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“NEGRA É COMO COELHO: SÓ DÁ CRIA"!

EXISTE VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA CONTRA MULHERES NEGRAS NO BRASIL?

Jussara Francisca de Assis1


Resumo: O presente trabalho resulta do projeto de tese de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (em curso). Tem por objetivo discutir o conceito violência obstétrica e seus
impactos contra as mulheres negras brasileiras, já que estudos sobre maus-tratos no período gravídico-puerperal em
unidades de saúde revelam a complexidade do problema ao considerar este grupo em específico. Além disso, pesquisas
apontam que as mulheres negras recebem menor atenção e orientações por parte dos profissionais de saúde durante o
pré-natal, parto e puerpério. Deste modo, relacionar o alto índice de morte materna no Brasil, que tem as mulheres
negras como alvo principal, ao conceito de violência obstétrica se torna urgente dada a necessidade de afirmação e
efetivação de políticas públicas de saúde sexual e reprodutiva que diminua as desigualdades sociais em saúde para as
mulheres negras brasileiras

Palavras-chave: Violência Obstétrica, Mulheres Negras, Representação social, Direitos Reprodutivos.

Introdução

Este paper é produto do projeto de pesquisa para tese de doutoramento oriunda do Programa
de Pós-Graduação em Serviço Social (Doutorado) da Universidade Federal do Rio de Janeiro -
UFRJ. A participação como discente da disciplina eletiva “Gênero, Violência e Políticas Públicas”2
possibilitou delinear o tema da pesquisa, já que seu objetivo foi abordar as diferentes expressões da
violência de gênero, realizando uma análise crítica acerca das políticas públicas neste campo a
partir de diversas abordagens teóricas e metodológicas.
As análises ocorridas na disciplina resgataram inquietações surgidas durante minha trajetória
acadêmica, profissional e militante. As pesquisas realizadas, tanto no Mestrado, em Serviço Social
quanto na Especialização em Serviço Social e Saúde revelaram que as mulheres negras vivenciam
desigualdades estruturantes que dificultam o acesso aos direitos sociais e humanos, com destaque
aos direitos sexuais e reprodutivos. Nestes estudos foi possível verificar que a sociedade brasileira,
historicamente, demarca os espaços sociais não só pelas condições socioeconômicas, mas,
sobretudo, a partir da aparência e da cor da pele dos sujeitos. Conforme observa Lopes (2005) os
efeitos dessa dinâmica social sobre a população negra são perversos. De acordo com a autora, os
resultados são evidenciados, direta ou indiretamente, através da observação de alguns aspectos das
relações interpessoais e das relações que as instituições estabelecem com este grupo; das condições
1
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ,
Brasil. E-mail: lfjussara2015@gmail.com.
2
Disciplina ministrada pelas Professoras Dra. Ludmila Fontenele Cavalcanti e Dra. Patrícia Farias. Eixo: Tópicos
Especiais em Políticas Sociais e Processos Políticos. Programa de Pós Graduação em Serviço Social da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, 2015.

