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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA

NATHÁLIA ANTONUCCI FONSECA

ENTRECRUZAMENTOS ENTRE MIGRAÇÃO, GÊNERO E SEXUALIDADE:


experiências de vida de mulheres não-cisheterossexuais venezuelanas e solicitantes de
refúgio

Niterói
2020
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA

Nathália Antonucci Fonseca

ENTRECRUZAMENTOS ENTRE MIGRAÇÃO, GÊNERO E SEXUALIDADE:


experiências de vida de mulheres não-cisheterossexuais venezuelanas e solicitantes de
refúgio

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Antropologia da Universidade
Federal Fluminense como requesito parcial
para obtenção do grau de Mestre.

Linha de Pesquisa do orientador: Trocas, Fluxos e Transnacionalismo

Projeto do orientador: Transmissão de Patrimônios Culturais

NITERÓI
2020
Banca Examinadora

__________________________________

Prof. Orientador – Dr. Delma Pessanha Neves


Universidade Federal Fluminense

_________________________________

Prof. Dr. Gisele Fonseca Chagas


Universidade Federal Fluminense

__________________________________

Prof. Dr. Laura Lowenkron


Universidade Estadual do Rio de Janeiro

__________________________________

Prof. Dr. Luiz Fernando Rojo Mattos


Universidade Federal Fluminense

__________________________________

Prof. Dr. Sergio Portella


Fundação Oswaldo Cruz
Existir é diferir.

Gabriel Tarde

Me encontro no amor que não encontra fronteira.

Trecho do samba-enredo da Mangueira 2020 - A verdade Vós Fará


Livre
AGRADECIMENTOS

Essa dissertação é a expressão de um trabalho em rede, assim agradeço aparentemente a


poucos, porque poucos são muitos.

A SP por me ensinar a beleza oculta de poder ver potência naquilo que ningém vê e por
estar comigo sempre.

A Marina, por dividir a parceria nesse filhe que é a LGBT+Movimento e por sempre
partilhar comigo um coração desassossegado.

A Eliane, pelo amor e vida.

A Bola, o não-humano com quem aprendo há 10 anos.

A Delma, pela paciência e ensinamentos nesse campo da Antropologia, novo para mim.

As amigas que foram porto dos momentos de descompressão, essenciais para a


manutenção do movimento de tudo.

A Mariel, Danny, Alejandra e a todes es venezuelanos migrantes que partilharam


momentos, risadas, histórias, cervejas e muito amor. Obrigada por tanto e por tudo!

Agradeço também ao CNPq pela bolsa concedida pelos 24 meses de mestrado.

E por fim, a todas as pessoas que direta ou indiretamente participaram na construção deste
texto de dissertação e ajudaram na articulação incessante das redes de afeto para
migrantes, solicitantes e refugiades da LGBT+Movimento.
RESUMO

Em dezembro de 2019, o ACNUR e a OIM (Organização Internacional para Migrações)


assinalaram a expressividade numérica - 4,769,498 milhões - de venezuelanos migrantes
ou refugiados no mundo. Com previsões de que esse número aumente para 6,5 milhões
de venezuelanos em 2020, desse número, o Brasil abriga, atualmente, cerca de 224 mil.
A reflexão sobre o refúgio de pessoas não-cisheterossexuais encontra-se na fronteira de
dois campos de direito: o da migração e refúgio, responsável pela constituição da noção
de “refugiados”, "solicitantes de refúgio" e "migrantes"; e o de gênero e sexualidade, que,
entre outros, abriga os estudos sobre pessoas não-cisheterossexuais. Essa intersecção
temática pautada pelo refúgio de pessoas não-cisheterossexuais parece, por vezes,
subestimada em ambos espaços de construção de temáticas e questões acadêmicas e
políticas. Essa dissertação é resultado de uma pesquisa sobre experiências de vida de três
mulheres não-cisheterossexuais venezuelanas, solicitantes de refúgio que migraram para
o Estado de Roraima no ano de 2018, e foram, posteriormente, interiorizadas para a
cidade do Rio de Janeiro, por programa do governo federal. Neste texto de dissertação,
após refletir sobre a problematização de temáticas e objetos de estudos formulados em
intersecção de campos analíticos elaborados em defesa de própria especificidade e até
mesmo para me constituir como pesquisadora, necessariamente investindo em distintivas
formulações de objeto de estudo, privilegio então as narrativas das interlocutoras sobre
seus processos migratórios enquanto pessoas não-cisheterossexuais, buscando refletir
sobre o impacto que suas identidades e performatividades de gênero e orientação sexual,
não cisheteronormativas, têm sobre esses processos.

Palavras-chave: Gênero; Sexualidade; Migração; Refúgio; LGBTI


ABSTRACT

In December 2019, UNHCR and IOM (International Organization for Migration) pointed
out the numerical expressiveness - 4,769,498 million - of Venezuelan migrants or
refugees in the world. With forecasts that this number will increase to 6.5 million
Venezuelans in 2020, of that number, Brazil currently houses around 224 thousand. The
reflection on the refuge of non-cisheterosexual people is found at the border of two fields
of law: that of migration and refuge, responsible for the constitution of the notion of
"refugees", "asylum seekers" and "migrants"; and that of gender and sexuality, which,
among others, houses studies on non-cisheterosexual people. This thematic intersection
guided by the refuge of non-cisheterosexual people seems, at times, underestimated in
both spaces for the construction of themes, academic and political issues. This dissertation
is the result of a research on the life experiences of three venezuelan non-cisheterosexual
women, asylum seekers who migrated to the State of Roraima in 2018, and later moved
to the city of Rio de Janeiro, by a program of the federal government. In this dissertation
text, after reflecting on the problematization of themes and objects of studies formulated
at the intersection of analytical fields elaborated in defense of its own specificity and even
to constitute me as a researcher, necessarily investing in distinctive formulations of object
of study, I then privilege the interlocutors narratives about their migratory processes as
non-cisheterosexual people, seeking to reflect on the impact that their gender identities
and performativities and non-cisheteronormative sexual orientation have on these
processes.

Keywords: Gender; Sexuality; Migration; Refuge; LGBTI


LISTA DE TABELAS

Tabela 1. Relação de Abrigos e número de abrigados em Roraima, Brasil..................... 12


LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

ACNUR Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados

AIDS Síndrome de Imunodeficiência Adquirida

BBC British Broadcasting Corporation

BOPE Batalhão de Operações Policiais Especiais

CBI Cash Based Interventions

CEPRI Centro de Proteção a Refugiados e Imigrantes

CNM Confederação Nacional por Municípios

CONARE Comitê Nacional para os Refugiados

CPF Cadastro de Pessoa Física

CRAS Centro de Referência de Assistência Social

DELEMIG Delegacia de Imigração

HIV Vírus da Imunodeficiência Humana

ILGA Internacional Lesbian, Gay, Bisexual, Trans and Intersex Association

LGBT Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais

LGBTI Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Intersexos

MDB Movimento Democrático Brasileiro

MDS Ministério do Desenvolvimento Social

MP Medida Provisória

OIM Organização Internacional Mundial

OIT Organização Internacional do Trabalho

OMS Organização Mundial da Saúde

ONG Organização Não-governamental

ONU Organização das Nações Unidas

OPAS Organização Internacional para Migração


PARES Programa de Atendimento a Refugiados e Solicitantes de Refúgio

PNUD Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento

PP Partido Progressista

R4V Response for Venezuelans

RMRP Regional Refugee and Migrant Response Plan

SETRABIS Secretaria de Estado do Trabalho e Bem Estar Social

SJMR Serviço Jesuíta a Migrantes e Refugiados

SUS Sistema Único de Saúde

UERJ Universidade do Estado do Rio de Janeiro

UNAIDS Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids

UNEFA Universidade Experimental Nacional das Forças Armadas

UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura

UNFPA Fundo das Populações das Nações Unidas

UNICEF Fundo das Nações Unidas para a Infância


Sumário

1. Introdução .................................................................................................................10

1.1 - Contextualizações sobre a "Crise Venezuelana" ..................................................15


1.2 - Apontamentos Metodológicos ............................................................................ 22
1.3 - Organização dos Capítulos ................................................................................. 25

2. Capítulo 1 - A Experiência de Formulação de um Campo Temático

2.1 - O caminho percorrido .........................................................................................27


2.2 - Algo que se vê/ Algo que é visto - a construção da relação com as interlocutoras
.......................................................................................................................................38
2.3 - Reflexões sobre as fronteiras entre Eu/Outro .....................................................54

3. Capítulo 2 - Experiências Teóricas

3.1 - A Fissura .............................................................................................................62


3.2 - Estudos de Migração Queer .................................................................................71
3.3 - Deslocamentos teóricos para o Sul ......................................................................82

4. Capítulo 3 - Experiências de Vida

4.1 - Mariel ...................................................................................................................86


4.2 - Danny .................................................................................................................110
4.3 - Alejandra ...........................................................................................................120

5. Considerações Finais ...............................................................................................135

6. Referências ...............................................................................................................138
1. Introdução

Por muito tempo, no campo dos estudos migratórios, os migrantes e refugiados


foram admitidos como uma massa de sujeitos heterossexuais, cisgêneros 1, em sua maioria
do gênero masculino (TEIXEIRA, 2015). Enquanto em outro oposto, há produções no
campo de gênero sexualidade e mobilidades, mas dentro desse campo são ainda poucos
os trabalhos ainda abordam a temática do refúgio de pessoas não-cisheterossexuais 2,
mesmo apesar de, desde 2002, agências internacionais ressaltarem a importância do
reconhecimento da condição de refugiados e solicitantes3 com base na orientação sexual
e identidade de gênero4. O refúgio de pessoas não-cisheterossexuais encontra-se então na
fronteira de dois campos de direito: o da migração e refúgio, responsável pela constante
constituição da noção de “refugiados”, "solicitantes de refúgio" e "migrantes" e outras; e
o de gênero e sexualidade, que, entre outros, abriga os estudos sobre pessoas não-
cisheterossexuais (FRANÇA, 2017). O conhecimento produzido nesses campos de direito
foram, por muito tempo, analisados em separado (ANDRADE, 2017). Dessa maneira, a
intersecção provocada pelo refúgio de pessoas não-cisheterossexuais parece, por vezes,
subestimada em ambos espaços de construção de temáticas e questões acadêmicas e
políticas.
Os estudos migratórios foram edificados sob a base de uma sociedade
supostamente homogeneizada nos termos de gênero e sexualidade, isto é, que ignora

1
Cisgênero é pessoa cuja identidade de gênero não difere do sexo designado no nascimento.
2
Por escolhas semelhantes as de Vitor Andrade (2017, p.29/30), optei pelo uso do termo não-
cisheterossexuais em detrimento do acrônimo LGBTI+ (lésbica, gay, bissexual, transexual, intersexual e
"+" representando outras identidades de gênero e orientações sexuais que não estão incluídas nas letras da
sigla) pois o termo não-cisheterossexuais engloba formas alternativas de referenciamento a identidades de
gênero, orientações sexuais e práticas sexuais que possam existir em outros países e culturas, como por
exemplo, "mulheres que amam mulheres". O acrônimo LGBTI+ foi produzido a partir de experiências de
pessoas do Norte Global e muitas vezes sua hegemônica visibilidade acaba por apagar a grande variedade
de categorias nativas utilizadas por outras culturas para se referir a sujeitos e práticas não-cisheterossexuais.
Alguns autores como Luibheid, Malanasan e Cantú discutem essa problemática. Minha única diferença em
relação ao uso do termo em relação a pesquisa de Andrade (2017), é que ele faz o uso do termo reduzido,
isto é, "não-heterossexuais", justificando sua escolha pelo não conhecimento de nenhuma solicitação de
refúgio feita por pessoas transgênero. Como trabalho nessa pesquisa, majoritariamente, com interlocutoras
que se entendem como mulheres transexuais/travestis, optei por incluir no termo utilizado por Andrade, a
referência ao termo cisgênero, formando, portanto, o termo não-cisheterossexuais.
3
Solicitante de refúgio é aquele que já realizou a solicitação de refúgio porém aguarda as autoridades
compotentes o reconhecimento do seu status de refugiado. No Brasil as pessoas solicitantes de refúgio
podem retirar carteira de trabalho e possuem número de CPF, bem como um documento de identificação
(Protocolo de Refúgio Provisório).
4
Orientação sexual refere-se à capacidade de cada pessoa de ter uma profunda atração emocional, afetiva
ou sexual por indivíduos de gênero diferente, do mesmo gênero ou de mais de um gênero, assim como ter
relações íntimas e sexuais com essas pessoas

10
diferentes formas de orientação sexual e identidade de gênero que fogem da normativa
cisgênero e heterossexual, desconsiderando-as como possível motivação dos
deslocamentos. Ao longo do tempo, nesses estudos, foi produzido um “sujeito migrante”
homem cisgênero e heterossexual, que migra, predominantemente, por motivação
econômica, em busca de melhores condições de trabalho, ou, no caso do refúgio, por
motivos ligados a guerras e conflitos. Portanto, a partir dessa perspectiva, gênero e
sexualidade não só foram excluídos das motivações de pesquisa, como também não foram
levados em conta quanto aos efeitos sobre a migração (TEIXEIRA, 2015; LUIBHÉID,
2004). Segundo Pierrete Sotelo (2000), os estudos migratórios, por muito tempo, não
levaram a sério a questão de gênero e sexualidade, pois, desconsiderando-as, terminam
por tomar essas questões como “naturais” ou “particulares”. Em consequência, ignorando
seu papel nas relações sociais, e mesmo subestimando-o.
A partir dos anos 2000, surgem alguns estudos críticos com enfoque em
migrações transnacionais realizadas por pessoas não-cisheterossexuais, que ressaltam a
construção de um pensamento migratório que excluiu as questões ligadas a gênero e
sexualidade (MANALANSAN, 2006). Essas críticas também incluem a abordagem de
diversos aspectos do deslocamento físico e social, forçado ou não, realizado
historicamente, por pessoas não-cisheterossexuais em contextos intra e internacionais.
Um desses aspectos, que ainda é muito pouco abordado, sobretudo no Brasil, é o refúgio
de pessoas não-cisheterossexuais.
O termo “refugiado” é basicamente constituído no contexto do pós segunda
guerra mundial, enquanto categoria social que, por significações incorporadas, inclui a
dimensão legal de um problema global (FRANÇA, 2017). Dois marcos legais assinalam
os meios através dos quais qualquer pessoa, em caso de necessidade, pode exercer o
direito de procurar e receber refúgio em outro país. São eles: a Convenção de 1951 e o
Protocolo de 1967. A primeira, que se dá com a assinatura da Convenção de Genebra,
dispõe sobre a qualidade do ser “refugiado” e esclarece os direitos e deveres entre os
refugiados e os países acolhedores. Segundo a Convenção de 1951, a condição de
refugiado pode ser reconhecida à pessoa:

“Que, em consequência dos acontecimentos ocorridos antes de 1o de janeiro de 1951


e temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social
ou opiniões políticas, encontra-se fora do país de sua nacionalidade e que não pode
ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse país, ou que, se não
tem nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha sua residência habitual em
consequência de tais acontecimentos, não pode ou, devido ao referido temor, não quer
voltar a ele” (ONU, Convenção de 1951)

11
No segundo, constrói-se ou promulga-se o Estatuto dos Refugiados, reformando
a Convenção de 1951 e expandindo o mandato do Alto Comissariado das Nações Unidas
para Refugiados (ACNUR) para além das fronteiras européias e das pessoas afetadas pela
Segunda Guerra Mundial. Em 1981, no México, realizou-se o Colóquio sobre "Asilo y la
Protección Internacional de Refugiados en América Latina", onde foram propostas
adaptações nas leis internacionais ligadas ao refúgio, para que as necessidades das
Américas fossem incluídas, referindo-se principalmente ao contexto pós Guerra Fria,
quando mais de dois milhões de pessoas foram deslocadas na América Central. Em 1984,
a Declaração de Cartagena estende a categoria de refugiados a todos aqueles que tiveram
seus direitos humanos inflingidos ou que tiveram que fugir em situação caótica de ordem
pública. Em 1994, a Declaração de São José reafirma a de Cartagena e aumenta a
abragência para deslocados internamente às fronteiras dos países latino-americanos.
No que concerne ao gênero e à sexualidade, o capítulo sobre “pertencimento a
grupo social específico” justifica a solicitação de refúgio a pessoas não-cisheterossexuais
que sofreram violação dos seus direitos e também àquelas que se qualificam como vítimas
potenciais para tal. Desde 2002, o refúgio de pessoas não-cisheterossexuais têm sido
afirmado e assinalado oficial e publicamente em sua pertinência, pelas agências
internacionais responsáveis pela "ajuda humanitária"5 a refugiados. Em cerca de 20 anos,
o Brasil passou de país predominantemente de origem das solicitações de refúgio com
base em questões expressas diante de concepções de gênero e sexualidade, para país
acolhedor de solicitações de refugiados LGBTI+ (FRANÇA, 2017). Isto se deve, em
parte, ao fato de o Brasil ser um, entre os reduzidos cinco - Colômbia, Uruguai, Argentina
e México - países da América Latina que reconhecem o casamento entre pessoas do
mesmo sexo6.
Em dezembro de 2019, o ACNUR e a OIM (Organização Internacional para
Migrações) assinalaram a expressividade numérica - 4,769,498 milhões - de

5
Ao longo do texto utilizo a expressão "ajuda humanitária" entre aspas pois me alinho as reflexões de Eric
Fassin (2012) sobre a ambiguidade do humanitarismo como um modo de governo das vidas de pessoas em
situação de precariedade, ao mesmo tempo que agente assistencial e protetor. A expressão comumente
utilizada, ajuda humanitária, encobre a dimensão produtora e controladora que está incluída nessas
atividades, desse modo, utilizo-a entre aspas.

6 É importante ressaltar que o casamento entre pessoas do mesmo sexo, até maio de 2017, era reconhecido
por apenas 24 países no mundo. Enquanto a criminalização de relações entre pessoas do mesmo sexo, até
a mesma data, era realizada por 72 países no mundo. Os dados são da ILGA (Organização internacional de
lésbicas, gays, bissexuais, transsexuais e interessexuais), e estão disponíveis em:
https://ilga.org/downloads/2017/ILGA_WorldMap_ENGLISH_Overview_2017.pdf

12
venezuelanos migrantes ou refugiados no mundo 7. Com previsões de que esse número
aumente para 6,5 milhões de venezuelanos em 20208. Desse número, o Brasil abriga,
atualmente, cerca de 224 mil 9. O estado que mais recebe venezuelanos no Brasil é
Roraima, por conta da fronteira localizada no município de Pacaraima. Estima-se que
cerca de 60 mil venezuelanos morem no estado10, que conta com treze abrigos 11, com
mais de 6,5 mil abrigados 12. Esse número se modifica rapidamente, uma vez que a entrada
de venezuelanos pela fronteira é intensa. Desde abril de 2018, o governo federal realiza
junto às forças armadas e ONGs parceiras, um programa de interiorização dos refugiados
venezuelanos para diversas cidades do Brasil. Até janeiro de 2020, mais de 27 mil
venezuelanos foram interiorizados, para mais de 24 estados brasileiros 13.
Até dezembro de 2019, a cidade do Rio de Janeiro era a sétima que mais havia
recebido migrantes até agora. Cerca de 669 interiorizados, ficando atrás das cidades de:
Manaus (4139); São Paulo (2055); Dourados (1636); Curitiba (1210); Porto Alegre (949)
e Brasília (749)14.
Como destacado anteriormente, o conjunto de migrantes venezuelanos no Brasil
deve se integrar a diversas interseções, cuja compreensão não pode ser desprezada para
entendimento das especificidades de fenômeno social. Dentre elas, ressalto que a
orientação sexual e a identidade de gênero devem ser consideradas categorias analíticas
fundamentais para os estudos migratórios internacionais e de refúgio, sobretudo, no que
tange à questão venezuelana.

7 Dados estão disponíveis na Plataforma R4V: https://r4v.info/es/situations/platform

8
Como consta na matéria do ACNUR: https://www.acnur.org/portugues/2019/11/28/4-dados-para-
entender-a-situacao-da-venezuela/
9
Dados estão disponíveis na Plataforma R4V: https://r4v.info/es/situations/platform
10
Conforme na matéria do portal de notícias da Globo:
https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2019/06/28/ocupacoes-crescem-e-mais-de-13-mil-venezuelanos-
vivem-em-predios-abandonados-em-roraima.ghtml
11
O décimo terceiro abrigo foi aberto no dia 22 de fevereiro, e possui capacidade para mil pessoas, como
comenta a reportagem: http://www.casacivil.gov.br/central-de-conteudos/noticias/2018/outubro/novo-
abrigo-expande-acolhimento-de-venezuelanos-em-boa-vista/view
12
Conforme na matéria do portal de notícias da Globo:
https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2019/06/28/ocupacoes-crescem-e-mais-de-13-mil-venezuelanos-
vivem-em-predios-abandonados-em-roraima.ghtml
13
Conforme na matéria do portal do Governo do Brasil: https://www.gov.br/pt-br/noticias/justica-e-
seguranca/2020/01/operacao-acolhida-integracao-e-recomeco-para-milhares-de-venezuelanos
14
Dados estão disponíveis na Plataforma R4V: https://r4v.info/es/documents/download/72086

13
São muitas as vulnerabilidades a que estão expostos os sujeitos não-
cisheterossexuais nesse contexto, principalmente as mulheres lésbicas e pessoas
transgênero. Situações de exploração e abuso sexual, tráfico humano, falta de proteção
policial e militar, não acolhimento nos serviços básicos de saúde, insensibilidade dos
agentes de migração e refúgio com a causa, ou melhor, com as pessoas em causa, a
frequente exclusão social e familiar, o medo comum de falar sobre a orientação sexual e
a identidade de gênero, a violência e o preconceito sofridos no local de origem e de
destino, ameaças e perseguições ligadas à orientação sexual e identidade de gênero. A
barreira linguística, o desconhecimento das leis brasileiras e dos seus direitos enquanto
refugiado, também dificultam o acesso a serviços de proteção inerentes a pessoas não-
cisheterossexuais. Para além disso, o deslocamento forçado tem como consequência a
perda das redes de afeto, que, no caso de pessoas não-cisheterossexuais, é especialmente
grave, pois a presença e o relacionamento com outras pessoas não-cisheterossexuais
afetam diretamente as subjetividades e expressões sociais e pessoais. Tal como enfatiza
Judith Butler (2016): o gênero e a sexualidade são fazeres, que se dão em aliança, isto é,
são fazeres em relação.
Essa dissertação é resultado de uma pesquisa sobre experiências de vida de três
mulheres não-cisheterossexuais venezuelanas, solicitantes de refúgio que migraram para
o Estado de Roraima no ano de 2018, e foram, posteriormente, interiorizadas para a
cidade do Rio de Janeiro, por programa do governo federal. Na dissertação privilegio as
narrativas das interlocutoras sobre seus processos migratórios enquanto pessoas não-
cisheterossexuais, buscando refletir sobre o impacto que suas identidades e
performatividades de gênero e orientação sexual, não cisheteronormativas, têm sobre
esses processos. Por esse movimento, entendo que compreender as experiências de vida
dessas mulheres requer a análise dos percursos físicos e simbólicos inscritos em seus
cotidianos, a fim de colaborar para um maior entendimento sobre os agenciamentos e
estratégias e também por elas praticadas no âmbito da migração venezuelana para o
Brasil, e suas práticas cotidianas como mulheres não-cisheterossexuais migrantes.

14
1.1 - Contextualizações sobre a "Crise Venezuelana"

Para que o contexto da chamada atual “crise venezuelana” possa ser


compreendido, é preciso levar em conta, como todas as interpretações,
independentemente do ponto de vista político valorado, convergem: o fato de a Venezuela
possuir a maior reserva de petróleo do mundo. Diferente dos países do Oriente Médio, o
petróleo venezuelano está muito próximo do maior consumidor do mundo, Estados
Unidos, o que torna seu transporte mais rápido, fácil e barato. Além disso, a estrutura
produtiva e econômica venezuelana edifica-se, principalmente, sobre a exploração do
petróleo, sendo, em contraste, um país dependente da importação de muitos produtos.
As interpretações hegemônicas também destacam o fato de o país, por quinze
anos, ter sido comandado por Hugo Chávez, falecido em 2013, no início de um novo
mandato, novas eleições sendo então convocadas. O chavista Nicolas Maduro foi, então,
eleito presidente da Venezuela com mandato de 2013 a 2019. Inicia-se assim uma etapa
de instabilidade política interna e externa, que culmina em profunda crise econômica,
política e social, marcada por instabilidades políticas, alto desemprego e inflação,
autoritarimos, escassez de recursos básicos e violência (CAMARGO e HERMANY,
2018).
Desde 2014, os Estados Unidos, ainda sob o comando de Barack Obama,
impõem sanções e embargos econômicos a Venezuela, sob a justificativa de que o país
seria uma ameaça “não usual e extraordinária à segurança nacional e à política exterior”
estaduniense15. Em 2016, com a posse de Donald Trump, a situação se agrava
imensamente. Trump, como noticia a imprensa escrita e televisiva, nunca omitiu seu
interesse econômico pela Venezuela, bem como seu ímpeto em realizar uma intervenção
militar em território venezuelano. Porém, justifica tais ações como importantes para a
restauração da democracia venezuelana, fazendo críticas ao governo de Maduro como
ditador e deturpador dos direitos humanos no país. Não somente os Estados Unidos fazem
embargos a Venezuela. Diversos países da Europa também o fazem, como também o
Canadá. Frente a esse movimento, dirigentes da Venezuela estreitaram relações
econômicas com Rússia e China, o que agravou as relações com os Estados Unidos.
Em 2016, a Venezuela sofre também uma primeira suspensão do Mercosul, que
volta a ser reforçada após o Presidente Maduro convocar a Assembléia Nacional

15
Como disponível: https://brasil.elpais.com/brasil/2015/03/09/internacional/1425919831_255459.html

15
Constituinte, em maio de 2017. Maduro foi extensivamente acusado de golpe ao estado
democrático venezuelano, culminando na criação do Grupo de Lima, composto por doze
países americanos (Argentina, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Guatemala,
Honduras, México, Panamá, Paraguai e Peru), que se comprometeram com a Declaração
de Lima, definindo a situação venezuelana como crítica, e condenando a existência de
presos políticos, extinção das oposições políticas, ruptura da ordem democrática e
manipulação das eleições. Além disso, o grupo manifesta preocupação com a crise
humanitária venezuelana e se compromete a abordar temas centrais como procedimentos
para restauração democrática do país. Na ocasião, as ruas e praças da capital de Roraima,
Boa Vista, já estavam tomadas por migrantes e refugiados venezuelanos sem
abrigamento.
Com a intensificação do fluxo de imigrantes ao final de 2017, o Governo Federal
brasileiro publica o Decreto n° 9.286, de 15 de fevereiro de 2018, estabelecendo um
Comitê Federal de Assistência Emergencial responsável pelas ações de assistência e
acolhimento dos imigrantes em situação de vulnerabilidade. Outros dois normativos
também foram importantes: a Medida Provisória n° 820, de 15 de fevereiro de 2018, que
estabeleceu medidas de assistência para acolhimento das pessoas em situação de
vulnerabilidade decorrente do fluxo migratório, reconhecendo tal situação como uma
crise humanitária de caráter emergencial, e o Decreto nº 9.285, de 15 de fevereiro de
2018, que reconheceu a situação de vulnerabilidade decorrente de fluxo migratório para
o estado de Roraima. Em 12 de março de 2018, a Medida Provisória nº 823 abriu crédito
no valor de R$ 190 milhões em favor do Ministério da Defesa, para financiamento do
plano operacional e outras ações de assistência emergencial aos imigrantes. Com a gestão
do crédito repassado ao Ministério da Defesa, é instituída a Operação Acolhida, força
tarefa-logística humanitária realizada pelo Exército, em Roraima.16
A partir de então, foram oficializados abrigos já existentes e foram formados
outros, para que a demanda de abrigamento fosse diminuída. A maioria das praças e
espaços públicos em Roraima foi cercada com grades ou tapumes, impedindo os
migrantes e refugiados de ficarem nesses locais. A situação da política local de Roraima,
em 2018, também era conturbada por contraposição de forças sociais. A prefeitura é ainda
comandada por Teresa Surita, ex-mulher de Romero Jucá (MDB), e o governo de Estado,

16
Em entrevista, em junho de 2018, com o coordenador do Serviço Jesuíta a Migrantes e Refugiados
(SJMR) em Boa Vista foi ressaltada por ele a ambiguidade da gestão de créditoser repassada ao Ministério
da Defesa, contradizendo a nova lei da migração, que ao contrário da anterior, não considera os refugiados
como uma ameaça a segurança nacional.

