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Encontro UMA PROPOSTA DE PSICODIAGNÓSTICO

Revista de Psicologia
NO CONTEXTO DA CIRURGIA DE
Vol. 16, Nº. 24, Ano 2013
TRANSGENITALIZAÇÃO

Amanda Cristina Fonseca Palla


Universidade Federal de Goiás - UFG
RESUMO
pallaamanda@gmail.com

A realização da cirurgia de transgenitalização demanda um


acompanhamento médico e psicológico para o diagnóstico e a
Anna Karollina Silva Alencar
consequente autorização para o paciente submeter-se ao procedimento
Universidade Federal de Goiás - UFG
cirúrgico no Sistema Público de Saúde. Devido às condições objetivas
annakarollina_karol@hotmail.com de pouco tempo para a realização de uma avaliação psicológica, ao
grau de complexidade e à irreversibilidade do procedimento, faz-se
necessário uma avaliação psicológica responsável e eficaz. Nesse
Henrique Batista Almeida sentido, buscou-se realizar uma reflexão acerca de aspectos relevantes
Universidade Federal de Goiás - UFG para a realização do psicodiagnóstico, no contexto do processo de
henrique.psicologia@gmail.com preparação para cirurgia de transgenitalização. Discute-se a
importância de se investigar a construção do gênero sexual e as
repercussões deste na vida do paciente, bem como o preconceito, as
Marialice Segatto Rocha redes de apoio, os mecanismos defensivos e de enfrentamento etc.
Observou-se também a necessidade de um psicodiagnóstico mais
Universidade Federal de Goiás - UFG
amplo e compreensivo, evitando a patologização e contribuindo junto
licesegatto@hotmail.com
ao sujeito no processo de tomada de decisão.

Palavras-Chave: avaliação psicológica; mudança de sexo; diagnóstico;


Mara Rúbia de Camargo Alves patologização; tomada de decisão.
Orsini
Universidade Federal de Goiás - UFG
mararubia.mr@gmail.com ABSTRACT

The completion of the reassignment surgery requires a medical and


psychological monitoring for diagnosis and subsequent authorization
for the patient to undergo the surgical procedure in the Public Health
System Due to the objective conditions for a short time to perform a
psychological evaluation, to the degree complexity and irreversibility of
the procedure, it is necessary a psychological evaluation accountable
and effective. Accordingly, we sought to conduct a reflection on aspects
relevant to the realization of psychodiagnostic, in the context of
preparation for reassignment surgery process. Discusses the
importance of investigating the construction of gender and sexual
repercussions of the patient's life, as well as prejudice, support
networks, defensive coping mechanisms and so on. We also observed
Anhanguera Educacional Ltda. the need for a broader and more comprehensive psychodiagnostic,
avoiding pathologizing and contributing with the subject in the
Correspondência/Contato
Alameda Maria Tereza, 4266
decision-making process.
Valinhos, São Paulo
CEP 13.278-181 Keywords: psychological assessment; change sex; diagnosis; pathological;
rc.ipade@anhanguera.com
decision making.
Coordenação
Instituto de Pesquisas Aplicadas e
Desenvolvimento Educacional - IPADE
Artigo Original
Recebido em: 28/11/2012
Avaliado em: 10/12/2012
Publicação: 02 de dezembro de 2013 83
84 Uma proposta de Psicodiagnóstico no contexto da cirurgia de transgenitalização

1. INTRODUÇÃO

O transexualismo, segundo a 10ª Revisão da Classificação Estatística Internacional de


Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID 10), é um subtipo dos transtornos da
identidade sexual, dentro do grupo de transtornos de personalidade e do comportamento
adulto. Conforme a descrição, pode-se entender que esse transtorno é caracterizado por
um desejo de ser, viver e ser considerado como uma pessoa do sexo oposto. Esse anseio
acarreta o sentimento de mal estar e inadaptação frente ao seu sexo anatômico,
desencadeando o desejo de se submeter a intervenções cirúrgicas para obter as
características corporais do sexo desejado. Nesse manual, o transtorno é identificado pela
sigla F 64.0.

