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Artigo em construção para compor o dossiê Desafios Analíticos da Sociologia do

Racismo, sendo organizado pelos professores Antônio Sérgio Guimarães (USP), Luiz
Campos (IESP) e Matheus Gato (Unicamp) para a revista Tempo Social.

“O problema é cultural”: estigmas, comportamentos e vigilâncias reprodutivas de


mulheres haitianas

Jaciane Milanezi1

Resumo: A literatura sobre migração internacional e reprodução humana tem focado


recentemente nas práticas quotidianas das burocracias locais de saúde direcionadas às
mulheres migrantes internacionais. Estudos do Norte e Sul Global mostram como as
burocracias de nível de rua esperam que essas mulheres cumpram com as regras do sistema
nacional de saúde. Também, a estigmatização dos modelos de gravidez delas dentro dessas
burocracias contribui para a reprodução da injustiça reprodutiva. Em função das mudanças
migratórias no país, particularmente a presença crescente de mulheres não brancas nos novos
fluxos, atenção é necessária às formas como as cidades concebem e controlam a reprodução
delas, localmente. Com base na literatura sobre interseccionalidade, estratificação
reprodutiva, governança reprodutiva, políticas públicas e migração internacional, o artigo
analisa como representações reprodutivas dessas mulheres repercutem em formas de acessar
os serviços. A análise se baseia em etnografia de uma unidade de saúde na cidade de São
Paulo, localizada em região urbana de alta concentração de população haitiana. A análise
indica que essas mulheres podem vivenciar tipos de vigilâncias e controles reprodutivos no
acesso aos serviços públicos em função de uma combinação de (des)valorizações dos seus
modelos reprodutivos, de regras inapropriadas do sistema de saúde brasileiro às suas escolhas
reprodutivas e do comportamento aprovável perante o sistema de saúde.

Palavras-chaves: Estratégia Saúde da Família (ESF); Interseccionalidade; Migrações


Internacionais; Reprodução Feminina.

1Pesquisadora de Pós-Doutorado no Programa Internacional de Pós-Doutorado (IPP) do Centro


Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP). Pesquisadora Afro/Cebrap. São Paulo, SP.
Brasil. Pesquisa financiada pela FAPESP (2019/13877-4).
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1. Introdução

“Aqui é o lugar”, escutei de várias interlocutoras de pesquisa, quando comecei a


frequentar uma Unidade Básica de Saúde (UBS) na capital paulista para analisar as
experiências de acesso de mulheres haitianas aos serviços reprodutivos do Sistema Único
de Saúde (SUS). Eu recebi diversas sugestões do que observar, tais como as ruas com
pensões de famílias haitianas e as equipes de saúde que mais atendem essa população.
Em paralelo, eu observei visíveis ações voltadas às populações migrantes nos murais dos
corredores da unidade, a exemplo de avisos sobre roda de conversa da saúde da população
negra e migrante, orientações sobre doenças sexualmente transmissíveis e vacinas
traduzidas em diversas línguas, incluindo o francês. Contudo, uma narrativa comum sobre
as mulheres haitianas atravessou aquele ambiente organizacional: “o problema delas é
cultural”.
Diante do atual contexto migratório brasileiro e as interfaces com as relações
raciais nacionais, o artigo objetiva contribuir ao debate mais amplo e global entre
migrações internacionais e reprodução das mulheres em deslocamento ao analisar as
experiências cotidianas de acesso delas aos serviços reprodutivos municipais. A migração
internacional no Brasil ganhou um novo perfil racial desde o início do século XXI. Com
o aumento dos deslocamentos intra-americanos e entre países do Sul Global, o país passou
a receber fluxos de imigrantes que estão sendo racialmente classificados, conforme
categorias do Estado brasileiro, como pretos, pardos e indígenas. Isso marca uma inflexão
na racialização da imigração do século XX do país, que era majoritariamente de brancos
e europeus (Patarra e Fernandes, 2011).
Diante do aumento das mulheres nos deslocamentos, a literatura sobre migrações
e reprodução humana tem focado nas práticas cotidianas das burocracias locais de saúde
direcionadas às mulheres migrantes em cidades migratórias (Sargent e Cordell, 2003).
Esses estudos mostram como essas burocracias esperam que as migrantes cumpram com
as regras do sistema nacional de saúde. Além disso, a estigmatização de modelos de
gravidez não convencionais dentro dessas burocracias pode contribuir para a reprodução
das injustiças e das desigualdades interseccionais. Contudo, poucos estudos no Brasil
focam nas questões reprodutivas das mulheres migrantes a partir de uma perspectiva
interseccional (Lépinard e Mazouz, 2021).
A análise neste artigo se baseia em dados etnográficos coletados em uma UBS, na
cidade de São Paulo, em região sanitária com alto índice de população haitiana. A partir
2
do caso empírico paulista, busca-se contribuir ao debate ao analisar, em específico, a
relação entre estigmas reprodutivas de mulheres negras migrantes internacionais e os
tipos de acesso aos serviços reprodutivos que elas podem vivenciar. As situações descritas
e analisadas exemplificam experiências que as mulheres podem vivenciar ao interagirem
com burocracias dos sistemas de saúde nas sociedades em que se inserem ao buscarem
cuidados reprodutivos. As interações administrativas analisadas indicam que os encontros
entre burocracias e mulheres migrantes são atravessados por estigmas sociais que podem
se transformar em intenso controle reprodutivo delas, não necessariamente exclusão dos
serviços públicos.
O texto está organizado da seguinte forma. Inicialmente, sintetizo o debate teórico
sobre as relações entre raça, gênero, nacionalidade e reprodução feminina. Em seguida,
reviso as conexões entre as políticas migratórias, raciais e reprodutivas, com foco na
cidade de São Paulo. Em seguida, procedo com a análise etnográfica das interfaces entre
representações reprodutivas das mulheres haitianas e experiências de acesso aos serviços
reprodutivos numa unidade de saúde da cidade com experiência de atendimento da
população haitiana. Por fim, como notas conclusivas, lanço algumas questões para o
debate maior do dossiê sobre os limites e possibilidades de uma sociologia do racismo
para orientar estudos empíricos sobre desigualdades.