16
ainda estava nas mãos de Suely Campos (PP). As ações da prefeitura são, muitas vezes,
antagônicas às do governo do Estado, e vice-versa, reafirmando desavenças cultivadas há
anos pela prefeita e pela governadora e seus grupos políticos 17. Havia, portanto, uma
grande pressão popular para que a questão migratória fosse sanada; e uma crescente
xenofobia aos venezuelanos por parte da população de Roraima, principalmente de
Pacaraima.
Um episódio, que acabou viralizando nas redes sociais, marcou a xenofobia
crescente. Em setembro de 2018, um homem venezuelano tentou furtar um mercado no
bairro Jardim Floresta, em Boa Vista, e foi perseguido por um homem brasileiro. O
brasileiro conseguiu alcançar o venezuelano, que o golpeou com uma faca no pescoço,
causando um ferimento fatal. Em seguida o venezuelano foi capturado por um grupo de
brasileiros e foi linchado até a morte, e teve seu corpo arrastado até a entrada no abrigo
que vivia, no mesmo bairro. Esse episódio de grande brutalidade, teve grandes
repercussões de ambos os lados, mas foi marcado, principalmente, por atos xenofóbicos
por parte dos brasileiros, que chegaram a atear fogo em abrigos improvisados de
venezuelanos em Pacaraima. Nessa ocasião diversos vídeos foram gravados e ganharam
grande circulação na internet. A fronteira entre Brasil e Venezuela foi fechada durante
alguns dias do mês de setembro por conta dos protestos. Nessa ocasião, muito próxima
das eleições presidenciais de outubro de 2018, o então candidato Jair Bolsonaro, fez sua
campanha eleitoral sobre a premissa: “não deixarei o Brasil se tornar uma Venezuela” 18,
após já ter comentado que considerava os migrantes e refugiados como a escória do
mundo19 e que as Nações Unidas deveriam criar “campos de concentração” (ao invés de
"campos de refugiados") para refugiados no Brasil20. A partir de uma campanha política
que associava intenções supostamente assumidas por dirigentes do Partido dos
Trabalhadores ao regime de Maduro, e de forma indireta, aos venezuelanos em si, a

17
Na mesma entrevista, o então coordenador do SJMR de Boa Vista, comenta que o discurso xenofóbico
da população local de marioria conservadora é aproveitado pelos políticos para conseguirem popularidade
com os eleitores.
18
Conforme na matéria da Revista Carta Capital: https://www.cartacapital.com.br/politica/debate-
brasileiro-ignora-a-verdadeira-venezuela/
19
Conforme a matéria do portal de notícias da Globo:
https://gq.globo.com/Prazeres/Poder/noticia/2018/01/antes-de-trump-bolsonaro-ja-se-referiu-imigrantes-
como-escoria-do-mundo.html
20
Como referido na matéria: https://oglobo.globo.com/brasil/bolsonaro-quer-criar-campos-de-
refugiados-para-venezuelanos-23009362

17
xenofobia aumentou não só em território roraimense, mas em solo nacional. Foi então
uma das peças-chave para a vitória de Jair Bolsonaro.
Em 2019, ao assumir o cargo de presidente, Jair Bolsonaro anuncia a
prorrogação da Operação Acolhida até 2020 e estreita as relações com Donald Trump, no
combate ao governo de Maduro. Em 23 de janeiro de 2019, o presidente da assembleéa
nacional venezuelana, líder da oposição, Juan Guaidó, se autodeclara presidente interino
do país, com reconhecimento de países como o Brasil, Estados Unidos e algumas outras
nações. Nessa ocasião, as tensões aumentam acenando com a possibilidade de
intervenção militar na Venezuela, alinhando forças opostas em torno do Brasil e Estados
Unidos, de um lado, e China e Rússia, do outro. Em 23 de fevereiro de 2019, outro
episódio chama a atenção, dois caminhões de tentam atravessar a fronteira entre
Colômbia e Venezuela e são primeiramente impedidos, e depois são parcialmente
incendiados pelos militares venezuelanos da fronteira. Maduro alega que o conteúdo dos
caminhões não se restringia a alimentos e medicamentos, mas que armamentos estavam
ocultados. A partir de então, Maduro decide fechar todas as fronteiras, inclusive a que dá
acesso ao Brasil.
Quanto à vigente participação do Brasil, em Roraima existem, atualmente, treze
abrigos para acolhimento de venezuelanos em situação de vulnerabilidade:

Tabela 1: Relação de Abrigos e número de abrigados em Roraima, Brasil.


Abrigos Número de Abrigados Localização
Tancredo Neves 284 Boa Vista
Hélio Campos 253 Boa Vista
Jardim Floresta 568 Boa Vista
São Vicente 367 Boa Vista
Nova Canaã 387 Boa Vista
Latife Salomão 431 Boa Vista
Santa Teresa 511 Boa Vista
Pintolândia 690 Boa Vista
Janokoida 408 Pacaraima
Rondon 1 801 Boa Vista
Rondon 2 415 Boa Vista
Rondon 3 370 Boa Vista
BV 8 238 Pacaraima

18
Fonte: Casa Civil 21

Após a medida provisória nº 823, o ACNUR passou a gerenciar quase todos os


abrigos em Roraima, com exceção dos abrigos destinados, exclusivamente, à população
indígena. Nesses abrigos, Pintolâdia e Janokoida, existem ao menos três etnias distintas,
sendo a maioria dos indígenas referente à etnia Warao. O Pintolândia é único abrigo
gerenciado pela SETRABIS (Secretaria de Estado do Trabalho e Bem Estar Social) em
parceria com a Fraternidade – Federação Humanitária Internacional; enquanto o
Janokoida é gerenciado somente pela última. Os abrigos são organizados de forma a
conter perfis populacionais semelhantes, como, por exemplo, o abrigo Santa Teresa,
somente destinado a homens solteiros, enquanto o Latif Salomão abriga apenas mulheres
solteiras, casais sem filhos e pessoas declaradamente não-cisheterossexuais. O abrigo
Rondon 2 é usado para transição, com venezuelanos prontos para interiorização e o BV
8 para regularização migratória. Todos os abrigos possuem gestão, segurança e
alimentação assistida por parte do Exército Brasileiro. Porém ainda existe um abrigo, que
não consta na listagem oficial fornecida pela Operação Acolhida, que foi criado pela
Fraternidade Sem Fronteiras, e possui autogestão dos próprios venezuelanos abrigados 22.
O papel do Exército nesse abrigo é restrito ao apoio em situações emergenciais.
A interiorização é feita pela parceria entre o Exército Brasileiro e diversas
agências da ONU, sobretudo o ACNUR. A identificação de pessoas não-
cisheterossexuais solicitantes de refugio é feita mediante a autodeclaração enquanto tal.
Na grande maioria dos casos, as pessoas omitem sua orientação sexual e identidade de
gênero, por medo de perseguição ou ameaça e por desconhecerem o fato de que existe a
possibilidade de solicitação de refúgio por pertencimento a “grupo social específico”.
Sendo assim, em grande parte dos casos, os solicitantes de refúgio e agentes de proteção
só abordam esse assunto durante os acompanhamentos feitos por instituições da
sociedade civil que lidem com migração e refúgio, principalmente as pessoas que estão
em situação de abrigamento, como Andrade (2017) também relata.
Em novembro de 2018, o ACNUR divulgou o Perfil de Solicitações de Refúgio
relacionadas à Orientação Sexual e Identidade de Gênero inédito sobre refúgio de

21
Disponíveis em: http://www.casacivil.gov.br/operacao-acolhida/historico21
22
Visitei esse abrigo em junho de 2018.

19
pessoas não-cisheterossexuais no Brasil. No Perfil 23 consta que entre os anos de 2010 a
2016, pelo menos 369 solicitações de reconhecimento da condição de refugiado, com
base em orientação sexual e identidade de gênero, foram feitas ao Comitê Nacional para
Refugiados (CONARE). Os dados revelam que a maioria das solicitações (77,5%) foi
apresentada em São Paulo, e que 65% dos pedidos por orientação sexual foram feitos por
homens gays. Em relação aos países de origem, a maior parte das solicitações veio do
continente africano, sobretudo da Nigéria (32,7%). É importante ressaltar que o número
de solicitações de refúgio aumentou muito a partir de 2016, por conta do fluxo de
Venezuelanos, por isso a equipe de pesquisa do ACNUR decidiu restringir os dados até
2016.
Dessa forma, esse número de 369 solicitações não representa o caso da migração
venezuelana. Para esse número, não há, ainda, quantificações disponíveis. Nos dados da
Casa Civil sobre os programas de interiorização, há algumas informações disponíveis: o
número das etapas de interiozação; a data em que cada uma ocorreu; a cidade de destino;
o abrigo de destino e o “perfil” dos interiorizados. Os perfis disponíveis na página são:
famílias; famílias com crianças; homens sozinhos; mulheres sozinhas; mulheres com
crianças; homens e mulheres de 18 a 30 anos; homens e mulheres chefes de família;
reunião familiar; homens adultos; casais sem filhos 24. Não há perfis relacionados à
orientação sexual e identidade de gênero, ao menos nesses dados públicos. Nas avaliações
do ACNUR, é possivel identificar a orientação sexual e identidade de gênero dos
solicitantes, quando há autodeclaração, porém essas informações permanecem em sigilo.
Em dezembro de 2018, foi lançado em Genebra o Plano Regional de Resposta
Humanitária para Refugiados e Migrantes da Venezuela (RMRP). O RMRP é definido
por: "um plano operacional, modelo de coordenação e estratégia para responder às
necessidades dos venezuelanos em deslocamento e garantir sua inclusão social e
econômica nas comunidades que os recebem."25 Concentra-se portanto, em quatro áreas:
assistência emergencial direta, proteção, integração socioeconômica e fortalecimento das

23
O Perfil de Solicitações de Refúgio relacionadas à Orientação Sexual e Identidade de Gênero pode ser
acessado através do link: https://datastudio.google.com/u/0/reporting/11eabzin2AXUDzK6_BMRmo-
bAIL8rrYcY/page/1KIU

24
Esses dados ficaram disponíveis até novembro de 2019 no site da casa civil, no tópico inscrito como
"histórico". A partir de 2020, o site da casa civil foi reformatado e essas informações não estão mais
disponíveis no site.
25
Conforme a matéria do portal do ACNUR: https://www.acnur.org/portugues/2018/12/14/plano-de-
emergencia-para-refugiados-e-migrantes-da-venezuela-e-lancado/

20
capacidades dos países de acolhida. O plano também tem apelo financeiro, e convoca as
comunidades doadoras a aumentarem seu apoio à causa. Fazem parte do RMRP 17 países:
Argentina, Aruba, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Curaçao, Equador,
República Dominicana, Guiana Francesa, México, Pánama, Paraguai, Peru, Trinidade e
Tobago e Uruguai. As projeções do RMRP demonstram que, em 2020, a "ajuda
humanitária" a migrantes e refugiados venezuelanos necessitará de um investimento de
cerca de 1,35 bilhões de dólares. Concomitante ao lançamento do RMRP, foi lançada a
Plataforma R4V26, que congrega dados sobre o fluxo de venezuelanos que são
constantemente atualizados. Também é possível acessar relatórios de monitoramento e
outros documentos na página.
Desde 2017, venho implementando, conjuntamente a outras mulheres não-
cisheterossexuais, a iniciativa LGBT+Movimento, voltada para a articulação de redes de
afeto e proteção para migrantes e refugiados na cidade do Rio de Janeiro. A
LGBT+Movimento trabalha na interseção do mundo não-cisheterossexual com o da
migração e refúgio, de modo a articular o objetivo às práticas nas situações desenhadas.
Com a parceiria do ACNUR, a iniciativa chega até refugiados que se autodeclararam
enquanto não-cisheterossexuais. E desde junho de 2018, faço o acompanhamento de duas
mulheres transsexuais/travestis e uma mulher cisgênero lésbica venezuelanas que foram
interiorizadas, a partir de Roraima, para a cidade do Rio de Janeiro. Realizei o
acompanhamento de seus percursos de migrantes, articulados ao conjunto das
experiências constituídas anteriormente à saída da Venezuela, mas enfatizando o período
de inserção em Roraima, com posterior desdobramento pela interiorização para o Rio de
Janeiro. Procurei, diante das narrativas das interlocutoras sobre suas experiências de vida,
elaborar questões que ajudassem a compreender de que maneira gênero e sexualidade
determinam as experiências migratórias e são, ao mesmo tempo, por elas determinados.

26
Link da Plataforma R4V: https://r4v.info/es/situations/platform

21
1.2 - Apontamentos Metodológicos

Minha intenção ao escolher trabalhar com experiências de vida de migrantes,


solicitantes e refugiadas venezuelanas,27 é decorrente do fato que meu objetivo inicial não
foi me debruçar sobre a análise das políticas migratórias voltadas a esses sujeitos no
Brasil, nem analisar as tensões do reconhecimento jurídico de refugiados não-
cisheterossexuais, como fizeram alguns outros autores 28. Inicialmente, interessava-me
sobretudo, o contato mais próximo com as migrantes, solicitantes e refugiadas não-
cisheterossexuais, nos seus próprios contextos de vida cotidianos. Do ponto de vista
metodológico, a experiência dessa pesquisa também pode ser pensada, em parte, como
uma experiência de deslocamento, pois o conhecimento antropológico nela elaborado
pauta-se no acompanhamento de parte das experiências de vida dessas migrantes,
solicitantes e refugiadas, sobretudo após a sua chegada ao Rio de Janeiro entre as datas
de julho e dezembro de 2018. Para mim, a possibilidade de acompanhar as vidas dessas
mulheres significa uma situação bastante privilegiada de pesquisa, que, de alguma
maneira, pode contribuir para o que percebi ser uma descontinuidade na literatura
nacional e internacional ligada às ciências sociais dedicadas ao tema: o estudo da

27
Ao longo da dissertação usarei essas três categorias: migrantes, solicitantes e refugiados. Porém, gostaria
de fazer alguns apontamentos sobre esta escolha. É problemática a utilização da categoria "migrantes" em
contraposição a de "refugiados". Luibhéid (2019) discorre sobre essa problemática afirmando que essas
duas categorias dividem em dois pólos distintos a experiência migratória. A categoria "migrante"remete a
processos migratórios não-forçados, enquanto a categoria de "refugiado" é associada ao deslocamento
forçado. Essa distinção apaga o fato de que a maioria dos migrantes (exceto aqueles que migram por
motivações turísticas) experimentam tanto situações forçadas quanto situações que envolvem escolhas
pessoais e agência. A autora aponta que esse binário é utilizado pelo Estado como uma forma de
criminalização de determinados migrantes, seja pela lógica econômica, seja pela humanitária. Discussão
semelhante a que Neves (2011) apresenta sobre a multiplicação de categorias que se referem a pessoas em
situação de rua, "categorizações deformantes", que moldam as razões das existências sociais, associando-
as a supostos perfis de vida. Facundo (2014) também faz importante discussão sobre o tema. Citando
Tambiah (1985), ela afirma que as classificações produzem, inevitavelmente, "a dupla potencialidade de
serem vistas como anomalias que requerem correção ou como formas capazes de produzir transformações
criativas" (p.25). São produzidas, portanto, muitas categorias difusas associadas as categorias de
"refugiado" ou "migrante", como é o caso da categoria de "solicitante" ou de outras como, "em situação de
refúgio", "deslocados" e etc. Facundo também cita Letícia Ferreira (2011), para discutir que a multiplicação
dessas categorias prevê a produção de "inclassificáveis", como que "resíduos" dos processos de
categorização. E que no caso do refúgio, esses "que sobram", tornam-se "outros" justamente pela forma
que suas histórias são "comunicadas, arquivadas e registradas" (p.25). Nas páginas que seguem, volto a
essa questão ao discutir sobre a complicada categorização dos migrantes, solicitantes e refugiados
venezuelanos não-cisheterossexuais, em relação a categoria jurídica e burocrática de refúgio, que ao
produzi-los como "outros" ou "resíduos", como Ferreira nomeia, há também o esforço de excluí-los, de tal
forma que o "refugiado puro"apareça (FACUNDO, p.26). Essa situação é refletida na pouca visibilidade
e produções que enfoquem nas narrativas e trajetórias de migrantes, solicitantes e refugiados não-
cisheterossexuais.
28
Ver Andrade (2016, 2017) e França (2017)

22
intersecção entre migração e refúgio e gênero e sexualidade, analisado a partir das
narrativas dessas próprias mulheres.
O trabalho na LGBT+Movimento me ajudou a consolidar o desejo de poder dar
enfoque à forma como essas migrantes, solicitantes e refugiadas fazem sentido das suas
próprias vidas através de intensas negociações, práticas de resistência e autoprodução que
muitas vezes, são compreendidas por uma única faceta, a do sofrimento. A outra faceta,
ligada a potencialidade inerente aos corpos, performatividades e desejos de migrantes e
refugiadas não-cisheterossexuais, frente às dificuldades e experiências diárias, são
frequentemente ignoradas (MANALANSAN, 2005). Embora muitos acadêmicos tenham
compreendido que o estudo das migrações não pode ser realizado em separado das
estruturas globais implicadas historicamente pelo poder colonial e capitalista, ainda assim
há uma tendência da reprodução de uma imagem vitimizada de migrantes e refugiados,
como que a mercê de forças globais, ou como Facundo (2014) chama, utilizando a
referência de Butler e Spivak (2018), há a tendência de pensarmos migrantes, solicitante
e refugiados como sujeitos à deriva.
Entretanto, pretendo demonstrar o contrário, que essas mulheres são repletas de
ação e de fazeres que modificam seu cotidiano, ao mesmo passo que são modificadas por
ele. É fato que episódios de violência e sofrimento demarcam as experiências das
interlocutoras dessa pesquisa, e serão nas próximas páginas muito citados por elas em
suas reflexões, mas o poder de ação das interlocutoras não se esvai diante dessas
situações. Por esse motivo, deve haver "esforço de se conseguir examinar como a agência
e a subjetividade dos migrantes interagem com restrições e possibilidades
diversas"(LUIBHÉID, 2008, p.186), para criação e rearticulação das suas vidas em
situação de diáspora.
Do período de julho de 2018 a dezembro de 2019 acompanhei os desdobramentos
sociais de três mulheres venezuelanas. Duas delas se identificam como mulheres
transsexuais/travestis heterossexuais e uma delas como uma mulher cisgênero lésbica.
Durante esse período mantivemos contato remoto via conversas de Whatsapp e redes
sociais diversas, e nos encontrávamos ao menos uma vez ao mês em encontros informais,
que por vezes tinham objetivos demarcados por alguma demanda trazida por elas, e em
outras vezes não haviam objetivos ou demandas específicas, mas nos encontrávamos da
mesma forma. Os locais de encontro sempre foram os mais informais possíveis, na casa
das interlocutoras, em bares, estações de metro, praças públicas, festas e outros.
Inicialmente havia pensado em gravar as conversas que aconteciam durante os
encontros, mas pelo fato de sempre acontecerem em locais públicos ou locais com

23
músicas altas, as gravações nunca atingiram a qualidade que eu esperei. Após algumas
tentativas e insucessos, abandonei a ideia. Também era desconfortável para elas e para
mim, que nossas conversas acontecessem enquanto eu fazia anotações em um caderno.
Logo também resolvi abandonar esse método. A forma que melhor se adequou a pesquisa
foi o registro posterior das conversas, em cadernos ou notas no celular ou mesmo áudios
que eu gravava para mim mesma, sobre as conversas e acontecimentos. Para além disso,
consegui, com cada uma delas, realizar algumas entrevistas em profundidade, essas sim
gravadas em áudio, grande parte das narrativas das interlocutoras, a seguir, provém dessas
gravações.
Durante esse período, procurei semiestruturar a coleta de dados para análise das
experiências de vida das interlocutoras durante nossos encontros a despeito de uma linha
temporal que segue a ordem da infância, adolescência e vida adulta na Venezuela.
Procurei ainda explorar o processo de constituição e relação com as primeiras
experiências ligadas à performatividade de gênero e sexualidade, bem como a relação das
interlocutoras com a família e como se estruturava a rede pessoal de afetos de cada uma
delas. Em seguida busquei abordar junto as interlocutoras os momentos relacionados ao
início e decorrer da crise venezuelana e os caminhos que as levaram a ação de deixar o
país. Posteriormente, abordamos a migração e permanência em Roraima e, por fim, a
interiorização para o Rio de Janeiro com as experiências que marcam esse período de
julho de 2018 a dezembro de 2019, quando estive próxima a elas.

24
1.3 - Organização dos Capítulos

No que diz respeito à organização, este texto de dissertação está dividido em três
capítulos. Os dois primeiros capítulos são dedicados tanto a construção da pesquisadora
quanto a construção de condições de leitura da pesquisa. Na intenção de trabalhar com a
análise de experiências de vida de mulheres não-cisheterossexuais, solicitantes de refúgio
e venezuelanas, se fez necessário o investimento, nestes capítulos, de uma reflexão sobre
a descontinuidade, ou o que me refiro metaforicamente como a "fissura", presente nas
produções teóricas dos campos de gênero e sexualidade e de migração e refúgio. De modo
que fosse construído um campo de conhecimento que fizesse dialogar com as múltiplas
produções autónomas dos dois campos, e ao mesmo tempo, demonstrasse o esforço de
alguns autores na produção de uma outra temática que aparece diante de conjunturas
econômicas, políticas e etc, que lidem com os entrecruzamentos dos dois campos,
analisados, anteriormente, em separado. Portanto, os dois primeiros capítulos posicionam
a pesquisadora e os leitores diante do campo teórico em que se entrecruzam as questões
de gênero e sexualidade e de migração e refúgio, e são fundamentais para a reflexão sobre
outros conceitos e perspectivas que permitam a análise de experiências de vida nesses
entrecruzamentos.
No primeiro capítulo são expostas as condições de pesquisa, contextualizo o
trabalho de campo através da criação e coordenação da iniciativa LGBT+Movimento e a
relação com as interlocutoras que fazem parte da pesquisa; reflito sobre o que chamei de
" A Experiência de Formulação de um Campo Temático", isto é, como o trabalho de
campo marcou tanto a experiência da minha relação com as interlocutoras quanto também
uma parte das experiências de suas vidas; faço também algumas considerações sobre
meus papéis no trabalho de campo, muitos vezes conflituosos, ora como "pesquisadora"
ora como "ativista e parte da iniciativa LGBT+Movimento.
No segundo capítulo, abordo a descontinuidade recorrente que marca a não-
intersecção, nas formulações teóricas, dos campos de estudo de gênero e sexualidade e
de migração e refúgio. Apresento o campo de Estudos de Migração Queer (Queer
Migration Studies) que tem se consolidado, recentemente, como um espaço comum das
análises que envolvem o entrecruzamento entre esses dois campos. Problematizo o
trânsito dessa teoria formulada em países do Norte Global para os contextos presentes em
países do Sul Global, e as implicações desse trânsito. Também incluo neste capítulo uma
reflexão, a partir das elaborações de Fassin (2012), sobre as implicações do

25
humanitarismo como poder de governo, diante de situações como a crise venezuelana.
Por fim, no terceiro capítulo apresento as experiências de vida das interlocutoras
Mariel, Danny e Alejandra. Analiso as experiências por elas interpretadas em narrativas
sobre suas vidas no período que antecede à saída da Venezuela, nelas enfatizo o período
de inserção em Roraima, com posterior desdobramento pela interiorização para o Rio de
Janeiro e descrevo acontecimentos, atores, contextos e resistências que marcam as suas
experiências de vida.