Para a quarta edição revisada do Manual Diagnóstico e Estatístico dos


Transtornos Mentais (DSM-IV-TR), o transexualismo seria um dos transtornos de
identidade de gênero. O diagnóstico de transtorno de identidade de gênero (302.6 para
crianças e 302.85 para adolescentes e adultos) deve seguir alguns critérios. Deve haver a
presença de identificação, o desejo de ser e/ou a convicção de que se é do sexo oposto.
Essas tendências acabam por gerar um desconforto e o sentimento de inadequação quanto
ao próprio sexo e/ou a atribuição deste, constituindo o segundo critério para o
diagnóstico. É importante que haja também a ausência da condição intersexual física e que
a inadequação do sexo anatômico esteja trazendo sofrimentos e prejuízos sociais
significativos para o sujeito.

Segundo o DSM-IV-TR, os indivíduos que apresentam o transtorno de identidade


de gênero tendem a recorrer a métodos para modificar suas características sexuais, como
depilações definitivas, histerectomia (retirada do útero), rinoplastias (cirurgia no nariz) e a
transgenitalização.

Outras perspectivas trabalham com a questão do transexualismo de forma


diferente. O gênero para Arán e Murta (2009) se constitui enquanto uma construção social
que não necessariamente está ligada ao sexo biológico, podendo incluir uma variedade de
orientações e identidades sexuais. Butler (2009) faz uma reflexão acerca dos prejuízos que
o diagnóstico médico pode trazer aos indivíduos transexuais por patologizar o que na
realidade deveria ser entendido como noção de autonomia. O diagnóstico pautado no
DSM-IV-TR pode fazer com que a pessoa conceba a si mesma como “doente” ou fora do
padrão de normalidade. Há que se preocupar com o sofrimento emocional que pode
provocar, dentre outros, perda da autoestima e depressão nos transexuais. A preocupação
é ainda maior com jovens, que possuem menor grau de maturidade para se relacionar

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com o diagnóstico em seu caráter instrumental, ou seja, possuem dificuldade na


compreensão de que o diagnóstico consiste apenas em um instrumento para a liberação
da cirurgia, e não no enquadramento do indivíduo em uma patologia (BUTLER, 2009).

A aquisição da cirurgia de transgenitalização é, de fato, um avanço para a


população trans, permitindo o acesso à mudança de um corpo por não se adequar ao
gênero. Nessa perspectiva, a reflexão crítica propõe uma despatologização do diagnóstico,
mas concomitantemente encontra o embate para a permanência do mesmo, já que este (o
diagnóstico) possibilita o processo de cirurgia em hospitais públicos. Butler (2009) se
dispõe a pensar na questão da autonomia para o sujeito transexual. Quando
diagnosticado, perde sua autonomia enquanto ser livre para viver sua sexualidade e,
quando não diagnosticado, perde sua autonomia para a mudança do corpo. Para Arán e
Murta (2009) o grande desafio consiste em problematizar a restrição da experiência da
transexualidade a um transtorno psiquiátrico sem se desligar da normatização do acesso à
saúde e do reconhecimento do sofrimento psíquico. Com base na noção de saúde integral,
tendo como referência os princípios do SUS, a proposta consiste em lutar para que o
sofrimento psíquico e corporal pela recusa em permanecer com o sexo contraditório ao
gênero sejam critérios de acesso a saúde e, consequentemente, ao direito de cirurgia sem
que necessite de um sofrimento patologizado. O grande problema consiste não em um
diagnóstico, mas no diagnóstico patologizante que se alia à continuidade do preconceito
com relação à orientação sexual e o desejo do indivíduo.

Nessa perspectiva, a cirurgia de mudança de sexo (transgenitalização) carrega


diferentes olhares. Legalmente, a cirurgia foi autorizada pela resolução nº 1.955/2010 do
Conselho Federal de Medicina, que passou a vigorar em meados do ano de 2010. Essa
resolução autoriza a realização da cirurgia de neocolpovulvoplastia (construção do órgão
sexual feminino) assim como outros procedimentos, como no caso das gônadas e
caracteres sexuais secundários que queiram ser eliminados, para o tratamento dos casos
de transexualismo. No entanto, a cirurgia do tipo neofaloplastia (construção do órgão
sexual masculino) é autorizada com caráter experimental. Para a realização da cirurgia é
necessário que o paciente seja maior de 21 anos, não possua características físicas
inapropriadas e tenha o diagnóstico de transexualismo.

O diagnóstico deve confirmar a presença do


[...] desconforto com o sexo anatômico natural; desejo expresso de eliminar os genitais,
perder as características primárias e secundárias do próprio sexo e ganhar as do sexo
oposto; permanência desses distúrbios de forma contínua e consistente por, no mínimo,
dois anos; ausência de transtornos mentais. (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA,
2010).