2. Raça, Gênero, Nacionalidade e Reprodução Feminina

As categorias de raça, gênero e nacionalidade estão presentes nos discursos


populares sobre as populações migrantes, nas políticas migratórias e nos movimentos
sociais das pessoas migrantes, em distintos contextos nacionais, mesmo que não sejam
explicitamente mencionadas (Kibria, Bowman e O'leary, 2014). No Brasil, o impacto da
raça/cor na vida cotidiana dos migrantes internacionais já está exposto no discurso
político dos movimentos sociais migrantes, que empregam, por exemplo, termos como
“xenorracismo”, uma combinação das palavras xenofobia e racismo.
Apesar da experiência interseccional dos migrantes no deslocamento humano, a
maior parte da literatura sobre migração internacional centra-se na forma como uma
determinada diferença social impacta a experiência migratória, particularmente a raça.
Nos EUA, por exemplo, as análises da interface entre raça e migração se iniciaram em
estudos focados no período de formação da identidade nacional (Kibria, Bowman e

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O'leary, 2014). Depois, os estudos passaram a analisar como a raça molda
contemporaneamente a experiência migratória em termos de classificação racial,
discriminação e políticas restritivas para migrantes não brancos (Roth, 2012). Na Europa,
contexto social em que se evita nomear e usar categorias raciais (Simon, 2008), pesquisas
evidenciam as formas também contemporâneas das diferenças simbólicas e racializadas
dos migrantes e a consequente criação de movimentos antirracistas entre a população
migrante de segunda geração nos países europeus (El-Tayeb, 2006).
Atualmente, 47,9% dos 280 milhões de migrantes no mundo são mulheres,
segundo a Organização Internacional para as Migrações (OIM). Dessa forma, adotar uma
abordagem interseccional para estudar os processos migratórios contemporâneos pode
nos auxiliar a melhor analisar como desigualdades são produzidas, ou mitigadas, no atual
cenário de crescente deslocamento das mulheres. A definição clássica de
interseccionalidade argumenta que a intersecção de raça, gênero e classe tem impacto na
experiência de vida das mulheres negras (Crenshaw, 2017). As possibilidades da
abordagem interseccional nos estudos migratórios advêm de duas ideias centrais desta
perspectiva teórica. Uma, que as categorias das diferenças sociais estão entrelaçadas na
vida cotidiana das mulheres e influenciam o acesso às diversas oportunidades de vida.
Segundo, que a intersecção entre as categorias é construída de acordo com um período e
cenário específicos. Neste sentido, a abordagem interseccional desafia qualquer
compreensão essencialista das populações migrantes nas experiências locais de inserção
nas sociedades de destino. Essa perspectiva permite a análise da experiência migratória
sempre imersa em situações concretas, nas quais múltiplas categorias sociais
desempenham um papel no acesso às oportunidades. Em síntese, as relações entre raça,
gênero, classe e nação podem ser mais ou menos salientes conforme as experiências
específicas de inclusão ou exclusão promovidas pela governança local das populações
migrantes.
O crescimento de mulheres entre as populações migrantes no século XXI, tem
gerado diversas recomendações internacionais para a gestão e adaptação dos serviços
públicos locais a elas, especialmente, os relacionados à reprodução feminina (WHO,
2017). A reprodução humana está longe de ser um fenômeno apenas biológico, mas é
uma forma de analisar como os governos concebem e controlam a reprodução de
identidades nacionais ao longo do tempo e a partir das diferenças sociais (Ginsburg e
Rapp, 1995). No caso francês, por exemplo, a literatura sobre reprodução de mulheres
migrantes passou a analisar como elas são integradas ao sistema de saúde, mobilizando

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mais ou menos as intersecções de raça, classe, gênero, nacionalidade e religião.
Evidencia-se a preferência do sistema nacional em prestar serviços de contracepção a
elas, apesar do desejo dessas mulheres pelo aumento da prole motivadas por pressupostos
religiosos (Sargent e Cordell, 2003).
A busca dessas mulheres por cuidados reprodutivos no novo sistema de saúde gera
diversas interações administrativas com o Estado brasileiro que elas precisam interpretar.
Por exemplo, ações como frequentar regularmente consultas de pré-natal em unidades de
saúde, conhecer as regras dessas unidades com diferentes culturas de atendimento do país
de origem dessas mulheres, interagir com profissionais de saúde em outro idioma,
compreender as regras informais das unidades, ou escolher uma classificação racial para
os sistemas de informações nacionais, estas são algumas das situações que as mulheres
migrantes se deparam quando interagem localmente com as burocracias que prestam os
cuidados reprodutivos no Sistema Único de Saúde (SUS). Estas interações
administrativas diárias com os serviços podem revelar como um sistema de saúde
realmente insere essas mulheres a partir da interseccionalidade que elas carregam, a
despeito da previsão legal de acesso universal.
Por isso, a análise da gestão reprodutiva das mulheres migrantes internacionais a
partir da perspectiva interseccional também permite-nos colocar em maior diálogo duas
literaturas sobre reprodução humana. Por um lado, a abordagem da reprodução
estratificada evidencia como alguns futuros reprodutivos são mais valorizados que outros
nos contextos nacionais (Colen, 1995). Estudos com base nessa perspectiva evidenciam
como as mulheres negras nacionais são consideradas impotentes para reproduzir
(Mullings, 1995), raramente consideradas o corpo de uma nação (Ribeiro-Corossacz,
2009), ou descritas como pacientes difíceis de um sistema de saúde (Milanezi, 2023). O
campo da reprodução estratifica já indicou como as representações sociais de mulheres
não brancas têm consequências para desfechos evitáveis em saúde, como o nascimento
prematuro (Davis, 2019). Contudo, ainda faltam estudos da reprodução estratificada para
melhor analisar as mudanças nas valorizações reprodutivas a partir desse novo grupo de
mulheres, as migrantes internacionais.
Por outro lado, a perspectiva da governança reprodutiva analisa como diversos
atores políticos moldam a governança da reprodução das mulheres (Morgan e Roberts,
2012). Esta literatura se dedica a analisar como diversas instituições, como o Estado, a
religião e os movimentos sociais, se utilizam de controles legislativos, incentivos
económicos, injunções morais, coerção direta e incitamentos éticos para controlar