26
Capítulo 1 - A Experiência de Formulação de um Campo Temático
2.1 - O caminho percorrido

Meus primeiros contatos com refúgio de pessoas não-cisheterossexuais se deram


durante a realização de um trabalho voluntário junto a uma ONG (Organização Não-
Governamental) de migração e refúgio no Rio de Janeiro, no ínicio de 2017. Logo na
primeira semana de trabalho, percebi a dificuldade da equipe de tal organização em lidar
com o fato de que eu era lésbica, e que tinha uma namorada, que também realizava o
mesmo voluntariado. Havia uma relutância no referenciamento a nossa relação enquanto
“namoradas”, sendo frequente a utilização do termo “amigas”. Essa dificuldade foi
reafirmada quando uma mulher transsexual caribenha contactou a ONG para obter auxílio
no preenchimento da sua solicitação de refúgio. Grande foi a dificuldade de entendimento
de sua identidade de gênero por parte da equipe da ONG. Um dos membros da
organização, ao tentar narrar esse caso para mim, alternava entre a referência masculina
e feminina, e se referia à mulher como "gay".
Esse desconforto sobre a forma como lidar com essa mulher transsexual
solicitante de refúgio, demonstrava, pela prática de acolhimento, o quanto as intersecções
entre migração e refúgio e gênero e sexualidade são, recorremente espaços inabitáveis.
"Uma pessoa assim poderia pedir refúgio?", era uma pergunta frequente no espaço social
da ONG. Se ela não vem de um país que sofre com uma guerra, ou crises socio-políticas
desestabilizantes, ou mesmo, se ela não tinha a ver com perseguições políticas e nem
tinha sobrevivido a um desastre socioambiental de grandes proporções, por que ela estaria
ali, tentando realizar o preenchimento da sua solicitação de refúgio?
No ano de 2019, ainda 68 países no mundo criminalizam a relação (consensual)
entre duas pessoas do mesmo sexo, com penalizações que vão desde à reclusão à pena de
morte29.
Participando de relações com pessoas associadas a esse quadro institucional,
decidi investigar junto a minha rede pessoal, formada majoritariamente por pessoas não-
cisheterossexuais, se havia algum conhecimento dessas pessoas sobre a migração
internacional e refúgio de pessoas não-cisheterossexuais. Pouco se sabia, alguns
menciovam países Árabes ou a Rússia, pelo histórico repressor, outros falavam que ser
parte dessa "população" é difícil em todos os lugares, outros mencionavam que tínhamos

29 Como disponível no Sexual Orientation Laws Map (2019) da ONG ILGA (Internacional Lesbian, Gay,
Bissexual, Trans and Intersex Association): https://ilga.org/maps-sexual-orientation-laws

27
que ser discretas sempre, pois é uma questão muito particular e que sempre vão existir
"aqueles que não nos aceitam". Mais uma vez, a intersecção entre migração e refúgio e
pessoas não-cisheterossexuais se encontrava inabitada. Mais uma vez tive essa sensação,
de que para as pessoas, não haviam ali corpos – ou pessoas - que vivênciam existências,
como outra qualquer. Como Butler (2018) sugere, em seu livro Bodies That Matter,
alguns corpos são considerados legítimos e esses são capazes de se materializar. Há
porém ‘corpos quase impossíveis’, que são relegados, pelo poder, à imaterialidade, isto
é, a existências desimportantes, ou invivíveis.
O abjeto designa aqui precisamente as zonas “invivíveis", "inabitáveis "da vida social
que, no entanto, são densamente povoadas por aqueles que não gozam da hierarquia
dos sujeitos, mas cuja condição de viver sob o signo do “invivível” é necessária para
circunscrever a esfera dos sujeitos. Esta zona de inabitabilidade constituirá o limite
que define o terreno do sujeito; constituirá aquele local de identificações temidas
contra as quais, e em virtude das quais o terreno do sujeito circunscreverá sua própria
reivindicação à autonomia e à vida. Nesse sentido, então, o sujeito é constituído pela
força de exclusão e abjeção, uma força que produz um constituinte externo do sujeito,
um exterior abjeto que, afinal, é "interior" ao sujeito como seu próprio repúdio
fundacional. (BUTLER, 2018, p.19/20)

Durante os seis meses de voluntariado, outros casos de pessoas não-


cisheterossexuais solicitantes de refúgio apareceram. Pela proximidade e interesse pelos
casos, passamos, eu e minha namorada na época, Marina, a realizarmos esses
atendimentos e acompanhamentos em específico. Mas pela complexidade da
invisibilidade, decidimos criar um projeto que fosse complementar ao trabalho, já
realizado, pelas principais ONGs que trabalhavam com migração e refúgio no Rio.
Inscrevemos o projeto no edital do programa de mentoria "Embaixadorxs".
Coordenado pela start up social TODXS, que busca conectar e capacitar jovens líderes
não-cisheterossexuais de todo o Brasil para que sejam agentes de transformação nas
comunidades locais. O programa acolheu 26 embaixadorxs com nove identidades de
gênero e seis orientações sexuais distintas, espalhadas pelo Brasil. A partir desse cenário,
absolutamente diverso, trocamos ideias, questionamentos e inquietações sobre as
políticas públicas voltadas para população LGBTI+ no Brasil, além de nos conectarmos
com pessoas não-cisheterossexuais espalhadas por quase todo território brasileiro, muitas
das quais migrantes.
Decidimos centrar o projeto na integração dos refugiados não-cisheterossexuais
na cidade do Rio de Janeiro, dialogando com o que Vitor Andrade (2016), recentemente,
havia apontado como problemática inerente à inserção desses migrantes em suas
comunidades de origem, acrescidos ao que corresponde ao desconhecimento das redes
locais de pessoas não-cisheterossexuais. Os migrantes, solicitantes e refugiados não-

28
cisheterossexuais eram, primeiramente, inseridos em redes da comunidade de origem,
procedimento, que, muitas vezes, configurava-se como uma re-exposição à perseguição
e ameaça que já viviam no território de seus países de origem, por conta da sua orientação
sexual ou identidade de gênero. Ao mesmo tempo, desconheciam a rede não-
cisheterossexual local, possivelmente acolhedora. As estratégias de integração situacional
aplicadas pelos dirigentes das ONGs que administram programas relacionados à
migração e ao refúgio, não consideravam gênero e sexualidade como parte fundamental
da experiência migratória. Não pressupunham que essas têm capacidade de moldar (e
serem moldadas) por e através dessas experiências.
Essas observações são reflexos de outra maior: a orientação sexual e a identidade
de gênero não vem sendo consideradas categorias analíticas relevantes para os estudos de
migração e refúgio (LUIBHÉID, 2005; MALANANSAN, 2006; ANDRADE, 2017;
LINS, 2017). E quando passaram a ser consideradas, assumiram um papel secundário,
como meras particularidades ou "necessidades específicas" 30 presentes nas experiências
migratórias ou de refúgio. Portanto, ainda prevalecem nesses estudos a
cisheteronormatividade31 e a compreensão de que o gênero ou a sexualidade podem ser
"destacados" dessas experiências. Um dos objetivos deste texto de dissertação é colocar
em destaque as experiências de vida de algumas das pessoas, nessa situação social, a fim
de demonstrar como as performatividades de gênero e orientações sexuais não-
cisheteronormativas são partes determinantes das experiências migratórias, e não podem,
em nenhum caso, ser analisadas ou compreendidas em separado. Afinal, exploram
regimes de poder e conhecimento que, na experiência migratória, se encontram
sobrepostos (LUIBHÉID, 2005; MALANANSAN, 2006).
O projeto, criado em 2017, ganhou o nome de LGBT+Movimento e passou a ser
a primeira organização de base comunitária para articulação de redes de afeto e proteção
para facilitar a integração, acolhimento e expressão da pessoa não-cisheterossexual
migrante, solicitante ou refugiada na cidade do Rio de Janeiro. Pelo projeto, ações são
implementadas para acompanhar as condições de integração com os mapas sociais, a
partir da vivência de pessoas que moram na cidade do Rio de Janeiro e fazem parte dessa
população. Inerentemente, procura-se recepcioná-las de maneira local, adaptadando as

30 Termo utilizado pelo ACNUR para se referir a grupos específicos como é o caso das pessoas LGBTI+
(para utilizar o termo utilizado no ACNUR) ou não-cisheterossexuais

31 Cisheteronormatividade: concepção de que a heterossexualidade e cisgeneridade são as únicas formas


normais e naturais de expressão da sexualidade e gênero.

29
formas de apoio às especificidades e urgências dos que a ele recorrem. Dessa maneira, a
LGBT+Movimento visa aproximar as fronteiras entre as áreas de migração e refúgio e
LGBTI+ ou de pessoas não-cisheterossexuais, na prática do acolhimento a migrantes,
solicitantes e refugiados.
Contudo, a elaboração do objeto deste texto de dissertação ocorreu durante um
trabalho de campo realizado em Roraima, entre os dias 7 a 17 de junho de 2018. Fui
selecionada por um grupo de pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz e da
Universidade do Sul de Santa Catarina, na área de Redução de Riscos e Desastres, para
atuar como assistente de pesquisa durante o trabalho de campo. Este visava avaliar a
situação migratória venezuelana em Roraima, dado que os deslocamentos humanos eram
apontados como a maior consequência dos desastres socioambientais na atualidade
(UNISDR, 2015). Fiquei responsável por organizar toda agenda de entrevistas e
visitações que iriam acontecer no decorrer da viagem. A equipe de pesquisa me deu
flexibilidade para organizar meus horários, de forma que eu também conseguisse explorar
as questões relativas à população não-cisheterossexual no contexto de acolhimento em
Roraima.
Logo às vésperas da viagem a Roraima, o ponto focal do ACNUR nas questões
de gênero e sexualidade na região Sudeste, procurou a LGBT+Movimento. Na prevista
conversa, contei-lhe sobre o trabalho de campo que iria realizar em Roraima e pedi-lhe
que me apontasse algumas referências de representantes do ACNUR sediados por lá. Ele
me colocou em contato com uma das assistentes de proteção da ACNUR em Roraima,
também ponto focal em questões relacionadas ao gênero e à sexualidade. Foi durante essa
conversa que tomei conhecimento que, no abrigo Latif Salomão, em Boa Vista, Roraima,
estava localizada a maioria dos venezuelanos, solicitantes de refúgio declaradamente não-
cisheterossexuais, ou seja, em situação de abrigamento.
Em Roraima, as visitas incluiram sete dos oito abrigos oficializados na época: o
abrigo Latif Salomão, o Centro de Referência ao Atendimento a Refugiados, localizado
no campus da Universidade Federal de Roraima, o Serviço Jesuíta a Migrantes e
Refugiados (SJMR), o Centro Pastoral do Imigrante, localizado em Pacaraima. Também
visitamos o Instituto Socio Ambiental, a Associação Indígena Hutukara, bem como o
Centro de Triagem das Forças Armadas brasileiras, recém-inaugurado durante a visita,
em Pacaraima, centro que conta com escritórios do ACNUR, UNFPA (Fundo de
Populações das Nações Unidas), OIM (Organização Internacional para as migrações),
OPAS (Organização Pam-Americana da Saúde) e Polícia Federal. Tem a finalidade de
centralizar o primeiro atendimento ao migrante ou solicitante de refúgio.

30
Um pouco antes, em 15 de fevereiro de 2018, foi publicada a Medida Provisória
(MP) nº 820, que dispõe sobre medidas de assistência emergencial para acolhimento a
pessoas em situação de vulnerabilidade, decorrente de fluxo migratório provocado por
crise humanitária. Oficializou-se a Operação Acolhida, do Exército brasileiro, que é
destinada a apoiar - com pessoal, material e instalações - a montagem de estruturas e a
organização das atividades necessárias ao acolhimento de pessoas em situação de
vulnerabilidade. No mesmo dia, foi publicado o Decreto nº 9.285, que reconheceu a
situação de vulnerabilidade decorrente de fluxo migratório para o estado de Roraima.
Logo em seguida, no dia 12 de março de 2018, foi publicada, no Diário Oficial da
União, MP que liberou recurso de 190 milhões para auxiliar ações humanitárias a
venezuelanos em Roraima (BRASIL, 2018). Dias após, ocorreu a visita do então
presidente Michel Temer a Boa Vista, no final de fevereiro de 2018, quando ele afirmou
que haveria projetos de interiorização e também a criação do gabinete do fluxo
migratório. O Coordenador do SJMR, durante entrevista, criticou a ambiguidade da
gestão do crédito a ser repassado ao Ministério da Defesa, contradizendo a nova
legislação de migração que, ao contrário da anterior, abrange maior perspectiva de
direitos humanos, proposição que para ele, o Exército não era capaz de preservar ou
implementar. Sobre essa questão ainda comentou: que essa condição existia pois Roraima
vivia em uma intervenção militar velada, ao contrário daquela do Rio de Janeiro, oficial.
A partir daí,os abrigos de Roraima passaram a ser geridos diretamente pelo Governo
Federal e pelo ACNUR. Foram abertos cinco novos abrigos em Boa Vista e o centro de
triagem no município de Pacaraima.
Durante as visitas aos abrigos, pude perceber que as estruturas que os instituiam
eram praticamente idênticas. As pessoas eram alocadas em barracas de um material
aparentemente plástico, fornecidas pelo ACNUR ou pela Defesa Civil, com espaço para
6 a 7 pessoas, sendo aproveitadas para uma família ou dividida ao meio para mais de uma.
As barracas possuiam pouca ventilação e, com o sol cidade de Boa Vista, tornavam-se
muito quentes. Por esse motivo, também pelas torrenciais chuvas no verão, o ACNUR
então instalou toldos por cima da estrutura das barracas. Os banheiros eram organizados
em estruturas de containers, e divididos em masculino e feminino, com uma pequena área
de tanques de água ao lado. Não existe um espaço destinado a cozinha, pelo risco de fogo
próximo ao material de construção das barracas. A alimentação é toda fornecida pelo
Exército, três vezes ao dia, na forma de “quentinhas”. Há sempre alguma área comum
que, por vezes, possui cadeiras e televisão, bem como tomadas elétricas diversas. A
ACNUR incentiva a organização política auto-gerida pelas pessoas que estão em situação

31
de abrigamento, na forma de representações delegadas, entre eles, e comitês organizados
entre os abrigados para discutir questões que surjam na convivência dos mesmos.
Uma imagem que chamou a minha atenção na visitação dos abrigos, foi a presença
de muitas pessoas ao redor destes, na área externa. Ou seja, a maioria espera, em local
descoberto, alguma vaga disponível entre os mesmos. Porém, todos os abrigos
encontravam-se com lotação máxima no período visitado. No terreno da Paróquia Nossa
Senhora da Consolata, vizinha ao abrigo São Vicente, existia um abrigo não-oficial
improvisado com população semelhante, se não maior que a do abrigo oficial, onde se
organizavam em barracas próprias e algumas doadas. Com o aumento do fluxo, mais
áreas ocupadas não oficialmente foram surgindo, bem como ocupações em muitas
instalações ociosas e casas não-habitadas.
Abordei a questão da nomeação de "abrigos", ao invés de "campo de refugiados",
com uma agente de proteção do ACNUR durante visita ao abrigo São Vicente. Reconstruo
sua fala, pois não obtive autorização para gravação da nossa conversa durante a visita.
Acredito que esta decisão foi, totalmente, de cunho político e aconteceu a pedido da
governadora em exercício, no intuito de ‘apaziguar’ os olhares sobre a causa e não
criar problemas diplomáticos com o governo venezuelano. Porém, todo
funcionamento dos abrigos se assemelha aos dos campos de refugiados geridos pela
ACNUR em outros países. As pessoas muitas vezes pensam que os abrigos ou campos
de refugiados são como prisões, mas não é assim, aqui as pessoas vivem suas vidas,
as reconstroem. A ideia é que os abrigos sejam temporários, mas que eles funcionem
também em integração com o local que estão inseridos, como uma extensão da rua,
bairro e etc.
(Em conversa com uma agente de proteção do ACNUR no abrigo São Vicente em
Boa Vista, Roraima, no dia 10 de junho de 2018)

As discussões apresentadas por Giorgio Agamben (2010) convergem com os


significados explicitados pela entrevistada. Para o filósofo, o campo de refugiado é
justamente a materialização do estado de exceção. Diferente do estado de exceção
"temporário", como defendido pela entrevistada, o campo configura, para o autor, o
estado de exceção "desejado", tornando a excepcionalidade, regra de um estado de
retirada de direitos. A produção de tal desejado estado de exceção, justificado pela agente
por um intuito de diplomacia entre governos, equivale aos questionamentos do autor
quanto ao estado de exceção permanente que, no contexto, estamos vivendo. Segundo o
autor, os refugiados são exemplos para pensarmos a separação entre o humano - isto é, a
vida nua, marcada pelo nascimento - e o político, referido ao cidadão pertencente a um
Estado-Nação. De acordo com Agamben, a categoria de refugiado (e a vida nua que essa
categoria dissimula) expõe a necessidade de repensar os sentidos e práticas atribuídos à
forma Estado-Nação.

32
É necessário desembaraçar resolutamente o conceito do refugiado (e a figura da vida
que ele representa) daquele dos direitos do homem, e levar a sério a tese de Arendt,
que ligava os destinos dos direitos àqueles do Estado-Nação moderno, de modo que
o declínio e a crise deste implicam necessariamente o tornar-se obsoletos daqueles. O
refugiado deve ser considerado por aquilo que é, ou seja, nada menos que um
conceito-limite que põe em crise radical as categorias fundamentais do Estado-Nação,
do nexo nascimento-nação àquele homem cidadão, e permite assim desobstruir o
campo para uma renovação categorial atualmente inadiável, em vista de uma política
em que a vida nua não seja mais separada e excepcionada no ordenamento estatal,
nem mesmo através da figura dos direitos humanos (AGAMBEN, 2010, p.140/141)

Outra pergunta que fiz para a assistente de proteção do ACNUR questionava as


razões de a maioria dos indivíduos, declaradamente não-cisheterossexuais, ser alocados
pelo ACNUR, no abrigo Latif Salomão. Questionei sobre a possibilidade de a
concentração dessas pessoas em um só abrigo ser - dado que ele é um dos únicos que não
possui crianças - uma forma estratégica de higienização seletiva. A assistente de proteção
discordou da minha hipótese, afirmando que havia pessoas não-cisheterossexuais em
todos os abrigos e que a concentração delas no Latif Salomão visava favorecer a
consolidação de redes de aliança. O abrigo Latif Salomão foi formado após o
ordenamento da Prefeitura de Boa Vista, que visava retirar os venezuelanos que
ocupavam a praça Simón Bolívar, próxima a rodoviária. A operação de retirada dos
venezuelanos, seguida do fechamento da praça com tapumes escritos "em manutenção",
se iniciou no dia 31 de março de 2018.
O abrigo Latif Salomão foi formado em um ginásio escolar que levava esse nome.
Logo próximo à entrada, fiscalizada por militares do Exército, havia um container para
atendimento médico. Em seguida, um grande ginásio poliesportivo, onde, em uma área
anterior, eram alocados os casais sem filhos, em barracas cedidas pelo Exército, que
comportavam de 1 a 2 pessoas. Numa área posterior, estavam localizados os dormitórios,
com beliches, separados em masculino e feminino. Ali ficavam as mulheres e homens
solteiros. A população não-cisheterossexuais ficava em uma área separada por
gradeamento, também em barracas cedidas pelo Exército. Cerca de 450 pessoas viviam
no abrigo Latif Salomão, no momento da minha visitação.
Um dos militares responsáveis pelo abrigo nos mostrou a área de banheiros, que
funcionava no mesmo formato dos abrigos, em containers, e me disse que foi acordado
com a população de mulheres transsexuais do abrigo, que elas teriam um banheiro
individual exclusivo para elas, no container do banheiro masculino. Poderiam trancá-lo
a chave, que permaneceria com elas. O militar se referia às mulheres transsexuais usando
sempre o pronome masculino (ele/eles) e dizia que elas não se importavam com isso.

33
Em seguida nos contou que a convivência com a população não-cisheterossexual
era muito tranquila. Duas mulheres transsexuais eram responsáveis pela coordenação
geral do abrigo, encarregadas da gestão, logística e resolução de conflitos. Disse que ao
início da constituição do centro, alguns problemas surgiram em relação ao horário de
entrada das pessoas à noite, em que algumas delas chegavam de madrugada (se referiu
em especial as mulheres transsexuais). Dessa forma, acabavam acordando outros
moradores do abrigo. Mencionou que a solução foi que o último horário de entrada à noite
fosse estipulado para 23h. A partir disso, a pessoa que deixa o abrigo só pode retornar às
6h da manhã do dia seguinte, exceto em casos de trabalho (entre os trabalhos, o de
profissional do sexo não é considerado).
Após a apresentação do abrigo pelo militar, propus para as assistentes de proteção
da ACNUR realizarmos uma roda de diálogo com a população não-cisheterossexual do
centro. Em uma pequena sala, me reuni-me com quinze pessoas não-cisheterossexuais do
centro de trânsito: sete se identificaram como mulheres transsexuais/travestis, quatro
como mulheres cisgênero lésbicas e quatro como homens cisgênero gays. Esse foi meu
primeiro contato com as interlocutoras que, posteriormente, iriam compor essa pesquisa.
Nesta roda, expliquei um pouco sobre a LGBT+movimento e abri para falas e perguntas.
Como todos permaneceram em silêncio, fiz algumas perguntas gerais: - Como estavam
se sentindo após a migração? - Se achavam que esse fato havia afetado sua expressão e
performatividade de gênero? - Como se sentiam em Roraima e o que desejavam para o
futuro?
Todos responderam que não saíram voluntariamente da Venezuela, mas que se
viram forçados a tal, por razões relacionadas à crise, sobretudo a falta de alimento e
trabalho. Todos disseram possuir família a que eles apoiavam, vindo deles uma das únicas
fontes de sustento para a compra de comida e remédios para os parentes.

Saí da Venezuela porque o meu salário lá não dava para comprar nem meio frango.
Imagina, um salário que é para comprar comida, pagar contas, comprar coisas pra
você e para família. Um dinheiro que é para você viver um mês inteiro, não pagar nem
metade de um frango? Como viver desse jeito? É muito duro sair do meu país, mas
ele está destruído, estão acabando com a Venezuela. As pessoas que podem sair têm
que sair, porque tem pessoas mais velhas e muitas que não podem sair de lá porque
estão doentes, e assim temos que sair para poder mandar dinheiro para elas viverem,
isso é o que acontece comigo.
(Trecho da fala de Carmila32, solicitante de refúgio lésbica, durante a roda de
conversa no abrigo Latif Salomão no dia 13.06.2018)

32
Nome fictício

34
Todos também concordaram e comentaram que Boa Vista é uma cidade muito
LGBTI+fóbica e que se sentem ameaçados quando andam nas ruas. As mulheres
transsexuais e travestis ressaltaram principalmente esse ponto, comentando sobre os tipos
de violência que já sofreram quando estavam nas ruas à noite, trabalhando como
prostitutas.
Semana passada estava na rua, à noite, trabalhando. E um cara chegou, ficou me
encarando um tempo, e depois pegou uma pedra e jogou em mim, quando ele fez isso
eu quis reagir e joguei a pedra de volta. Nessa hora, sairam como vinte homens junto
com ele, todas correram, mas eu não consegui. Eles me bateram, me deram muitos
chutes, até que eu consegui fugir e vir para o refugio. Eu falei no refugio o que tinha
acontecido e eles falaram para eu fazer a denúncia, e eu fiz. Agora estou com medo
de sair.

(Trecho da fala de Mila33, solicitante de refúgio que se identifica como travesti,


durante a roda de conversa no abrigo Latif Salomão no dia 13.06.2018)

Com exceção de um casal de lésbicas 34, todos disseram que gostariam de realizar
a interiorização para outros estados do Brasil, principalmente São Paulo e Rio de Janeiro.
Todos aparentavam impaciência com a espera pela interiorização, pois afirmavam ser
muito difícil conseguir trabalho sendo pessoas não-cisheterossexuais em Boa Vista.
Não quero mais ficar aqui. Já estou há 4 meses aqui no Latif, e não quero mais. Eu
quero poder trabalhar. Preciso mandar dinheiro para minha mãe. Ela precisa muito.
Minha mãe já é velha, toma muitos remédios. Eu não posso ficar aqui, tenho que
conseguir trabalho, mas aqui em Boa Vista não tem nada para a gente. Só
conseguimos trabalhar na prostituição. E eu não quero mais essa vida, quero trabalhar,
usar uniforme, ter horário, receber todo mês. Normal, como todo mundo faz. Aqui
não tem isso pra trans, mas em alguma cidade mais deve ter.

(Trecho da fala de Mariel35, solicitante de refúgio que se identifica como mulher


transexual, durante a roda de conversa no abrigo Latif Salomão no dia 13.06.2018)

Deixei meus contatos pessoais com cada um que participou da roda de conversa e
com as asssistentes de proteção do ACNUR responsáveis pelo abrigo. Exatamente um
mês após o retorno de Roraima, no dia 17 de julho, recebo uma ligação de uma das agentes
de proteção da UNFPA, com quem tive contato em Roraima, dizendo-me que quatro
mulheres transsexuais do grupo que conheci no Latif Salomão, realizariam a interiozação
para a cidade do Rio.
A interiorização de migrantes, solicitantes e refugiados venezuelanos, teve início
em abril de 2018, com intuito de "reduzir o impacto do fluxo de venezuelanos em Roraima

33
Nome fictício
34
Uma das mulheres tinha um filho de oito anos, e não queria ficar muito distante dele. O casal não cogitava
se separar também.
35
Nome fictício

35
e, ao mesmo tempo, proporcionar melhores condições de integração para os que querem
permanecer no Brasil" 36, como afirma a reportagem das Nações Unidas. O programa
conta com coordenação do ACNUR e OIM, além da UNFPA, Fundo das Nações Unidas
para a Infância (UNICEF), Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e
a Cultura (UNESCO), Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD),
ONU Mulheres, Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS), e
OPAS, responsáveis pela resposta humanitária.
Existem cinco modalidades de interiorização: a) De abrigo a abrigo (estaduais,
municipais e da sociedade civil); b) Reunião Familiar; c) Interiorização por oferta de
emprego; d) Reunião Social e e) Sociedade Civil. Na primeira modalidade, de abrigo a
abrigo, o solicitante de refúgio ou migrante que está em situação de abrigamento em
Roraima, realiza a interiorização para uma casa de acolhimento parceira do ACNUR.
Essa casa de acolhimento pode ser gerenciada por instituições estatais ou por alguma
organização da sociedade civil. De qualquer forma, os responsáveis pelo gerenciamento
da casa são aqueles que optam pelo perfil de população que desejam receber. Algumas
casas de acolhimento se restringem ao recebimento de mulheres sem filhos; outras
recebem apenas núcleos familiares completos; outras apenas crianças desacompanhadas.
Muitos outros recortes são possíveis, inclusive apenas o de receber pessoas não-
cisheterossexuais37. Porém, a maioria das casas de acolhimento no Brasil, ou pelo menos
aquelas que gerenciam as casas com maiores capacidades, abarca organizações religiosas
que, tradicionalmente, administram programas de migração e refúgio. Em muitos casos,
essas organizações optam por não receber pessoas não-cisheterossexuais, pois
desconhecem as redes locais de inserção dessas pessoas, e porque tem dificuldade na
mediação de conflitos dentro da casa, principalmente quando as questões se relacionam
a discriminações ligadas a gênero e sexualidade. Para além disso, as pessoas não-
cisheterossexuais tem maior dificuldade de inserção laboral, tendendo a permanecer por
maiores períodos nas casas de acolhimento.
A modalidade de interiorização por reunião familiar acontece quando uma pessoa
interiorizada já possui residência fixa, sem precisar contar com uma casa de acolhimento.

