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bell hooks: O amor como a prática da liberdade

por Uã Flor Do Nascimento via Medium*

Nesta sociedade, não há um discurso poderoso sobre o amor emergindo nem dos
radicais progressistas nem da esquerda. A ausência de um foco continuado sobre
o amor em círculos progressistas surge de uma falha coletiva em reconhecer as
necessidades do espírito e de uma ênfase sobredeterminada nas preocupações
materiais. Sem amor, nossos esforços para libertar a nós mesmas/os e nossa
comunidade mundial da opressão e exploração estão condenados. Enquanto nos
recusarmos a abordar plenamente o lugar do amor nas lutas por libertação, não
seremos capazes de criar uma cultura de conversão na qual haja um coletivo
afastando-se de uma ética de dominação.

Sem uma ética do amor moldando a direção de nossa visão política e nossas
aspirações radicais, muitas vezes somos seduzidas/os, de uma maneira ou de
outra, para dentro de sistemas de dominação — imperialismo, sexismo, racismo,
classismo. Sempre me intrigou que mulheres e homens que passam uma vida
trabalhando para resistir e se opor a uma forma de dominação possam apoiar
sistematicamente outras. Fiquei intrigada com poderosos líderes negros
visionários que podem falar e agir apaixonadamente em resistência à dominação
racial e aceitar e abraçar a dominação sexista das mulheres; com feministas
brancas que trabalham diariamente para erradicar o sexismo, mas que têm
grandes pontos cegos quando se trata de reconhecer e resistir ao racismo e à
dominação por parte da supremacia branca do planeta. Examinando criticamente
esses pontos cegos, concluo que muitas/os de nós estão motivadas/os a mover-se
contra a dominação unicamente quando sentimos nossos interesses próprios
diretamente ameaçados.

Muitas vezes, então, o anseio não é para uma transformação coletiva de


sociedade, para um fim da política de dominações; mas simplesmente para o fim
do que sentimos que nos machuca. É por isso que precisamos desesperadamente
de uma ética do amor para intervir em nosso desejo autocentrado por mudança.
Fundamentalmente, se estamos comprometidas/os apenas com a melhoria
daquela política de dominação que sentimos conduzir diretamente para nossa
exploração ou opressão individual, não apenas permanecemos ligados ao status
quo, mas agimos em cumplicidade com ele, nutrindo e conservando esses
mesmos sistemas de dominação. Até todas/os nós sermos capazes de aceitar a
natureza interconectada e interdependente dos sistemas de dominação e
reconhecermos as formas específicas de manutenção de cada sistema,
continuaremos a agir de forma a minar nossa busca individual por liberdade e
nossa luta por libertação coletiva.

A capacidade de reconhecer pontos cegos só pode surgir à medida em que


expandimos nossa preocupação sobre a política de dominação e nossa
capacidade de nos preocuparmos com a opressão e exploração de outrem. Uma
ética de amor torna possível essa expansão. O movimento de direitos civis
transformaram a sociedade nos Estados Unidos porque era fundamentalmente
enraizada em uma ética do amor. Nenhum líder enfatizou mais essa ética que
Martin Luther King Jr. Ele tinha a percepção profética de reconhecer que uma
revolução construída sobre qualquer outra fundação falharia. Repetidas vezes,
Luther King afirmou que ele “havia decidido amar”, porque acreditava
profundamente que, se estamos “buscando o bem supremo”, nós “o encontramos
por meio do amor”, porque esta é “a chave que abre a porta para o significado da
realidade última”. E o ponto de estar em contato com uma realidade transcendente
é que lutamos por justiça, ao mesmo tempo percebendo que somos sempre mais
do que nossa raça, classe ou sexo. Quando olho para trás, para o movimento
pelos direitos civis que era, em muitos aspectos, limitado porque era um esforço
reformista, vejo que tinha o poder de movimentar coletivos de pessoas para
atuarem no interesse da justiça racial — e porque estava profundamente
enraizado em uma ética do amor.

O movimento Black Power dos anos sessenta se afastou dessa ética do amor. A
ênfase agora estava mais no poder. E não é de surpreender que o sexismo que
sempre intensificou a luta de libertação negra, que uma abordagem misógina em
relação às mulheres se tornassem centrais como a equação entre liberdade e a
masculinidade patriarcal entre dirigentes políticos negros/as, quase todos homens.
Na verdade, a nova militância do poder negro masculinista equiparou amor com
fraqueza, anunciando que a expressão essencial da liberdade seria a vontade de
coagir, fazer violência, aterrorizar; de fato utilizar as armas de dominação. Esta era
a mais crua encarnação do credo corajoso de Malcolm X “por qualquer meio
necessário”.

