Chodorow, surge um

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ponto crítico que diferencia a educa- mantêm uma ligação com a figura ma-
ção dos meninos: eles devem buscar terna.
independência, rejeitando sua própria Cremos que o cerne de todas as
mãe, conscientemente ou inconscien- afirmações de Nancy Chodorow seja:
temente. Isso significa separar-se e Estas considerações sugerem que
distanciar-se do universo feminino. o centro da identidade de gêne-
Essa situação seria aprovada e refor- ro e masculinidade apresentam
çada pelas diferentes instituições cul- conflitos para homens, e são or-
turais que cercam as crianças. Adicio- ganizados como senso masculi-
nalmente, ao não serem submetidas a no de ego e, de certo modo, o cen-
essa passagem de separação, as me- tro da identidade de gênero e fe-
ninas permaneceriam ligadas às mães minilidade não apresentam con-
e ao mundo doméstico, o que redun- flitos para a mulher.
da em conseqüências diferentes para (CHODOROW, 1989, p. 109).
a identidade de meninos e meninas. Desde Freud afirma-se, nas etapas
Da mesma forma, seguindo tais de desenvolvimento primárias, que
afirmações, poderíamos deduzir o por- machos não são fêmeas. A essência
quê da crença de que “a identidade da identidade de gênero masculina e
masculina depende apenas dos pró- o senso de masculinidade estão defi-
prios homens”, com o entendimento nidos negativamente: o que não é fe-
de que um homem se constrói por si minino, não é mãe, não é sensível, etc.
próprio e não em relação ao outro, No modelo masculino encontramos
enquanto que as mulheres crescem manobras de defesas que elevam o
direcionadas para o outro, dependen- receio das mulheres, o receio de ex-
tes da aprovação e reprovação exter- pressar qualquer forma de feminilida-
na, ao se construírem. O menino cria de: passividade, carinho, cuidados
barreiras para se diferenciar e bloque- em relação aos outros e, especialmen-
ar suas expressões em relação ao mun- te, o medo de ser desejado por um
do feminino, numa conquista de inde- homem.
pendência e afastamento, com expres- Em oposição, no modelo de de-
são do que está aparente em nível senvolvimento feminino não se defi-
consciente. No entanto, para um me- nem as fêmeas enquanto não-ma-
nino a identificação primária com a mãe chos. A essência da identidade de
e com o feminino jamais será removi- gênero feminina e o senso de femini-
da de suas impressões mais profun- lidade são definidos afirmativamen-
das, mantendo uma dependência in- te, ou positivamente, como o que é
definida, o que nos aproxima do en- feminino, ou como é mãe - a figura
tendimento da identidade feminina, materna tende ao universo feminino.
numa suposta essência em ambos os A menina não é definida como não-
gêneros, onde meninos e meninas menino, não-pai, pois as diferenças
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do que é ser masculino não são sali- menina, que eram tratados como fi-
entadas. A identidade de gênero fe- lhas pelas meninas, e bonecos-meni-
minina está inserida num processo de no, que eram tratados como heróis
repetição pela ação da maternidade, violentos e destruidores pelos meni-
num circuito fechado onde se tem mãe nos. Esse ponto ressalta uma diferen-
gerando filhas e, novamente, filhas ça interessante no comportamento de
gerando mães. meninas e de meninos.
Voltando nossa atenção para as As meninas vêem o boneco-me-
crianças observadas, meninos e me- nina (não presenciamos o uso de bo-
ninas, ao serem tomadas brincando necos-menino) como uma filha, e se
em seu mundo real, nos levaram a in- inserem na brincadeira como se fos-
ferir um outro mundo paralelo, o da sem um outro personagem: a mãe.
fantasia, que ocorria simultaneamen- Mantêm, assim, o sentido relacional
te ao que estávamos observando. As entre pessoas no ato de brincar, ex-
crianças agiam, refletiam, afastavam- pressando sentimentos positivos e
se das atividades, estavam ou não amorosos.
conectadas com seus parceiros, mas Diferenciando seu comportamen-
permaneciam, fundamentalmente, to, os meninos vêem o boneco-meni-
conectadas com seus brinquedos, no, super-herói, enquanto uma proje-
objetos concretos. Seriam as portas ção de si mesmos, que no sentido
para o mundo imaginário? Seria a re- relacional enfrenta monstros e inimi-
lação com o brinquedo um meio para gos, destruindo-os; portanto, expres-
a construção de sua auto-imagem? sando sentimentos negativos.