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comportamentos reprodutivos e práticas populacionais (Fonseca, Marre e Rifiotis, 2021).
Mas, poucos estudos se voltaram para a experiência de governança das mulheres
migrantes no Brasil. Em ambas perspectivas, as desigualdades interseccionais são a base
estrutural sob a qual a reprodução de algumas é mais valorizada por meio de diversos
mecanismos estatais.
Com base nesse debate, o artigo colabora ao avançar nas seguintes questões: 1)
Como essas mulheres podem ser simbolicamente concebidas como sujeitas de direitos
reprodutivos a partir das diferenças sociais que carregam?; 2) Quais são as repercussões
dessas representações sociais nos tipos de acessos aos serviços reprodutivos quando essas
mulheres interagem diretamente com o sistema de saúde?

3. Brasil e São Paulo: Fluxos, Políticas Migratórias, Raciais e Reprodutivas

A literatura sobre migração internacional comumente evidencia o Brasil como


uma rota das migrações transnacionais (Price e Benton-Short, 2008). Sistemas de
Informações com dados demográficos precisos sobre as diversas populações migrantes
no país ainda são escassos. Com base nos dados do Sistema de Registro Nacional
Migratório (SISMIGRA) da Polícia Federal2, sabemos que, entre 2000 a 2022, havia
1.781.924 registros migratórios ativos no Brasil, referente a 0.3% da população residente
no país. Destes, cerca de 33% (595.369) estavam concentrados no estado de São Paulo.
O interessante a observar no caso brasileiro são as mudanças no perfil migratório
do país, ao longo do tempo. Entre o período de colonização e o fim da Segunda Guerra
Mundial (1939-1945), o Brasil foi um país predominantemente receptor de migrantes
internacionais. Um fluxo migratório marcante desse período foi o de europeus e
japoneses, entre 1870 e 1930, incentivado por políticas estatais de branqueamento racial
(Skidmore, 1993). A partir da década de 1980, o Brasil tornou-se um país de emigração,
com maior fluxo de brasileiros para os Estados Unidos da América (EUA), Japão e países
europeus. A exceção dos anos 80 é o início do fluxo de bolivianos para o país, processo
constante até hoje. A partir de 2011, o Brasil tornou-se novamente um típico país de
imigração, com um fluxo crescente de migrantes de países em desenvolvimento das
Américas e África (Magalhães, Bógus e Baeninger, 2018). Os fluxos majoritários atuais

2
Para mais dados, ver: https://portaldeimigracao.mj.gov.br/pt/dados/microdados/1733-
obmigra/dados/microdados/401205-sismigra

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são de migrantes haitianos, de diversos países africanos e do Oriente Médio. A partir de
2016, o país passou a receber os migrantes venezuelanos, pela fronteira norte brasileira,
grupo que possui destaque no debate público em função da Operação Acolhida,
especificamente voltada para a governança deles (Moulin e Magalhães, 2020).
Apesar das mudanças nos fluxos, a história das migrações no Brasil entrelaça
ideias raciais e políticas migratórias, desde os projetos de construção da identidade
nacional (Lesser, 2013). Por exemplo, estudos mostram como as ideias de eugenia e de
democracia racial influenciaram a criação de políticas migratórias para embranquecer a
população no início do século XX, privilegiando a migração européia e branca ao país
(Seyferth, 2002). Outras pesquisas evidenciam como a ideia de “amarelo” em relação aos
asiáticos, significando docilidade e eficiência, contrastava com a ideia mais ampla de que
os escravos negros livres eram incompatíveis com o trabalho remunerado (Lee, 2018).
No entanto, poucos estudos abordam a questão da racialização articulada à de gênero ao
analisar o passado, ou o atual momento de migração não-branca no país.
Na história das migrações internacionais do Brasil, a cidade de São Paulo
desempenha um papel crucial em vários aspectos. A Região Metropolitana de São Paulo
(RMSP) é clássico local de chegada e estabelecimento das pessoas migrantes
internacionais (Truzzi, 2018), da inserção dessa população no mercado de trabalho
brasileiro (Vilela, Collares e Noronha 2015), da organização de movimentos sociais das
populações migrantes, da atuação de organizações da sociedade civil em prol da
aprovação de direitos aos migrantes e da invenção de políticas públicas municipais para
governar essa população (Sampaio e Baraldi, 2019). A relação entre raça e processos
migratórios também ocorre localmente em muitos destes aspectos. Por exemplo, a
formação de bairros considerados racializados ou étnicos (Lee, 2018), ou a prestação final
de cuidados em saúde pelo quadro de profissionais da saúde pública com base em
avaliações informais, morais e estigmatizantes a partir da raça/cor da população migrante
(Pingel, 2021).
Apesar da presença da população migrante em outros municípios, a cidade de São
Paulo continua a ser o local preferido das pessoas migrantes internacionais para
permanecerem no país. Com base também nos dados da Polícia Federal, sabemos que dos
33% de migrantes concentrados no Estado de São Paulo, 70% dessa população (394.818)
vivem na cidade de São Paulo. Apesar de inexistir dados oficiais sobre a distribuição da
população migrante internacional na região metropolitana de São Paulo, recentes dados
de organizações públicas e privadas que atendem essa população evidenciam que a