Como um lado positivo, o movimento Black Power deslocou o foco da luta pela
libertação negra da reforma para a revolução. Este foi um importante
desenvolvimento político, trazendo consigo uma perspectiva global anti-
imperialista mais forte. No entanto, viéses sexistas machistas na liderança levaram
à supressão da ética do amor. Assim, o progresso foi feito mesmo com algo
valioso sendo perdido. Enquanto Luther King tinha se concentrado em amar os
inimigos, Malcolm chamou-nos de volta a nós mesmos, reconhecendo que cuidar
da negritude era nossa responsabilidade central. Embora Luther King tenha
frisado a importância do amor próprio negro, ele falou mais sobre amar nossos
inimigos. Em última análise, nem ele nem Malcolm viveram o suficiente para
integrar plenamente a ética do amor numa visão de descolonização que
fornecesse um plano para a erradicação do auto-ódio negro.

Os povos negros que entraram no domínio racialmente integrado da vida


americana por causa do sucesso dos direitos civis e do movimento Black Power,
de repente descobrimos que lutávamos com uma intensificação do racismo
internalizado. As mortes desses importantes líderes (bem como as de líderes
brancos liberais que eram aliados importantes na luta pela igualdade racial)
trouxeram intensos sentimentos de desesperança, impotência e desespero.
Feridas/os naquele espaço onde conheceríamos o amor, as/os negras/os
coletivamente experimentaram uma dor viva e angústia sobre o nosso futuro. A
ausência de espaços públicos onde essa dor pudesse ser articulada, expressa,
compartilhada, significou que ela foi mantida infiltrada, suprimindo a possibilidade
de que esse sofrimento coletivo fosse reconciliado em comunidade, até mesmo
como maneira de ir além de tal sofrimento e continuar vislumbrando a luta de
resistência. Sentindo como se “o mundo tivesse realmente chegado ao fim”, no
sentido de que uma esperança de que a justiça racial se tornasse a norma, havia
morrido, um risco de morte desesperador se apoderou da vida negra. Nunca
saberemos até que ponto o foco do machismo negro sobre a dureza e a
tenacidade serviu como barreira, continuamente impedindo o reconhecimento
público do enorme sofrimento e dor na vida negra. Em World as Lover, World as
Self Joanna Macy, no capítulo “Despair Work”, enfatiza que
“a recusa em sentir tem um preço alto. Não só há um empobrecimento da nossa
vida emocional e sensorial… Mas esse entorpecimento psíquico também impede
nossa capacidade de processar e responder às informações. A energia gasta em
empurrar para baixo o desespero é desviada de usos mais criativos, esgotando a
resiliência e a imaginação necessárias para novas visões e estratégias”.

Se as pessoas negras têm avançado em nossa luta por libertação, temos de


confrontar o legado desse sofrimento irreconciliado, pois este tem sido um terreno
fértil para o desespero niilista. Devemos voltar coletivamente para uma visão
política radical da mudança, enraizada em uma ética do amor e buscar, mais uma
vez, transformar coletivos de pessoas, negras e não negras.

Uma cultura de dominação é anti-amor. Exige violência para se sustentar.


Escolher o amor é ir contra os valores predominantes dessa cultura. Muitas
pessoas sentem-se incapazes de amar a si mesmas ou a outras porque não
sabem o que é o amor. Músicas contemporâneas como “What’s Love Got To Do
With It” de Tina Turner defendem um sistema de trocas em torno do desejo,
refletindo a economia do capitalismo: a ideia de que o amor é importante é
zombada. Em seu ensaio “Love and Need: Is Love a Package or a Message?”
Thomas Merton argumenta que somos ensinadas/os, dentro da estrutura de
consumo capitalista competitivo, a ver o amor como um negócio: “Esse conceito
de amor assume que a maquinaria de compra e venda de necessidades é o que
faz tudo acontecer. Considera a vida como um mercado e o amor como uma
variação na livre iniciativa”. Embora muitas pessoas reconheçam e critiquem a
comercialização do amor, elas não veem alternativa. Não sabendo amar, ou
mesmo o que é o amor, muitas pessoas se sentem emocionalmente perdidas;
outras buscam definições, formas de sustentar uma ética do amor em uma cultura
que nega valores humanos e valorizam o material.

As vendas de livros que se concentram na recuperação, livros que procuram


maneiras de melhorar a autoestima, amor-próprio e nossa capacidade de ser
íntima/o nos relacionamentos, demonstram que há consciência pública de uma
falta na vida da maioria das pessoas. O livro de autoajuda de M. Scott Peck The
Road Less Traveled é enormemente popular porque aborda essa falta.