Ao pensar o mundo imaginário Acreditamos que as fantasias,
das crianças, a pedagoga Tilde Gallino enquanto construções subjetivas e
(1996) apercebe-se da importância dos imaginárias, são básicas na vida in-
brinquedos de pelúcia para as crian- fantil, inclusive na distinção de gêne-
ças. Para ela, tais brinquedos invadi- ro. Ao articular fantasias e a auto-ima-
ram o cenário do triângulo de Édipo. gem, a criança está sedimentando as
Sua fala justifica-se porque o objeto bases de sua identidade. Pudemos
transacional, em especial o brinque- perceber tendências de expressões de
do ursinho de pelúcia, estaria imuni- gênero nas crianças, no exercício do
zado quanto aos tormentos para a brincar e de inter-relacionar os mun-
definição sexual: castrado/não-castra- dos real e imaginário, em seus movi-
do, pois não tem gênero definido. mentos, no uso dos brinquedos, nas
Entretanto, em nossas observa- ações corporais ou nas expressões
ções, o tipo de objeto transacional emocionais.
com os quais nos deparamos fazia A tendência que se manifestou
alusão às diferenças de gênero, pois nas meninas nos remete à
as crianças brincavam com bonecos- maternagem, enquanto que os meni-

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nos demonstraram o condicionamen- tações enfrentavam críticas e confli-
to/treinamento dos guerreiros infan- tos, eram repreendidas e “orientadas”
tis que enfrentavam e destruíam ini- por adultos, que diziam: “Você não
migos, dentro do princípio da luta do deve fazer isso, menina não é assim”.
bem contra o mal. A psicanalista Françoise Dolto
No mundo do brinquedo, as cri- (1999, p. 171-174) considera que a
anças mais jovens, com menos de 3 agressividade contra outras crianças
anos e seis meses, estiveram como “deve ser vista como uma busca de
iguais, podiam estar juntas nas mes- contato com elas e não como algo
mas atividades e serviam de modelo maldoso - se bem que isso faça a cri-
umas para as outras, meninos e meni- ança agredida berrar”. Para ela, na ex-
nas. pressão da criança não há sentido de
Em relação aos brinquedos, meni- bem ou de mal, apenas uma maneira
nos e meninas, a partir de 3 anos e de viver em sociedade, enquanto um
seis meses, estiveram voltados para exercício entre humanos.
objetivos essencialmente diferentes, As meninas, em geral, enfrenta-
que os distanciavam uns dos outros. vam os desafios do processo de ama-
Especialmente, os meninos demarca- durecimento e de auto-afirmação ma-
vam no mundo circundante o sentido nifestando o desejo de se verem como
de pertença ao gênero masculino, evi- mulheres adultas e se constituírem
denciando uma necessidade de afir- enquanto mães. Elas permaneceram
mar que o menino é diferente e supe- conectadas e interessadas nas pes-
rior à menina. Notamos que os meni- soas e, talvez por isso, demonstravam
nos eram desafiados verbalmente, por maior sensibilidade e apego, sem
eles mesmos, a provarem que não medo de expressar emoções, demons-
eram meninas, fazendo-o por demons- trar fragilidade ou expor suas falhas.
tração de força física e de controle das Não percebemos demandas para que
emoções, como valentia e falta de as meninas demonstrassem méritos
medo. corporais, em ações de luta, competi-
Pudemos observar que ser meni- ção ou mesmo dominação de suas
na e estar mais próxima dos meninos pares.
significava apanhar, e assim identifi- Os meninos com mais de cinco
camos uma justificativa para que as anos expressaram a busca e manuten-
meninas se afastassem dos meninos. ção de liderança, pautadas nas atitu-
Algumas meninas também expressa- des corporais quando precisavam es-
vam sua agressividade e, desse modo, tabelecer domínio sobre os mais fra-
eram percebidas pelas demais crian- cos, sobre os menores e sobre as me-
ças como meninas-menino, queremos ninas.
dizer, meninas que se igualavam aos Também notamos que as crianças
meninos. Meninas com tais manifes- com mais de três anos e seis meses
Olhar de professor, Ponta Grossa, 7(1): 85-101, 2004. 95
constituíam o clube do gênero. Gru- taneamente liberado.