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população migrante se estabelece entre as zonas central e leste da cidade. Segundo dados
do Centro de Referência e Acolhida para Imigrantes de São Paulo (CRAI), dos 11.834
migrantes atendidos pela entidade, entre 2014 e 2020, 39% (4.615) residiam no Centro e
22,5% (2.817) na Zona Leste.
A atual fase migratória da cidade é caracterizada principalmente pelos fluxos de
peruanos, bolivianos, paraguaios, venezuelanos, colombianos, haitianos, sírios,
senegaleses, ganenses, angolanos, congoleses, iraquianos e coreanos. São trabalhadores
que ocupam profissões pouco qualificadas, como costura, construção civil e serviços
domésticos. Segundo o Sistema Nacional de Cadastro de Estrangeiros (SINCRE), 37,61%
dos migrantes residentes em São Paulo são mulheres. Poucas fontes oficiais
governamentais locais permitem evidenciar as relações entre a raça/cor da população
migrante e o acesso a diversas oportunidades. A exceção é a base de dados da Relação
Anual de Informações Sociais (RAIS) do Ministério do Trabalho. Em 2016, a RAIS
indica que o emprego ativo em São Paulo era maior entre os migrantes classificados como
brancos, abrangendo 51,8% desse grupo com empregos formais na cidade, contra 18,4%
dos negros, 12,54% pardos, 6,53% asiáticos e 0,47% indígenas.
Desde 2010, o município de São Paulo implementa um número crescente de leis,
planos de ação, relatórios, órgãos burocráticos e políticas públicas que governam os
fluxos migratórios atuais (Sampaio e Baraldi, 2019). Os exemplos mais conhecidos da
governança migratória paulista são a criação da Coordenação de Políticas para Imigrantes
e Promoção do Trabalho Decente (CPMig) em 2013, duas Conferências Municipais sobre
Política Migratória (2013 e 2019), a construção de Centros para Imigrantes (CRAI), em
2014, e a aprovação da Lei Municipal nº 16.478, em 2016, inaugurando a mais crucial
política migratória do país. Os autores identificam quatro fatores principais que
contribuíram para o aumento das políticas migratórias na cidade, apesar das mudanças no
espectro político do governo local: 1) o alinhamento oficial do Brasil com as
recomendações internacionais migratórias, 2) leis federais anteriores sobre migração, 3)
pressão política das organizações locais de migrantes, 4) o conhecimento acumulado
pelos burocratas municipais sobre a população migrante.
No campo da saúde pública, o direito de acesso aos serviços de saúde pelas
populações migrantes é justificado pela evidência que o deslocamento humano expõe as
populações a diversas fragilidades ao bem-estar, durante o deslocamento e na vida nas
sociedades de destino. Os processos migratórios têm pressionado os sistemas públicos de
saúde de diversos países à adoção de uma saúde intercultural (Martin, Goldberg e Silveira,

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2018). Isso já se refletiu no município de São Paulo, onde os cuidados de saúde
reprodutiva tornaram-se uma demanda na arena das políticas públicas locais, devido ao
aumento do número de mulheres migrantes que utilizam o sistema de saúde e à pressão
política dos movimentos de mulheres migrantes na cidade (Ribeiro, 2016). As ativistas
migrantes em São Paulo também desempenham um papel central na atual demanda
política pela criação de uma política de saúde para os migrantes em nível nacional 3. As
principais reivindicações são a construção de centros de parto, serviços de saúde na língua
materna da mãe e formação de profissionais de saúde para atender mulheres migrantes
em unidades básicas de saúde.
A Secretaria Municipal de Saúde (SMS) em São Paulo criou uma agência de
coordenação técnica para implementar políticas de saúde específicas para migrantes e
refugiadas. Há poucos dados sobre as condições da saúde reprodutiva dessas mulheres.
No entanto, identificamos relatório municipal, indicando que 90% das mulheres
migrantes bolivianas e haitianas são pacientes do sistema público de saúde em São Paulo.
Comparativamente, a mesma percentagem de mulheres libanesas, sul-coreanas, francesas
e norte-americanas obtêm cuidados médicos em serviços de saúde privados. Embora o
primeiro grupo utilize mais o SUS, as mães bolivianas e haitianas acessam menos
consultas pré-natais nas unidades básicas de saúde, conforme recomendado pela
Organização Mundial da Saúde (OMS), entre zero e três consultas pré-natais (Aguiar,
Neves e Lira, 2015).
As poucas pesquisas sobre a vivência dos serviços públicos de saúde brasileiros
pelos migrantes indicam que alguns dos obstáculos para os cuidados em saúde dessa
população ocorrem pelas representações sociais estigmatizantes que os profissionais de
saúde reproduzem dentro das burocracias de saúde (Pingel, 2021). Nesse sentido, uma
vez que o migrante já passou por todos os obstáculos formais de acesso, conseguiu obter
um Cartão Nacional de Saúde (CNS) e passou a ser um cadastrado da Estratégia Saúde
da Família (ESF), o acesso passa a ser gerido pelas dinâmicas das burocracias locais. Por
exemplo, estigmas dos migrantes difundidos entre os profissionais de saúde podem levá-
los a se incomodar com o atendimento dessa população e julgá-la moralmente por
comportamentos considerados inadequados perante as regras oficiais da ESF (Aguiar e
Mota, 2014). Essas pesquisas evidenciam a nacionalidade como um critério para os tipos

3
Para mais informações sobre a proposta de uma Política Nacional de Saúde das Populações Migrantes,
Refugiadas e Apátridas, ver: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2023/junho/ministerio-da-
saude-cria-grupo-de-trabalho-para-elaborar-a-politica-nacional-de-saude-de-refugiados

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informais de atendimento. Em respeito à previsão legal de acesso, o serviço é ofertado,
mas há pouco investimento das equipes no acompanhamento dos migrantes.
Nesse contexto de mudanças migratórias contemporâneas, uma agenda de
pesquisa no Brasil começa a se estabelecer para analisar a saúde em processos de
deslocamento humano. Os estudos focam nos modos de vida dos migrantes, nas
concepções destes sobre adoecimento, os diversos modos deles lidarem com a saúde e a
doença, o adoecimento no processo migratório e a recepção dos migrantes pelos sistemas
de saúde nacionais (Martin, Goldberg e Silveira, 2018). Essa literatura converge em
identificar a importância do aspecto cultural no atendimento da população migrante. A
cultura de saúde das populações migrantes é considerada um obstáculo ao cuidado por
gestores e profissionais de saúde. É comum a culpabilização das condições de saúde dos
migrantes recair na própria população e não no sistema de saúde. Nesse sentido,
estereótipos culturais passariam a explicar os desfechos ruins em saúde dos migrantes e
não as relações sociais implicadas nos cuidados específicos a essa população pelo Estado.
Essa literatura tem evidenciado que os sistemas oficiais locais pouco criam novas formas
de cuidados adequados aos migrantes, se distanciando da demanda política por cuidados
interculturais de saúde. Em seguida, contribuindo a esse conjunto de pesquisas, o artigo
analisa como representações culturais e reprodutivas de mulheres haitianas repercutiram
em experiências de acesso aos serviços reprodutivos em uma unidade básica de saúde na
cidade de São Paulo.