36
Como consta na matéria do Portal das Nações Unidas: https://nacoesunidas.org/acordo-incentiva-
municipios-brasileiros-a-acolherem-pessoas-venezuelanas/
37
É o caso da Casa Miga, localizada em Manaus, que é a primeira casa de acolhimento a pessoas não-
cisheterossexuais refugiadas do Brasil. Segue o link da página de Facebook da casa:
https://www.facebook.com/pg/casamigaLGBT/about/?ref=page_internal

36
O responsável deve possuir fonte de renda para receber outros membros da família. Essa
modalidade reconhece apenas laços de parentesco consanguíneos.
A modalidade de Reunião Social reconhece outras formas de parentesco para além
do consanguíneo, laços de amizade e relações amorosas não-oficializadas. São exemplos
de pessoas que podem realizar a interiozação mediante reunião social.
Outra modalidade de interiorização possível é através da oferta de empregos.
Nessa modalidade as empresas ou pessoas físicas contratam migrantes e solicitantes de
refúgio para empregos formais. A cidade que mais recebeu pessoas nessa modalidade de
interiorização Dourados/MS que acolheram até dezembro de 2019, 1636 pessoas38, a
maioria para trabalhar em empresas de frigoríficos da cidade. A última modalidade é
chamada de Sociedade Civil acontece quando a pessoa é interiorizada para alguma casa
de acolhimento de alguma organização da Sociedade Civil.
A interiorização é um processo voluntário para o qual o ACNUR e a OIM
identificam pessoas interessadas e financiam abrigos da sociedade civil, ou do governo
municipal e estadual, que estão recebendo venezuelanos. Desde abril de 2018 até
dezembro de 2019, mais de 27 mil venezuelanos foram interiorizados para mais de 400
municípios do Brasil39.
A ONU, em conjunto com a Confederação Nacional dos Municípios (CNM), e o
governo federal assinaram40, no dia 2 de outubro de 2019, um protocolo de intenções para
incentivar municípios brasileros a acolherem pessoas migrantes e refugiadas
venezuelanas. O objetivo do encontro foi oficializar a segunda etapa da Operação
Acolhida, que terá enfoque no programa de interiorização, e não mais no programa de
abrigamento centrado em Roraima, com ampliação da "ajuda humanitária" e foco na
integração local e na inserção dos venezuelanos na economia brasileira.
Em junho de 2018, chegaram ao Rio de Janeiro, através da interiozação na
modalidade abrigo-abrigo, um grupo de quatro mulheres transsexuais, duas delas vindo a
ser parte das interlocutoras dessa pesquisa.

38
Dados estão disponíveis na Plataforma R4V: https://r4v.info/es/documents/download/72086
39
idem;
40
Conforme matéria do portal das Nações Unidas: https://nacoesunidas.org/acordo-incentiva-municipios-
brasileiros-a-acolherem-pessoas-venezuelanas.

37
2.2 - Algo que se vê/Algo que é visto - A construção da relação com as
interlocutoras

Quando eu e Marina Siqueira criamos a LGBT+Movimento, sabíamos que iríamos


trabalhar com um número muito reduzido de pessoas, em comparação com o número de
atendimentos de organizações tradicionais na administração de programas de migração e
refúgio no Rio de Janeiro. A Cáritas Arquidioceseana, por exemplo, gerencia o programa
PARES (Programa de Atendimento a Refugiados e Solicitantes de Refúgio). Em 2018, a
Cáritas registrou o atendimento de um total de 10.894 migrantes, solicitantes e refugiados
no Rio de Janeiro, contabilizando novos atendimentos e atendimentos recorrentes, sem
realizar qualquer recorte de gênero ou sexualidade entre os dados. Entre 2018 e 2019, na
LGBT+Movimento, foram atendidos 16 migrantes e solicitantes de refúgio não-
cisheterossexuais na cidade do Rio de Janeiro. Isso não quer dizer que apenas existam 16
migrantes e solicitantes não-cisheterossexuais na cidade do Rio de Janeiro. Esse número
está relacionado apenas às pessoas que buscaram atendimento junto ao projeto. As ONGs
que administram programas de migração e refúgio no Rio de Janeiro, realizam, como
parte do seu cotidiano de atendimento, entrevistas sociais para reconhecimento, registro
dos casos e preenchimento do protocolo de refúgio. Caso identifiquem, geralmente pela
auto-declaração, alguma pessoa migrante, solicitante ou refugiada não-cisheterossexual,
elas explicam brevemente sobre a LGBT+Movimento e entregam nossos contatos
pessoais na forma de um cartão de visita com a logo do projeto, endereço da página do
Facebook e email. Em muitos casos, os migrantes, solicitantes e refugiados não se auto-
declaram enquanto pessoas não-cisheterossexuais, por muitos motivos, que serão
discutidos ao longo deste texto de dissertação. Em outros casos, eles chegam a receber o
cartão da LGBT+Movimento, mas nunca fazem contato. Por isso o número de 16
atendimentos entre 2018-2019 na LGBT+Movimento é também inadequado para
representar um número oficial sobre a quantidade de migrantes, solicitantes e refugiados
não-cisheterossexuais no Rio de Janeiro.
Durante a criação da LGBT+Movimento, decidimos optar por trabalhar apenas
com migrantes, solicitantes e refugiados não-cisheterossexuais, que estivessem, ainda que
momentaneamente, na cidade do Rio de Janeiro. A pergunta mais frequente que ouvimos
em relação ao projeto, desde sua criação, é: " Qual o número de refugiados LGBTI+ no
Brasil?" Como já comentado, ainda não possuimos respostas fidedignas e atualizadas,
apenas parâmetros subrepresentativos. Não existiam pesquisas quantitativas que
expressassem esses dados sobre refúgio relacionado à orientação sexual e identidade de

38
gênero. Após o início da migração venezuelana para o Brasil em 2017, a escassez de
pesquisas diz muito sobre a visibilidade dos corpos não-cisheterossexuais no cenário da
migração e refúgio.
No mundo, a primeira decisão de refúgio reconhecidamente associada a essas
motivações, aconteceu em 1990, quando Fidel Armando Toboso-Alfonso, homem
cisgênero gay cubano, foi reconhecido como refugiado pelos Estados Unidos
(GRUBERG e WEST, 2015). Somente em 2002, no Brasil, foi reconhecido o primeiro
caso de refúgio associado à causa, um casal de homens cisgênero gay colombianos. As
garantias de direitos humanos contidas em instrumentos jurídicos internacionais fazem
parte do quadro de proteção dos solicitantes de refúgio associados à orientação sexual e
identidade de gênero. E são complementares aos contidos na Convenção de 1951, relativa
ao Estatuto dos Refugiados (“Convenção de 1951”) e ao Protocolo de 1967.
Em 2007, a primeira versão dos princípios de Yogyakarta foi estabelecida. Esse
documento, elaborado por especialistas em direito internacional, dispõe sobre a aplicação
da legislação de direitos humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero.
De acordo com o princípio número 23 do documento, o direito à não discriminação é
essencial para a proteção internacional dos solicitantes de refúgio não-cisheterossexuais:
"Toda pessoa tem o direito de buscar e de desfrutar de asilo em outros países para
escapar de perseguição, inclusive de perseguição relacionada à orientação sexual ou
identidade de gênero. Um Estado não pode transferir, expulsar ou extraditar uma
pessoa para outro Estado onde esta pessoa experimente temor fundamentado de
enfrentar tortura, perseguição ou qualquer outra forma de tratamento ou punição cruel,
desumana ou degradante, em razão de sua orientação sexual ou identidade de gênero."
(PRINCÍPIOS DE YOGYAKARTA, 2007, p. 30)

Apesar dos princípios nunca terem sido aceitos pela ONU, eles influenciaram a
publicação de outro documento. Desta vez, em 2008, tratando explicitamente do
estabelecimento de questões referentes à orientação sexual e identidade de gênero por
solicitação de refúgio, sendo então enquadrado no item “grupo social” (UNHCR, 2008)
Em 2018, o ACNUR lançou o Perfil das Solicitações de Refúgio relacionadas à
orientação sexual e identidade de gênero no Brasil 41. A pesquisa definiu que, entre 2010-
2016, foram realizadas 369 solicitações de refúgio associadas à orientação sexual ou
identidade de gênero. E ressaltou, que "a ferramenta não oferece uma visão geral sobre o
perfil das pessoas refugiadas e solicitantes de refúgio LGBTI no Brasil" 42, afinal só leva
em conta as pessoas que solicitaram refúgio por essa causa, e não outra. Projetou,

41
Link para o perfil: https://datastudio.google.com/u/0/reporting/11eabzin2AXUDzK6_BMRmo-
bAIL8rrYcY
42
Conforme matéria do Portal do ACNUR: https://www.acnur.org/portugues/refugiolgbti/

39
portanto, de acordo com as limitações metodológicas, um número bastante
subrepresentativo.
Muitos motivos estão associados a essa subrepresentação dos dados quantitativos
na elaboração do perfil de solicitações. Um dos motivos se deve à grande quantidade de
migrantes ou solicitantes de refúgio que opta por não revelar sua orientação sexual e/ou
identidade de gênero. Os indivíduos em causa se sentem inseguros diante de possíveis
discriminações e violências que venham a sofrer, na nova comunidade local de destino,
como também de compatriotas da sua comunidade de origem. Abordo a questão do "não
contar", dialogando com Ethienne Luibhéid (2019), alinhando-a à concepção agência,
compreendendo que, em muitos casos, o "não contar" apresenta-se sob a forma de
estratégias e negociações performadas pela pessoa em relação ao seu contexto e diante do
evento migratório. Luibhéid (2005) faz crítica ao que ela chama de "narrativas
liberacionistas" responsáveis por produzirem uma imagem de migrantes, solicitantes e
refugiados não-cisheterossexuais como "atrasados" ou "reprimidos", ignorando "as
maneiras pelas quais a globalização reconfigurou as sexualidades nos países de origem
desses migrantes" (p.11 2019). O binário "assumido/reprimido" em relação ao
"contar/não contar" mantém posições instituídas pelos processos da colonização, pois
determina um ideal a ser contemplado, o "não-reprimido ou assumido", associado a um
modelo fatalmente Eurocêntrico/Nortecêntrico, que associa o "contar" ou a "não-
repressão" a uma ideia de desenvolvimento pessoal/emocional; e o "não-contar" ou a
"repressão", à ideia de atraso e fracasso, extrapolando essa representação também para os
territórios de origem e destino dos migrantes. Os territórios de origem de solicitações de
refúgio relacionadas à orientação sexual e identidade de gênero são considerados, nesses
binários, como países "reprimidos", "atrasados" e "não-desenvolvidos", enquanto os
países de destino são considerados "exemplares", "acolhedores" e "desenvolvidos". Esses
binários ligados a vida de migrantes, solicitantes e refugiados não-cisheterossexuais
retiram de cena o debate que deve ser central, referente a um complexo e imbricado
sistema produtor e reprodutor de desigualdades e diferenças historicamente determinadas,
e que, por essa congregação, influem também nos processos de "contar" ou "não contar"
(LUIBHÉID, 2019).
Outro motivo que contribui para a subrepresentação dos dados no Perfil das
Solicitações de Refúgio relacionadas à orientação sexual e identidade de gênero no
Brasil, incide sobre o desconhecimento da possibilidadade de solicitar refúgio com base
nessas questões. No caso da migração venezuelana, esse ponto é bastante comum,
sobretudo pelo reconhecimento, por parte do CONARE, da situação venezuelana como

40
de grave e generalizada violação dos direitos humanos43. O reconhecimento da situação
por parte do CONARE facilita o acesso de solicitantes de refúgio ao reconhecimento
pleno como refugiado. Porém, a questão da orientação sexual e identidade de gênero é
concebida em segundo plano, podendo nem ser mencionada pelo solicitante.
Outro motivo possível está associado ao fato de o acrônimo "LGBTI+" não
contemplar as categorias nativas associadas a identidades não-cisheterossexuais. A
pessoa migrante ou refugiada pode desconhecer o acrônimo, ou pode não se reconhecer
nas identidades representadas por ele 44. Luibhéid (2019) dá o exemplo da categoria
"mulheres que amam mulheres", compreeendendo que o termo lesbian/lésbica não é
transhistórico e nem essencial. Ele incorpora significados e barreiras inseparáveis de
processos coloniais, capitalistas e patriarcais. O não reconhecimento desse acrônimo
também dificulta a identificação dessas pessoas, sobretudo se o preenchimento da
solicitação de refúgio for feito sem o acompanhamento de um assistente social ou pessoa
sensível à causa. 45
A questão levantada anteriormente sobre o Perfil das Solicitações de Refúgio
Relacionadas à Orientação Sexual e identidade de gênero no Brasil, pelo qual apenas as
solicitações associadas a essas motivações foram contabilizadas, inicia um debate sobre
as possibilidades de enquadramento das causas do refúgio nos termos estipulados na
convenção de 1951 e no protocolo de 1967. No caso de migrantes, solicitantes e
refugiados venezuelanos, alguns alegam que a principal motivação para saída da
Venezuela foi a perseguição e ameaça em relação à sua orientação sexual e identidade de
gênero. Outros relatam que a principal motivação para deixar o país foi relacionada à
grave crise econômica, somada ao desabastecimento de comida e itens relacionados à
saúde. Outros alegam perseguições políticas que ameaçam a integridade de suas vidas.
Todas essas diferentes motivações citadas podem abarcar pessoas não-cisheterossexuais,
independentemente da causa que elas descrevam como "principal" para solicitar o
refúgio. Elas ainda podem ser, concomitantemente, pessoas não-cisheterossexuais que
sofrem ameaças e perseguições. Portanto, a contabilização no Perfil das Solicitações de
Refúgio Relacionadas à Orientação Sexual e identidade de gênero no Brasil tão somente,
casos que alegaram refúgio por conta da perseguição relacionada à orientação sexual e

43
Como consta na matéria: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2019/06/19/conare-reconhece-grave-e-
generalizada-ameaca-aos-direitos-humanos-na-venezuela-para-agilizar-analise-de-pedidos-de-
refugio.ghtml
45
Contudo, essa situação não é comum na refúgio venezuelano. Todos os solicitantes com quem
conversei conheciam o acrônimo LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros)

41
identidade de gênero, exclui muitas outras pessoas que solicitaram refúgio por outras
motivações, mas que participam da intersecção entre migração e refúgio e pessoas não-
cisheterossexuais.
Para além disso, o dado divulgado no documento, identificando 369 solicitações
de refúgio relacionadas à orientação sexual e identidade de gênero, também não
contabiliza a situação venezuelana, uma vez que apenas registra os dados até 2016. Foi a
partir de 2017 que a migração venezuelana se intensificou para o Brasil, aumentando,
exponencialmente, o número de solicitações. Segundo a quarta edição do relatório
"Refúgio em Números" em 2016, o CONARE registrou 3.375 solicitações de refúgio de
venezuelanos; em 2017, o número aumentou para 17.865 solicitações; e em 2018, atingiu
a cifra de 61.681 solicitações. Portanto, a referência a 369 solicitações de refúgio
relacionadas à orientação sexual e identidade de gênero, além de ser uma
subrepresentação do número, pelas razões discutidas anteriormente, também se encontra
desatualizado, não contemplando o caso da migração venezuelana, deixando a seguinte
pergunta: - "Qual o número de pessoas refugiadas LGBTI+ no Brasil?", ainda sem
resposta precisa.
Contudo, durante a estruturação da LGBT+Movimento, prevíamos lidar com um
grupo pequeno de pessoas, condição que nos permitiu dialogar em proximidade,
informalidade e padrões de relacionamento, que gostaríamos de instituir na forma de lidar
com migrantes, solicitantes e refugiados, que são expostos, incessantemente, por
organismos de administração das suas vidas (FACUNDO, 2014). Havia o desejo de
"desburocratizar" a forma de atender e acolher esses migrantes, solicitantes e refugiados.
Nossa intenção era que as condições desiguais, inevitavelmente presentes ao lidar com as
pessoas atendidas, fossem de alguma maneira amenizadas. Por isso, procuramos sempre
fornecer nossos contatos pessoais, além de estabelecer, ao menos uma vez ao mês,
contatos presenciais, marcados por conversas em locais informais, ou na própria casa das
pessoas atendidas.
No dia 20 de julho de 2018, eu e Marina fizemos uma ligação de vídeo via Skype
para nos comunicarmos com Mariel, Danny, Consuelo e Crystiannys que seriam
interiorizadas para a cidade do Rio de Janeiro. A conversa foi sugerida pela equipe da
UNFPA, responsável pela conexão dos migrantes e refugiados com redes apoio pré-
estabelecidas nas cidades de interiorização. Durante a ligação, explicamos novamente a
elas o projeto, e as pedimos que salvassem nossos contatos pessoais em seus telefones ou
ainda que fizessem contato assim que chegassem ao Rio. Marcamos de encontrá-las na

42
casa de acolhida, na mesma semana da chegada, para que pudéssemos conversar
pessoalmente.
Como combinado, fomos até à casa de acolhida no dia 26 de julho de 2018. A
casa de acolhida que as recebeu fica localizada em bairro nobre da Zona Oeste do Rio. A
assistente social responsável pela casa me contou que haviam 30 mulheres morando na
casa, com algumas crianças. Diferente dos abrigos de Roraima, a casa de acolhida não
servia pratos de comida prontos. As mulheres tinham que cozinhar as refeições para si.
Haviam grupos misturados de mulheres, algumas já se conheciam de Roraima, pois
vinham de um mesmo abrigo. Outras nunca haviam se visto. As moradoras da casa tinham
o prazo máximo de três meses para ali permanecer. Nesse meio tempo se dividiam entre
a manutenção do espaço, curso de português, eventuais capacitações e a busca por vagas
e entrevistas de emprego. As aulas de português aconteciam uma vez por semana na
Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), que fica a cerca de um hora e meia de
transporte público da casa. A casa não possuia seguranças ou militares, como no caso do
abrigos de Roraima, apenas um portão de madeira e um elevado muro separam a rua do
gramado interior da casa. A equipe de apoio para manutenção da casa é de uma paróquia
próxima. No dia da visita, haviam elementos religiosos e a figura do Papa na entrada da
casa. Dentre o grupo de mulheres que estava em situação de abrigamento, as quatro
mulheres transsexuais eram as únicas, declaradamente, não-cisheterossexuais.
Durante a nossa conversa, repetiram muitas vezes que gostariam de não realizar
mais programas na rua, pois consideravam perigoso, e que queriam trabalhos "de
verdade" em empregos "normais". Em seguida começaram a relatar experiências de
trabalhos que realizavam na Venezuela. Ficamos de auxiliá-las na montagem dos
currículos, e no encaminhamento para vagas exclusivas para pessoas trans. Conversamos
algumas horas. Percebi que haviam já algumas desavenças entre elas e outro grupo de
mulheres moradoras da casa, pois, por vezes, no meio da conversa, aconteciam discussões
entre elas, com xingamentos e sarcasmos. "Elas não gostam de nós porque somos trans",
diziam. Comentaram que as mulheres eram evangélicas e reclamavam das roupas curtas
e apertadas que elas utilizavam pela casa. Deixamos a casa já à noite, com data para
retornarmos na outra semana, enquanto isso disse a elas que mantivessem contato comigo
por mensagens.
Na noite do dia 30 de julho, recebo uma ligação de Mariel, a interlocutora que me
foi, desde Roraima, apresentada como a liderança política do grupo LGBTI+ do abrigo
Latife Salomão. Ela me falou que havia sido expulsa da casa de acolhida, porque brigou
com uma outra moradora. Disse que estava na rua, em frente ao abrigo e me mandou uma

43
foto de um pedaço de papel onde havia, escrito à mão, o endereço e telefone de um CRAS
(Centro de Referência de Assistência Social) me informou que a gestora responsável pela
casa lhe deu este endereço, e lhe disse que lá iriam encaminhá-la para um abrigo público.
Antes de desligar, expliquei a ela que esse lugar só funcionava de dia e que só poderia
procurá-lo no outro dia pela manhã. Perguntei se ela tinha dinheiro para passar a noite em
algum lugar, ela disse prontamente que não. Desliguei o telefone e tentei me comunicar
com a coordenadora da casa de acolhida. Consegui falar com ela por telefone. Ela me
disse que havia regras pré-estabelecidas na casa, algumas delas não podendo ser
quebradas. Caso contrário, resultariam em imediata expulsão. Ela me disse que Mariel
havia quebrado mais de uma dessas regras e, portanto, nada havia que pudesse fazer por
ela. Disse a ela que compreendia a situação, porém a expulsão só iria agravar o quadro de
extrema vulnerabilidade em que Mariel já se encontrava por ser migrante e mulher
transsexual, recém-chegada ao Rio. Pedi que reconsiderasse a sua permanência na casa,
ao menos para o pernoite. Contudo, a coordenadora da casa permaneceu impassível e me
disse que trabalhava "com pessoas", na intenção de negar meu argumento sobre a
intersecionalidade ser um agravante da condição de vulnerabilidade. Ela terminou a
conversa me dizendo que se colocasse Mariel para dentro da casa, as regras iriam ser
invalidadas e a segurança de todas as outras mulheres seria posta em risco.
Nessa mesma noite estava acontecendo o evento em resistência ao decreto de
desapropriação do único espaço de acolhimento para pessoas LGBTI+ em situação de
vulnerabilidade social da cidade do Rio de Janeiro. Tentei ligar algumas vezes para a
responsável do espaço, e, quando obtive sucesso, ela me disse que a casa estava aberta
para receber todas as mulheres transsexuais, se necessário. Pelo horário já avançado, ela
entrou em contato com um motorista de sua rede pessoal e lhe deu o endereço da casa de
acolhida. Consegui me comunicar de volta com Mariel e lhe disse que o motorista estava
a caminho, e que a levaria para esse espaço de acolhimento. E expliquei-lhe brevemente
que esse espaço era distinto da casa de acolhida em que estava. Ela me informou então,
que as outras três mulheres transsexuais tinham decidido ir com ela para esse espaço de
acolhida, pois também não estavam se sentindo bem ali. Antes de desligar me disse
também, em tom de desespero, que havia sido agredida por dois homens, e que eles
haviam quebrado seus quatro dentes incisivos.
Pouco tempo depois, o motorista chegou e as quatro mulheres transsexuais
deixaram a casa de acolhida em menos de uma semana de sua chegada no Rio. O espaço
de acolhida para LGBTI+ em situação de vulnerabilidade ficava na região central da
cidade. No dia seguinte, encontrei-as novamente, sentamos em um bar próximo ao espaço

44
de acolhida. Elas me relataram que estavam com muito medo de estar ali, que a casa não
era limpa, que as pessoas eram "da rua" e que poucas coisas, como luzes e banheiro,
funcionavam lá. Tentei explicá-las um pouco sobre a história do espaço de acolhida e sua
importância para o ativismo LGBTI+ no Rio. Funcionários do ACNUR estavam em
contato direto comigo, na tentativa de articular para as quatro mulheres, um auxílio
financeiro; seguindo o termo usado pelo ACNUR, Cash-based Interventions (CBI). Esse
auxílio financeiro, inicialmente, teria o valor de 300 reais/mensal, por pessoa, com
duração de 3 meses. A articulação dos auxílios CBI com o ACNUR e a ONG responsável
pela casa de acolhida a migrantes e refugiados, foi, de certa forma, trabalhosa. Havia
também uma relutância, ainda que breve, das mulheres em retornar ao escritório da ONG
que as expulsou. Contudo, foi nesse momento que a minha relação com elas foi, de certa
maneira, estabelecida ou, como concebe Veena Das, brokered self/brokers, noção
retomada no livro Affliction (2014). Nesse último, a autora utiliza o conceito para explicar
a sua relação com algumas pessoas de um bairro pobre da Índia, em especial sua relação
com Mukesh, uma das crianças do bairro.
Veena realiza um trabalho de pesquisa de campo na localidade, que consiste na
avaliação do acesso a serviços saúde pelas famílias do bairro. Na situação descrita por
ela, Mukesh, que possui a mãe doente com turberculose, e o pai sempre muito atarefado,
pede para Veena ajudá-lo a se matricular na escola, pois estão cobrando documentações
que a família não possui e é incapaz de pagar para retira-las. Veena comenta que é
comum, tanto para adultos como crianças que vivem em contextos de extrema pobreza,
"localizarem" o poder fora das suas estruturas cotidianas. Desse modo, quando enfrentam
situações de impasse, buscam a mediação de um "estrangeiro" para a resolução dos
mesmos.
Essas práticas arbitrárias criam condições de possibilidade para que o que já
me referi como "brokered self" (V. Das 2004) e são típicas entre pesoas que convivem
em contextos urbanos de pobreza. (...) São entendimentos tanto dos adultos como das
crianças desse poder. E que esse outro mundo que lhes é imprevisível só pode ser
acessado através de intermediários ou "brokers" que funcionam como pavimentadores
de caminhos no meio de uma selva de burocracias. (Veena Das, 2014, p. 73 - tradução
minha)

Do mesmo modo, a partir da medição dos auxílios CBI para o grupo de


interlocutoras, nossa relação se construiu de forma semelhante ao que Veena Das
descreve como brokers. Apesar dos esforços na "desburocratização" dos encontros e da
comunicação remota diária, e presencial, de frequência semanal ou mensal, a procura
delas era suscitada em situações em que elas se viam diante de impasses, que julgavam
irresolúveis a partir de si mesmas. Nem sempre a procura delas para encontros e conversas

45
acontecia com uma finalidade demarcada. Em muitos casos, os encontros se tornaram
desabafos sobre as situações da vida cotidiana, ou sobre memórias passadas, geralmente
ligadas às famílias que se encontravam ainda na Venezuela. Elas sempre se referiam a
mim como "amiga" ou mesmo "Nat", e comentavam que nós, tanto eu quanto Marina,
éramos a única rede de ajuda no Rio de Janeiro.
Ainda na tentativa de tornar a convivência mais íntima, organizamos alguns
encontros entre elas e pessoas-chave no ativismo transsexual e travesti no Rio. Nesses
encontros, elas fizeram muitas perguntas, sobretudo acerca de questões relacionadas à
segurança e à prostituição nos bairros do centro da cidade. Como era a relação com as
cafetinas, se eram perigosas, se havia disputa na rua pelas esquinas, como se proteger
caso alguém as tentasse violentar.