pos de meninas e de meninos perma- Os meninos dispunham de espa-
neciam separados a partir dessa ida- ço muito mais amplo, cheio de emo-
de: separados espacialmente, separa- ções e diversidade que, em
dos no mundo concreto do brinque- contrapartida, lhes oferecia mais ris-
do, ao escolherem objetos diferentes, cos e temores, exigindo maior
separados na construção social. autoconfiança e espírito de aventura
Observamos que o meio social para as constantes descobertas. Per-
oferecia oportunidades de forma cebemos que, de alguma forma, os
discriminatória para meninos e meni- meninos necessitavam demarcar limi-
nas. A liberdade de ir e vir não se ma- tes em seu espaço, até como uma ma-
nifestou eqüitativa em relação aos neira de se autoprotegerem, contro-
gêneros. Os meninos podiam sair à lando o território sob seu domínio.
rua e brincar nos balanços, correr e Quanto às noções ligadas à sexu-
interagir entre si e com adultos. As alidade, as meninas evidenciaram
meninas permaneciam reclusas, construções mais elaboradas do que
mantidas em ambientes controlados, os meninos da mesma idade. O maior
proibidas de correr riscos, sendo en- interesse das meninas nas interações
tendidas enquanto mais frágeis e dig- humanas talvez lhes proporcione mai-
nas de maiores cuidados, que eram as or observação e compreensão sobre
justificativas para as limitações impos- o que ocorre, subjetivamente, com as
tas às mesmas. pessoas. Além disso, as relações de
Pudemos identificar que havia um afeto foram muito mais reveladas nos
espaço físico delimitado (socialmen- comportamentos das meninas, tanto
te) para as meninas, o qual se circuns- para expressar carinho quanto para re-
crevia no lar, ampliando-se ao quin- ceber. Os meninos também expressa-
tal, no limite da cerca e dos muros no ram comportamentos para receber e
terreno. A escola era entendida como dar carinho, mas, de modo ambíguo,
uma extensão dessa área, onde a me- se defendiam dos mesmos para não
nina desenvolvia atividades pré-defi- parecerem meninas.
nidas, delimitadas e controladas, ten- Quando os meninos interviam nas
do em vista comprometimentos futu- ações ou nas brincadeiras das meni-
ros de sua formação. As meninas se nas, eles faziam isso de forma brusca
mostraram mais retraídas. Em ambien- e intrusiva, em atitudes autônomas
tes abertos, somente quando se sen- que expressavam segurança e
tiam seguras permitiam-se envolver em autoconfiança - “donos da situação”.
brincadeiras ou conversas. Quando Para efetuarem ações semelhantes -
acontecia a participação das meninas, intervenção das meninas nas brinca-
isso se dava intensamente, como se deiras dos meninos - notamos que as
um conteúdo represado fosse instan- meninas necessitavam de autorização

96 Olhar de professor, Ponta Grossa, 7(1): 85-101, 2004.


de um outro, adulto, para fazê-lo. Nes- tos - para muitos, o(a)
ses momentos, entendemos que as professor(a) é o primeiro amor
meninas expressavam autoconfiança fora das relações primárias. Com
mais reduzida, com receio das conse- isso, os(as) professores(as) têm
qüências ou, até mesmo, um compor- uma função intrínseca na consti-
tamento mais comedido, segundo pa- tuição da identidade de gênero.
drões sociais de comportamento vi- Poderíamos extrapolar a linha
gentes. de raciocínio de Chodorow para
a situação escolar, onde as meni-
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS nas encontravam na professora-
mulher alguém igual a elas, que
Falar sobre a importância dos(as) lhes fornecia exemplos a serem
professores(as) na construção da seguidos e imitados. A professo-
identidade de gênero das crianças é ra representaria uma cuidadora
importante para nós, enquanto con- bem sucedida, pois consegue dar
siderações finais. Nossas observa- atenção e afeto a muitos ao mes-
ções do relacionamento de mo tempo; é bem aceita e amada
professores(as) e crianças nos indi- pelas meninas. Para os meninos
caram questões muito sérias e impor- a professora-mulher é alguém
tantes, das quais podemos deduzir para ser amada - um objeto das
contribuições significativas para o pulsões sexuais que deve ser ne-
contexto educacional. gado e superado - o menino não
As dez professoras e o professor, pode ter as mesmas característi-
em geral, mostraram-se cuidadores, cas femininas dela.