4. Notas Metodológicas: Etnografia de Unidade Básica de Saúde (UBS)

Os dados analisados neste artigo fazem parte de uma pesquisa mais ampla sobre
raça, gênero, migração internacional e governança reprodutiva de mulheres haitianas a
partir de diferentes burocracias de saúde na cidade de São Paulo4. O desenho
metodológico mais amplo da pesquisa oferece um contraste entre a institucionalização de
políticas reprodutivas em burocracias da gestão paulista e a implementação diária dos
serviços reprodutivos às mulheres migrantes internacionais em burocracias de rua.
Conforme literatura de implementação de políticas públicas, essas burocracias são
contextos organizacionais do Estado considerados de baixa informação, escassez de

4A pesquisa é financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (2019/13877-4) e
autorizada Conselho Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), conforme Resolução Nº 466, de 12 de
Dezembro de 2012.

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recursos, alta discricionariedade de profissionais e lócus dos encontros burocráticos com
os usuários (Lispky 1980, D.). Tendo um desenho de camadas burocráticas, a estratégia
maior da pesquisa possui três etapas: 1) Análise de documentos das políticas públicas da
Secretaria Municipal de Saúde (SMS); 2) Entrevistas em profundidade com profissionais
que atuam na implementação de políticas migratórias na Secretaria; 3) Etnografia de uma
Unidade Básica de Saúde (UBS), na cidade de São Paulo, com experiência no
atendimento da população haitiana.
Neste artigo, foram analisados dados coletados durante o período etnográfico da
pesquisa, iniciado em setembro de 2023 e em andamento até março de 2024. A estratégia
da etapa etnográfica consiste em observar a implementação cotidiana dos serviços
reprodutivos, em uma unidade básica de saúde da cidade de São Paulo, em região que
aglutina organizações públicas e privadas voltadas às populações migrantes
internacionais, incluindo a haitiana.
A unidade básica pesquisada implementa os serviços em saúde à população do
respectivo território com base na Estratégia Saúde da Família (ESF), política que organiza
os cuidados primários no país desde 1997, com foco em áreas sanitárias previamente
definidas pela gestão pública e pela prevenção e promoção da saúde (PNAB, 2006). A
ESF é implementada por equipes multiprofissionais, geralmente, compostas por um
médico de família, uma enfermeira, uma técnica de enfermagem e seis Agentes
Comunitários de Saúde (ACS). Cada equipe pode receber o apoio de profissionais do
Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF), composta por psiquiatra, psicólogo,
educador físico, dentre outros, a depender da disponibilidade de serviços na área
geográfica. No cotidiano de trabalho de uma equipe da ESF são realizadas consultas
médicas, visitas domiciliares, reuniões de equipe, ações de educação e prevenção à saúde
nas áreas de abrangência, e preenchimento de sistemas de informações estatais.
No decorrer da etnografia, tenho observado os expedientes mais diários que as
equipes da ESF implementam em relação à saúde das mulheres haitianas, seja na própria
unidade, nas ruas do território, ou nas casas dessas mulheres. Em específico, foco em
observar as interações administrativas entre elas e as categorias profissionais, as
concepções sobre a reprodução dessas mulheres que circulam na unidade, avaliações de
elegibilidade delas aos cuidados reprodutivos para além das prescrições legais dos
direitos reprodutivos, as práticas corriqueiras de controle da reprodução delas, e os
processos de tomada de decisão entre os profissionais em reuniões. A seguir, analiso

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como diversas representações reprodutivas, práticas de gestão e mediações para acessar
os serviços se cruzaram, resultando em vigilância reprodutiva dessas mulheres.

5. “O Problema é Cultural”: Entre Estigmas e Acesso aos Cuidados Reprodutivos

Quando estigmas viram vigilância reprodutiva

No primeiro dia que comecei a etnografar a unidade básica de saúde, uma


profissional foi designada a me receber, mostrar a unidade e me apresentar aos demais
profissionais. “O problema delas é cultural” foi a frase que mais escutei, ao conhecer o
corpo burocrático da unidade e informar às equipes da ESF que eu conviveria com elas
para pesquisar a saúde das mulheres haitianas naquele território sanitário da cidade de
São Paulo.
Nos dias posteriores, passei a acompanhar os trabalhos de uma das seis equipes
da unidade. Essa equipe era responsável pelos cuidados em saúde da rua Porto Príncipe,
local de concentração de pensões de famílias haitianas na região. “Elas são complicadas,
não se previnem. É cultural, querem ter muitos filhos para pegar benefícios sociais no
Brasil”, me narrou a enfermeira da equipe. A avaliação negativa da quantidade de filhos
das mulheres haitianas era compartilhada por outros profissionais, não necessariamente
pelos mesmos motivos. Essa enfermeira associou a quantidade de gestações das mulheres
haitianas a um comportamento cultural e instrumental de acesso a benefícios sociais no
Brasil, como a participação em programas de transferência de renda. Mas, a acusação de
muitos filhos pela cultura da população haitiana podia ocorrer pelos profissionais
acharem que elas desrespeitavam uma legislação da saúde pública brasileira, o
planejamento familiar5. “O problema é cultural, elas têm muitos filhos por causa da
religião. Mas, no Brasil, não é assim não, tem que respeitar as leis daqui, onde o
planejamento familiar é lei”, argumentou uma das assistentes sociais do Núcleo de Apoio
à Saúde da Família (NASF). Para essa outra profissional, a avaliação negativa da
quantidade de filhos das haitianas era baseada nas políticas reprodutivas do Brasil. De
fato, o direito ao planejamento familiar é uma conquista legislativa dos movimentos de
mulheres no país, que marca a transição de uma perspectiva estatal de controle da
natalidade pela esterilização feminina para o acesso a diversos métodos contraceptivos e