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A portaria GM/MS 1.707/08 é a portaria que define as Diretrizes Nacionais para


a cirurgia de transgenitalização pelo Sistema Único de Saúde - SUS. A portaria 457/08
regulamenta o Processo de Transgenitalização pelo SUS, definindo Normas de
Credenciamento para os hospitais e diretrizes da Atenção especializada. Esta unidade de
atenção especializada deverá contar com assistência diagnóstica e terapêutica
especializada aos indivíduos com indicação para a realização da transgenitalização e
possuir condições técnicas, instalações físicas, equipamentos e recursos humanos
adequados a este tipo de atendimento.

A Unidade de Atenção Especializada deverá ser Hospital de Ensino, que possua


contrato com o SUS e obedeça a alguns pré-requisitos: Estar articulado e integrado com o
sistema de saúde local e regional, dispor de estrutura de pesquisa e ensino organizados,
com programas e protocolos estabelecidos para a transgenitalização e ter adequada
estrutura gerencial capaz de zelar pela eficiência, eficácia e efetividade das ações
prestadas.

O serviço prestado deve pautar-se na integralidade da atenção, não restringindo


ou centralizando a meta terapêutica às cirurgias de transgenitalização e demais
intervenções somáticas, mas na humanização da atenção, promovendo um atendimento
livre de discriminação, inclusive através da sensibilização dos trabalhadores e demais
usuários da unidade de saúde para o respeito às diferenças e à dignidade humana; e na
constituição de equipe interdisciplinar e multiprofissional.

Neste contexto, faz-se de extrema relevância, na busca de tal meta, o trabalho de


psicodiagnóstico realizado pela psicologia no contexto de transgenitalização.
Compreendendo-se o psicodiagnóstico como uma atividade científica, limitada no tempo
e que busca uma compreensão mais ampla e aprofundada dos processos psicológicos do
sujeito em questão, esta atividade, além de fornecer subsídios para a realização ou não da
cirurgia, pode conter, ainda, dimensões terapêuticas que beneficiariam quem dela
participasse, justificando-se sua realização. Assim, nosso objetivo foi apresentar uma
reflexão sobre alguns aspectos relevantes de serem investigados na realização do
psicodiagnóstico, no contexto do processo de preparação para cirurgia de
transgenitalização.

2. MÉTODO

Partiu-se de uma pesquisa de cunho exploratório e bibliográfico sobre a temática da


transgenitalização em seus aspectos legais e psicológicos, bem como do levantamento de

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como se dá o processo de avaliação psicológica, no referido contexto, em um hospital


escola. A partir destes dados, procurou-se analisar e discutir uma proposta dos aspectos
considerados mais relevantes, do ponto de vista do psicodiagnóstico, no contexto de
preparação para a cirurgia de transgenitalização.

3. RESULTADOS E DISCUSSÃO

A proposta de psicodiagnóstico sugerida corresponde a uma atividade com caráter


compreensivo, na medida em que tem como meta auxiliar o indivíduo no seu
autoconhecimento e na tomada de decisão a respeito da cirurgia de transgenitalização.
Sendo assim, a atividade psicodiagnóstica neste contexto específico não corresponde a
uma atividade exclusivamente avaliativa, pois não está obrigatoriamente vinculada a
produção de resultados. Ademais, o processo de atendimento psicodiagnóstico, por si só
pode ter uma dimensão interventiva, terapêutica, de escuta, atenção e promoção de
autoconhecimento.

Nesse sentido, o psicodiagnóstico construído aqui não tem como referência os


manuais médicos que instituem a transexualidade enquanto patologia. Para tanto,
buscou-se compreender o tipo de psicodiagnóstico que poderia ser realizado partindo de
uma concepção de sujeito livre para suas escolhas sexuais, desvinculado de preconceitos.
Sendo assim, o propósito do psicodiagnóstico consiste na regulamentação do processo e
na necessidade de se ter certeza sobre a decisão das mudanças corporais, já que se trata de
uma cirurgia de grande porte, complexa e de caráter irreversível. Faz-se importante aqui,
o entendimento dos possíveis riscos e das consequências funcionais e estéticas, assim
como o contato prévio com profissionais e pacientes que já realizaram a cirurgia para que
se tome a decisão.