Mana você faz assim, não anda sozinha à noite por essas ruas aqui não. Mas se
acontecer e alguém vier mexer com você, faz a louca, joga o cabelo, faz pose, fala que
tá com a gilete ou com a nete [canivete] e fala que a cafetina está perto. Não se mostra
fraca pros homens não, faz louca mesmo, grita, corre, chama atenção. Isso salva a
gente. Tem que ser mais esperta que eles, porque aqui tá tudo perigoso. A melhor
coisa mesmo é não ficar sozinha nunca, porque polícia, ô, nunca vai ajudar em nada,
só vai fuder a gente mais. Não trata eles bem não, que se não eles abusam também,
policia aqui não gosta de travesti.
(Trecho da fala de uma travesti militante do Rio de Janeiro em conversa com as
interlocutoras trans e travesti, no dia 7 de agosto de 2018)

Na casa de acolhida LGBTI+ no centro do Rio, a questão da prostituição voltou a


ser muito presente na vida das quatro mulheres. A grande maioria delas, trabalhava na
noite do Rio como prostituta. Havia também um tradicional movimento de ativismo em
prol do reconhecimento da prostituição como atividade formal de trabalho,
principalmente por parte da criadora da casa, com a garantia de direitos assegurados.
Além disso, eram frequentes as visitas de organizações ligadas à saúde e prevenção contra
o HIV/AIDS que faziam rodas de diálogo sobre o assunto. Cerca de 90% das pessoas
trans no Brasil realizam ou já realizaram programas46. Assim como Olivar e Garcia
(2017), proponho nessa pesquisa trabalhar "singularidades e positividades" (Rago, 2008),
evitando patologizações e "epistemologias negativas" em relação ao tema da prostituição,
porém sem deixar de ressaltar contextos em que ela é compreendida como uma violência
ou sofrimento pelas interlocutoras. A partir de narrativas de vida, que acentuam os
percusos das interlocutoras, busco interpretar com base no conceito de "economias
sexuais" (Cabezas, 2009), compreendendo o universo da prostituição como um regime

46
Dados da Associação Nacional de Travesti e Transexuais (ANTRA)

46
não somente de trocas monetarizadas, mas também de trocas, agências e afetos. Segundo
Olivar e Garcia (2017), as economias sexuais são formas de "fazer a vida possível"
(Butler, 2010), através dos recursos disponíveis, buscando a alteração das linhas de
opressão cotidianas presentes nas vidas das mulheres transsexuais.
Foi durante a estadia nessa casa de acolhida LGBTI+ que elas conseguiram suas
primeiras diárias em empregos remunerados no Rio de Janeiro. Isso se deu durante as
atividades do Queer Museum, que aconteram do dia 18 de agosto a 16 de setembro de
2018. As quatro mulheres trabalharam como educadoras, junto a muitas outras pessoas
não-cisheterossexuais locais, durante parte da exposição que ficou sediada no Parque Laje
e que, por conta da censura prévia do seu conteúdo, tomou grandes proporções como
lugar de ativismo e celebração de corpos, sexualidades e gênero dissidentes.
Na manhã do dia 30 de agosto de 2018, acordei com diversas mensagens no
celular, e ligações perdidas provenientes dos telefones de todas as interlocutoras. De
acordo com as mensagens, elas relatavam que havia acontecido uma briga na casa de
acolhida LGBTI+, entre elas e algumas outras moradoras, brasileiras. Esse conflito
resultou na expulsão delas da casa. Mariel alegava que havia sofrido agressões físicas
durante a briga e me mandou via Whatsapp uma foto do seu braço com diversos cortes
horizontais e sangrando. Em uma das fotos pude ver um carro da polícia militar na frente
da casa.
Segundo elas, após a chegada dos policiais, elas correram e o grupo se dividiu em
dois. Duas delas correram em direção ao bairro da Glória e as outras duas em sentido
Lapa. Em contato com a ONG de migração e refúgio que as atendia, conseguimos
encaminhamento para as quatro para o Hotel Popular da Prefeitura do Rio, um abrigo
público. O abrigo acolhe, majoritariamente, população em situação de rua, e funciona
apenas durante o pernoite, logo pela manhã todos devendo se retirar com seus pertences.
Duas interlocutoras aceitaram ficar no hotel, porém as outras duas foram para uma casa
de prostituição na Lapa. Após dois dias no Hotel Popular, todas decidiram mudar-se para
a casa de prostituição no bairro da Lapa.
Durante a estadia delas nessa casa, por cerca de um mês, pouco nos falamos ou
vimos. O sinal de celular na casa era ruim e elas viviam em regime em que as saídas eram
restritas à noite, para trabalho na rua. As mensagens eventuais que recebia no meu celular
eram pedidos para que eu pudesse ajudá-las a conseguir vagas em empregos formais, pois
gostariam de trabalhar com outras atividades, além da prostituição.
No dia primeiro de outubro de 2018, recebi novamente diversas mensagens dos
celulares de cada uma das interlocutoras, dizendo que haviam fugido da casa de

47
prostituição, pois estavam recebendo ameaças de morte por parte da cafetina. O grupo
permaneceu dividido. Duas das interlocutoras me pediram ajuda para conseguir chegar
até à casa de uma outra mulher venezuelana na comunidade da Gardênia Azul, zona oeste
do Rio de janeiro, onde me informaram que tentariam divivir um aluguel. As outras duas
seguiram para a casa de um amigo venezuelano na comunidade dos Tabajaras, na zona
sul do Rio de Janeiro.
Após esse episódio e já estabelecida na casa da amiga na Gardênia Azul, Consuelo
disse que gostaria de conversar comigo e com Marina pessoalmente, pois já não
aguentava não falar "a verdade" para nós. Encontramo-nos apenas eu, ela e Marina, em
uma praça no centro do Rio. Ela me disse que tudo que as outras interlocutoras nos
contaram que havia acontecido na casa acolhida para migrantes e refugiados e na casa de
acolhida LGBTI+, eram mentiras. Segundo ela, a expulsão da casa de acolhida para
migrantes e refugiados aconteceu porque Mariel roubou os celulares e carteiras de quatro
homens que estavam pagando bebidas para elas em um quiosque na praia. Porém, em
dado momento, um dos homens percebeu o roubo e foi atrás delas. Eles acabaram
entrando na casa, configurando a quebra de uma regra que determinou a expulsão de
Mariel da casa. Sobre a expulsão da casa de acolhida LGBTI+, ela disse que Mariel tinha
bebido muito e iniciou uma briga com uma das outras travestis moradora da casa. A briga
resultou na quebra do vidro da janela e no dano a móveis da casa. Por isso, Mariel acabou
sendo expulsa. Consuelo relatou que Mariel pegou um caco de vidro, quebrado durante a
briga, e fez cortes no próprio braço e em seguida chamou a polícia, na tentativa de
incriminar as outras moradoras da casa e de demarcar seu lugar de vítima. Contudo, a
polícia militar foi hostil e elas acabaram indo embora. Segundo Consuelo, Mariel seria a
causadora de todos os problemas desde a chegada ao Rio de Janeiro, e as outras apenas a
seguiram e a apoiaram, pois ela sempre foi a líder de todas e sabia lidar melhor com as
situações difíceis. Consuelo comentou estar esgotada com a situação, e falou que não iria
mais andar ou falar com Mariel, que queria viver sua vida afastada dela.
Após essa conversa, compreendi que o estabelecimento da minha imagem como,
já comentado, um tipo de brokers (Das, 2014) isto é, como uma facilitadora por entre os
caminhos difíceis da burocracia, contribuiu para que as interlocutoras também me
compreendessem, em um primeiro momento, como uma funcionária de uma das
organizações que administram programas de refúgio e migração, experiência que
contempla sentidos apresentados por Facundo (2014), que também descreve, em
etnografia pela qual analisa como solicitantes de refúgio e refugiados colombianos
vivenciam essa fase da vida. Dessa forma, a "mentira" e a ocultação de certas situações e

48
motivações se tornam uma estratégia de preservação da imagem de vítima e, portanto, da
pessoa que "merece" e deve ser ajudada ou amparada e "não punida". Facundo (2014)
discute essa contradição na produção da categoria refugiado pelo Estado, ora com vítimas
sofrentes, ou seja, de vítimas, ora como ameaça à segurança, ou seja, como agentes
culpados. Mariel havia compreendido essa lógica, que também é comum entre os espaços
humanitários, nos quais mentiras e ocultações são formas de assegurar e reproduzir sua
posição de vítima. Mason Gail (2001) elabora uma reflexão entre a visibilidade de pessoas
não-heterossexuais e a violência relacionada à homofobia, e comenta que "a decisão de
"se assumir" frequentemente envolve uma ponderação cuidadosa das prováveis
recompensas e possíveis repercurssões" (p.81). Da mesma forma, contar o que havia
acontecido nesses dois episódios, pelos quais partilhavam diferentes formas de
violências, envolvia um cálculo de "ganhos e riscos", sobretudo diante de uma presença
possivelmente reguladora, que era a minha. A comunicação dos fatos de maneira diferente
daquela que aconteceu é uma forma estratégica para impedir que a pessoa seja marcada
como a causadora dos conflitos que, no episódio da casa de migração e refúgio, resultou
na expulsão da casa como uma forma de "punição". Portanto, as "mentiras" ou ocultações
das interlocutoras aconteceram para impedir que essa punição voltasse a acontecer. A
possibilidade de que eu comunicasse para funcionárias ou pessoas que tem poderes
administrativos sobre suas vidas, estabelecia entre nós posições diferenciais, que foram
gradualmente transformadas com o passar de vários encontros e situações que
aconteceram posteriormente. No entanto, essas posições diferenciais, ainda que
incômodas, foram importantes para que eu fosse capaz de refletir sobre as percepções das
interlocutoras quanto às relações de poder que as atingem. Assim como experimentou
Veena Das (2014), na construção da sua relação com Mukesh, os lugares desiguais de
poder em que se encontravam durante sua pesquisa, permitiram que ela compreendesse
que Mukesh localizava o poder nas pessoas que eram "estrangeiras" ao seu território.
Nessa mesma conversa, Consuelo me disse que havia tomado a decisão de que
não queria mais andar como mulher, que iria cortar seu cabelo em um corte masculino
curto, e iria buscar emprego como homem e não como mulher transexual. Comentou que
isso a entristecia, mas que a vida como mulher transsexual era muito mais difícil e
também perigosa. Contou-me que precisava conseguir um emprego rapidamente pois a
situação de sua família estava piorando, e não queria mais fazer programas. Por fim, me
pediu para ajudá-la a conseguir doações de roupas masculinas. Ainda no mesmo dia,
Consuelo me mandou uma foto de cabelo curto. Refletindo sobre a questão, Gail (2001)
defende que a relação entre homossexualidade e visibilidade marca todas as formas de

49
violência relacionadas à homofobia. Esse argumento pode ser facilmente estendido à
identidade de gênero. A ação de Consuelo de deixar de performar e se identificar como
uma mulher transexual, ou dito de outra maneira, de retornar a performar e se identificar
de acordo com o sexo/gênero que lhe foi designado ao nascimento, é referida pelo termo
de "destransição". A destransição é, portanto, compreendida como a ação contrária ou
reversa da transição de gênero. Alinho-me às posições que defendem a manutenção da
afirmação da agência de pessoas transgênero diante das inúmeras e marcantes opressões
compartilhadas por essas pessoas em relação a sua identidade e expressão de gênero.
Dessa forma, não irei me ater a tentativas de distinções limitantes como, por exemplo, a
diferença entre destransição voluntária/destransição forçada.
Julia Serano (2016) descreve alguns exemplos de motivações para a ação da
destransição:
The reasons why people detransition are varied. Some find that, on a visceral level,
the changes in their body and life didn’t really make them happy, or didn’t feel right.
Others are happy with the changes, but make the decision to detransition for pragmatic
or logistical reasons. For instance, some people detransition because it’s too difficult
for them to obtain hormones or other gender-affirming procedures they may want.
Some detransition for their partner’s or spouse’s sake, in order to keep their
relationship intact. Some detransition because they had problems finding a job or
housing, and/or they were tired of being harassed on a regular basis simply for being
a visibly trans person walking down the street. Some permanently detransition, while
others may decide to re-transition back later in their lives.

Segundo Gail (2001), o "voltar ao armário" é uma forma estratégica de "impedir"


que a pessoa seja marcada socialmente como gay ou lésbica. No caso de Consuelo, o
argumento de Gail também é pertinente: a destransição é uma forma estratégica de
"impedir" que ela seja marcada como uma mulher transsexual. Segundo a autora, "voltar
ao armário", aqui faço o paralelo com a "destransição", acontece não somente por
questões ligadas à violência, mas também pode estar relacionada a uma vontade do sujeito
de não fazer parte de aspectos de identidade ou estigmas que marcam como membro de
tal ou qual gênero, ou sexualidade. Essa atitude implica, muitas vezes, noções fixas de
identidade de gênero e orientação sexual. Gail afirma que "o armário representa, nesse
sentido, tanto uma forma de autovigilância, como uma estratégia para resistir à vigilância
dos outros" (p.82). Nessa ambiguidade em que o "armário" ou a destransição são
considerados tanto lugares opressivos e de sigilo, quanto de recusa a subjulgação da
homossexualidade ou transsexualidade visíveis, Gail comenta sobre a criação de "Safety
Maps":
A safety map is an ever-changing, personalised, yet shared, matrix of attributes and
relations that individuals employ to make their way in public and private space. In
constructing these maps, individuals draw upon their knowledge of the ways in which

50
specific variables render them vulnerable to personal danger. This conjunction of
personal, spatial and temporal variables is likely to include: previous experience of
violence; the degree to which an individual feels more or less vulnerable to violence
because of their age, gender, ethnicity and the like; understandings of the risks
associated with particular areas; the time of day; perceptions about the type of people
likely to be encountered in particular areas or within particular social situations;
popular discourse around violence and risk; the purpose an individual has for being at
a particular place or with a particular group of people; perceptions about physical
appearance and gesture; and so on. (GAIL, 2002, P.84)

A autora dialoga com a perspectiva foucaultiana que leva em conta as coisas que
são tornadas visíveis, isto é, aquelas que são passíveis de adquirir status de conhecimento.
Ela também entra em acordo com as premissas de Butler (2018) sobre a natureza material
da subjetividade. A autora coloca em evidência a centralidade do corpo na formulação
dos Safety Maps, comentando que essa produção pressupõe também a formulação de um
Body Map como dispositivo de auto-vigilância diante das ambiguidades já mencionadas,
em relação "ao armário"ou à destransição, referentes a lugares ora potencialmente
opressivos e protetivos.
If visibility is a key to safety from the hostility of homophobia then it is unavoidable
that in mapping safety lesbians and gay men will be mapping their own bodies for
manifestations of sexuality. Hence, we might usefully acknowledge the primacy of
the body to the negotiation of safety from the specific problem of homophobia-related
violence by thinking of this process as a form of ‘body map’ in itself: a cartographic
matrix of practices for surveying, screening and supervising the times, places and
ways in which one is manifest as a homosexual. There is, of course, no such thing as
a lesbian or gay body map. Practices for monitoring the visibility of one’s
homosexuality are refracted, not only by the shifting dynamics of the situation at hand,
but also by relations of ethnicity, gender, class, and so on. As I mentioned earlier,
these variables mediate the very meanings of visibility. (GAIL, 2002, p.87)

Toda expressão corporal referida ao conceito de gênero é, portanto, "mapeada"


como forma de negociação com as principais formas de visibilidade/invisibilidade.
Dependendo da localização ou situação em que a pessoa esteja, elas podem atuar de forma
protetiva ou opressiva. A destransição de Consuelo também atua, portanto, nesse sentido,
de uma estratégia de negociação e agência, diante do confronto entre seu "Safety maps"
e Body Map, e a situação contextual marcada pela presença de episódios de violência e
desamparo. Logo duas semanas após, Mariel comunicou-me que também
destrasicionaria. Em um mês das manifestações dos dois episódios de destransição, ambas
conseguiram emprego performando como homens cisgênero gays.
No capítulo três, abordarei com maiores detalhes as experiências de vida de Mariel
e Danny. Com relação a Consuelo, o evento da destransição transformou a sua
experiência de identidade de gênero, e hoje ele se compreende como um homem
cisgênero gay, Ricardo. Como Leticia Lanz (2016) comenta em seu blog na matéria
"Destransicionar sim! Por que não?", o gênero é uma experiência do indivíduo, que nada

51
tem de fixa nem de imutável. Pelo contrário, trata-se de um "atributo altamente fluído e
flexível que pode mudar imensamente ao longo da vida de uma pessoa". A pesquisa sobre
as experiências de vida de Ricardo não foi incluída no texto dessa dissertação, pois
diminuimos muito a frequência dos encontros e contatos logo após ele conseguir um
emprego como auxiliar de limpeza. Com relação a Crytiannys, logo após a destransição
de Mariel (sua irmã), ela se mudou para o interior São Paulo para trabalhar em uma casa
de prostituição. Ela procurou a LGBT+Movimento, cerca de três meses depois, para pedir
ajuda para voltar ao Rio de Janeiro. Comunicou que se encontrava em regime cárcere
privado, que quase nunca saía para a rua e teve seus documentos confiscados. Tentamos,
junto ao ACNUR e as ONGs locais, uma forma de negociar a saída dela da casa. Uma
mulher trans da rede local, que iria realizar a negociação com a cafetina da casa,
infelizmente, adoeceu e não pode efetuar qualquer negociação. O contato com
Crystiannys era sempre indireto, pelo telefone de outras pessoas. Portanto, se ela não fazia
contato, muitas vezes tentávamos ligar para o último telefone que havia nos ligado, mas
ninguém atendia. Conseguimos sua localização parcial por meio de aplicativo de celular,
e realizamos a denúncia no disque 100, bem como o caso encaminhamos para
Organização Internacional do Trabalho (OIT), como suspeita de tráfico de pessoas,
exploração sexual e cárcere privado. Porém ela conseguiu escapar da casa de prostituição,
e foi recebida por um amigo que estava morando também no interior de São Paulo. Em
dezembro de 2019, ela retornou ao Rio de Janeiro, novamente para uma casa de
prostituição no centro da cidade do Rio de Janeiro. Devido ao longo período que não
mantivemos contato, a experiência de vida de Crystiannys não foi incluída nessa pesquisa.
Em janeiro de 2019, conheci Alejandra. Ela havia chegado ao Rio de Janeiro no
dia 31 de dezembro de 2018 juntamente com outras 29 mulheres e crianças venezuelanas,
que ficariam na mesma casa em que as quatro mulheres transsexuais chegaram em julho
de 2018. Alejandra era a única mulher lésbica da casa. Logo que cheguei e fiz a pergunta
sobre como ela entendia a sua orientação sexual, ela, ainda sem saber falar português
muito bem, fez um gesto que apontava a sua roupa em pleno auge do verão carioca: calça
jeans, uma blusa bem larga e boné voltado para trás. Segundo ela, a sua expressão de
gênero declarava mais sobre sua orientação sexual do que ela podia ali verbalizar em
português. Em poucos minutos de conversa, compreendi sua maior angústia: não ter
meios de comunicação para conseguir falar com nenhuma das três filhas (12 ,10 e 5 anos
de idade), já há mais de 3 meses. As filhas haviam ficado na Venezuela, com os avós
paternos, após a perseguição e ameaça pela sua orientação sexual, principalmente por
parte de seu ex-marido e seu pai. Consegui através de uma ligação de Skype, fazer o

52
contato entre ela e as filhas. Em um momento muito emocionante, pude ouvir as vozes
das meninas perguntando a ela quando voltaria. Com Alejandra estabeleci a relação de
maior proximidade em comparação as outras interlocutoras. O fato de ambas sermos
lésbicas e termos sofrido perseguições e ameaças familiares, que, no caso dela, resultaram
na migração internacional, e no meu caso, na saída da casa dos meus pais, produziu em
nós uma conexão. Alejandra passou a frequentar locais de lazer e ativismos lésbicos no
Rio de janeiro, ora a convite meu, ora de outras amigas lésbicas que também entendiam
a importância da inserção local de migrantes e refugiados não-cisheterossexuais enquanto
sujeitos em ações locais. Ainda que com maior intimidade, o meu relacionamento com
Alejandra configurava uma relação do tipo "brokers". Seus contatos mais frequentes eram
por questões burocráticas, relacionadas à documentação, à procura de emprego, à
necessidade de comunicação com as filhas, esse tipo de relação se consolidou mais com
a passagem do tempo, e atualmente se estabelece a partir dessas situações de impasse.
Dessa forma, o foco do presente texto de dissertação recai sobre as experiências
de vida de duas mulheres transsexuais, Mariel e Danny e uma mulher cisgênero lésbica,
Alejandra, todas venezuelanas, solicitantes de refúgio no Brasil e interiorizadas para o
Rio de Janeiro, entre julho e dezembro de 2018. Nesta sessão procurei abordar a
construção da minha relação com elas. Na sessão seguinte, irei abordar aspectos da
produção etnográfica/antropológica que foram essenciais para reflexão sobre a
constituição das condições de trabalho de campo e a trajetória da pesquisa.

53
2.3 - Reflexões sobre as fronteiras entre Eu/Outro

Como já vinha trabalhando com a temática de refúgio e migração de pessoas não-


cisheterossexuais, antes mesmo desse tema se consolidar como objeto de pesquisa no
mestrado, julgo com dificuldade o ínicio e fim do meu trabalho de campo. Concordo com
Peirano (2008) sobre a arbitrariedade dessas noções temporais diante dos deslocamentos
de percepção proporcionados pelo exercício etnográfico. Essa pesquisa foi formada por
incontáveis "duelos de lógica", expressão utilizada por Gabriel Tarde (2007) para se
referir a conflitos interiores entre crenças e desejos. Minha maior crença me fazia
questionar sobre minha capacidade de realização de um trabalho etnográfico sem a
formação antropológica prévia, durante a graduação. Meu maior desejo era ser capaz de
produzir uma reflexão que não recaísse no lugar comum das produções jurídicas e
burocráticas que, em muitos casos, obscurecem as narrativas sobre cotidianos,
experiências de vida e biografias de pessoas migrantes e solicitantes e refugiadas. Tanto
esse desejo quanto essa crença incidem completamente - não sobre o que deve ser pensado
como método, como afirma Peirano (2014) - mas antes, sobre o que ela se refere como
"teoria vivida". Isto é, a produção etnográfica como uma conjunção única de teoria e
ação/prática. Segundo a autora, a "etnografia não é apenas um método, mas uma forma
de ver e ouvir, uma maneira de interpretar, uma perspectiva analítica, a própria teoria em
ação" (p.3, 2008). Portanto, uma forma de experimento vivo da teoria.
Apesar de analisar experiências de vida, meu trabalho de campo também foi uma
forma de experiência. Adentrei-o subitamente, pela criação da LGBT+movimento e dele
nunca saí, por advento da continuação do projeto. Esse fato me remete à definição de
método por Dumézil: “o método é a descoberta do caminho depois de já o termos
percorrido". Isso pressupõe que seu ínicio e fim são, na verdade, secundários diante do
deslocamento realizado. Tive a oportunidade de lidar com diferentes pessoas na esfera
mutável do poder que produz e reveste as relações entre as interlocutoras migrantes,
solicitantes e refugiadas não-cisheterossexuais, e as pessoas responsáveis pelo
atendimento e administração dessas vidas, como assistentes sociais, psicólogos,
advogados, agentes do Estado, agentes de proteção etc. Bem como tive que refletir sobre
minhas próprias experiências de vida para conseguir produzir tais deslocamentos de
percepção. Muitos momentos foram marcados por uma ambiguidade entre minhas
percepções enquanto mulher lésbica ativista pelos direitos de pessoas não-
cisheterossexuais e minhas percepções enquanto mestranda em antropologia.

54
Inicialmente, tive grandes dificuldades em compreender alternativas para analisar
experiências de vida e narrativas biográficas, de modo a não recair, majoritariamente, em
reflexões sobre violência e sofrimento. Iniciei o trabalho de campo com a certeza de que
essas temáticas seriam aquelas que guiariam minha pesquisa. De fato elas estiveram
muito presentes durante todo o trabalho de campo. Mas a prática foi soberana. No
decorrer do "caminho percorrido", compreendi que as formas de negociação e
agenciamento que aquelas mulheres faziam diariamente com as pessoas em seu entorno,
sobressaiam as formas de violência e sofrimento que passavam. Toda ação era uma forma
de resistir e toda resistência era uma manutenção e recriação de modos possíveis de vida.
Em outras palavras, fui surpreendida. Segundo Goldman (2008), é isso que consiste a
Antropologia.
“os discursos e práticas nativos devem servir, fundamentalmente, para desestabilizar
nosso pensamento (e, eventualmente, também nossos sentimentos). Desestabilização
que incide sobre nossas formas dominantes de pensar, permitindo, ao mesmo tempo,
novas conexões com as forças minoritárias que pululam em nós mesmos.”
(GOLDMAN, 2008, p.7)

Apesar de conviver com amigas transsexuais e travestis na minha rede de afeto


pessoal e em espaços de ativismo LGBTI+, experimentei o que Giberto Velho (1981)
comentou ao dizer: " o que sempre vemos e encontramos pode ser familiar mas não é
necessariamente conhecido e o que não vemos e encontramos pode ser exótico mas, até
certo ponto, conhecido” (VELHO, 1981, p. 126). Lembro-me que, durante a visita ao
abrigo Latif Salomão, fiz questão de perguntar ao sargento responsável sobre a situação
do uso dos banheiros na dinâmica do abrigo. De certa maneira, aquela discussão me era
familiar, pois é uma problematização muito presente em espaços de ativismo de pessoas
transsexuais.
Quando o sargento comentou que as mulheres transsexuais e travestis tinham um
espaço exclusivo no banheiro masculino, e não no feminino, subitamente julguei isso
como um equívoco. Meu julgamento tinha origem nesse lugar familiar que é o ativismo
de pessoas transsexuais, onde o espaço do banheiro é reclamado por correlação ao gênero
pelo qual a pessoa se identifica, e não ao sexo biológico do sujeito.
Nessa situação, refleti sobre a necessidade de estranhar o familiar (VELHO,
1981), abordando que, mesmo em situações familiares, o exótico está presente. Em alguns
casos, a presença estranha dele em âmbito que nos parece familiar, pode nos causar
espanto e levar-nos a percepções e reflexões ainda não apontadas. Nesse sentido, o autor
comenta que antropólogos que estudam tribos isoladas têm, talvez, uma maior dificuldade
em determinar o que lhes é familiar e exótico. Pois em certo sentido, tudo lhes é exótico.