maternais, dedicados e, enquanto pro- O professor-homem está a fazer
fissionais, percebiam-se socialmente coisas de mulher, cuidando, en-
discriminados e inferiorizados por sinando, protegendo. Para as
baixos salários e por falta de reconhe- meninas ele se mostra como ou-
cimento social. Eram mulheres que tra- tra mãe, não há conflito em se
balhavam para complementar o orça- inserir sob seu mundo-classe,
mento familiar, ou homem que subsis- pois há a continuidade na iden-
tia independente, com fonte de renda tificação com uma figura que se
única. expressa feminina, como até en-
Sendo o magistério uma função tão aconteceu. Para os meninos,
fundamental no contexto educa- o professor-homem está no lugar
cional, professores(as) oferecem de uma mulher, e representa tam-
relações significativas e se cons- bém a figura de uma mãe. Esse
tituem fontes de identificações homem, ao assumir tal função,
para as crianças, devido à proxi- não aprendeu suficientemente as
midade e intensidade dos conta- técnicas de luta para negar o
Olhar de professor, Ponta Grossa, 7(1): 85-101, 2004. 97
universo feminino, ele se subme- por uma das professoras com as
teu ao feminino. Aproximar-se da quais mantivemos contato. Ela
mãe-homem-professor pode signi- dizia que os meninos são mais
ficar um caminho intermediário, carinhosos e demonstrava maior
onde o universo feminino não aproximação em relação a eles.
necessite ser veementemente ne- Sue Askew e Carol Ross (1991)
gado. também se depararam com uma
Steve Biddulph (2002, p. 115), diferença de atenção dos(as)
que vem se dedicando ao tema de professores(as) para meninos e
criação de meninos, considera meninas, afirmando que os meni-
“que um menino querer ser meni- nos recebem mais atenção:
na vai contra toda a pressão dos Também é importante examinar
colegas e, portanto, deve ser um as coisas que poderiam estar afe-
impulso muito forte”. Nesse sen- tando negativamente a educação
tido, uma figura modelo das meninas, tais como a quanti-
andrógina, cuidadora, mãe-ho- dade e o tipo de atenção que elas
mem-professor, e que não eviden- recebem do professor nas classes
cie o papel masculino preponde- mistas. (ASKEW e ROSS, 1991, p.
rante, possibilitaria uma alterna- 11).
tiva de acomodação para tal im- O psicólogo William Pollack, que
pulso, com a redução da pressão concentrou seus estudos em meni-
social externa. A figura do(a) nos, sugere que mesmo recebendo
professor(a) se constitui enquan- atenção diferenciada, ela pode estar
to o poder que autoriza e demons- acontecendo por uma compreensão
tra como proceder. Um professor- inexata dos meninos:
homem que evidencie o papel Tendo uma visão restrita dos me-
masculino preponderante repre- ninos e deixando de reconhecer
sentaria um modelo que dissolve o lado empático criativo e cari-
questões ambíguas para os me- nhoso de muitos deles, creio que
ninos, dando-lhes referenciais alguns professores - embora in-
para identificação, que une cari- conscientemente - comprometem
nho, força e exemplo de supera- seriamente seu desenvolvimento
ção e negação do mundo femini- emocional e educacional, caso
no. Para as meninas esse profes- eles não se encaixem necessaria-
sor-homem representaria outro mente nas regras sociais antigas
homem para ser amado e para ser e estereotipadas sobre como de-
conquistado, submetendo-se e vem se comportar, aprender e
correspondendo ao aconchego crescer. (POLLACK, 1999, p.
de suas expressões de carinho. 279).
Lembramos da afirmação feita Em nenhum momento estivemos

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avaliando ou comparando o desem- atividades psico-pedagógicas que
penho escolar entre meninos e meni- mantenham a universalidade dos brin-
nas, mas estas últimas reflexões nos quedos para ambos os sexos, favore-
remetem a pensar, enquanto educa- cendo a interatividade espontânea
dores, sobre problemas de fracasso entre meninos e meninas. Tal prática
escolar e de suas relações ou deriva- pode ser mantida até os 5 anos de ida-
ções da forma de relacionamento en- de.
tre professores(as) e alunos(as) Conforme nossa pesquisa, a par-
mediatizadas por gênero. tir dos cinco anos de idade os meni-
Nas discussões de gênero, espe- nos estiveram muito ativos fisicamen-
cialmente aquelas oriundas de te, expressando-se com
Chodorow (1990) e Boris (2000), há agressividade; as meninas da mesma
consenso quanto à importância das faixa etária estiveram mais voltadas
fases da infância para a construção para comportamentos de sensibilida-
das relações de gênero e sua sedimen- de e afabilidade. Quanto aos meninos,
tação no ser humano. Estabelecendo acreditamos ser uma época adequada
uma analogia entre os trabalhos de para empregar alternativas pedagógi-
Anna Freud e de Sigmund Freud, é cas que estimulem sua sensibilidade
possível perceber que ela não se sa- e percepção das figuras humanas,
tisfez com as referências ao conteúdo tendo sua aptidões melhor explora-
da infância feitas pelo psicanalista, e, das. Para as meninas dessa fase, re-
diante disso, aproximou-se diretamen- comendamos serem incentivadas ati-
te das crianças. Acreditamos que, na vidades que reforcem sua
aproximação do conceito gênero ao autoconfiança, tais como jogos com-
desenvolvimento infantil, devemos petitivos e exploração de brinquedos
proceder da mesma maneira. É possí- lógicos ou construtivos.