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de vida e de desenvolvimento humano, acesso aos bens e equipamentos sociais e de sua
morbimortalidade (LOPES, 2005).
Enquanto assistente social da área da saúde pude perceber, a partir dos atendimentos e
entrevistas realizadas para compor a ficha social de usuários (as), que situações envolvendo casos
de racismo não eram poucas. A atuação da equipe médica, muitas vezes, se mostra diferenciada
quando se trata de pessoas negras. Desumanização; imprecisão ao comunicar orientações;
criminalização das condições de classe e gênero são algumas das realidades observadas na relação
entre a equipe assistencial e usuários (as) negros (as). Estes aspectos podem ser atribuídos à
existência do racismo.
É importante dizer que racismo “é uma crença na existência das raças naturalmente
hierarquizadas pela relação intrínseca entre o físico e o moral, o físico e o intelecto, o físico e o
cultural” (MUNANGA, 2003). Para melhor ilustrar a realidade vivida por grande parte da
população negra no interior dos serviços de saúde se faz importante acrescentar à análise a ideia de
racismo institucional, já que este atua de forma sutil nas instituições, resultando em desigualdade na
prestação de serviços, benefícios e oportunidades aos variados grupos a partir do caráter racial
(LÓPEZ, 2012). Deste modo, podemos dizer que o racismo se apresenta tanto na relação de cuidado
quanto no acesso e prática institucional.
As discussões acerca da questão racial e de gênero apresentam uma diversidade de
interpretações no cenário brasileiro. Na pesquisa em andamento, partimos do princípio de que as
mulheres negras formam o grupo mais suscetível às desigualdades sociais nas diversas dimensões
da vida social. Parte-se do entendimento que grande parte das mulheres negras brasileiras
vivenciam, de maneira particular, uma inserção subalterna na sociedade, quando comparadas aos
homens e mulheres brancas (os) ou a homens negros. Além disso, tomando como base a categoria
interseccionalidade, boa parte das discussões considera que a dimensão racial se soma às dimensões
de classe social, territorialidade, geração, orientação sexual, religiosidade para contribuir com o
quadro de desigualdades sociais, tão peculiares, para as mulheres negras no Brasil. Crenshaw
(2002) afirma que a interseccionalidade é:
[...] uma conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e
dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especificamente
da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas
discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de
mulheres, raças, etnias, classes e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da forma
como ações e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos,
constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento. (CRENSHAW, 2002,
p.177).

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Neste sentido, inferimos que a violência obstétrica dirigida às mulheres negras toma forma
mais intensa por conta do imaginário social construído acerca de seus corpos. A questão que se
coloca é: será que a representação social em torno das mulheres negras brasileiras influencia no
tratamento dispensado nas unidades de saúde?

Violência obstétrica e mulheres negras

Em 2009, ocasião da defesa do trabalho de conclusão do curso de Especialização em Serviço


Social e Saúde pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro, concluímos que a morte materna de
mulheres negras é uma questão de saúde pública, já que indicadores demonstram seu crescimento.
Mesmo com o avanço de políticas públicas e iniciativas em prol a saúde sexual e reprodutiva para
as mulheres no Brasil, a morte materna vem atingindo de maneira desproporcional as negras. Para
confecção da monografia intitulada: “Pelo direito de viver: um estudo sobre as desigualdades raciais
experimentadas por mulheres negras em período gravídico puerperal no Rio de Janeiro” foi
realizada pesquisa bibliográfica sobre a atenção dispensada às mulheres negras nos serviços de
saúde.
Nos achados da pesquisa, elencamos as reflexões de Kalckmann et al (2007, p.146) que
afirmou que a população negra vem sendo discriminada nas unidades de saúde onde os profissionais
aumentam a vulnerabilidade das pessoas negras, ampliam as barreiras de acesso diminuindo as
possibilidades de diálogo, provocando o afastamento dos usuários. Além disso, a análise das
situações percebidas como discriminatórias revela que as atitudes de muitos profissionais de saúde
relacionam-se à ideologia do dominador, como por exemplo, a crença que as pessoas negras são
mais resistentes à dor, já que são comuns expressões como: “Negro não adoece”, “Rapaz! Um
negão deste tamanho sentindo dor?”. No que tange ao atendimento ao pré-natal e parto de mulheres
negras, Kalckmann et al (2007, p.146) discorre o seguinte:

Os relatos mostram que as situações de discriminação são mais frequentes quando as


pessoas estão mais fragilizadas, como durante a gravidez e durante o parto: “Escutei a
recepcionista (pré-natal) falar: negra é como coelho, só dá cria” (43 anos, diretora de
ONG, cor preta); “No parto do meu último filho não me deram anestesia” (43 anos, auxiliar
administrativa, negra); “O médico nem examinou a gestante negra” (40 anos, coordenador
de conselho de cultura, negro); “No pré-natal, só mandavam emagrecer eu nem sabia o que
era eclampsia, quase morri” (28 anos, professora primária, cor preta) (grifos nossos).