A avaliação psicológica, ou psicodiagnóstico, também pretende considerar o


contexto em que se dá a opção pela transformação corporal, permeada pelo preconceito e
vulnerabilidade da população trans em que, muitas vezes, a decisão pela cirurgia se
apresenta como única possibilidade de inclusão na sociedade. Nestes casos, em que a
cirurgia serve exclusivamente para o reconhecimento social, a necessidade real poderá ser
relativizada e então avaliada pelos profissionais, por isso a importância do
psicodiagnóstico. Os transexuais que, “já têm uma vida afetiva e sexual satisfatória, como
também já são reconhecidos pelo gênero a que dizem pertencer... poderiam permanecer
como estão, desde que pudessem realizar a mudança do nome civil” (ARÁN; MURTA,
p.21, 2009). A questão do preconceito e do não reconhecimento da transexualidade pela
sociedade permeia a opção do paciente pela cirurgia, no intuito de ser reconhecido pelo

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gênero. Parte do trabalho do psicólogo, também, é esclarecer que o preconceito causador


de sofrimento não se extinguirá apenas com a realização da cirurgia, compreendendo um
âmbito social e cultural amplo, que ultrapassa esta especificidade (ARÁN; MURTA, 2009).

Por outro lado, existem pessoas que consideram a realização da cirurgia como
fundamental para a continuidade dos projetos de vida e para o auto-reconhecimento.
Nestes casos, a avaliação psicológica também se faz importante, para que auxilie o
indivíduo em sua escolha. Além desses dois extremos, existem transexuais que
demonstram a multiplicidade do gênero, desejando realizar cirurgias de caracteres
sexuais secundários, como por exemplo, a retirada dos seios (mastectomia), mas que não
desejam a cirurgia de transgenitalização. Sendo assim, o serviço de psicologia prestado
deve se basear na individualidade dos pacientes, compreendendo de forma integrada as
diferenças que os constituem.

O psicodiagnóstico se dá, nestes casos, interligado à psicoterapia, que tem como


intuito principal auxiliar o indivíduo na superação das dificuldades recorrentes do
preconceito, da exclusão social e da intolerância à diferença por parte da sociedade, ou
seja, na elaboração do seu sofrimento psíquico. O psicodiagnóstico também se faz
eficiente, nos casos em que há dificuldade para se estabelecer a psicoterapia, seja pelo
tempo ou distância, como, por exemplo, quando o paciente não mora na mesma cidade ou
estado em que o Hospital Universitário se localiza.

O psicodiagnóstico deve entender o significado que a cirurgia tem para o sujeito,


assim como a possibilidade de atender as suas expectativas. O principal instrumento
utilizado na construção dessa proposta de psicodiagnóstico é a entrevista, em sua
modalidade semiestruturada com objetivos estabelecidos, onde seriam investigados
diversos pontos fundamentais para conhecer o paciente e seu processo de
desenvolvimento. Seria a partir dos temas abordados na entrevista que se pautaria o
psicodiagnóstico dos pacientes em processo de mudança de sexo, buscando compreender
o desejo do indivíduo assim como percebê-lo em sua totalidade, livre de preconceitos.

Propõe-se, com o intuito de compreender a identidade sexual do paciente,


verificarem-se alguns aspectos de sua sexualidade abordando as manifestações da
orientação sexual e as formas de obtenção de prazer. Neste contexto, seria importante
considerar o perfil dos parceiros sexuais, a relação com o corpo, as primeiras experiências
sexuais, as imagens de referência, o uso de caracteres/aparatos estéticos (roupas, adornos,
maquiagem, cabelo, depilações, etc.) e o surgimento da vontade de ser como o sexo
oposto. A investigação deste aspecto da vida do paciente se mostra de extrema relevância,
pois o primeiro critério a ser identificado diz respeito à orientação sexual, isto é,

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recomenda-se a realização da cirurgia somente nos casos em que foi identificada a


Transexualidade.

A transformação ocorrida com a realização da cirurgia provoca mudanças físicas


e também psíquicas nos indivíduos, desde o ato de urinar até as formas de obtenção do
prazer sexual. Tais alterações podem não corresponder ao esperado, especialmente
quando o paciente não é transexual. Tais informações coletadas possibilitariam conhecer
e/ou desvelar junto ao sujeito seu desejo/inquietação, compreendendo o que se busca e
para que se busca esse algo. Por isso, faz-se necessário conhecer a identidade sexual do
paciente recorrendo ao seu histórico de experiências, fantasias e realizações sexuais.