vel o desenvolvimento de trabalho As ações propostas contrapõem
prático, direto com as crianças, que rígidas demarcações de gênero com
seja elaborado tanto do ponto de vis- as quais nos deparamos em ambien-
ta clinico quanto do ponto de vista tes pedagógicos: o que é permitido
educacional. ou adequado para os meninos e o que
Desse modo, nossa contribuição é permitido ou adequado para as me-
referenda que as crianças da faixa ninas, classificando-se por dicotomia.
etária abaixo de 3 anos e seis meses Desse modo, oportunidades para o
não fazem diferenças de gênero im- desenvolvimento de capacidades
portantes. Nos relacionamentos, elas além de expressões emocionais esta-
permanecem juntas ao brincar e esco- rão contempladas em outro
lhem brinquedos aleatoriamente. Acre- paradigma que favoreça a relação
ditamos que até essa faixa etária te- amistosa entre homens e mulheres,
mos oportunidade para desenvolver com repercussão significativa para a
Olhar de professor, Ponta Grossa, 7(1): 85-101, 2004. 99
vida adulta - familiar e social ampla. da escola. Na condição dos educado-
No que se refere a essa relação res, não consideramos uma neutrali-
amistosa, que compreende, inclusive, dade de influências, seja em sua rela-
as relações do indivíduo consigo mes- ção com as crianças, seja nos conteú-
mo e com o seu meio de vida, trans- dos educacionais propostos, certa-
crevemos uma fala muito expressiva e mente, temas que são discutidos am-
desencadeadora, feita por Jean- plamente.
Claude Liaudet ao referir-se a Em nossa reflexão abordamos o
Françoise Dolto: tema gênero mediado por conteúdo
No exercício de sua profissão, teórico que se aproximou do
Fraçoise Dolto sempre se proibiu referencial psicodinâmico sem, no
ter um projeto sobre as crianças entanto, enfocar questões de ordem
que tratava. Neste sentido, ela clínica. Neste trabalho, a educação
distinguiu sempre claramente o sempre foi o alvo primordial e, por-
seu papel do de um pai. Enquan- tanto, ao concluirmos, afirmamos nos-
to psicanalista, a opção de vida sa defesa de ações educacionais pró-
de uma criança não lhe dizia res- ativas, voltadas para as crianças das
peito. Que esta prefira ser bizar- etapas pré-escolares, naquilo que
ra, que fique louca ou débil, de concerne à educação de gênero e so-
sexo incerto, pouco lhe importa- cialização secundária.
va se ela tivesse conseguido en- Ao vislumbramos nossas própri-
contrar um equilíbrio para si as afirmações nos damos conta de
mesma e nas relações com seu que, de fato, estamos propondo uma
meio de vida: se ela funcionava reaproximação de teorias
bem, não achava que tivesse algo psicodinâmicas com a educação. Em-
a dizer, respeitava a orientação. bora nossos argumentos estivessem
(LIAUDET, 2000, p. 11). restritos aos construtos freudianos,
Essa é uma posição que pode ser ou decorrentes destes, nos
adotada do ponto de vista ético-clíni- questionamentos e elaborações de
co, pois na relação entre criança e Nancy Chodorow, compreendemos
psicanalista, o profissional deve res- que as abordagens psicodinâmicas
peitar as escolhas e a liberdade de seu decorrentes das postulações
“paciente”. Porém, afirmamos que freudianas, potencialmente, podem
para a educação tal posição deve ser colaborar com a educação. No entan-
negada: não pode ser uma posição do to, ao afirmarmos tal potencialidade,
(a) educador (a) frente ao mundo par- entendemos que certo esforço deva
ticular da criança ou no que se refere ser empreendido nos cenários de dis-
às reflexões da sociedade e, principal- cussão e produção acadêmica, para
mente, não pode ser adotada em tudo que a educação possa ser beneficia-
aquilo que seja remetido ao mundo da com tais conhecimentos.

100 Olhar de professor, Ponta Grossa, 7(1): 85-101, 2004.


logia: caminhos e desafios. São Paulo:
Thompson Pioneira, 2000.
REFERÊNCIAS

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