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Nesta sociedade, não há um discurso poderoso sobre o amor emergindo nem dos
radicais progressistas nem da esquerda. A ausência de um foco continuado sobre
o amor em círculos progressistas surge de uma falha coletiva em reconhecer as
necessidades do espírito e de uma ênfase sobredeterminada nas preocupações
materiais. Sem amor, nossos esforços para libertar a nós mesmas/os e nossa
comunidade mundial da opressão e exploração estão condenados. Enquanto nos
recusarmos a abordar plenamente o lugar do amor nas lutas por libertação, não
seremos capazes de criar uma cultura de conversão na qual haja um coletivo
afastando-se de uma ética de dominação.
Sem uma ética do amor moldando a direção de nossa visão política e nossas
aspirações radicais, muitas vezes somos seduzidas/os, de uma maneira ou de
outra, para dentro de sistemas de dominação — imperialismo, sexismo, racismo,
classismo. Sempre me intrigou que mulheres e homens que passam uma vida
trabalhando para resistir e se opor a uma forma de dominação possam apoiar
sistematicamente outras. Fiquei intrigada com poderosos líderes negros
visionários que podem falar e agir apaixonadamente em resistência à dominação
racial e aceitar e abraçar a dominação sexista das mulheres; com feministas
brancas que trabalham diariamente para erradicar o sexismo, mas que têm
grandes pontos cegos quando se trata de reconhecer e resistir ao racismo e à
dominação por parte da supremacia branca do planeta. Examinando criticamente
esses pontos cegos, concluo que muitas/os de nós estão motivadas/os a mover-se
contra a dominação unicamente quando sentimos nossos interesses próprios
diretamente ameaçados.
O movimento Black Power dos anos sessenta se afastou dessa ética do amor. A
ênfase agora estava mais no poder. E não é de surpreender que o sexismo que
sempre intensificou a luta de libertação negra, que uma abordagem misógina em
relação às mulheres se tornassem centrais como a equação entre liberdade e a
masculinidade patriarcal entre dirigentes políticos negros/as, quase todos homens.
Na verdade, a nova militância do poder negro masculinista equiparou amor com
fraqueza, anunciando que a expressão essencial da liberdade seria a vontade de
coagir, fazer violência, aterrorizar; de fato utilizar as armas de dominação. Esta era
a mais crua encarnação do credo corajoso de Malcolm X “por qualquer meio
necessário”.
Como um lado positivo, o movimento Black Power deslocou o foco da luta pela
libertação negra da reforma para a revolução. Este foi um importante
desenvolvimento político, trazendo consigo uma perspectiva global anti-
imperialista mais forte. No entanto, viéses sexistas machistas na liderança levaram
à supressão da ética do amor. Assim, o progresso foi feito mesmo com algo
valioso sendo perdido. Enquanto Luther King tinha se concentrado em amar os
inimigos, Malcolm chamou-nos de volta a nós mesmos, reconhecendo que cuidar
da negritude era nossa responsabilidade central. Embora Luther King tenha
frisado a importância do amor próprio negro, ele falou mais sobre amar nossos
inimigos. Em última análise, nem ele nem Malcolm viveram o suficiente para
integrar plenamente a ética do amor numa visão de descolonização que
fornecesse um plano para a erradicação do auto-ódio negro.
Peck oferece uma definição operacional para o amor que é útil para aquelas/es de
nós que gostariam de fazer de uma ética do amor o núcleo de toda interação
humana. Ele define o amor como “a vontade de estender-se para o propósito de
nutrir o crescimento espiritual de si mesmo ou de outrem”. Comentando sobre as
atitudes culturais predominantes sobre o amor, Peck escreve:
“Todo mundo na nossa cultura deseja, até certo ponto, ser amoroso, mas
muitas/os não são de fato amorosas/os. Concluo, portanto, que o desejo
de amar não é, em si mesmo, amor. O amor é o que o amor faz. O amor
é um ato de vontade — ou seja, uma intenção e uma ação. Também
implica uma escolha. Nós não temos que amar. Escolhemos amar”.
Suas palavras ecoam a declaração de Martin Luther King: “Eu decidi amar”, que
também enfatiza a escolha. Luther King acreditava que o amor é, “em última
análise, a única resposta” para os problemas enfrentados por esta nação e por
todo o planeta. Compartilho essa crença e a convicção de que é na escolha do
amor, e começando com o amor como fundamento ético para a política, que
estamos mais bem posicionadas/os para transformar a sociedade de forma a
melhorar o bem coletivo.
É realmente surpreendente que Luther King tivesse a coragem de falar, tanto
quanto ele fez, sobre o poder transformador do amor, em uma cultura na qual
esse discurso é muitas vezes visto como meramente sentimental. Nos círculos
políticos progressistas, falar de amor é garantir que alguém seja dispensado ou
considerado ingênuo. Mas, fora desses círculos, há muitas pessoas que
reconhecem abertamente que são consumidas por sentimentos de auto-ódio, que
se sentem sem valor, querendo uma saída. Muitas vezes, elas estão presas
demais por um desespero paralisante para serem capazes de se engajar
efetivamente em qualquer movimento de mudança social. No entanto, se líderes
de tais movimentos se recusam a enfrentar a angústia e a dor de suas vidas,
nunca estarão motivadas/os a considerar a recuperação pessoal e política.
Qualquer movimento político que possa atender eficazmente a estas
necessidades do espírito, no contexto da luta pela libertação, terá sucesso.
“Você precisa ter compaixão porque ela lhe dá o combustível, o poder, a paixão
para mover. Quando você se abre para a dor do mundo, você se move, você age.
Mas essa arma não é suficiente. Ela pode te queimar; então você precisa de
outrem — você precisa entender a radical interdependência de todos os
fenômenos. Com essa sabedoria, você percebe que não é uma batalha entre os
bons e maus, mas que a linha entre o bem e o mal passa pela paisagem de cada
coração humano. Com a percepção de nossa profunda inter-relação, você sabe
que as ações empreendidas com intenção pura têm repercussões em toda a rede
da vida, além do que você pode mensurar ou discernir”.
Referência:
hooks, bell. Love as the practice of freedom. In: Outlaw Culture. Resisting
Representations. Nova Iorque: Routledge, 2006, p. 243–250. Tradução para uso
didático por wanderson flor do nascimento.
–
Texto de Uã Flor Do Nascimento, professor de Filosofia e Bioética da
Universidade de Brasília. Pesquisador de Filosofias Africanas. Publicado
originalmente aqui.