Peck oferece uma definição operacional para o amor que é útil para aquelas/es de
nós que gostariam de fazer de uma ética do amor o núcleo de toda interação
humana. Ele define o amor como “a vontade de estender-se para o propósito de
nutrir o crescimento espiritual de si mesmo ou de outrem”. Comentando sobre as
atitudes culturais predominantes sobre o amor, Peck escreve:

“Todo mundo na nossa cultura deseja, até certo ponto, ser amoroso, mas
muitas/os não são de fato amorosas/os. Concluo, portanto, que o desejo
de amar não é, em si mesmo, amor. O amor é o que o amor faz. O amor
é um ato de vontade — ou seja, uma intenção e uma ação. Também
implica uma escolha. Nós não temos que amar. Escolhemos amar”.
Suas palavras ecoam a declaração de Martin Luther King: “Eu decidi amar”, que
também enfatiza a escolha. Luther King acreditava que o amor é, “em última
análise, a única resposta” para os problemas enfrentados por esta nação e por
todo o planeta. Compartilho essa crença e a convicção de que é na escolha do
amor, e começando com o amor como fundamento ético para a política, que
estamos mais bem posicionadas/os para transformar a sociedade de forma a
melhorar o bem coletivo.
É realmente surpreendente que Luther King tivesse a coragem de falar, tanto
quanto ele fez, sobre o poder transformador do amor, em uma cultura na qual
esse discurso é muitas vezes visto como meramente sentimental. Nos círculos
políticos progressistas, falar de amor é garantir que alguém seja dispensado ou
considerado ingênuo. Mas, fora desses círculos, há muitas pessoas que
reconhecem abertamente que são consumidas por sentimentos de auto-ódio, que
se sentem sem valor, querendo uma saída. Muitas vezes, elas estão presas
demais por um desespero paralisante para serem capazes de se engajar
efetivamente em qualquer movimento de mudança social. No entanto, se líderes
de tais movimentos se recusam a enfrentar a angústia e a dor de suas vidas,
nunca estarão motivadas/os a considerar a recuperação pessoal e política.
Qualquer movimento político que possa atender eficazmente a estas
necessidades do espírito, no contexto da luta pela libertação, terá sucesso.

No passado, a maioria das pessoas aprendia e cuidava das necessidades do


espírito no contexto da experiência religiosa. A institucionalização e
comercialização da igreja têm minado o poder da comunidade religiosa em
transformar almas, intervir politicamente. Comentando o sentido coletivo da perda
espiritual na sociedade moderna, Cornel West afirma:

“Há um perverso empobrecimento do espírito na sociedade


estadunidense e, especialmente, entre negros. Historicamente, houve
forças e tradições culturais, como a igreja, que mantinha a frieza e a
mesquinharia à distância. No entanto, o empobrecimento do espírito
significa que esta frieza e mesquinhez se tornam cada vez mais e mais
infiltradas. A igreja manteve estas forças à distância promovendo um
sentido do respeito para com outrem, um sentimento de solidariedade,
um senso de propósito e valor que encaminharia a batalha contra o mal”.
As comunidades políticas que sustentam a vida podem proporcionar um espaço
semelhante para a renovação do espírito. Isso só pode acontecer se abordarmos
as necessidades do espírito na teoria e na prática política progressistas.
Muitas vezes, quando Cornel West e eu falamos com grandes grupos de pessoas
negras sobre o empobrecimento do espírito na vida negra, a falta de amor, a
partilha de que podemos coletivamente recuperar-nos no amor, a resposta é
esmagadora. As pessoas querem saber como começar a prática de amar. Para
mim, é onde a educação para a consciência crítica deve entrar. Quando eu olho
para a minha vida, procurando por um plano que me ajudou no processo de
descolonização, de auto recuperação pessoal e política, sei que foi aprendendo a
verdade sobre como os sistemas de dominação operam que ajudou, aprendendo
a olhar para dentro e para fora, com um olhar crítico. A consciência é central para
o processo de amor como a prática da liberdade. Sempre que aquelas/es de nós
que são membros de grupos oprimidos se atrevem a interrogar criticamente
nossas posições, as identidades e lealdades que informam como vivemos nossas
vidas, iniciamos o processo de descolonização. Se descobrimos em nós
mesmas/os auto-ódio, baixa autoestima ou um pensamento branco supremacista
interiorizado e os enfrentamos, podemos começar a curar. Reconhecer a verdade
de nossa realidade, tanto individual como coletiva, é uma etapa necessária para o
crescimento pessoal e político. Este é geralmente o estágio mais doloroso no
processo de aprender a amar — o que muitas/os de nós procuram evitar.
Novamente, uma vez que escolhemos o amor, instintivamente possuímos os
recursos interiores para enfrentar essa dor. Movendo inteiramente a dor para o
outro lado, encontramos a alegria, a liberdade de espírito trazidas por uma ética
do amor.