Faz-se necessário identificar a repercussão do preconceito na vida do sujeito,


verificando se este desempenha algum papel motivador para a realização da cirurgia
analisando, assim, as formas de enfrentamento que o sujeito lança mão, para superar tal
situação. Seria interessante investigar, nesse contexto, a questão da desejabilidade social,
verificando o quanto o desejo da realização da cirurgia poderia estar sendo influenciado
por uma tentativa do paciente de incluir-se socialmente. Ou seja, o paciente pode motivar-
se para a cirurgia por estar buscando formas de ser que fossem desejáveis e aceitáveis
socialmente, tendo em vista a supremacia heteronormativa que constitui nossa sociedade.

A questão do preconceito e do não reconhecimento da transexualidade pela


sociedade permeia a opção do paciente pela cirurgia, no intuito de ser reconhecido pelo
gênero. Esses fenômenos são constituintes da identidade do paciente e devem ser levados
em conta como parte importante do trabalho do psicólogo, esclarecendo que o preconceito
causador de sofrimento não se extinguirá apenas com a realização da cirurgia,
compreendendo um âmbito social e cultural amplo, que ultrapassa esta especificidade
(ARÁN; MURTA, 2009).

No contexto do psicodiagnóstico, o termo desejabilidade social é utilizado em


referência ao comportamento dos indivíduos ao responder testes de auto-relato, evitando
traços e comportamentos socialmente indesejáveis, em uma tentativa de se apresentar de
maneira positiva, buscando papéis apropriados para determinados contextos e agindo de
acordo com o esperado para ajustar-se às normas sociais. Como nem sempre há a
possibilidade de que seja verificado as respostas do indivíduo em contextos externos,
deve-se observar o quanto o avaliando busca responder de acordo com o que é
conveniente socialmente (GOUVEIA et al,2009). No entanto, não é possível desvencilhar
essa necessidade de se apresentar de acordo com a norma social com a própria
personalidade do sujeito.

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Nesse sentido, a cirurgia de transgenitalização deve aparecer não apenas como


resolução de algum conflito, mas sim como um meio de procurar obter-se, no campo
simbólico, a completude da identidade sexual do indivíduo. Cabe retomar que o
preconceito se perpetuará mesmo após a realização da cirurgia, podendo se manifestar
com novas roupagens, de pessoas/grupos diferentes e, talvez, com maior intensidade do
que antes da transgenitalização, tendo em vista que a questão do preconceito é social.

Seria relevante, também, investigar o contexto familiar pré, peri e pós natais,
assim como o contexto atual, para que se possa ter claro, em certa medida, a constituição
do sujeito que se apresenta. Recomenda-se então, conhecer a constituição do sujeito a
partir de seu contexto familiar, de aceitação e de cuidados por parte da família, assim
como suas respostas a estas condições.

Nessa perspectiva, há que se compreender o processo de desenvolvimento do


paciente e as marcas psíquicas que este carrega quanto a sua constituição, possibilitando
uma investigação clínica mais aprofundada, o que permite a compreensão da presença ou
ausência de certos traços de personalidade. Dessa forma, espera-se que a elucidação da
história de vida do paciente traga à tona desejos, sentimentos e fantasias que permeiam a
orientação sexual, subsidiando assim o trabalho psicológico realizado.

Além disso, é imprescindível averiguar se há aceitação da família e se esta


funciona como rede de apoio. Conhecer as reações da família frente a ocorrências de
características diferentes do gênero heterossexual dará indícios de como os familiares
compreendem a temática e lidam com o próprio sujeito.

Sabe-se que a família é a primeira instituição com a qual o sujeito tem seus
contatos. Esta funciona como aparato, oferecendo cuidados, aprendizagem e ainda
balizando a constituição identitária dos indivíduos (SZYMANSKI, 2006). Nesta relação, o
indivíduo tem a família como referência, como um modelo em que será repetido ou
negado em suas futuras relações. Mesmo na fase adulta, a família pode atuar como nos
seus primeiros anos, ou seja, como doutrinadora, definindo o certo e o errado.