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Diante de tal narrativa cabe pensarmos se a violência obstétrica não seria mais intensa para
as mulheres negras, já que o imaginário social e, portanto, dos profissionais de saúde carrega
estereótipos que vinculam à mulher negra a um corpo desumanizado e animalizado.
Ter conhecido o conceito de violência obstétrica no âmbito da referida disciplina “Gênero,
Violência e Políticas Públicas” possibilitou a construção da hipótese de que tal prática ganha
potencialidade ao se considerar a condição racial e de classe das mulheres que buscam assistência
durante o período gravídico-puerperal.
Os primeiros conceitos relativos à violência obstétrica tiveram origem nos estados da
Venezuela e Argentina, onde este tipo de violência conta com legislações coibidoras específicas.
Estas referências afirmam que a violência obstétrica tem como base a apropriação do corpo das
mulheres assim como seus processos reprodutivos pelos profissionais de saúde. Esta dinâmica se dá
através do tratamento desumanizado, abuso da medicalização e patologização dos processos
naturais. Logo, propicia a perda da autonomia e capacidade livre das mulheres de decidirem sobre
seus corpos e sexualidade, impactando, negativamente, na qualidade de vida das mesmas (REDE
PARTO DO PRINCIPIO, 2012).
Embora o conceito violência obstétrica seja, relativamente, “novo”, Diniz et al (2015)
pontua que o sofrimento das mulheres durante a assistência ao parto encontra registro em diferentes
momentos históricos sob denominações e realidades diversas. No Brasil, a década de 1980 é tida
como o período de registro dos primeiros questionamentos teóricos quanto ao tratamento
dispensado às mulheres no momento da gravidez. De acordo com Diniz et al (2015), uma das
pesquisas pioneiras sobre o assunto foi a intitulada “Espelho de Vênus: identidade social e sexual da
mulher” realizada em 1981 pelo Grupo Ceres. No estudo, as pesquisadoras ativistas realizaram uma
etnografia da experiência feminina e identificaram o parto institucionalizado como uma vivência
violenta. Segundo as estudiosas, a violência contra a mulher também é marcada pela relação médico
paciente a partir do momento em que a mesma assiste seu corpo sendo manipulado nos momentos
mais significativos da sua vida: na contracepção, no parto e no aborto (DINIZ, 2015).
No que diz respeito às mulheres negras, é importante ressaltar que, entre as décadas de 1980
e 1990, ativistas negras tomaram como base os direitos reprodutivos e humanos para denunciar
práticas de esterilização compulsória e em massa de mulheres negras brasileiras. Roland (1995)
destaca que em 1991 cerca de 62,9% das mulheres nordestinas (que em sua maioria são negras e
descendentes de indígenas) já haviam sido esterilizadas. Na época, a pressão do movimento de
mulheres negras impulsionou o Congresso Nacional Brasileiro a criar uma Comissão Parlamentar