5 Lei nº 9.263, de 12 de janeiro de 1996.


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conceptivos, permitindo à mulher escolhas reprodutivas de aumento ou diminuição de
filhos. Contudo, a profissional mobilizou o ideário do planejamento familiar como uma
prescrição contraceptiva quase obrigatória para mulheres com modelos reprodutivos
socialmente desvalorizados dentro da unidade.
Sob o mantra “o problema é cultural”, os profissionais também me indicavam que
as mulheres haitianas eram um problema para o SUS por não entenderem o sistema e não
se comportarem conforme as regras de cuidados reprodutivos da ESF. “Elas não
entendem nada. Ontem mesmo, encontrei com uma que me deu um trabalho no pré-natal
e está grávida, de novo”, me narrou a enfermeira da outra equipe com atendimento da
população haitiana. A perspectiva de que as mulheres haitianas não entendem as regras
do SUS também era compartilhada pelos profissionais, a exemplo de não realizarem as
sete consultas de pré-natal. Segundo me relatou uma das enfermeiras, ela aproveitava o
momento das consultas para dar broncas nas mulheres e repassar as normas, tais como o
comparecimento nas consultas, a realização dos exames preventivos, ou explicar sobre o
planejamento familiar. Para a comunicação fluir, muitas vezes, o google tradutor era
utilizado no aparelho de celular das profissionais.
As mulheres haitianas se utilizavam de algumas estratégias para traduzir o
português e o sistema de saúde brasileiro. Por exemplo, numa consulta com uma das
enfermeiras, a usuária haitiana ligou para o pastor da igreja que frequentava na região.
Ele acompanhou boa parte da consulta pelo celular, traduzindo o português, a nova
demanda de exames e a bronca da enfermeira pela não realização dos já prescritos. Outra
figura masculina e mediadora do acesso das haitianas aos serviços reprodutivos eram seus
maridos. Muitos deles as acompanhavam nas consultas, falavam em nome delas,
traduziam as orientações dos profissionais, ou questionavam as prescrições de cuidados.
A mediação dos maridos haitianos podia ser criticada pelas profissionais, pela avaliação
de que a presença deles tirava a autonomia do cuidado das mulheres.
Em paralelo à considerada cultura de “muitos filhos” das haitianas, o idioma
crioulo era apontado como outro problema cultural para promover os cuidados em saúde
da população haitiana no território. Num dia, acompanhei uma roda de conversa sobre a
saúde mental entre as pessoas cadastradas da unidade que necessitavam de um
acompanhamento psicológico sistemático. A roda era realizada pelo NASF,
semanalmente, no salão de festas de uma paróquia localizada na região das moradias das
famílias haitianas. A ação era antiga, bastante conhecida no território e procurada pelos
moradores. A paróquia que oferecia o espaço físico para a ação da ESF era atuante no

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acolhimento, hospedagem e inserção de populações migrantes internacionais na cidade
de São Paulo. Apesar da ação ocorrer em local de assistência às populações migrantes,
nenhuma pessoa haitiana participava do grupo, “por questões de idioma”. Toda a
assistência psicológica era conduzida em português e as famílias haitianas da área,
segundo os profissionais, não se interessavam em participar da roda por não entenderem
bem português.
O idioma não foi um problema para a tentativa de exclusão de Liz da unidade. Era
o dia de reunião de uma das equipes que mais atendiam à população haitiana no território.
Ao redor de uma mesa, estavam sentadas todas as seis Agentes Comunitárias de Saúde
(ACS) e o médico de família da equipe. O grupo aguardava a enfermeira para iniciar a
reunião, cuja pauta era as gestantes sob a responsabilidade daquela equipe. A enfermeira
chegou com uma pilha de prontuários de gestantes consideradas um problema para o
grupo. “Precisamos decidir o que vamos fazer”, era a demanda da enfermeira, definir
ações em cada caso para posterior registro do ocorrido no prontuário e sistema de
informação da prefeitura.
Aquelas pastas registravam a vida reprodutiva de mulheres nacionais e
estrangeiras, usuárias da unidade, em período gestacional, sendo acompanhadas pela
equipe, mas com alguma situação que colocava os profissionais sob potencial avaliação
da prefeitura. Por exemplo, as mulheres podiam apresentar uma condição ruim de saúde
que gerava riscos à gestação e ao bebê. Ou, as mulheres não estavam comparecendo às
consultas de pré-natal, conforme as regras do SUS. Ou, não eram mais encontradas nas
suas residências, o que podia configurar mudança do território e desvinculação da
unidade, o descadastramento. Se algumas daquelas mulheres ou bebês viessem a óbito
sob os cuidados da equipe, os profissionais podiam ser responsabilizados pela gestão
municipal. “O povo engravida e quem responde sou eu”, desabafou a enfermeira, sentada
atrás da pilha de pastas que quase a tampava. “Ah, essa vai sair da minha área, graças a
Deus”, celebrou uma ACS, aliviada em não ter que acompanhar mais a gestação de uma
das mulheres por ela ter mudado de endereço. “Eu vou é fazer um grupo de gestantes para
descascar elas”, exclamou a enfermeira, trazendo à tona a prática de broncas às gestantes.
“A gente não consegue mais fazer Estratégia”, ela voltou a desabafar, com a concordância
do médico, que balançou a cabeça em silêncio. “Vamos todos participar da roda de
conversa na igreja”, ironizou uma ACS, gerando uma gargalhada coletiva e indicação da
tensão que acompanhava a responsabilidade da equipe em cuidar daquelas gestantes.