Por isso, não se deve subestimar o potencial desta instituição enquanto


mecanismo determinante na vida dos sujeitos. Tê-la como aliada para a realização da
cirurgia pode propiciar um estado de confiança e segurança para o paciente. Em
contrapartida, caso não haja esse apoio, o sujeito pode se encontrar receoso, hesitante e
inseguro para a realização da cirurgia. Este grupo também pode ser indispensável no
período pós- cirúrgico quando o paciente tem de se haver com a perda de uma imagem
corporal e a aquisição de uma nova.

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Além da família, enquanto rede de apoio, seria interessante a investigação das


relações sociais nos diversos contextos em que o indivíduo participa (escola, trabalho,
igreja, bairro, etc.) e do grau de profundidade (envolvimento com o grupo), de duração
(tempo de pertencimento ao grupo) e de extensão (dimensão de prioridade/importância/
investimento do sujeito) nos grupos. Assim, propõe-se compreender se a cirurgia estaria
sendo impulsionada por fatores externos ao paciente e compreender outras redes de apoio
existentes antes e após a cirurgia.

Nesse sentido, o profissional poderia compreender como se constitui a interação


social do paciente, buscando seu padrão de interação e a forma como se posiciona no
mundo: frente ao outro, ao ambiente e a ele mesmo. E, ainda, como o paciente percebe o
posicionamento dos outros frente a ele, ou seja, se estaria recebendo apoio ou não de sua
rede social e o quanto esse outro é significativo em sua tomada de decisão.

Relaciona-se a essa questão as capacidades defensivas do paciente, como também


suas estratégias de coping, em que se buscaria compreender os mecanismos defensivos e
as estratégias de enfrentamento (coping) utilizados por ele e se estes conseguem alcançar
seus objetivos, no sentido de serem eficazes e adaptativos ou ineficazes e disfuncionais.
Compreender-se-ia, desta forma, por exemplo, se a cirurgia não estaria sendo tomada
como atitude defensiva do paciente frente ao preconceito social e a desaprovação de seu
modo de ser pelo outro.

Seria necessária a investigação da repercussão que o paciente espera que a


cirurgia cause na vida afetiva, profissional e familiar e ainda os mecanismos utilizados
por ele para lidar com frustrações referentes à cirurgia. Tendo em vista que pode haver
complicações pós-cirúrgicas e o procedimento pode não ocorrer como o esperado e, por
isto, há que se prognosticar a reação do paciente, caso a cirurgia não corresponda a tais
expectativas.

Ressalta-se a necessidade de identificarem-se, ainda, os medos e as fantasias


frente à cirurgia e balancear os elementos prós e contras do procedimento, levando em
conta como esses questionamentos se fazem presentes para o paciente e para os que fazem
parte do seu contexto social. Desta forma, é necessário que a equipe multiprofissional
elucide ao paciente e aos que estão vinculados a ele, como ocorre o procedimento, suas
etapas e as especificidades daquele caso, para que o paciente construa um caminho seguro
e concomitante com suas motivações acerca da cirurgia.

Ligada a esta questão é relevante, por fim, verificar se o paciente detém


capacidade de julgamento a partir de questões objetivas, utilizando-se da racionalização.
Faz-se importante aqui esta avaliação para que o paciente tenha clareza e compreensão de

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todo o processo ao qual será submetido, assim como dos riscos e da irreversibilidade da
cirurgia, avaliando, para tanto, a capacidade de compreensão, julgamento e de autonomia
do indivíduo.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O psicodiagnóstico deve buscar compreender o significado que a cirurgia tem para o


sujeito, se o procedimento conseguirá atender ao esperado e o que está motivando esse
anseio. Destaca-se, assim, a necessidade de uma investigação aprofundada da orientação
sexual do paciente, da repercussão do preconceito na vida do sujeito e verificar se tal
aspecto desempenha algum papel motivador para a realização da cirurgia. Faz-se
necessário entender a constituição do sujeito a partir de seu contexto familiar, de sua
aceitação, desejabilidade e cuidados por parte da família, assim como sua resposta a estas
condições.

Muitas vezes, os pacientes moram em outros estados e o comparecimento ao


hospital fica restrito a alguns encontros, dessa forma, o contato com o paciente e a própria
terapia ficam comprometidos, exigindo que estratégias como o psicodiagnóstico sejam
utilizadas a fim de que se possa permitir que o paciente faça uma escolha consciente, sem
arrependimentos e com o mínimo de frustrações. Há, assim, a necessidade de um
psicodiagnóstico mais amplo e compreensivo, evitando a patologização e contribuindo
junto ao sujeito no processo de tomada de decisão. É preciso avaliar se a cirurgia não
estaria sendo impulsionada por fatores externos ao paciente, como preconceito ou
desejabilidade social, e compreender as redes de apoio existentes antes e após a cirurgia.