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E por isto, a interpretação do investigador fica sendo a única interpretação sobre
determinada cultura, não havendo questionamentos sobre ela.
O contrário parece acontecer com os antropólogos que pretendem estudar espaços
urbanos, como é o caso de Velho, e que, como ele comenta da sua própria experiência,
estão a todo momento conversando e trocando reflexões com outras pessoas e
pesquisadores ao seu redor, tendo assim a sua versão questionada e atualizada a todo
momento. Na primeira situação, tudo é exótico ao antropólogo, e seu esforço é o da
familiarização, que irá auxiliá-lo a organizar e escrever sua etnografia de maneira concisa,
para que outros possam compreendê-la. Na segunda situação, o antropólogo está imerso
numa rotina que lhe é familiar, e seu esforço é o estranhamento, para que ele possa assim
realizar um estudo objetivo, mesmo estando imerso em sua subjetividade.
Diante dessa situação do banheiro, me percebi em um lugar familiar. Eu sabia qual
era a conduta "correta" ou, ao menos, "esperada". Esse lugar é um sítio perigoso para os
antropólogos. E rompia com o que Geertz apontava como "examinar dragões; não
domesticá-los":
“Examinar dragões; não domesticá-los ou abominá-los, nem afogá-los em barris de
teoria, é tudo em que consiste a antropologia /.../ Temos procurado, com sucesso nada
desprezível, manter o mundo em desequilíbrio, puxando tapetes, virando mesas e
soltando rojões. Tranquilizar é tarefa de outros; a nossa é inquietar. Australopitecus,
Malandros, Cliques Fonéticos, Megalitos: apregoamos o anômalo, mascateamos o
que é estranho, mercadores que somos do espanto.” (GEERTZ, 2001, p. 65)

No caso, quem estava sendo domesticada e simultaneamente, domesticando, era


eu mesma. Domesticar meus questionamentos era os transformar em certezas, em fatos.
Ou como comenta Latour e Woolgar (1997), ao se tornar fato, algo deve necessariamente
perder a sua trajetória de construção social e histórica. Ganha-se, portanto, o status de
inquestionável; o fato aparece como se fosse algo que sempre existiu, e que não necessita
ser desafiado. Não havia dúvidas, em mim, que a questão do banheiro era relevante, e que
a conduta "mais correta" seria o respeito a identidade de gênero das mulheres transsexuais
e travestis e não o sexo biológico e, assim, o uso do banheiro feminino e não masculino.
A minha familiaridade com essa discussão tornou-a como que "distante" de mim.
Só voltei a ela, por ocasião da realização das entrevistas em profundidade com as
interlocutoras. Durante uma das entrevistas, pude refletir considerando parte dessa
situação me era familiar, enquanto todo o "entorno" era estranho: nunca havia estado em
um abrigo para refugiados; nunca havia conversado com um militar sobre existências
transsexuais e travestis; nunca havia conversado com aquele grupo específico de
mulheres transsexuais e travestis venezuelanas. E era a minha primeira vez em uma

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situação de trabalho de campo. Durante as entrevistas, sobretudo com Mariel, que era
uma das coordenadoras do abrigo, ela me relatou que haviam muitas brigas com a questão
da utilização do banheiro, principalmente entre as mulheres cisgênero e as mulheres
transsexuais e travestis. Em parte porque as mulheres cisgênero não gostavam da presença
das mulheres transsexuais e travestis naquele espaço. Em muitos casos, não as
consideravam "mulheres", por conta do sexo biológico delas. E diziam se sentir
ameaçadas por aquelas presenças que julgavam como "não-mulheres". Por outro lado,
havia uma pressão, por parte das mulheres transsexuais e travestis, de utilizar o banheiro
masculino. Mariel me disse que o grupo de mulheres transsexuais e travestis alegou para
os militares que estavam sofrendo discriminação por parte das mulheres cisgênero do
abrigo, o que não era mentira. Porém Mariel me disse que o real motivo pela pressão em
usar o banheiro masculino e, principalmente, ter uma cabine exclusiva dentro desse
banheiro, era, na verdade, para obterem um lugar para realizarem programas com os
homens do abrigo. E assim conseguirem uma fonte de renda. Porém esse argumento não
poderia ser usado na negociação com os militares.
Com essa experiência, percebi a minha "surpresa" diante das condições de
trabalho de campo, tudo me era imprevisível. Era preciso estranhar até o estranhamento,
a fim de captar as singularidades, os pontos de suspensão, ou, como compara Magnani
(2009), o satori, uma espécie de iluminação que chega, em muitas histórias zen budistas,
após a pronunciação dos koans pelos mestres. Os koans são perguntas inacessíveis à
razão. Elas paralizam a mente, ao causar um súbito e fatal estranhamento da percepção
de si e do que se concebe como realidade. Não procuro afirmar que o fazer etnográfico é
forjado através dos detalhes, muito menos que é composto exclusimente deles, mas é a
forma com a qual lidamos com eles que faz ser possível a produção de um trabalho
etnográfico. É através dessa vocação pelo "desenraizamento crônico" (URIARTE, 2012)
que somos capazes de deslocar nossas percepções, a tal ponto de poder produzir o que
Cardoso de Oliveira (1998) denominou de "fusão de horizontes", isto é, o ponto em que
conseguimos efetuar a dupla tarefa de relativizar nossas pré-concepções, sem deixar de
ignorá-las e, simultaneamente, conseguimos realizar um impulso centrífugo que admite a
alteridade como solução e não como problema.
Segundo Uriarte (2012), o trabalho de campo na Antropologia possui três fases.
A primeira delas consiste no aprofundamento na teoria relacionada à temática e à
população que iremos trabalhar. Nessa fase a maior dificuldade foi a obtenção de
referências que tratassem especificamente do tema de migração e refúgio de pessoas não-
cisheterossexuais. Por conta do peso jurídico da categoria refúgio, os assuntos de

57
migração e refúgio ainda são muito dominados por discussões burocráticas e jurídicas.
Quando não, poucos adotam métodos biográficos ou de experiências de vida, que
enfoquem experiências dessas pessoas no mundo. Nas áreas de gênero e sexualidade,
onde, normalmente, são produzidas muitas reflexões sobre pessoas não-
cisheterossexuais, a temática do refúgio e migração internacional são ainda pouco
abordadas, sobretudo em relação à migração venezuelana para o Brasil. No capítulo dois
procurarei me profundar na discussões especificamente relacionadas a essa temática.
A segunda fase se refere ao campo "em si", o tempo que, comumente, nos
referimos como "estar em campo", ou como Clifford (1999, p. 94) define: "co-existência
extensa, uma observação sistemática, uma interlocução efetiva, uma mistura de aliança,
cumplicidade, amizade, respeito, coerção e tolerância irônica", Uriarte (2012) ainda
subdivide essa segunda fase em dois períodos, o de "coleta" de dados e o que ela se refere
como o período da "sacada". A autora concorda com a noção de que o campo não nos
fornece dados, porém, há, durante ele, uma série de informações que registramos para
transformá-las em dados para a pesquisa. Esse primeiro período da segunda fase, se refere
ao "Olhar e Ouvir" de Cardoso de Oliveira (1996). É através do “Olhar” que somos
capazes de obter uma leitura silenciosa sobre a cena ou cenário que se passa, para que
possamos dialogar com ele futuramente. O escolher para onde, quem e quando olhar é já
uma forma de interpretação, uma "educação" teórica do olhar. Um bom exemplo da
importância da dimensão do "Olhar" na pesquisa, está em A vida de laboratório: a
produção dos fatos científicos de Bruno Latour e Steve Woolgar (1997), em que os
autores elaboram etnografia de um laboratório e comentam que a distinção entre
observação e reflexão é, na verdade, uma impossibilidade, não se pode observar sem
interpretar e não se pode descrever sem refletir. Em alguns momentos, durante o trabalho
de campo, problematizei a questão do pesquisador como um sujeito político em cena.
Haveria distinção entre tais? A leitura do livro de Latour e Woolgar me apontava que essa
diferença era inexistente, o pesquisador é a expressão da rede, no sentido Latouriano. Ele,
ao adentrar o campo, se torna também um agenciador e não um mero indivíduo. Nesse
mesmo sentido, Peirano (2014) afirma que a personalidade do investigador e a sua
experiência pessoal não podem ser excluídas do trabalho etnográfico, somos segundo os
comentários de Latour e Woolgar, atores também e por isso, insubstituíveis.
Já o “Ouvir”, segundo Cardoso de Oliveira (1996), é a dimensão que une o sentido
dos interlocutores, que falam, com a significação do antropólogo, que ouve.
Diferentemente do “Olhar”, o “Ouvir”, destaca a relação entre o Mesmo e o Outro
(FOUCAULT,1999). Esse "Ouvir" que busca compreender o "Olhar" do mundo dos

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interlocutores. Como eles captam o mundo? Em alguns momentos do trabalho de campo,
que denomino de lapsos, sentia-me insegura no decorrer dos registros. Havia em mim
algo, que me levava a supor que eu nunca iria conseguir expressar o que as interlocutoras
me comunicavam. Todavia, uma crença de que a etnografia só é possível através do
"tornar-se, nativa", no sentido que Malinowski (1978) compreeendia. A Antropologia do
século XX marca o descolamento dessa visão centrada no pesquisador e não no
interlocutor. Não podemos nos tornar o que não somos. E para além disso, a alteridade é
possível. Sobre esse exercício comenta Uriarte (2012):
"A Antropologia é o lugar, dentro do espaço das ciências ocidentais, para pensar a
diferença e o antropólogo é aquele que se interessa pelo Outro: um sujeito bastante
raro, é verdade, porque em lugar de querer defender uma identidade, queremos ser
atingidos pelo Outro, em vez que nos enraizarmos num território de certezas,
buscamos o desenraizamento crônico que nos leva à busca pelo Outro." (Uriarte,
2012. p. 4)

Após o primeiro período da segunda fase da pesquisa, referido como o da "coleta


de dados", a autora propõe um segundo período que designa de "sacada". Em contraste
com as frustrações, confusões e um certo caos que marca o primeiro período, o segundo
consiste na transformação das informações do campo em material significativo para a
elaboração interpretativa. A autora marca a importância do "tempo" nesse período, para
que o antropólogo seja capaz de deixar "decantar" em si mesmo as informações que a
experiência em campo lhe proporcionou. Esse momento, como bem diz seu nome,
"sacada", é o mesmo ao que Magnani (2009) se refere quando compara ao já mencionado,
Satori na cultura oriental. É nesse período que o "ser afetado", concebido por Favret-
Saada (2005), está mais presente. As experiências do trabalho de campo afetam a vida
pessoal do antropólogo, modificando e atualizando a sua percepção e investigação a cada
instante. Por isso, Uriarte enfatiza a necessidade do decorrer do tempo, para que haja esse
movimento de diferenciação durante o trabalho de campo. Somos (enquanto
antropólogos) um produto dos nossos próprios deslocamentos, por isso o trabalho de
campo não pode ser considerado apenas uma estratégia metodológica (SARRÓ e LIMA,
2006, p. 21).
Após a primeira fase de aprofundamento na teoria relacionada à temática, e a
segunda fase, composta pelo trabalho de campo "em si", a terceira fase do fazer
etnográfico é a escrita. Se a alteridade marca o trabalho do antropólogo, durante a escrita,
ele atinge seu valor máximo. Sempre se escreve para o Outro. Escrevemos e trocarmos
com nossos orientadores e colegas. É preciso que sejamos lidos, que agora haja a inversão
centrípeta do "Olhar" e "Ouvir", que vem a partir do nosso exercício de escrever para que
outros compreendam e também vem através das relações de trocas com comentários,

59
críticas e elogios a partir da leitura da pesquisa escrita. Ser capaz de refletir e organizar
para comunicar e possibilitar essa leitura, feita por pessoas que não estavam lá (Geertz,
1998), é justamente ser capaz de produzir a "fusão de horizontes", da qual falava Cardoso
de Oliveira (1998): ser capaz de fusionar teoria e prática no ato da escrita.

Assim, com base nas observações desses autores e de muitos outros


antropólogos que sempre refletiram sobre seu trabalho de campo, é possível postular,
de uma maneira sintética, que a etnografia é uma forma especial de operar em que o
pesquisador entra em contato com o universo dos pesquisados e compartilha seu
horizonte, não para permanecer lá ou mesmo para atestar a lógica de sua visão de
mundo, mas para, seguindo-os até onde seja possível, numa verdadeira relação de
troca, comparar suas próprias teorias com as deles e assim tentar sair com um modelo
novo de entendimento ou, ao menos, com uma pista nova, não prevista anteriormente
(Magnani, 2009)

Uriarte (2012) comenta que uma das maiores dificuldades dessa terceira fase está
na distinção entre a etnografia e escrita. Enquanto a etnografia é experiência viva da
alteridade, a narrativa etnográfica é a materialização dessas experiências totais em um
texto que possui todas as exigências de compreensão comuns a qualquer outra produção
literária: coerência e linearidade. Duas características que não encontramos na vivência
do campo. Além disso, acontece um curioso fato, que Uriarte ressalta: o antropólogo que
escreve nessa terceira fase, não é mais aquele da primeira, nem da segunda fase, já é outro.
Talvez até a leitura de suas anotações lhe pareçam estranhas em algum momento. Então,
como conjulgar esse novo lugar do antropólogo, que não é "nativo", pois nunca é, mas
também não é mais si mesmo? Esse é o lugar da escrita. Como propõe Viveiros de Castro
(2002), é na relação formada com os interlocutores durante o trabalho de campo, em que
esses lugares são atualizados. Segundo ele, para que o fazer antropológico ocorra, é
necessário que o discurso do antropólogo se relacione com o discurso do "nativo". O
conhecimento antropológico é, portanto, uma forma de relação social. Em crítica sobre
as relações entre antropólogo/nativo; sujeito/objeto e Eu/Outro, Viveiros de Catro (2002)
interpreta a figura da alteridade, como Outrem.

É justo porque o antropólogo toma o nativo muito facilmente por um outro sujeito que
ele não consegue vê-lo como um sujeito outro, como uma figura de Outrem (Deleuze)
que, antes de ser sujeito ou objeto, é a expressão de um mundo possível (...) Ele sabe
demais sobre o nativo desde antes do início da partida; ele predefine e circunscreve
os mundos possíveis expressos por esse outrem; a alteridade de outrem foi
radicalmente separada de sua capacidade de alteração (...) Outrem, porém, não é
ninguém, nem sujeito nem objeto, mas uma estrutura ou relação, a relação absoluta
que determina a ocupação das posições relativas de sujeito e de objeto por
personagens concretos, bem como sua alternância: outrem designa a mim para o outro
Eu e o outro eu para mim. Outrem não é um elemento do campo perceptivo; é o
princípio que o constitui, a ele e a seus conteúdos. Outrem não é, portanto, um ponto
de vista particular, relativo ao sujeito (o ‘ponto de vista do outro’ em relação ao meu

60
ponto de vista ou vice-versa), mas a possibilidade de que haja ponto de vista — ou
seja, é o conceito de ponto de vista. Ele é o ponto de vista que permite que o Eu e o
Outro acendam a um ponto de vista. (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 117/118)

O esforço dos antropólogos, na fase da escrita, estará em resgatar a alteridade


como o que ela é: mundos possíveis. Esse talvez seja o grande conhecimento que a
Antropologia nos ensina: que diversas formas alternativas são possíveis, para além
daquelas hegêmonicas, já tanto conhecidas. É também nesse sentido, de mundos possíveis
que tomo o desafio de abordar as experiências considerando a vida de mulheres migrantes
e solicitantes de refúgio não-cisheterossexuais venezuelanas, que foram interiorizadas
para a cidade do Rio de Janeiro.
Neste capítulo procurei demonstrar como foi minha inserção no universo de
relações que permitiram a pesquisa sobre migração e refúgio de pessoas não-
cisheterossexuais, bem como as maneiras pelas quais foi construída a minha relação com
as três interlocutoras que fazem parte dessa pesquisa. E por fim, procurei discutir aspectos
da produção etnográfica/antropológica que foram importantes construir minha trajetória
da pesquisa.

61
Capítulo 2 - Experiências Teóricas

3.1 - A Fissura

Nessa sessão abordo a descontinuidade, ou "fissura", responsável pela recorrente


não-intersecção de formulações teóricas entre os campos de migração e refúgio e de
gênero e sexualidade. Em seguida, busco discutir, a partir das reflexões elaboradas por
Fassin (2012), as implicações do humanitarismo como poder de governo, diante de
situações como a crise venezuelana. Ao fim da sessão, procuro demonstrar como essa
descontinuidade vem se alterando, tomando novas formas e associações, ainda pouco
explicitadas, junto a setores conservadores de direita, sobretudo após o estopim de
diversas crises migratórias pelo mundo, em conjunto com a intensificação da luta por
direitos sexuais, que tem atribuído um valor positivo às diferentes orientações sexuais e
identidades de gênero, outrora consideradas sobre velado domínio privado.
Inicialmente, a "fissura" entre o campo de estudos migratórios e de gênero e
sexualidade presupõe que conhecimentos produzidos nesses campos favorecessem, por
muito tempo, análises em separado (ANDRADE, 2017). Assim, nos estudos migratórios,
as questões ligadas a gênero e sexualidade foram desconsideradas por um longo período
de tempo, sendo negligenciadas ou mesmo apagadas pela associação a outras rúbricas
como sodomia, moral, desvio e patologia (MALANANSAN, 2006). Os migrantes,
solicitantes e refugiados eram previamente admitidos como uma massa de sujeitos
heterossexuais, cisgêneros, em sua maioria do gênero masculino (TEIXEIRA, 2015). As
mulheres, no entanto, eram compreendidas apenas como companhias ou parte
coadjuvante da família, acompanhante do homem migrante ou refugiado.
Esse, era assumido como protagonista de sua própria vida (MAHLER, 2006). A
partir de 1980, sobretudo em países do Norte, os estudos feministas passaram a
influenciar os estudos migratórios, e as mulheres, após décadas de negligência acadêmica
naturalizada e de invisibilidade social, passaram a ocupar espaço, tanto na produção de
conhecimento do tema, quanto nas construções de políticas públicas voltadas à população
migrante e refugiada (SOTELO, 1999). Entretanto, o foco que as mulheres vieram a
ganhar, foi produzido sob a categoria "mulheres". De acordo com as críticas de Judith
Butler (2016), essa categoria correspondeu a um instrumento de normatização,
reforçando a diferença sexual entre homens e mulheres e criando uma série de
expectativas de gênero associadas às mulheres, isto é, reduzindo o sujeito político do
feminismo a essa categoria. E principalmente neglicenciando aquele que deveria ser o

62
debate central: as discussões acerca dos papéis de gênero implicados na relação entre sexo
e gênero. Dessa maneira, os questionamentos sobre gênero permaneceram por muitos
anos fora dos espaços discursivos da temática de migração e refúgio. Por essa razão esse
pensamento foi edificado sob a base de uma sociedade supostamente homogeneizada, no
padrão hegêmonico cisheteronormativo, ignorando diferentes formas de orientação
sexual e identidades de gênero. A partir dessa perspectiva, sexualidade e gênero não só
foram excluídos das motivações de pesquisa, como também não foram levados em conta
quanto aos efeitos sobre a migração (LUIBHÉID, 2004; MALANANSAN, 2006;
CANTÚ, 2009; TEIXEIRA, 2015).
Em outro oposto, no campo dos estudos de gênero e sexualidade, as temáticas de
migração e refúgio também permaneceram apartadas das principais discussões. Mesmo
sendo a migração uma ação/resposta direta, as diversas formas de opressão, que, em
contextualidades, marcam as vidas de pessoas não-cisheterossexuais, caso da expulsão
ou saída precoce de seus núcleos familiares; do deslocamento e formação de
determinados bairros ou áreas marginalizadas; da migração de pessoas não-
cisheterossexuais de áreas rurais para áreas urbanas; do reconhecimento das identidades
não-cisheterossexuais como violação ou crime, tanto que por muito tempo e em muitos
países, justificava-se a sumária deportação de migrantes 47; criminalização das práticas
sexuais e afetivas associadas a pessoas não-cisheterossexuais, ainda vigentes em mais de
60 países no mundo, com punições que vão de penas de reclusão à pena de morte. Ainda
que, desde 2002, agências internacionais humanitárias ressaltem a importância do
reconhecimento da condição de refugiados e solicitantes com base na orientação sexual e
identidade de gênero. A reflexão sobre a migração e o refúgio de pessoas não-
cisheterossexuais encontra-se, portanto, na fronteira de dois campos de direito: o da
migração e refúgio, responsável pela constituição permanente da noção de “refugiados”,
"migrantes", "solicitantes" e tantas outras categorizações associadas a temática; e o de
gênero e sexualidade, que, entre outros, abriga os estudos sobre pessoas não-
cisheterossexuais (FRANÇA, 2017).
Nesse quadro de reflexões, ressalta-se a chamada crise venezuelana. Ela se iniciou
em 2014, deixando um número impactante de pessoas deslocadas por fronteiras políticas
do país, assim como um número também significativo de pessoas refugiadas e migrantes
para outros países da América Latina e Caribe. Segundo dados do ACNUR, até novembro

47
Ver em Bashford e Howard (2004).

63
de 2019, estima-se a expressividade númerica de 4,6 milhões migrantes e refugiados
venezuelanos em países no mundo48, sendo que 80% desse número se concentram na
América Latina e Caribe49. Pelas projeções do Plano Regional de Resposta a Refugiados
e Migrantes (RMRP), a estimativa é que, em 2020, esse número chegará a 6,5 milhões de
migrantes e refugiados venezuelanos no mundo 50. Configurando-se como a maior crise
de deslocamento da história recente da América Latina 51, superando a magnitude do
deslocamento sírio 52. Para conseguir manter a "ajuda humanitária" aos venezuelanos, na
América Latina e Caribe o orçamento planejado pelo RMRP é de cerca de 5,6 bilhões de
reais [1,35 bilhões de dólares]. 53
No Brasil, estima-se que o número de migrantes, solicitantes de refúgio e
refugiados está em torno de 288.610 mil pessoas54, número bastante inferior quando
comparado ao Equador (330.000), Chile (371.000), Peru (860.000) e Colômbia
(1.500.000)55. De acordo com o RMRP e em concordância com a segunda etapa da
Operação Acolhida no Brasil, a prioridade no ano de 2020 incidirá na implementação
daquilo que o ACNUR se refere como "soluções duradouras", principalmente associadas
às atividades de interiorização e reassentamento, nas diversas modalidades já citadas; e
de integração local, para garantia de permanência das pessoas nos territórios para os quais
se deslocaram. Até novembro de 2019, o Brasil contava com 11.231 pessoas com refúgio
reconhecido pelo CONARE. Contudo, no dia 5 de dezembro de 2019, o CONARE
aprovou, de uma só vez, 21.432 solicitações de refúgio de venezuelanos, quase triplicando
o número total de refugiados no Brasil 56. Fato inédito pois o tempo de espera entre a

48
Como disponível na matéria do portal do ACNUR: https://www.acnur.org/portugues/2019/11/28/4-
dados-para-entender-a-situacao-da-venezuela/;
49
idem;
50
idem;
51
idem;
52
Como disponível na matéria:
https://brasil.elpais.com/brasil/2019/11/19/internacional/1574128387_157435.htm;l
53
Como disponível na matéria do portal do ACNUR:
https://www.unhcr.org/news/press/2019/11/5dcbd7284/us135-billion-needed-help-venezuelan-refugees-
migrants-host-countries.html;
54
Disponível no relatório do RMRP: https://reliefweb.int/sites/reliefweb.int/files/resources/72254.pdf;
55
Como disponível na matéria:
https://brasil.elpais.com/brasil/2019/11/19/internacional/1574128387_157435.html;
55
Como disponível na matéria:
https://brasil.elpais.com/brasil/2019/11/19/internacional/1574128387_157435.html;
56
Como disponível na matéria: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2019/12/05/brasil-aprova-mais-de-
21-mil-pedidos-de-refugio-de-venezuelanos.ghtml

64
solicitação de refúgio até o julgamento da mesma girava em torno de três anos em 2017.
Porta vozes do CONARE afirmam que a classificação da crise venezuelana como grave
e generalizada violação dos direitos humanos simplificou o processo de aprovação dos
pedidos de refúgio venezuelanos, embora ainda não exista a possibilidade de isentar os
solicitantes de realizarem as entrevistas e análise de antecedentes.
Facundo (2014) considera a predominância da ONU, principalmente de agências
como ACNUR e OIM, na produção de estatísticas sobre migrantes, solicitantes e
refugiados. A autora critíca a objetividade dos dados, que nos chegam como
inquestionáveis, destacando que as agências não agem somente sobre as pessoas, mas
sobre as informações produzidas sobre elas, em um movimento que produz, através das
estatísticas, a própria justificativa de intervenção sobre migrantes, solicitantes e
refugiados. Facundo discute essa questão relacionando-a às proposições sustentadas por
Foucault (1981) quanto ao estabelecimento de regimes de verdade, mediante a produção
de saberes e práticas que determinam esses corpos como passíveis de intervenção. O
refugiado é produzido como uma anormalidade que deve ser gerida e contida por meio
de intervenção. Essa figura de anormalidade faz com que os refugiados sejam pensados
a partir de uma ideia de marginalização. A autora dialoga com Butler e Spivak (2018), ao
apontar que essa anormalidade marginalizante associa migrantes, solicitantes e
refugiados à ideia de um sujeito “à deriva”, como que fora de ordem social. Pensamento
que oculta o fato de que os migrantes, solicitantes e refugiados estão, incessamente, sob
o controle do poder do Estado. A autora defende, assim como Butler e Spivak, que não
há um abandono metafísico do refugiado. Pelo contrário, há um estado de controle
permanente, sob produção, administração, contenção, intervenção e eventual proteção do
Estado.
Apesar de não haver menções explícitas na declaração de 1951 e nem no protocolo
de 1967, que instituem o estatuto do refugiado, sobre o direito do reconhecimento da
condição de refugiado a pessoas não-cisheterossexuais que sofreram ameaça e
perseguição, há hoje muitos casos oficialmente reconhecidos no mundo. O primeiro
deles, como mensionado no capítulo 1, aconteceu em 1990. A data está em acordo com
os primeiros reconhecimentos dos direitos sexuais57 no cenário internacional58

57
Assim como ressalta França (2017), os direitos sexuais são definidos por Vianna (2012) "recente
invenção contemporânea (...) conjunto disperso e heterogêneo de princípios, demandas, incômodos e
subjetividades políticas" (p. 228)
58
As discussões sobre os direitos de pessoas LGBTI+ ou não-cisheterossexuais não aconteceram até 1994
na ONU.