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Mista de Inquérito (CPI), a chamada CPI da Esterilização. A referida CPI apurou a ocorrência de
prestação inadequada de serviços oferecidos por instituições privadas que financiavam métodos
contraceptivos, incluindo os irreversíveis como as laqueaduras tubárias nas regiões mais pobres do
país. Estes fatos foram considerados pelo movimento de mulheres negras como formas de diminuir
o contingente populacional de pobres e negros.
Atualmente, é possível supor que o racismo, de modo geral e o racismo institucional, de
modo particular, dão sentido ao fato das mulheres negras serem identificadas como aquelas mais
suscetíveis a serem vítimas da violência obstétrica, já que o racismo ocorrido no âmbito das
instituições é tido como a incapacidade das mesmas, em especial dos serviços de saúde, em prover
um serviço profissional adequado aos sujeitos em função da cor/raça/etnia, origem e cultura. O
racismo institucional ocorre a partir de ações discriminatórias no dia-a-dia do trabalho, resultantes
do preconceito racial, combinando estereótipos racistas, falta de atenção e ignorância (BRASIL,
2001). “Esta prática sempre coloca pessoas de grupos raciais ou étnicos discriminados em situação
de desvantagem no acesso a benefícios gerados pelo Estado e por demais instituições e
organizações” (BRASIL, 2001, p.15).
Neste sentido, pesquisar sobre violência obstétrica atrelada ao racismo institucional se torna
relevante por externalizar o histórico de violação de direitos das quais as mulheres negras são
submetidas, sobretudo, no período gravídico puerperal. Além disso, as mulheres negras vivenciam,
em sua grande maioria, os efeitos deletérios das transformações e oscilações econômicas, políticas,
sociais e culturais ocorridas nos últimos tempos e que são potencializadas pelo racismo e sexismo.
Cabe ressaltar que:
O sexismo e o racismo são ideologias geradoras de violência e estão presentes no cotidiano
de todos (as) os(as) brasileiros(as): nas relações familiares, profissionais, acadêmicas e nas
instituições, o que permite afirmar serem dimensões que estimulam a atual estrutura
desigual, ora simbólica, ora explícita, mas não menos perversa, da sociedade brasileira
(IPEA, 2013, p.09).

Tais efeitos encontram-se presentes no setor saúde onde as imagens estereotipadas das
mulheres negras permanecem como imagens subalternizadas na qual o direito a saúde e, em
especial a atendimento digno no período gravídico puerperal se encontra prejudicado, dado, entre
outros fatores, ao forte ideário de que para este grupo social a cidadania é abstrata. Logo,
compreender como o racismo se coloca nas instituições de saúde, em especial nas maternidades, é
de extrema importância para o enfrentamento da questão (ASSIS, 2010).
A pesquisa em curso pretende contribuir no sentido de dar visibilidade às demandas sociais
de mulheres negras em período gravídico puerperal, tendo em vista a construção de subsídios que

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possam modificar a realidade desigual deste grupo, especialmente, no que diz respeito ao
enfrentamento à violência obstétrica. Para tanto, tem a Política Nacional de Saúde Integral da
População Negra (PNSIPN) como marco legal importante e fundamental para análise de como os
profissionais de saúde estariam incorporando tais diretrizes em suas práticas assistenciais. A
PNSIPN tem como principal objetivo “promover a saúde integral da população negra, priorizando a
redução das desigualdades étnico-raciais, o combate ao racismo e à discriminação nas instituições e
serviços do SUS” (BRASIL, 2013, p. 19). Além disso, a PNSIPN tem como marca:

[...] o reconhecimento do racismo, das desigualdades étnico-raciais e do racismo


institucional como determinantes sociais das condições de saúde, com vistas à promoção da
equidade em saúde” (BRASIL, 2013, p. 25).

Ao verificar as diretrizes gerais da PNSIPN se faz importante destacar “a necessidade de


inclusão dos temas racismo e Saúde da População Negra nos processos de formação e educação
permanente dos trabalhadores da Saúde e no exercício do controle social na Saúde” (BRASIL,
2013, p. 18). Esta diretriz possibilita pensar sobre a formação dos (as) profissionais de saúde,
questionando em que medida os (as) mesmos (as) estariam qualificados para lidar com a
diversidade e a particularidade das usuárias brasileiras, principalmente, no que se refere a cor/raça
das mesmas, quando estas acessam os serviços em período gravídico-puerperal.
A PNSIPN preconiza o enfrentamento às iniquidades em saúde, iniquidades estas
consideradas “diferenças desnecessárias e evitáveis e que são ao mesmo tempo consideradas
injustas e indesejáveis. O termo iniquidade tem, assim, uma dimensão ética e social”
(WHITEHEAD apud BRASIL, 2016, p.14). A referida política visa dar subsídios para o
enfrentamento das desigualdades sociais atravessadas pela intensa hierarquia racial e de gênero
presente no Brasil.
Neste contexto, a violência obstétrica, entendida como apropriação do corpo por
profissionais de saúde, pode ser pensada a partir do histórico de dominação inerente ao corpo
feminino negro. Tal fato é reforçado ao considerar o que López (2015) define por “poder
racializado”. Segundo a autora, “O poder racializado opera em e através dos corpos. O corpo
localiza-se em um terreno social conflitivo, já que é um símbolo explorado nas relações de poder”
(LÓPEZ, 2015, p. 305). Logo, supõe-se que o corpo das mulheres negras é tido como um corpo
colonial nos termos de Fanon (2008), ou seja, um corpo passível de posse. Para destacar a
magnitude do problema se faz necessário resgatar informações que mostrem a relevância em
debater os meandros da violência obstétrica atrelada ao racismo institucional.