Escolhendo o amor, também escolhemos viver em comunidade, e isso significa


que não temos que mudar apenas por nós mesmas/os. Podemos contar com a
afirmação crítica e diálogo com companheiras/os andando por um caminho
semelhante. O teólogo afro-americano Howard Thurman acreditava que
aprendemos melhor o amor como a prática da liberdade no contexto da
comunidade. Comentando este aspecto de seu trabalho no ensaio “Spirituality out
on The Deep”, Luther Smith nos lembra que Thurman sentiu que os Estados
Unidos foram dados a diversos grupos de pessoas pela força da vida universal,
como um local para a construção da comunidade. Parafraseando Thurman, ele
escreve: “A verdade se torna verdadeira na comunidade. A ordem social anseia
por um centro (isto é, espírito, alma) que lhe conferira identidade, poder e
propósito. Os Estados Unidos, e todas as entidades culturais, estão em busca de
uma alma”. Trabalhando dentro da comunidade, seja compartilhando um projeto
com outra pessoa, ou com um grupo maior, somos capazes experimentar alegria
na luta. Essa alegria precisa ser documentada. Porque se nos concentrarmos
apenas na dor, as dificuldades, que certamente são reais em qualquer processo
de transformação, somente mostraremos uma imagem parcial.

A ética do amor enfatiza a importância do serviço para outrem. Dentro do sistema


de valores dos Estados Unidos, qualquer tarefa ou trabalho relacionado com o
“serviço” é desvalorizada. O serviço fortalece nossa capacidade de conhecer a
compaixão e aprofunda nossa percepção. Ao servir a outrem, não posso vê-las/os
como um objeto: devo ver sua subjetividade. Compartilhando o ensino dos
guerreiros Shambala, a budista Joanna Macy escreve que precisamos de armas
de compaixão e discernimento.

“Você precisa ter compaixão porque ela lhe dá o combustível, o poder, a paixão
para mover. Quando você se abre para a dor do mundo, você se move, você age.
Mas essa arma não é suficiente. Ela pode te queimar; então você precisa de
outrem — você precisa entender a radical interdependência de todos os
fenômenos. Com essa sabedoria, você percebe que não é uma batalha entre os
bons e maus, mas que a linha entre o bem e o mal passa pela paisagem de cada
coração humano. Com a percepção de nossa profunda inter-relação, você sabe
que as ações empreendidas com intenção pura têm repercussões em toda a rede
da vida, além do que você pode mensurar ou discernir”.

Macy ensina que a compaixão e a percepção podem “sustentar-nos como agentes


de mudança saudável”, pois eles são “dons que nós requeremos agora na cura de
nosso mundo”. Em parte, aprendemos a amar doando serviço. Esta é, novamente,
uma dimensão do que Peck significa quando fala de estender-se para outrem.
O movimento dos direitos civis tinha o poder de transformar a sociedade porque
indivíduos que lutavam sozinhos e em comunidade por liberdade e justiça
procuravam essas dádivas para todos, não apenas para as/os que sofrem e
oprimidas/os. Líderes negras/os visionárias/os, como Septima Clark, Fannie Lou
Hamer, Martin Luther King Jr. e Howard Thurman advertiram contra o
isolacionismo. Incentivaram as pessoas negras a olharem para além de nossas
próprias circunstâncias e assumirmos responsabilidade pelo planeta. Este apelo à
comunhão com o mundo além do eu, da tribo, da raça, da nação, era um
constante convite para expansão pessoal e crescimento.

Quando massas de pessoas negras começam a pensar apenas em termos de


“nós e eles”, internalizando o sistema de valores do patriarcado capitalista da
supremacia branca, pontos cegos são desenvolvidos, a capacidade de empatia
necessária para a construção da comunidade fora diminuída. Para curar nosso
corpo político ferido, devemos reafirmar nosso compromisso com uma visão do
que Luther King mencionou no ensaio “Facing the Challenge of a New Age” como
um genuíno compromisso com “liberdade e justiça para todas/os”. Meu coração se
eleva quando leio o ensaio de Luther King; lembro-me de onde nos leva a
verdadeira libertação. Isso leva além da resistência à transformação. Luther King
diz-nos que “o fim é a reconciliação, a fim é a redenção, o fim é a criação da
comunidade amada”. Ao escolher amar, começamos a nos mover contra a
dominação, contra a opressão. No momento em que escolhemos amar,
começamos a nos mover para a liberdade, a agir de maneiras que libertem a nós
mesmas/os e a outrem. Essa ação é o testemunho do amor como a prática da
liberdade.

Referência:
hooks, bell. Love as the practice of freedom. In: Outlaw Culture. Resisting
Representations. Nova Iorque: Routledge, 2006, p. 243–250. Tradução para uso
didático por wanderson flor do nascimento.


Texto de Uã Flor Do Nascimento, professor de Filosofia e Bioética da
Universidade de Brasília. Pesquisador de Filosofias Africanas. Publicado
originalmente aqui.

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