Faz-se de extrema relevância que o Psicólogo esteja consciente da complexidade


dos eventos envolvidos no processo, que busque excelência no exercício da profissão, com
sensibilidade em suas percepções, flexibilidade diante do contexto do paciente e
competência no manejo da relação. Deve, ainda, apresentar segurança na elaboração de
suas conclusões, que será alcançada com a utilização ética e adequada das teorias e
técnicas psicológicas.

Percebe-se muitos aspectos que permeiam o fenômeno, como os tramites legais, o


preconceito, as fantasias e a frustração envolvidos. Todos esses elementos devem ser
levados em conta na avaliação realizada pelo psicólogo, assim como os dados fornecidos
por outros profissionais da equipe. Pela complexidade do processo, pelo caráter
irreversível da cirurgia e pelas dificuldades, do ponto de vista do comparecimento às
sessões de acompanhamento, faz-se necessário utilizar-se das teorias e técnicas

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empregadas no Psicodiagnóstico, à medida que este pode fornecer substratos necessários


para uma decisão que respeite o princípio ético da beneficência, da justiça e do respeito
que devem sempre pautar o trabalho do Psicólogo na Avaliação Psicológica.

REFERÊNCIAS
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TAVARES, M. A entrevista clínica. In: CUNHA, J. A. Psicodiagnóstico – V. 5ª Ed. Porto Alegre:
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Amanda Cristina Fonseca Palla


Graduanda do 8º período em Psicologia pela
Universidade Federal de Goiás. Participa do
Programa Institucional de Voluntários de Iniciação
Científica. Desenvolve estudos e pesquisas sobre
educação, preconceito e violência. Estagiária da
Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos.
Participou do Programa de Bolsas de Extensão e
Cultura da Universidade Federal de Goiás.

Encontro: Revista de Psicologia  Vol. 16, Nº. 24, Ano 2013  p. 83-94
94 Uma proposta de Psicodiagnóstico no contexto da cirurgia de transgenitalização

Participa do Grupo de pesquisa Cultura e


Fundamentos da Educação.

Anna Karollina Silva Alencar


Curso de Psicologia da Universidade Federal de
Goiás. Realizou estágios no campo da saúde
mental, com usuários do Centro de Atenção
Psicossocial- CAPS Girassol e atualmente é
estagiária do Juizado da Infância e Juventude de
Goiânia em que realiza um trabalho com crianças e
adolescentes acolhidos institucionalmente. Possui
produções no contexto de grupos, infância e do
trabalho com álcool e outras drogas. Já realizou
pesquisa no campo da História da Psicologia em
Goiás e atualmente faz parte de um grupo que
realiza pesquisa no âmbito do uso de álcool e
outras drogas por adolescentes.

Henrique Batista Almeida


Curso de Psicologia na Universidade Federal de
Goiás. Integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisa
em Psicologia, Educação e Cultura nesta
instituição. Participa como voluntário de Iniciação
Científica no Programa Institucional de
Voluntários de Iniciação Científica (PIVIC),
atuando nas áreas de Psicanálise, Clínica e
Contemporaneidade. Desenvolve atividades no
Programa Institucional de Bolsa de Iniciação a
Docência.

Marialice Segatto Rocha


Curso de Psicologia, vinculada ao Laboratório de
Avaliação e Pesquisa em Saúde Mental e
Personalidade (LabSamp – CNPq/UFG). É
voluntária no hospital psiquiátrico Clínica Jardim
América. Participou do projeto PET saúde/ saúde
mental/ crack, edital 2011-2012 e fez estágio na
empresa Pro Intensive Home Care, atendimento
especializado em Saúde.

Mara Rúbia de Camargo Alves Orsini


Professora Adjunto II da Universidade Federal de
Goiás - UFG, na área de Psicodiagnóstico e
Avaliação Psicológica. Coordenadora do
Laboratório de Avaliação e Pesquisa em Saúde
Mental e Personalidade - LabSAMP (CNPQ/UFG).

Encontro: Revista de Psicologia  Vol. 16, Nº. 24, Ano 2013  p. 83-94

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