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Segundo o Dossiê “A situação dos Direitos Humanos das mulheres negras no Brasil:
violências e violações” (CRIOLA; GELEDES, 2016) as mulheres negras são 62% das vítimas de
morte maternas no Brasil. Segundo Diniz (2015), a mortalidade materna pode ser entendida o como
uma das possíveis consequências da violência obstétrica. Neste contexto, as taxas de mortalidade
materna são relacionadas ao acesso e à qualidade dos serviços de saúde ofertados onde grande parte
destas mortes poderiam ser evitadas através da aplicação adequada de políticas públicas como a
PNSIPN.
O alto índice de óbitos maternos de mulheres negras foi alvo de audiência pública realizada
pela a Subcomissão Especial Avaliadora das Políticas de Assistência Social e Saúde das Populações
Vulneráveis do país da Câmara dos Deputados (Brasília). Na época foi informado que as
intercorrências que provocam os óbitos maternos vêm diminuindo entre as mulheres brancas e
aumentando entre as mulheres negras (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2016). A audiência apurou
que entre os anos de 2000 e 2012 as mortes por hemorragia caíram entre as brancas de 141 casos
por 100 mil partos para 93 casos. Entre as mulheres negras aumentou de 190 para 202 casos.
Embora as investigações sobre as causas das mortes de mulheres em idade fértil venham
crescendo e tal fato impacte nos resultados expostos, há que se levar em consideração, além de
fatores clínicos e socioeconômicos, a concreticidade do racismo institucional.
Outro fator que deve ser levado em consideração são os óbitos maternos por tipo de causa
obstétrica. As causas obstétricas diretas são as mais recorrentes, sendo entendidas como àquelas
que ocorrem por complicações durante a gravidez, parto ou puerpério por conta de intervenções,
omissões, tratamento incorreto ou um conjunto de fatores resultantes de qualquer dessas causas
(BRASIL, 2002). Diante deste quadro é importante dizer que 92% dos casos de mortes maternas
por causas indiretas são evitáveis.

Gráfico 02 - Distribuição percentual da mortalidade materna por tipo de causa obstétrica e


por tipo de causa obstétrica direta – Brasil – 2012.

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Fonte: Ministério da Saúde/SVS/CGIAE - Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (SINASC), 2012 apud
Relatório Anual Socioeconômico da Mulher (RASEAM, 2015).

As ocorrências de morte materna sinalizam a violação de direitos sexuais e reprodutivos das