65
(FRANÇA, 2017). Desde então, é cada vez mais intenso o debate e reinvidicação desses
direitos, no Ocidente, como parte essencial da garantia e proteção dos direitos humanos
universais.
Na análise de Fassin (2012), as agências humanitárias ganham o status de
"governos da precariedade", administrando crises, conflitos e catástrofes, com
orçamentos bilhonários, intervindo diretamente na população afetada e produzindo
informações sobre ela. O autor destaca então a ambiguidade do humanitarismo: de um
lado, incide sobre eventos catastróficos, que geralmente envolvem situações de tragédia,
mortes, migração em massa, violação dos direitos humanos; e do outro, as agências
humanitárias, compreendidas, exclusivamente, como resolutoras de conflitos e
sofrimentos, são consideradas inócuos "veículos” assistenciais da solidaridade mundial
para população afetada.
Lamentamos a morte deles, mas comemoramos nossa generosidade. O poder desse
evento reside na rara combinação da tragédia das ruínas e do caminho da assistência.
Esses desastres agora fazem parte de nossa experiência neste mundo, assim como as
organizações de apoio, operações de socorro e intervenções humanitárias.
Acostumamo-nos ao espetáculo global do sofrimento e à exibição global do socorro.
O cenário moral assim delineado pode ser chamado humanitarismo. Embora
geralmente seja dado como garantido como uma mera expansão de uma suposta
humanidade natural que seria inerentemente associada ao nosso ser humano, o
humanitarismo é uma invenção relativamente recente, que levanta questões éticas e
políticas complexas. (FASSIN, pag. i, 2012)

Fassin ressalta o forte poder de influência que, atualmente, as agências


humanitárias possuem. Sobretudo poder tal como descrito por Foucault (1981): na sua
forma produtiva, que ultrapassa o âmbito jurídico e penetra nas subjetividades individuais
e nos corpos, constituindo-os. No artigo Becoming Gay? Imigration Policies and the
Truth os Sexual Identity (2015), Fassin argumenta como, recentemente, a positividade,
associada à homossexualidade, molda a noção de "democracias sexuais". Essa noção, por
sua vez, atrela a defesa desses direitos e o estabelecimento de políticas públicas efetivas,
voltadas a essa população, ao exercício integral da democracia no Ocidente. Ou dito de
outra forma: "o sexo se transformou na nossa verdade democrática derradeira" (p. 1118).
Os autores referenciais ressaltam o caráter normativo associado à construção dessa noção,
que se estabelece sobre condutas xenofóbicas, racistas e islamofóbicas, como é o caso do
Estados Unidos. Mesmo servindo a uma lógica imperalista, justifica as guerras com países
Islâmicos sob a égide da libertação das mulheres afegãs e de pessoas não-
cisheterossexuais de regimes de opressão, enquanto a Europa, utilizando-se do mesmo
discurso, combate as políticas pró-migratórias, justificando rechaço aos conflitos sexuais
em países Islâmicos.

66
Sexual democracy thus implies a critique of existing norms. However, it is a ‘‘double-
edged sword’’ (Fassin, 2011a): it can also be used normatively. It has actually been
instrumentalized for xenophobic, racist, and Islamophobic purposes to draw a line
between‘‘us’’and‘‘them’’through the opposition between sexual modernity and
sexual archaism: while ‘‘they’’ are allegedly sexist and homophobic,‘‘we’’are
supposed to be good to women (as well as gays and lesbians). It has become a key
element in the post-9/11 world: the (so-called)‘‘clash of civilizations’’has been
reformulated as a sexual one (Fassin, 2006). (Fassin & Salcedo, 2015, p.1118)

Os autores discutem as condições em que a homossexualidade foi, recentemente,


ou melhor, no pós-guerra, positivada através da sua associação aos judeus e à supremacia
branca européia, produzindo não só uma nova forma de nacionalismo, racializado e
sexualizado, como também uma nova forma de homossexualidade, que separa a
homossexualidade Ocidental, como "nossa", e a homossexualidade Oriental, como
"deles", um tipo de Orientalismo gay 59 (MASSAD, 2007). Tal discussão se relaciona com
o conceito de "homonacionalismo", cunhado por Puar (2007), para ressaltar as
associações dos discursos nacionalistas conservadores e neoliberais, que recentemente
ganharam espaço na política de pessoas não-cisheterossexuais. Inspirada por esse
conceitos, Leticia Sabsay (2012) comenta o paradoxo em que se encontram as identidades
Queer, sobretudo nos Estados Unidos e Europa, que surgiram como um movimento
comprometido com a crítica radical de formas de regulação de identidades instituídas pelo
imaginário nacional, com propostas que pretendiam ultrapassar a lógica do Estado-
Nação, mas hoje se encontram em movimento de reinscrição nas narrativas nacionalistas,
associadas a políticas culturalmente imperialistas, xenofóbicas, racistas e anti-
migratórias. A autora ressalta como a intensificação pelas lutas por direitos sexuais, nas
referidas democracias sexuais, se associou a movimentos conservadores sobre a
instituição de uma "cidadania (homo)sexual".
Gostaria de sugerir que nos confrontemos com uma lógica perversa pela qual a
inclusão nas últimas décadas de genderificados e sexualizados 'outros' nos

59 Conceito utilizado para se referir as produções de conhecimento sobre o Oriente a partir de perspectivas
Ocidentais. O conceito tornou-se popular após o livro de Edward Said, Orientalismo - O Oriente como
Invenção do Ocidente (2003), nele o autor expõe que a produção do Oriente pelo Ocidente se deu sob
imbricados discursos intelectuais que produziram Oriente como uma alteridade "Outro": subalterna,
atrasada, irracional, violenta, em contraposição ao Ocidente. Esse imaginário estabeleceu uma identidade
européia de superioridade, com objetivos imperialistas de dominação, que justificaram a exploração
colonial do Oriente por décadas. No livro Desiring Arabs (2007), escrito por Joseph Massad o autor compila
produções contemporaneas e locais na temática de sexualidade Árabe e as examina em referência ao
conceito de Orientalismo proposto por Said. O autor demonstra como as representações européias tem
influência sobre a produção de um ideal civilizatório de compreensão da sexualidade. Massad também faz
critica ao impacto da defesa internacional dos direitos humanos no Ocidente (que ele chama de Gay
Internacional) relacionados a pessoas não-cisheterossexuais e aos discursos sobre sexualidade Árabe, que
reproduzem uma lógica de que a sexualidade no Oriente deve ser libertada.

67
imaginários euro-americanos de cidadania levou à formulação do que chamo de
'cidadania sexual', propondo a formação de novos sujeitos portadores de direitos
sexuais como se já fossem entidades existentes. Essa reificação do sujeito portador de
direitos sexuais pressupõe que gênero e sexualidade são direitos universais, e não
resultados específicos de lutas sociais e políticas. Essa "epistemologia sexual"
universalista (e hegemônica), como Joseph Massad (2007) a chama, permanece
inquestionável, mesmo entre algumas críticas sexualmente progressistas que
denunciam a cooptação de ideais sexuais progressivos para projetos imperialistas,
populistas, racistas e excludentes. (SABSAY, 2012, p.608)

A "cidadania (homo)sexual" à qual a autora se refere pressupõe o estabelecimento


de uma hegemonia Ocidental de compreensão, que entende que o sujeito não-
cisheterossexual, pela virtude da sua orientação sexual ou identidade de gênero, é um
potencial requerente de direitos. Em consequência, é instituído um binário referencial da
compreenssão, que diferencia as pessoas não-cisheterossexuais Ocidentais/ do Norte
como sujeitos que gozam de regimes sexualmente democráticos, exemplares, acolhedores
compostos pela possibilidade de requerimento desses direitos pelos sujeitos. Ao
contrário, as pessoas não-cisheterossexuais Orientais/do Sul são tomadas como parte
desse "outro cultural", sexualmente reprimido, primitivo, tradicionalista, atrasado e
LGBTI+fóbico, destituído de direitos. Essa concepção destrói uma série de identidades e
práticas sexuais, diante de um processo de adequação à democracia Ocidental e
hegemônica na condição da conformação às normas Ocidentais, sobretudo em situações
migratórias, onde essa adequação aos ideias dominantes pode representar seu
reconhecimento legal ou não.
(...) para funcionar, a colonização (e vitimização) de gays do sul, de cor, religiosos -
hoje especialmente muçulmanos - e de gays, lésbicas, bissexuais, queers e transexuais
depende dessas estruturas culturais normativas às quais elas são submetidas por
exclusão ou assimilação obrigatória. (...) Esse sujeito sexual não precisa se conformar
exclusivamente às normas heterossexuais, mas, ainda assim, precisa se conformar
com outras normas sexuais ocidentais que lhe permitiriam tornar-se lésbicas, gays ou
transgêneros em tais termos que todos os direitos sexuais lhe pudessem ser atestados.
Dessa maneira, esse sujeito sexual também se torna o referente pelo qual organizações
internacionais de direitos humanos e governos ocidentais, nos níveis nacional e
regional, agora desenham o mau e o bom político sexual e, por extensão, o leste e o
oeste, e também o norte e o sul. (SABSAY, 2012, P.610)

De acordo com a autora, os movimentos de aliança política das pessoas não-


cisheterossexuais só serão capazes de escapar dessa nova lógica que, como Boaventura
(2007) comenta, age como politicamente democrática, mas cultiva fins socialmente
facistas, caso elas se sujeitem ao desejo de reconhecimento pelo Estado, através de
movimentos de articulação e formação de alianças que, entre elas, combatam as formas
de violência perpetradas pelo Estado, e não estejam contra políticas migratórias.
Neste capítulo procurei abordar a descontinuidade, a que me referi como "fissura",
entre os dois campos de direito que são caros à elaboração deste texto de dissertação, o

68
de migração e refúgio e de gênero e sexualidade, fazendo uma breve discussão sobre a
defasagem, por um longo período, de um campo teórico comum. Além disso, busquei
deliniar a magnitude do poder humanitário em situações de crise generalizada, como é o
caso da Venezuela; e como esse poder é capaz de permear as subjetividades e corpos de
pessoas não cis-heterossexuais, por meio de novas associações entre a recente
positividade referida a pessoas não-cisheterossexuais, em regimes que se reinvidicam
como democráticos, em movimento que coloca a sexualidade como peça fundamental
para a produção de "orientalismos comtemporâneos" (FRANÇA, 2017). Ademais,
associei a luta por direitos sexuais a regimes neoliberais, nacionalistas, racistas,
xenofóbicos, Islamofóbicos.
A análise dessa descontinuidade se faz importante para que se possa compreender
por que migrantes, solicitantes e refugiados são ainda previamente assumidos como
heterossexuais e cisgênero, enquanto as pessoas não-cisheterossexuais são pensadas
como cidadãos (ainda que marginalizados), não-migrantes (LUIBHEID, 2008). A
presença dessa contraposição pressupõe que nesses campos, por muito tempo, ignoraram-
se uma parte determinante na vida dessas pessoas migrantes, solicitantes e refugiadas
não-cisheterossexuais, que eram compreendidas como migrantes, pelos estudos
migratórios, ou como pesssoas queer ou não-cisheterossexuais, pelos estudos queer e de
gênero e sexualidade. No entanto, em que campo teórico está inserida a análise desses
aspectos em comum? Como ele tem desdobrado ao longo dos anos? A partir dos 1990, a
produção de uma intersecção entre migração e refúgio e gênero e sexualidade se
concentra no campo do direito, em países do Norte Global, concentrando as discussões
sobre recentes casos de reconhecimento do status de refugiado a pessoas não-
cisheterossexuais, por motivação ligada à orientação sexual. Ao final dessa década, nos
Estados Unidos, influenciado pelo movimento Queer e pelas teorias feministas, começou-
se a delinear o Queer Migration Schorlarship. O campo compreende que a migração
internacional de pessoas não-cisheterossexuais envolve uma miríade de grupos e
identidades heterogêneas, não-hegemônicas, que se encontram nas mais diversas
situações de violação de direitos humanos; e na busca por novas formas de vida possíveis,
que ultrapassam as análises de migração e refúgio e gênero e sexualidade, quando essas
são tomadas em separado. O campo de estudo sobre migrações Queer surge no desafio
de criar esse espaço comum e pensar sobre essa descontinuidade, que venho
metaforizando como "fissura" e que, por muito tempo moldou nosso pensamento. Em
seguida, as discussões passam a se descentralizar e produções sobre o tema começam a

69
aparecer no Sul Global. Na próxima sessão, abordarei os trânsitos das intersecções entre
migração e refúgio e gênero e sexualidade.

70
3.2 - Estudos de Migração Queer

O Estatuto das Pessoas Refugiadas, elaborado durante a conferência de 1951, em


contexto de pós segunda guerra mundial, não anteviu a necessidade de se proteger aquelas
que sofrem de perseguições por motivos de orientação sexual e identidade de gênero.
Como já mencionado, o refúgio é concedido a pessoas não-cisheterossexuais, sob o
enquadramento na categoria de "pertencimento a determinado grupo social". Segundo
Oliva (2012), a inclusão dessa categoria na Convenção de 1951 incidiu sobre a extensão
do reconhecimento do status de refugiado a pessoas que não se enquadram nas outras
possíveis motivações dos atos persecutórios" (p. 8), isto é, perseguições ligadas à
nacionalidade, religião, opiniões políticas e raça. Ainda segundo o autor, na década de
1980, alguns casos de mulheres perseguidas por contrariarem costumes religiosos ou
sociais em seus países de origem tiveram seu status de refugiadas reconhecido, sendo
enquadradas na categoria de "pertencimento a determinado grupo social". No início dos
anos 1990, alguns países do Norte Global, como Austrália, Canadá e Estados Unidos,
aprovaram por essa mesma categoria, em tribunal de julgamento, casos de pessoas que
solicitaram refúgio por perseguições ligadas a motivos de orientação sexual e identidade
de gênero60, abrindo espaço para novas interpretações da Convenção de 1951 em relação
a pessoas não-cisheterossexuais. Tais aprovações se deram no âmbito jurídico e, por isso,
suscitaram questionamentos e problemáticas discutidas em produções acadêmicas
subsequentes nesse campo. Na Austrália, Jenni Millbank (1995) discute, no campo
jurídico, a atribuída definição de "grupo social" pelo ACNUR, como "grupo de pessoas
com antecedentes semelhantes, hábitos ou status sociais" (p.262), que deve ter
relativamente poucos representantes, capazes de serem reconhecidos por determinadas
caraterísticas, consideradas "marcas" e, portanto, invariáveis e universais. A autora critica
a atribuição de aspectos essencialistas à sexualidade como instituição de uma normativa
desses corpos e experiências, produtora de sujeitos e enquadramentos possíveis
previamente necessários para a concessão do status de refugiado. Também no campo do

60 Fidel Armando Toboso-Alfonso, um homem gay que chegou aos Estados Unidos dentro de um barco
vindo de Cuba, solicitou refúgio em 1986, com o argumento de que fazia parte de um grupo social
perseguido. Teve o pedido negado, por falta de comprovações relacionadas a perseguição ao grupo social
em Cuba. Mas em após apelar, em 1990, conseguiu a aprovação judicial e foi um dos primeiros no mundo
a conseguir o status de refugiados após sofrer perseguições associadas a orientação sexual. Marcelo Tenorio
é um homem negro gay brasileiro, que solicitou refúgio nos Estados Unidos em 1990, e teve seu status
reconhecido em 1993. Marcelo vivia no Rio de Janeiro, e em 1989 após sair da boate "Encontro" foi
agredido e esfaqueado. Tentou por quatro vezes consecutivas solicitar visto de visitante no Consulado dos
Estados Unidos do Rio de Janeiro, mas não chegou a obte-lo, e fez a travessia México-Estados Unidos
ilegalmente, solicitanto refúgio após ser preso já em solo americano

71
direito, Nicole LaViolette (1997; 2009), assim como Millbank (1995), problematiza a
noção de "fundado temor de perseguição" associados a casos de solicitação de refúgio
por motivações ligadas à orientação sexual. Segundo a autora, o sentido que a convenção
de 1951 dá a essa noção se refere à falha do Estado em proteger o sujeito. Por isso, a
noção não inclui violência de âmbito doméstico ou mesmo social, que tanto marca as
experiências de vida de pessoas não-cisheterossexuais. LaViolette cita casos em que a
decisão judicial foi desfavorável à concessão do status de refugiado, com a alegação que
os direitos humanos, na ocasião, não incluíam direitos para pessoas não-
cisheterossexuais. E se o Estado não reconhece esses direitos, então não há perseguição
a tais pessoas. Millbank chama atenção para ausência de casos de mulheres lésbicas,
reforçando a importância da ampliação da noção de "fundado temor de perseguição" para
o âmbito doméstico, ressaltando que, nesse caso e muitas vezes, as mulheres estão sujeitas
à dominação masculina, ao confinamento no espaço doméstico e a violências com intuito
"corretivo". Kristen Walker (1996) vai mais além das discussões jurídicas exploradas
pelas duas autoras anteriores, e critica as limitações da abordagem jurídica, introduzindo
as discussões de Said (2003) sobre a produção do Oriente através do discurso Ocidental.

A abordagem tradicional de um artigo sobre sexualidade e status de refugiado pode


ser a seguinte: discutir legislações, para considerar os "fatos" de várias reivindicações
feitas para o status de refugiado com base na sexualidade; e concluir explicando por
que as leis, no seu modo tradicional, foram inadequadas ou no caso de reivindicações
bem-sucedidas, porque foram corretamente decididas. Concluir que o Estatuto de
Pessoas Refugiadas pode ajudar gays e lésbicas oprimidos em todos os lugares porque
o Ocidente "iluminado" resolverá os problemas de opressão no "Oriente" na Ásia, na
África ou na América do Sul. Mas essas considerações são muito simplistas; a
"verdade" é muito mais complexa do que essa análise jurídica em preto e branco.
(Walker, 1996, p.568 - tradução minha)

A autora utiliza a expressão do filósofo Pheng Cheah (1996) "dádiva violenta"


[violent gift] para defender sua tese de que os solicitantes de refúgio com base em
orientação sexual são compreendidos como membros de um determinado grupo social,
isto é, homossexuais. O sujeito então, para conseguir o status de refugiado, se enquadra
mediante essa categoria identitária, independente da maneira como se compreendia
anteriormente. Esse enquadramento pressupõe uma produção no Ocidente daquilo que se
espera de pessoas homossexuais e, para além disso, daquilo que se permite ou se aceita
como tal. É no sentido do reconhecimento do status de refugiado que isso se apresenta
como dávida. Porém, a ambiguidade, segundo Walker, é marcada pela violência da
produção de sujeitos dentro por uma normativa ocidentalizada. Walker apresenta críticas
e argumenta que o refúgio é uma situação onde as normativas sexuais são alteradas e

72
estabelecidas, tanto que essas reflexões só serão aprofundadas na década seguinte, com
autores ligados ao Queer Migration Scholarship.
Por conta da predominância jurídica e burocrática das discussões sobre refúgio
associado à orientação sexual e identidade de gênero, foi no campo do direito que as
primeiras discussões foram travadas, com a prevalência de discussões jurídicas sobre os
primeiros casos de solicitação de refúgio legitimados, realizados majoritariamente por
homens gays brancos, em países do Norte Global. Além disso, há o enfoque na
problematização dos processos de elegibilidade e categorias associadas ao
reconhecimento jurídico da sexualidade e identidade de gênero dos sujeitos. Entretanto,
como comentário de Walker (1996), havia muitas limitações nas discussões jurídicas e
burocráticas que deixavam de fora muitos aspectos das vidas de migrantes e refugiados
não-cisheterossexuais, sugerindo a necessidade de abordagens sociológicas e
antropológicas ligadas ao tema.
Foi diante dessas demandas acadêmicas por novas abordagens e pela necessidade
de ampliação do tema, englobando o advento das migrações não-cisheterossexuais como
um todo e não apenas o refúgio, que se consolidou, em meados dos anos 2000, nos
Estados Unidos, o Queer Migration Scholarship, a que me referirei daqui para frente
como Estudos de Migração Queer. Simultaneamente, diversas ONGs passaram a ganhar
mais popularidade e poder de debate sobre as violências e opressões historicamente
sofridas pela população não-cisheterossexual e pelas pessoas que conviviam com
HIV/AIDS61. As agências da ONU passaram também a dar mais destaque ao tema com a
publicação da nota sobre a posição do ACNUR em relação à perseguição baseada no
gênero, em 2000, que foi posteriormente substituída, em 2002, pela Diretriz de Proteção
Internacional nº. 1 e que somente em 2012 o ACNUR publica a Diretriz de Proteção
Internacional nº. 9 onde aborda especificamente perseguições motivadas por questões
ligadas à orientação sexual e à identidade de gênero real ou percebido como tal. Em 2007,
a primeira versão dos já mencionados princípios de Yogyakarta também contribuiram
para o maior reconhecimento do tema62. No artigo Queer/Migration: An Unruly Body of
Scholarship, Eithne Luibhéid (2008), autora que marca a consolidação e evolução do
campo até os dias atuais, assim define a atuação dos Estudos de Migração Queer:

61
Como consta no relatório Fleeing Homophobia de 2011, disponível em: http://bit.do/fnJEy
62
Se faz necessário lembrar que as Diretrizes expedidas pelo ACNUR, bem como os princípios de
Yogyakarta só funcionam em caráter recomendativo, cabe a legislação local acatá-los ou não.

73
Os Estudos de Migração Queer participam e contribuem em amplos debates que
atravessam diversos campos e disciplinas. Isso se deve ao fato de que a migração
internacional e os processos transnacionalizadores relacionados a ela, foram
responsáveis pela transformação de todas as facetas de nossas vidas sociais, culturais,
econômicas e políticas nas últimas décadas. Os Estudos de Migração Queer
começaram a explorar como “a era da migração” está centralmente implicada na
construção, regulamentação e reconstrução de identidades sexuais, comunidades,
políticas e culturas. Ao mesmo tempo, os estudos de migração Queer, que tratam da
imigração, emigração, transnacionalismo, diáspora, refugiados e requerentes de asilo
começaram a teorizar de como a sexualidade constitui um “um denso ponto de
transferência para as relações de poder” que estruturam todos os aspectos da migração
internacional. Os estudos de migração Queer, exploram as múltiplas conjunções entre
sexualidade e migração, com intuito de atrair e enriquecer esses grupos de pesquisa -
além de estudos feministas, raciais, étnicos, pós-coloniais, de saúde pública e
globalização, entre outros campos. (LUIBHÉID, 2008, p. 169 - tradução minha)

Diferente das abordagens jurídicas e burocráticas sobre o tema, os Estudos de


Migração Queer procuraram explorar a já comentada descontinuidade ("fissura"), que
mantém a invisibilidade e irrelevância do tema em ambos os campos, de migração e
refúgio e de gênero e sexualidade, deixando-a restrita ao campo do direito. Promovendo
análises que envolvem a produção de identidades não-cisheterossexuais a partir das
políticas migratórias, dando destaque aos processos históricos de opressão colonial e
capitalista, os Estudos de Migração Queer buscam dar enfoque à heterogeinidade de
grupos sociais. Partindo de abordagens interssecionais que privilegiaram a análise das
relações de poder envolvidas na migração e refúgio e gênero e sexualidade, articuladas a
outros marcadores sociais, como raça, nacionalidade, localização geopolítica, classe e
outros. Dessa forma, explora diferentes regimes de poder e conhecimento que se
sobrepõem e assim constroem e desconstroem categorias de identidade entre migrantes e
refugiados não-cisheterossexuais (LUIBHÉID, 2004).
Reaparece nesses estudos, ainda que de forma distinta, o que Kristen Walker
(1996) introduziu sobre a produção Ocidental do Oriente, por meio do estabelecimento
de uma normativa associada à homossexualidade, inspirada em identidades eurocentradas
e exigida para validação do status de refugiado como pertencente a grupo social
específico. Martin Manalasan (2006) discute essas proposições argumentando que
migrantes e refugiados não-cisheterossexuais não chegam a um novo país para iniciar a
sua "assimilação" sexual ou de gênero. Pelo contrário, em um novo Estado-Nação,
experimentam novos regimes de poder e agenciamento, capazes de transformar e
remoldar suas vidas e experiências sexuais e de gênero. O autor desafia o modelo
etnocêntrico que compreende as identidades não-cisheterossexuais migrantes ou
refugiadas como um pêndulo que se movimenta da "repressão" para "liberdade". Esse
binário estabeleceria que países de origem representam a "repressão" e, por isso, também,

74
são tidos como atrasados, não-civilizados e subdesenvolvidos, em contraposição a países
"receptores", que são idealizados como acolhedores, exemplares, civilizados e
desenvolvidos, reforçando ideias coloniais que se perpetuam em novas formas e fazem a
manutenção de um sistema de desigualdades entre países do Norte global e países do Sul
global (LUIBHÉID, 2019; MANALANSAN, 2014). Essa dicotômica categorização
colonial apaga alguns fatos importantes que não haviam aparecido ainda nas discussões
jurídicas das primeiras pesquisas com enfoque na temática, que são as violências sofridas
por migrantes e refugiados não cisheterossexuais, nos países de destino. Tal situação está
bastante presente nas experiências de vida das interlocutoras que fazem parte dessa
pesquisa, e que serão analiticamente aprofundadas no próximo capítulo. No caso da
migração venezuelana para o Brasil, apesar de ser uma migração Sul-Sul, pelo fato de
legislações e políticas públicas brasileiras, em relação a diversos direitos concedidos a
pessoas não-cisheterossexuais, serem mais vastas do que aquelas reconhecidas na
Venezuela63, é aberto um espaço para fazer aparecer essa polaridade concebida entre
países de origem associados à "repressão" e países de destino associados à "liberdade".
Retirando-se do cenário o debate central sobre um imbricado sistema de diferenças e
desigualdades historicamente determinadas. Essa posição sustenta aquela defendida por
Manalansan (2003; 2006) sobre um certo olhar de vítima para os migrantes e refugiados
não-cisheterossexuais, retirando-os o poder de agência, ao supor que o conhecimento
sobre sua própria orientação sexual e identidade de gênero pressupõe apenas eventos
repressivos, enquanto o real esforço é, uma vez no país de destino, que essas pessoas
sejam compreendidas como agentes remoduladores de sua própria sexualidade e gênero,
através de novas experiências, nem sempre positivas.
Os Estudos de Migração Queer também atualizaram as discussões sustentadas por
LaViollete, Walker e Millbank nos anos 1990, sobre a normatização de uma categoria
associada às pessoas não-cisheterossexuais. No caso das primeiras autoras, a discussão
se concentra em torno da noção de homossexualidade, como já mencionado
anteriormente. Entretanto, os Estudos de Migração Queer, utilizam o conceito de

63 A relação entre duas pessoas do mesmo gênero/sexo nunca foi punida na Venezuela desde a sua
idependência. No entanto, a Ley de Vagos y Maleante, era ocasionalmente aplicada aos pessoas não-
cisheterossexuais envolvidos na prostituição, bem como profissionais do sexo em geral. O casamento entre
duas pessoas do mesmo gênero/sexo é constitucionalmente proibido. Ao contrário do Brasil, onde o
casamento e a união estável de duas pessoas do mesmo gênero/sexo é reconhecido, bem como outro direitos
como o acesso de pessoas transgênero ao processo Transsexualizador pelo SUS (Sistema Único de Saúde)
e ao nome social. O Brasil ainda permite a adoção homoparental.