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Entre desabafos, ironias, explicações médicas e regras de cuidado, chegou-se no
caso de Liz. Uma jovem haitiana, em período avançado de gestação, em tratamento de
sífilis e que a ACS não tinha informação se ela tinha parido, por não a encontrar mais na
pensão. Uma ação foi definida em reunião, verificar mais uma vez a presença dela no
endereço indicado para descadastrá-la da unidade. A estratégia era alcançar a quantidade
de averiguações suficiente para registrar em prontuário que não era mais possível
encontrá-la na residência e, consequentemente, seria possível proceder com o
descadastramento da unidade.
Chegamos na rua Porto Príncipe e a ACS iniciou seu trabalho, entregando receitas
atualizadas de medicamentos, solicitações de exames e avisos de marcação de consultas.
A técnica em enfermagem que nos acompanhava, realizou a injeção de vacina contra a
gripe na usuária que não tinha condições físicas de ir até a unidade. Depois, partimos para
averiguar a presença de Liz no endereço registrado em seu prontuário. “Quer ver? Ela não
estará em casa. Ela nunca está neste endereço”, afirmou convicta e animada a Agente.
Bastou uma chamada no interfone da pensão e uma voz feminina com sotaque crioulo
afirmou, em nítido português, que Liz se encontrava na pensão. “Nossa, vai chover”,
brincou desapontada a ACS. Em seguida, a mulher haitiana por trás do interfone nos
recebeu no portão e nos conduziu até o segundo andar da pensão. “Ela está tomando
banho”, apontou a amiga de Liz para a porta do banheiro.
Enquanto Liz tomava o seu banho, a Agente, a técnica e a amiga dela ficaram em
pé em frente ao banheiro. Ao redor, havia três quartos, cujas portas estavam fechadas. O
barulho de água de chuveiro cessou e, rapidamente, uma jovem mulher haitiana, nua,
enrolada numa toalha verde, segurando uma muda de roupa, abriu a porta. Era Liz. “Onde
está seu filho? Nasceu?”, interrogou a Agente. Liz entendeu a pergunta, mas precisou de
um tempo para conseguir verbalizar o que seus olhos mareados diziam. “No hospital”,
ela respondeu com um português básico. “Então, nasceu. O que ele tem?”, continuou a
Agente. Liz não conseguia explicar mais. Seu choro contido entalava a notícia e o idioma.
Uma porta de um dos quartos se abriu e, de dentro do recinto, um homem haitiano ajudou
Liz a explicar que o bebê havia nascido há quinze dias, prematuro e que teve que ficar
hospitalizado. A Agente pediu os papéis do bebê e do hospital. A amiga e o homem
explicaram que eles não tinham aqueles documentos. A agente pediu mais papéis, a
caderneta de gestante e o cartão família da unidade. Ainda encurralada entre o banheiro e
as profissionais, Liz se direcionou para um outro quarto, onde pegou os dois documentos
solicitados e entregou à Agente. Após folhear a caderneta, a ACS acusou Liz de não ter

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ido a todas as consultas de pré-natal e solicitou a ida dela à unidade para marcar uma
consulta de puerpério. Liz agradeceu. A agente fez mais um pedido, que ela avisasse
quando o filho saísse do hospital para que ele fosse cadastrado na unidade. Liz,
novamente, agradeceu.
Descemos as escadas da pensão, em silêncio. Andamos pela rua Porto Príncipe
por um tempo, também caladas. Há uma certa distância, a ACS afirmou: “Ela não mora
ali, vocês viram as malas no quarto? Ela está de passagem. Aquele, deve ser o namorado
dela. Ela não mora ali”. Mas, como Liz estava presente no endereço durante a checagem,
não foi possível registrar em prontuário que ela não morava mais na rua das pensões e
descadastrá-la da unidade. No sistema de informações da prefeitura, Liz continuou
registrada como uma mãe ainda a ser cuidada pela Estratégia Saúde da Família. Distante
da rua e próxima da unidade, a Agente opinou que eu deveria parar de acompanhá-la no
atendimento aos haitianos em Porto Príncipe. Para ela, aquele não era um bom lugar para
eu visitar: “Ali, eles não são como os chineses, ou os bolivianos, que entendem o SUS.
Os haitianos não entendem nada”.
A expressão “o problema é cultural”, amplamente mobilizada pelos profissionais
de saúde para falar sobre mulheres haitianas usuárias dos serviços reprodutivos, era
indicativa de uma narrativa sobre elas que articulava estigmas e comportamentos
reprodutivos reprováveis dentro do Estado. Em primeiro lugar, podia ocorrer uma
desvalorização das haitianas pelos profissionais por causa da quantidade de filhos delas
ser considerada exacerbada. Contudo, o correto número de filhos de um modelo
reprodutivo mais aceitável não era anunciado. Dessa forma, uma experiência dessas
mulheres em nosso sistema de saúde foi elas se depararem com a desqualificação das suas
escolhas reprodutivas pela acusação de um comportamento cultural de “muitos filhos”.
A literatura sobre reprodução a partir de perspectivas interseccionais já evidencia
que as representações reprodutivas estão associadas à raça/cor e classe das mulheres
(Fernandes, Holanda e Marques, 2021). No caso brasileiro, os modelos reprodutivos são
tratados dentro do sistema de saúde como concorrentes e recebem valorizações diferentes
(Ribeiro-Corossacz, 2009). Um modelo é o de “poucos filhos”, associado às mulheres
brancas e de estratos sociais mais altos, considerado correto. Outro, é o de “muitos filhos”,
associado às classes populares e negras, considerados equivocados. Contudo, em outros
contextos nacionais, os modelos reprodutivos de mulheres não-brancas e migrantes
internacionais também têm sido desvalorizados dentro dos sistemas de saúde, a exemplo
do caso francês (Sargent e Cordell, 2003).