mulheres o que, também, pode ser considerada uma violação dos direitos humanos. Ao relacionar as
causas obstétricas diretas de óbito materno à dimensão cor/raça é possível verificar que as mulheres
negras são atingidas em maior proporção por tais causas maternas.
Diante dos dados cabe a reflexão de qual seria a representação social dos profissionais de
saúde acerca dos corpos femininos negros. A partir disso, seria possível pensar como tais
representações influenciam no modo da assistência prestada às mulheres negras nos serviços de
saúde. No caso das maternidades do município do Rio de Janeiro estudos apontam para a
necessidade de atenção à qualidade dos serviços prestados. Deslandes (2006) desenvolveu um
estudo, tendo por objetivo analisar as expectativas de usuárias gestantes de uma maternidade
pública do município, apreender a assistência que as mesmas receberam no parto e a avaliação que
fizeram do atendimento recebido em partos anteriores. Como resultado a autora identificou que:
No geral, as histórias de atendimento nesses hospitais estão permeadas por relatos de
violências institucionais de várias formas. Os relatos de nossas entrevistadas revelam que a
demora no atendimento, o abandono no leito, a proibição de um acompanhante e em
especial a violência verbal são situações vivenciadas pelas mulheres. O fato de não ter
sofrido nenhuma situação de violência faz com que, por comparação, o cuidado que
recebeu seja definido como um bom atendimento. Foram diversas as falas das mulheres que
afirmam que foram bem atendidas porque não foram maltratadas, indicando que esta
situação pode ser rotineira para as usuárias dos serviços públicos. (DESLANDES, 2006, p.
2650).

Segundo Diniz et al (2015), o tema violência obstétrica é recente e inovador, reconhecido


como questão de saúde pública pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em 2014. Através da
declaração intitulada “Prevenção e eliminação de abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto
em instituições de saúde” é possível identificar que embora existam evidências de desrespeito e
maus-tratos às mulheres durante a assistência ao parto, no momento, não há consenso de como tais
problemas possam ser medidos (OMS, 2014). Contudo, ao considerar o marcador social cor/raça,
Ramos afirma (2016) que as negras são as que mais sofrem com a falta de informação sobre o
aleitamento, assim como o não acompanhamento durante a gravidez. A autora relata, também, que o
tempo de atendimento dispensado as mulheres negras, geralmente, é menor do que o atendimento a
uma mulher branca. “Fatos como esse fazem com que a mulher negra além de não ser assistida
devidamente, também se sinta inibida diante do cuidado com sua saúde” (RAMOS, 2016).

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Em pioneiro estudo realizado por Leal et al (2005) no município do Rio de Janeiro foram
pesquisadas 9.633 puérperas. Destas 5.002 eram brancas (51,9%), 2.796 pardas (29,0%) e 1.835
pretas (19,0%), oriundas de maternidades públicas, conveniadas com o Sistema Único de Saúde
(SUS) e particulares no período de 1999 a 2001 (LEAL et al, 2005). O resultado do estudo revelou
que as desigualdades sociais e de acesso e utilização dos serviços de saúde tinha relação estreita
com a cor da pele. As autoras relatam que:

No pré-natal tiveram menor acesso a atenção adequada em acordo aos padrões


estabelecidos pelo Ministério da Saúde. No momento do parto, foram mais penalizadas por
não serem aceitas na primeira maternidade que procuraram e, durante o parto, receberam
menos anestesia. Essas diferenças no tratamento oferecido foram apreendidas pelas
mulheres ao avaliarem a qualidade dos serviços oferecidos a elas. Novamente o mesmo
padrão se estabelece na relação com os serviços de saúde, por instrução e por cor da pele.
(LEAL et al, 2005, p. 106).

Diante do exposto, é possível supor que as mulheres negras são vitimadas, recorrentemente,
pelo racismo e sexismo presentes na sociedade brasileira. Logo, se faz necessário reconhecer o
valor do recorte étnico racial para a análise dos diferenciados serviços prestados à população,
especialmente, os serviços de saúde como as maternidades. A violência obstétrica, assim como a
mortalidade materna são reconhecidas como questões de saúde pública atravessadas por aspectos
ideológicos, políticos, sociais, econômicos, culturais e raciais. Neste cenário, a estruturação dos
serviços de saúde e, em consequência, seus profissionais necessitam ser analisados para se mensurar
em que medida estes sujeitos reconhecem a existência do racismo e da violência obstétrica em seus
cotidianos de trabalho.

