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Meu querido diário: prática grupal esquizoanalítica de produção de

cuidado com grupo LGBT+ em privação de liberdade


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Eloize Marianny Bonfim-Silva ; Jefferson Adriã Reis ; Bianca de Oliveira Miranda Ferrer

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Supervisor: Márcio Alessandro Neman do Nascimento
1 Estudante do Curso de Psicologia da Universidade Federal de Rondonópolis;
2 Estudante do Curso de Psicologia da Universidade Federal de Rondonópolis e Licenciado em Letras pela Universidade Federal de Mato Grosso;
3 Professor Adjunto do Curso de Psicologia da Universidade Federal de Rondonópolis.

“Cada detento uma mãe, uma crença/ Cada crime uma sentença/ Cada sentença um Na primeira oficina também se pensou o diário como um conjunto de
motivo, uma história de lágrima”.
lembranças e um lugar de reflexão e resistência, o que se comprovou ao
– Diário de um detento, composição de Mano Brown interpretada pelos Racionais MC’s
longo dos meses, ao percebermos que os diários haviam se tornado não
APRESENTAÇÃO E OBJETIVOS apenas um objeto para descrever o cotidiano, mas também um elemento
Este trabalho visa apresentar e discutir uma prática grupal de “escrita de si importante para a reflexão e elaboração de acontecimentos do passado,
em uma ala LGBT+ prisional, que teve como enfoque a Esquizoanálise, sobretudo àqueles ligados à trajetória do/da reeducando/a até a prisão, uma
posicionamento teórico-metodológico proposto por Gilles Deleuze e Félix trajetória marcada por escolhas e também por discriminações e opressões,
Guattari. Essa prática utiliza-se de um dispositivo que pode ser descrito como a LGBTfobia. Outra fala que nos chamou a atenção foi a de uma
como um agenciamento maquínico de linhas de saber, poder e reeducanda, que disse: “Eu sou uma pessoa negativa, o meu vai ter só coisa
subjetivação. Esse dispositivo, por meio do discurso, mapeia verticalidades negativa”. No entanto, a escrita dessa pessoa, para além de pintar o mundo e
e horizontalidades, sendo a horizontalidade pertencente ao campo do sua vida com tons de tristeza, também revelou as sutilezas e as
conteúdo e expressão (corporalidades e afecções) e a verticalidade, do particularidades de sua forma de ser e existir, o que rompe com o binário
campo da territorialização e desterritorialização (consolidação e positivo-negativo e nos leva a pensar a vida como um acontecimento. Ao
transmutação/criação). As atividades ocorreram durante o ano de 2019 em longo do processo, os diários fugiram às suas formas originais e muitas vezes
uma penitenciária masculina do Sul do Mato Grosso, apenas com recursos se materializaram como bilhetes entre celas, cartas de amor e recados à
próprios. instituição.
DESENVOLVIMENTO

O dispositivo esquizoanalítico escolhido para esse encontro, diante de suas RESULTADOS


múltiplas dispersões e variações, foi a Oficina. As oficinas surgiram como A escrita de diários na Ala LGBT+ Aquarel@s foi uma experiência que
uma proposta de psicólogos em meio às discussões “pós” reforma possibilitou a produção de fala e de espaços de discussão. A figura do diário
psiquiátrica como uma forma de humanização da Saúde Mental. Como se tornou um elemento importante naquela paisagem psicossocial, fortemente
consequência do processo institucional, atrelado a marcadores sociais ligado às subjetividades dos/as reeducandos/as e facilitando o
raça-classe-gênero, o modelo punitivista/prisional é campo para diferentes estabelecimento de confiança e de entendimento entre eles/as e os/as
expressões ético-estético e políticas, que mesmo estando distantes da extensionistas. A leitura do diário pela equipe só acontecia se o/a
nossa paisagem social não deixam de (r)existir. A Oficina que utilizamos reeducando/a permitisse, porém, todas/os fizeram questão de serem lidos/as
para iniciar o projeto foi a de leitura e discussão de trechos do livro O diário pelos/as extensionistas e sugeriram que fosse feita uma mostra de seus
de Anne Frank (2007). O objetivo foi apresentar o formato diário para os/as textos à comunidade universitária local. A prática da escrita de si produziu
componentes da ala e propor a escrita de si como expressão a partir da reverberações naquele lugar de privação de liberdade e permitiu conexões
experiência de vida antes e durante o cárcere. Para isso, ressaltamos o para além do espaço e do tempo, como, por exemplo, a identificação com
caráter pessoal e íntimo do diário e fortalecemos a condição ética do sigilo uma menina judia que vivenciou os horrores da guerra e do confinamento.
em nosso grupo, de reeducandos/as e extensionistas. Neste dia
concordamos que os diários seriam lidos apenas por quem os/as autores/as ___________________________________________________________________________________

autorizassem. REFERÊNCIAS
BUTLER, J. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Tradução de Rogério Bettoni. Belo Horizonte:
DISCUSSÃO Autêntica, 2015
DELEUZE, G. & GUATTARI, F. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia, Vols. 1 a 5. São Paulo: Ed. 34, 1995
DELEUZE, G. & GUATTARI, F. O Anti-Édipo. Rio de Janeiro: Imago, 1976. DELEUZE, G & GUATTARI, F. O que é
Durante as discussões após a leitura, algumas problematizações a Filosofia? São Paulo: Ed. 34, 1992
FRANK, Anne. (2007) O diário de Anne Frank. [Editado por Otto Frank e Miryam Pressler]. Rio de Janeiro:
importantes despontaram, como, por exemplo, o investimento afetivo no BestBolso
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade vol. III O cuidado de si. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 2007
diário. Isso se confirmou ao longo dos encontros, quando percebemos que HUR, D.U. (2012a). O dispositivo de grupo na Esquizoanálise: tetravalência e esquizodrama. Vínculo. 9(1), 51-69
NASCIMENTO, Márcio Alessandro Neman do; REIS, Jefferson Adria; DA SILVA, Eloize Marianny Bonfim. (Trans)
os diários haviam assumido uma função importante de conexão Ações entre devires e deveres: atendimento psicossocial ampliado com população LGBT em contexto de
privação de liberdade. Revista Brasileira de Estudos da Homocultura, v. 1, n. 4, 2018.
reeducando/a – escrita – reeducando/a e reeducando/a – escrita – RACIONAIS MC, Diário de um detento in: Sobrevivendo no inferno. 1998. Cosa Nostra. Disponível em:
<https://youtu.be/pK1viMNdYp0>
extensionistas.

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