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Na unidade pesquisada, a valorização local de modelos reprodutivos de “poucos
filhos”, em detrimento aos modelos de “muitos filhos”, ocorreu, também, pela avaliação
comportamental das mulheres haitianas perante as regras de cuidados reprodutivos da
ESF, a exemplo de Liz nunca estar em casa, ou não ter informado sobre o nascimento
prematuro do filho. Se um ponto de partida importante da desvalorização reprodutiva das
haitianas foram estigmas reprodutivos interseccionais, esse desapreço ganhou escala
quando os profissionais também passaram a desvalorizar o comportamento delas de “não
entenderem nada” do sistema de saúde brasileiro. Conforme literatura sobre
implementação de políticas públicas voltadas à mitigação das desigualdades aponta, a
avaliação comportamental das usuárias do Estado é elemento central de consideração
informal da elegibilidade delas aos serviços públicos (Auyero, 2011; Pires, 2019;
Milanezi, 2023).
A expressão local “não entendem nada” indicava, também, como a avaliação
comportamental das haitianas era reforçada por dinâmicas institucionais da ESF. O alto
grau de vigilância das gestantes estava atrelado à avaliação das próprias equipes pelas
instâncias superiores de gestão municipal da política, a exemplo de serem potencialmente
punidas pelos óbitos maternos. A descrição da reunião de equipe que culmina na
vigilância de Liz exemplifica como as regras institucionais de um serviço público podem
provocar um comportamento coletivo do corpo burocrático de vigiar para excluir dos
serviços, menos para promover os cuidados reprodutivos.
A narrativa “o problema é cultural” também ecoou outro aspecto institucional do
sistema de saúde, o ideário do planejamento familiar. Brandão e Cabral (2021) analisaram
como interpretações equivocadas da Lei do Planejamento Familiar tem promovido
diversos tipos de controles reprodutivos de mulheres vulneráveis. Na unidade pesquisada
em São Paulo, a perpetuação da desvalorização dos modelos reprodutivos de mulheres
não-brancas levava os profissionais a mobilizarem a lei para o controle da reprodução das
mulheres haitianas. Dessa forma, era comum a sugestão entre o corpo burocrático de
encaminhamento das mulheres haitianas ao planejamento familiar para diminuírem a
prole por meio dos métodos contraceptivos disponibilizados pelo SUS, não sendo esse
necessariamente o interesse dessas mulheres.
Uma contribuição do dado etnográfico analisado foi evidenciar como esses
estigmas e comportamentos reprováveis dentro do Estado podiam repercutir em tipos de
acesso aos serviços públicos. A observação das tarefas mais cotidianas da unidade me
permitiu observar que o modelo reprodutivo das mulheres haitianas e o desconhecimento

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delas das regras de funcionamento do sistema de saúde nacional podiam resultar em
vigilância constante dessas mulheres com o objetivo final de descadastrá-las dos serviços
das unidades. Mesmo que o resultado final da vigilância não chegasse à exclusão delas
dos serviços, a exemplo de Liz, o monitoramento sistemático do comportamento
reprodutivo delas as levavam a experimentarem os serviços com diversos níveis de
sujeição ao Estado (Auyero, 2011).
Em síntese, a análise da narrativa “o problema é cultural” evidenciou estigmas
reprodutivos, comportamentos reprováveis de usuárias do SUS e tipos de acesso aos
serviços por meio de experiências de controle reprodutivo. Por outro lado, a narrativa
também revelou a inadequação do sistema de saúde brasileiro às mulheres migrantes, a
partir da cultura de cuidado da ESF, não delas, exclusivamente assentada em populações
fixa territorialmente, falante do idioma nacional e com modelos reprodutivos que ecoam
o comportamento reprodutivo de um grupo de mulheres de classe alta e branca no Brasil.

Quando comportamentos aprováveis implicam em mais acesso (a ser desenvolvido)

A ideia neste item é apresentar a inserção das haitianas nos serviços a partir do
comportamento delas de conhecimento das regras da ESF, apesar da presença dos
mesmos estigmas reprodutivos.

6. Considerações Finais

Neste artigo, busquei analisar como representações reprodutivas de mulheres


migrantes haitianas, usuárias de serviços reprodutivos de uma unidade básica de saúde
paulista, repercutiram na forma delas acessarem esses serviços no caso empírico
analisado. Identifiquei desvalorização dos modelos reprodutivos dessas mulheres, em
paralelo à reprovação dos seus comportamentos perante o Estado brasileiro e
repercussões no controle reprodutivo delas para acessarem os cuidados em saúde sexual
e reprodutiva, localmente.
O dado empírico apresentado neste artigo permite algumas reflexões sobre
elementos que podem reproduzir desigualdades interseccionais às populações vulneráveis
dependentes do SUS, como as mulheres haitianas usuárias da ESF. Essa reprodução das
desigualdades ocorre em termos simbólicos, no universo das ideias, e em termos
distributivos, relativos aos acessos aos recursos públicos.

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A ocorrência concomitante de alguns elementos foi necessária para que
experiências de controle fossem vividas por elas na unidade pesquisada: a desvalorização
dos seus modelos reprodutivos, a reprovação dos seus comportamentos como usuárias do
SUS, as regras próprias do serviços nem sempre adequadas aos seus modelos
reprodutivos e as decisões internas das equipes sobre como prestar o serviço a esse novo
grupo de mulheres no Brasil. Na realidade empírica observada, esses elementos as
alocavam à constante vigilância reprodutiva pela desvalorização dos seus modelos de
reprodução e por um sistema ainda inadequado às suas realidades específicas.
O dado exemplifica o que a literatura sociológica e antropológica da gestão de
populações vulneráveis pelo Estado indica, que as burocracias as governam a partir de
uma dimensão moral (Fassin et al, 2015). Na ponta, essas avaliações morais permeiam as
práticas mais cotidianas e até informais da gestão pública (Sharma e Gupta, 2006),
presentes durante as interações administrativas entre as burocracias e os usuários (Dubois,
2009), ou nas diversas mediações burocráticas para fornecer acesso aos serviços públicos
(Milanezi, 2023). O resultado dessas interações e mediações pode variar entre um teor
mais includente ou excludente de acesso, a depender das articulações entre estigmas,
regras e processos decisórios que operam nos ambientes organizacionais estatais.

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