Considerações finais

As questões relativas às condições de saúde e bem estar das mulheres negras devem ser
incorporadas por profissionais de saúde, já que estes são sujeitos fundamentais para a qualidade da
assistência nas unidades de saúde, especialmente, nas maternidades. A Política Nacional de Saúde
Integral da População Negra precisa ser conhecida e considerada por estes profissionais para que
possamos vislumbrar um acesso de qualidade e digno às mulheres negras.
Este paper procurou visibilizar e discutir a problemática vivenciada por mulheres negras e
pobres no que diz respeito aos serviços públicos de saúde, sobretudo, quando estas mulheres estão
em período gravídico puerperal.
Gravidez e parto são momentos cercados de expectativas, por grande parte das mulheres e
suas famílias. No entanto, o momento que poderia ser festivo e de alegria, muitas vezes, transforma-

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se em momento de dor, violência e perda. O racismo institucional e o sexismo tecem uma rede de
complexidades que têm no espaço das unidades de saúde uma dinâmica cheia de conflitos.
Geralmente, o saber biomédico que contamina a maioria dos profissionais de saúde, desconsidera e
desrespeita as opiniões das mulheres não as tendo como sujeitos de direitos. Neste sentido, a
valorização de princípios éticos, a compreensão ampliada sobre os determinantes e desigualdades
sociais em saúde quer para profissionais quer para usuários (as) devem ser colocados em pauta para
que haja o reconhecimento do valor de cidadania no que se refere aos direitos reprodutivos das
mulheres negras.
Não podemos deixar de considerar que as políticas de saúde existentes, especialmente a
Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, são importantes instrumentos de superação
da problemática. Sem dúvida a implementação das políticas não passam sem críticas, já que as
dificuldades e a falta de interesse em colocá-la em prática são visivelmente atravessadas pelo
racismo e sexismo. Contudo, acreditamos que este aparato legal, este ganho político é o que garante
as mulheres negras vislumbrarem o alcance da garantia de seus direitos. Neste processo, as
mulheres negras organizadas possuem tal aparato legal (construído a partir de sua participação) na
contínua luta pelos direitos das mulheres negras brasileiras.
Embora os avanços adquiridos a partir das políticas públicas e iniciativas governamentais
em prol da saúde da população negra e a luta das mulheres negras diante da mortalidade materna e,
consequentemente, a luta contra a violência obstétrica sejam factíveis muitos desafios ainda
precisam ser superados.
Há a necessidade de investimento na capacitação, qualificação e educação continuada dos
profissionais de saúde, tendo como foco as particularidades em torno da saúde da população negra.
Entendemos que as mulheres não são todas iguais. As mulheres negras vivenciam de maneira
particular as hierarquias de gênero, já que a dimensão racial as colocam num lugar específico no
interior das relações sociais. O redesenho da formação profissional, visando maior conhecimento e
visibilidade das condições de vida e saúde da população negra são urgentes para modificação do
quadro preocupante em que se insere a saúde pública brasileira.

Referências

ASSIS, Jussara Francisca de. Pelo direito de viver: um estudo sobre as desigualdades raciais
experimentadas por mulheres negras em período gravídico puerperal no Rio de Janeiro.

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"BLACK IS LIKE BUNNY: ONLY CREATES"! THERE IS OBSTETRIC VIOLENCE


AGAINST BLACK WOMEN IN BRAZIL?

Astract: The present work results from the project of doctoral thesis in the Program of Post
Graduation in Social Service of the Federal University of Rio de Janeiro (in progress). The
objective of this study is to discuss the concept of obstetric violence and its impact on Brazilian
black women, since studies on ill-treatment in the pregnancy-puerperal period in health units reveal
the complexity of the problem when considering this particular group. In addition, research
indicates that black women receive less attention and guidance from health professionals during
prenatal care, delivery and puerperium. Thus, to relate the high maternal death rate in Brazil, which
has black women as the main target, the concept of obstetric violence becomes urgent given the
need to affirm and implement public sexual and reproductive health policies that reduce social
inequalities In health for Brazilian black women.

Keywords: Obstetric Violence, Black Women, Reproductive Rights.

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

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