75
heteronormatividade64, que parte da concepção de que as experiências de pessoas não-
cisheterossexuais não podem ser compreendidas sem que historizações sejam realizadas,
para que se possa compreender a magnitude das linhas de opressão vivenciadas
historicamente por essa população, sem deixar de incluir uma visão interseccional que
relacione a orientação sexual e a identidade de gênero com outros regimes de poder.
A lente analítica da heteronormatividade permite, assim, aos Estudos de Migração
Queer negociarem mandatos teóricos e políticos complicados e concorrentes. Isso
inclui analisar a migração por aqueles que podem se identificar como LGBTQ, mas
sem tratar essas categorias como essenciais ou transhistóricas e sem deixar de
considerar as complexas e múltiplas relações de poder nas quais as categorias estão
inseridas; criar espaço analítico para aqueles cujas práticas sexuais e de gênero não
estão necessariamente alinhadas com suas identidades sexuais e de gênero; e abordar
criticamente hierarquias, incluindo raça, gênero, classe e localização geopolítica em
experiências de migração, de uma maneira que nem sempre centraliza - mas nunca
deixa de fora - a sexualidade. (LUIBHÉID, 2008, P. 171)

As categorias a que Luibhéid se refere são aquelas utilizadas para atribuir


identidades a pessoas não-cisheterossexuais, como "LGBTI+", "gay", "lésbica",
"transsexual". Alguns autores já insistem quanto à impossibilidade de se compreender
essas categorias de forma transhistórica. Para a análise deve se abordar heranças coloniais
e capitalistas (LUIBHÉID, 2019). Antes dessas categorias pressupostamente
"universais", destacam-se expressões nativas utilizadas para se referir a "mulheres que
amavam mulheres", ou a "homens que gostavam de homens". Porém, as atribuições
nativas tendem a perder espaço diante da universalização das categorias políticas
relacionadas a pessoas não-cisheterossexuais 65. As discussões de Butler (2016) destacam
a concepção de que as categorias identitárias não são apenas formas de se atribuição a
determinadas identidades, elas, porém, carregam consigo uma série de normativas que
influenciam nas performatividades de gênero, em grande parte objetivadas por sujeitos
não-cisheterossexuais. Como recorrente, as categorias hegêmonicas são criadas a partir
de experiências de sujeitos do Norte global. Elas também funcionam e colaboram para
manutenção de um sistema normatizador de identidades não-cisheterossexuais. Ainda
mais se estamos nos referindo a refugiados que solicitaram refúgio por perseguição à sua
orientação sexual ou identidade e por ela são avaliados como parte do processo que
legitima seu reconhecimento como cidadãos. Tudo é avaliado nesses processos: o quanto

64
Segundo Miskolci (2009) a heteronormatividade expressa as expectativas, as demandas e as obrigações
sociais que derivam do pressuposto da heterossexualidade como natural e, portanto, fundamento da
sociedade.

65
Apesar de existir um movimento de reafirmação política pelos próprios sujeitos não-cisheterossexuais
atraves da utilização de categorias prejorativas como categorias de identidade, como sapatão, bicha,
viado, travesti e outros, ainda assim as categorias hegêmonicas não-nativas, são as mais utilizadas,
especialmente nas produções acadêmicas.

76
a pessoa assume ou fala sobre sua sexualidade ou identidade de gênero; seu engajamento
político com a causa; o modo como ela exerce sua sexualidade ou identidade de gênero;
sua relação com outras pessoas não-cisheterossexuais; sua expressão de gênero, entre
outros aspectos. Em recente artigo, Luibhéid (2019) comenta sobre a questão do se
assumir/falar publicamente sobre sua orientação sexual a partir da perspectiva de
mulheres lésbicas migrantes e refugiadas. Argumenta o quanto a normativa produzida só
reconhece sujeitos que se assumem e conseguem falar abertamente sobre sua orientação
sexual; enquanto discrimina e invisibiliza aquelas que tentam manter oculta sua
orientação sexual. Não supõe assim que a sexualidade envolva um sofisticado sistema de
negociações com as normativas vigentes, e que, no caso de migrantes e refugiados, a
questão do falar ou assumir-se pode determinar conflitos com grupos e familiares de
origem. A autora defende que cabe ao Estudo de Migração Queer a análise de como os
regimes de migração e políticas de assentamento contribuem para a produção, não apenas
de sujeitos que se definem como não-cisheterossexuais ou queer, mas também daqueles
que se definem como "normais" ou "padrão", no tocante à estrutura binária articulada por
diversas interssecionalidades hierarquizadas.
Também segundo Luibhéid (2005), a presença de pessoas não-cisheterossexuais
migrantes e refugiadas desafia a lógica heteronormativa racializada dominante, tanto que
frente a esse regime, todo migrante ou refugiado tem que negociar incessantemente em
seu cotidiano, condição para manter formas possíveis de vida. No próximo capítulo,
abordarei, com maiores detalhes, as práticas associadas a essas formas de negociação com
a heteronormatividade, em consonância com aquelas refletidas pelas interlocutoras dessa
pesquisa.
Outra discussão, amplamente abordada por teóricos dos Estudos de Migração
Queer, é a distinção entre as categorias "migrante" e "refugiado" (LUIBHÉID, 2019;
CANTÚ, 2009), bastante pertinente também na discussão sobre a diáspora venezuelana.
Essa distinção cria uma polaridade que associa "migrantes" a situações voluntaristas,
onde o sujeito migra por sua escolha, vontade e risco próprios, assumindo, portanto, a
"consciente responsabilidade" sobre este ato, a despeito de associar "refugiados" a
situações de deslocamento transnacional forçado, relacionado a situações de
precariedade, violência e fuga, e formas mais "inconscientes" (no sentido de não haver
outra opção) e "inesperadas" (que não realizam planejamento) de deslocamento. Há
algumas problemáticas envolvidas nessa distinção: (1) Ao realizá-la, apagam-se possíveis
(e frequentes) violências que migrantes passam diariamente em novos destinos, dado que
essas violências são parte do "risco" pelo qual essas pessoas "optaram". Insinua-se então

77
a culpabilização dos sujeitos por agressões e possíveis dificuldades em seu percurso; (2)
Ao associar refugiados a situações forçadas, imediatamente também o faz à figura de
vítima, reforçando esteriótipos comentados por Facundo (2014); e assim não
reconhecendo a capacidade de agência dessas pessoas e, portanto, compreendendo-as
como carentes de intervenção pelo Estado; (3) O reforço dessas categorias distintas reflete
o interesse dos Estados-Nações e da lógica humanitária (Fassin, 2012) de manter a
idealização das fronteiras geopolíticas, bem como distinguir tipos de deslocamento
humano através das mesmas, que são permitidos ou não. Alimentando-se, por
conseguinte, o sistema de controle legal das fronteiras que detém e criminaliza
determinados migrantes, enquanto autoriza e estimula outros; (4) A recente multiplicação
de categorias relacionadas a movimentos migratórios de pessoas (migrantes econômicos,
migrantes ambientais; párias; apátridas; refugiados; exilados; deslocados e outros) e a
extensa discussão sobre os diferentes aspectos de cada uma, em conjunto com os
inúmeros diferentes cenários possíveis associados a elas, desvia a atenção ao
questionamento que deveria ser anterior: não teriam todos os deslocamentos humanos
(que cruzam fronteiras transnacionais) um aspecto forçado (exceto aqueles por fins
turísticos) ?
No caso da crise venezuelana, essa discussão esteve particularmente presente.
Girava em torno da compreensão indecisa entre as categorias de "migrantes econômicos"
e "refugiados"66, passando por diferentes atores, em diferentes tempos, em correlação às
suas proximidades com o assunto. A dúvida surgiu, primeiramente, nos atores e setores
legais e institucionais do Estado e organizações de assuntos humanitários, os primeiros a
lidarem com a recepção, acolhimento, documentação e outros. Em seguida, muito
espelhadas na dificuldade de decisão dos primeiros sobre condições para legitimar os
venezuelanos como "migrantes econômicos" ou refugiados, os veículos midiáticos
passaram a abordar, em uma primeira fase 67, a crise venezuelana como uma mera crise
econômica, sem graves precedentes sociais, deslocando os migrantes venezuelanos para
o polo de migrantes "econômicos", isto é "voluntários", que optaram pela migração. E
numa segunda fase, já muito associada às eleições presidenciais de 2018, abordaram a
questão com certo temor, dando enfoque à possibilidade de conflitos armados entre países
da América do Sul e a Venezuela, enfatizando a precariedade e violências associadas às

66
Como é abordado na seguinte matéria https://www.uol/eleicoes/especiais/crise-refugiados-venezuela-
venezuelanos-roraima-propostas-candidatos-presidente.htm#tematico-1
67
Como podemos ver em algumas matérias de 2017, como por exemplo:
https://www.cartacapital.com.br/blogs/conjunturando/a-tragedia-economica-venezuelana/

78
trajetórias migratórias. Por último, a questão passou a chegar às pessoas ditas "leigas",
que não têm qualquer vínculo direto com a situação migratória venezuelana. Para muitas
dessas, a informação sobre a situação dos migrantes venezuelanos no Brasil chegou de
duas maneiras: ou da forma vitimizada, marcando fortemente a questão humanitária e a
precariedade da situação migratória; ou na forma de "problema social", muito ligados aos
impactos no estado de Roraima, abrindo espaço para discursos xenofóbicos.
Em 19 de junho de 2019, o CONARE reconheceu a Venezuela como país em
situação de grave e generalizada violação dos direitos e, em 5 de dezembro do mesmo
ano, concedeu o status de refugiado a 21.432 venezuelanos. Esses dois marcos
oficializaram, no âmbito jurídico, o reconhecimento da crise venezuelana como uma crise
de precendentes sociais, e não prioritariamente econômicos. Entretanto, a esfera jurídica
não é soberana às práticas sociais, e o processo de migração dos venezuelanos para o
Brasil não termina no seu pleno reconhecimento como refugiados. O reconhecimento
desse status, na prática, garante ao refugiado mais direitos. Porém, muitos venezuelanaos
relatam preconceitos e violências contínuas relacionadas a discursos xenofóbicos, que
ainda descrevem a população venezuelana como causa ou agravamento de problemas
sociais. Esse é mais um motivo, como aponta Luibhéid (2008), da necessidade de se dar
enfoque às experiências de vida e subjetividades de migrantes e refugiados, pois mesmo
que os processos avancem judicialmente, esse ritmo é quase sempre desigual com relação
aos processos de "integração" dessas pessoas a novos contextos, especialmente se nos
referimos a pessoas não-cisheterossexuais.
Outra discussão também muito abordada pelos Estudos de Migração Queer, e que
antecede às problematizações em torno do Homonacionalismo (Puar, 2007) comentado
na primeira sessão, é o debate sobre Homonormatividade. O termo foi popularizado em
2003, por Lisa Duggan, e faz relação ao conceito de heteronormatividade, e também de
heterossexualidade compulsória68. Duggan define, brevemente, o conceito de
homonormatividade como uma política praticada por pessoas não-cisheterossexuais, que
não desafia nem subverte a lógica heteronormativa presente nas premissas e instituições.
Pelo contrário, sustenta a possibilidade de uma cultura não-cisheterossexual
despolitizada, baseada no consumo e ancorada na reprodução de ideias heterossexuais.

68 Heterossexualidade Compulsória, foi um conceito popularizado por Adrienne Rich nos anos 1980.
Segundo Judith Butler (2016), a heterossexualidade estabelece que para sermos seres inteligíveis, quer
dizer, entendidos como humanos, dignos de direitos, é preciso que haja uma completa coerência entre um
sexo genital (pênis/vagina) => um gênero social (masculino/feminino) => uma única forma de expressar o
desejo, a heterossexual. Ao escapar desta cadeia derivativa os indivíduos se tornam, nas palavras de Butler,
seres abjetos.

79
Porém, antes da disseminação do conceito, outros autores já faziam reflexões sobre a
homonormatividade em seus campos de trabalho. Cindy Patton (2002) considera a
produção de uma não-cisheteressexualidade que segue as normativas cisheterossexuais,
com sujeitos que se articulam pela promessa de liberdade e justiça social para todos,
produzindo a imagem de "bons cidadãos" patriotas, mas ignorando regimes históricos de
opressão. É, portanto, uma articulação oposta ao que o movimento Queer defendeu, desde
o seu estabelecimento, de um compromisso com a crítica e rompimento com as lógicas
hegemônicas e normativas vigentes relacionadas as identidades de gênero, sexualidade,
corpos e desejos. Patton faz uma crítica a popularização do movimento Queer nos Estados
Unidos, problematizando a difusão de uma imagem americana "diversa" e "inclusiva"
que, em alguma extensão, dá falsas esperanças sobre a transformação de relações de poder
nos regimes de opressão que envolvem pessoas não-cisheterossexuais. Também encobre
uma política que privilegia a visibilidade de pessoas não-cisheterossexuais de forma
racializada, genderificada e classista, sem que haja pressão das esferas públicas pela
inclusão de intersecionalidades marginalizadas.
A retórica pela luta por direitos voltados à população não-cisheterossexual se
tornou a principal frente homonormativa, criando a premissa de que Estados-Nações que
reconhecem mais direitos ligados a essa população são considerados modernos,
alimentando a dicotomia colonial, comentados na primeira sessão deste capítulo, entre
Estados-Nação "atrasados", "repressores", "não-civilizados" e Estados-Nação
"acolhedores", "exemplares", "desenvolvidos", apagando, como exemplifica Patton, o
fato de que os Estados Unidos são frequentemente considerados um Estado-Nação
"moderno", mas realiza contínuas manobras econômicas imperialistas, como é o caso dos
embargos econômicos a Venezuela 69.
Lionel Cantú (2009), em seu livro The Sexuality of Migration, aborda a relação de
homens cisgênero gays mexicanos migrantes ou solicitantes de refúgio com as políticas
migratórias e os discursos nacionalistas nos Estados Unidos. O autor elabora uma
discussão que relaciona a homonormatividade com migração e refúgio, ao debater os
processos de solicitação de refúgio de homens gays mexicanos; e ao observar que as
repetidas narrativas dos advogados de defesa operam práticas discursivas que consideram
que todas as identidades não-cisheterossexuais sofrem perseguição no México 70;

69
Como referido na matéria: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-41060655
70
Cantú (2009) discorre sobre as identidades gays mexicanas, em contraposição com a posição de alguns
antropólogos americanos dos anos 1960-1970, que, segundo ele, defendiam que não existia uma identidade
gay no México.

80
enquanto mantém os Estados Unidos como bastião da liberdade e acolhimento para tais
pessoas. Além disso, argumenta sobre a produção do conceito de "homossexual" como
pressupostamente imutável. No caso da migração mexicana, estava asssociado somente a
performances consideradas feminilizadas. Portanto, aqueles que não eram considerados
feminilizados não eram reconhecidos como homens gays mexicanos. Esse argumento já
havia aparecido na critica de Walker (1996) sobre o quanto a retórica do direito associou
as identidades não-cisheterossexuais a lógicas essencialistas, que produziram a
homossexualidade como universal e imutável nas instâncias jurídicas, de tal forma que a
justificativa dos casos de refúgio associados a perseguições de sexualidade e gênero fosse
fundada em identidades fixas, asssim delimitadas com objetivo de conseguir a aprovação
dos processos.
As implicações da reinscrição em novas lógicas coloniais que assumem que
migrantes e refugiados não-cisheterossexuais passem da "repressão" à "liberdade", em
Estados-Nação produzidos como democráticos, modernos, exemplares e acolhedores.
Delimitam as fronteiras com "Outros" Estados-Nação com características opostas,
reforçando ideias homonormativas que deixam de fora a importância de se pensar a partir
das intersecionalidades. Esses são alguns dos principais temas discutidos nos Estudos de
Migração Queer.
Entretanto, a maioria dessas produções ficou restrita ao Norte Global, até meados
de 2010, tanto pelo fato de que o assunto demorou a se difundir, para fora do âmbito
jurídico, como pela possibilidade de reconhecimento de refúgio associado à orientação
sexual e identidade de gênero (visto que os primeiros casos só foram reconhecidos no
início dos anos 1990), bem como por ser os primeiros a reconhecerem casos. Dessa forma,
os países do Norte concentraram pedidos de refúgio de pessoas não-cisheterossexuais por
essas motivações, relacionadas a todo imaginário colonial sobre países do Norte como
mais "seguros" e "desenvolvidos", tanto que deslocam muitas solicitações para lá. Além
disso, as produções de conhecimento sobre o tema também se concentraram em países do
Norte, tanto na produção quanto na leitura. Isso se deve às razões acima citadas, e também
pelas relações de saber e poder que determinam, até hoje, quem detém o poder sobre as
produções de conhecimento nas áreas acadêmicas.
Na sessão seguinte, abordarei o esforço atual pela descentralização dessa
produção de conhecimento sobre a temática do refúgio e migração de pessoas não-
cisheterossexuais para países do Sul Global, que procuram realizar o "trânsito" dessas
teorias para os contextos do Sul.

81
3.3 - Os deslocamentos teóricos para o Sul

O CONARE aprovou, em 2002, a concessão de refúgio a um casal de homens


gays colombianos que eram perseguidos por grupos paramilitares regionais, responsáveis
por realizar "limpezas sociais" e de garantir somente a permanência de pessoas "de bem"
em tal localidade (OLIVA, 2012). Segundo Isadora Lins França (2017), desde então, em
cerca de 20 anos, o Brasil passou de país predominantemente de origem das solicitações
de refúgio, com base em questões expressas diante de concepções de gênero e
sexualidade, para país "receptor" de solicitações de refúgio de pessoas não-
cisheterossexuais. Parte disso se deve ao amplo e recente reconhecimento no campo dos
direitos protetivos brasileiros, relacionados especificamente a essa população. Em
contraste a esse cenário, em 2013, durante entrevista concedida ao inglês Stephen Fry
para um documentário do canal televisivo BBC sobre o avanço de regimes homofóbicos
no mundo, Jair Bolsonaro, hoje atual presidente do Brasil, afirma que "nós brasileiros,
não gostamos de homossexuais". Nega a existência da homofobia no Brasil, mesmo o
país sendo reconhecido como responsável pelo maior número de assassinatos de pessoas
não-cisheterossexuais no mundo. Além disso, o presidente já se referiu aos refugiados e
migrantes (não-turistas) que chegam ao Brasil como a "escória do mundo" e ganhou
popularidade na época das eleições presidenciais ao afirmar que seu governo é necessário
para que o Brasil não se torne uma Venezuela. Prometeu "uma limpeza nunca antes vista"
dos opositores políticos. Esses dois cenários, em confronto, resultam em uma situação no
mínimo paradoxal: ser um país que mais recebe do que origina solicitações de refugiados
não-cisheterossexuais e, ao mesmo tempo, apresentar uma figura presidencial que
discrimina tanto pessoas não-cisheterossexuais quanto refugiados e migrantes, assim
incitando discursos sobre "limpeza social" de determinados indivíduos em um país que
já é reeconhecido internacionalmente como o que mais mata pessoas não-
cisheterossexuais71 (THEODORO, 2017).
Diante desse paradoxo, surge a urgência de se fazer expandir explorações
etnográficas que articulem termos como migração e refúgio com gênero e sexualidade,
buscando aproximar os contextos nacionais, sulamericanos e do Sul Global. Etnografia
que tome como intuito de atualizar, comparar, criticar e produzir novas reflexões a partir

71
O dado está no relatório de 2018 da ONG Grupo Gay da Bahia. Esse aponta que aconteceram 420
mortes de pessoas não-cisheterossexuais nesse ano no Brasil. Link para o relatório:
https://grupogaydabahia.files.wordpress.com/2019/01/relatório-de-crimes-contra-lgbt-brasil-2018-grupo-
gay-da-bahia.pdf

82
de outras vivências, isto é, que não partam do Norte Global, que há tanto tempo dominam
as produções acadêmicas relativas ao tema.
No dia 12 de dezembro de 2019, estive no lançamento do livro Refúgio por
Motivos de Orientação Sexual de Vitor Lopes Andrade, no Rio de Janeiro, quando pude
com ele e outros jovens pesquisadores trocar reflexões sobre o tema e sobre experiências
da LGBT+Movimento. O livro de Vitor, fruto de sua dissertação de mestrado em
Antropologia, representa uma das poucas etnografias sobre a temática do refúgio de
pessoas não-cisheterossexuais. Além de mim, outros três jovens pesquisadores, também
não-cisheterossexuais, estão se debruçando sobre o tema em diferentes áreas, o que indica
que, em breve, teremos outros debates capazes de nos fazer refletir sobre as complexas
dinâmicas de interlocução entre migração e refúgio com gênero e sexualidade. É
importante citar também o trabalho de Isadora Lins França (2017), que trabalhou no pós-
doutorado com direitos e narrativas nos entrecruzamentos de gênero, sexualidade e
violência, realizando um trabalho etnográfico comparativo entre Brasil e Espanha. O Sul
Global é o maior anfitrião da maioria dos refugiados e solicitantes de refúgio do mundo,
e ainda sim continua sendo desconsiderado como destino (LUIBHÉID, 2019). O enfoque
dos processos migratórios permanece ainda nas migrações no eixo Sul Global para Norte
Global, deixando de lado as migrações entre Norte e Sul e entre Sul/Sul.
Neste capítulo, procurei demonstrar como um campo comum entre migração e
refúgio e gênero e sexualidade vem se estruturando, ao longo do tempo, pressupondo
articulação de diferentes áreas e reflexões. Esse processo envolve, sobretudo, a reparação
de lugares que foram historicamente apagados, silenciados ou negados, como é o caso da
influência da dominação colonial e capitalista nas políticas migratórias e de gênero e
sexualidade e a sua relação diferencial e dependente com as diferentes
interssecionalidades, para que possamos comprender, como afirma Luibhéid (2019), que
o resultado final de anos de sistemas hegêmonicos de opressão é a ausência de narrativas
disponíveis, produzindo o que ela se refere como "sujeitos impossíveis".

"Crenshaw está descrevendo a interseccionalidade, não no sentido neoliberal de


“somar” considerações de raça, gênero, classe, sexualidade e cidadania para derivar a
compreensão da identidade de alguém como propriedade pessoal, mas no sentido de
estar localizada nas interseções de várias posicionalidades não dominantes, o que
resulta na “falta de narrativas disponíveis e amplamente compreendidas para
comunicar a realidade da experiência [de uma pessoa] ao mundo”(LUIBHÉID, 2019,
p.1-2)

"Assim, os Estudos de Migração Queer insistem em recuperar, teorizar e valorizar


histórias e assuntos que foram amplamente tornados invisíveis, ininteligíveis e
indizíveis nos estudos sobre migração e que refletem tanto a “alienação das
comunidades gays brancas” como as “histórias de várias diásporas” forjadas pelo

83
colonialismo e pelo capitalismo. Por outro lado, boa parte desses estudos também
deixa claro que os “migrantes queer” de várias maneiras compreendem “sujeitos
impossíveis” com histórias irrepresentáveis que excedem as categorias existentes. Isso
determina que cabe aos estudiosos desafiar e desconstruir regimes em primeiro de
poder e saber que geram impossibilidade de existência para grupos específicos e para
examinar esses indivíduos negociam essas formas de vida."(LUIBHÉID, 2008, p.185)

Assim como Pedro Paulo Gomes Pereira (2015) que elaborou críticas sobre o
trânsito da Teoria Queer para o Sul, no artigo Queer decolonial: quando as teorias
viajam, ou Catarina Rea e Izzie Amancio (2018), que também refletiram sobre a Teoria
Queer of Colour, no artigo Descolonizar a Sexualidade: Teoria Queer of Colour e
trânsitos para o Sul, gostaria de terminar este capítulo ressaltando a necessidade de
realizar o mesmo movimento com os Estudos de Migração Queer, abordado
majoritariamente na sessão anterior. Segundo Walter Mignolo (2014), a matriz colonial
de poder aponta quatro níveis de esferas do controle: o primeiro se baseia no controle da
economia, o segundo no controle da autoridade, o terceiro no controle do gênero e da
sexualidade e, por último, o controle do conhecimento e da subjetividade. Para que as
teorias propostas pelo Norte Global cheguem ao Sul Global, é necessário que estejamos
atentos ao binário Norte e Sul, não como posições geolocalizadas e fixas no globo, mas
nos sentidos "metafóricos, políticos e estratégicos" (REA E AMANCIO, 2018, p.3) que,
de há muito, referenciam esses imaginários e determinam através de relações de poder
hierárquicas nossas produções de conhecimento e subjetividades. Mignolo complementa
seu pensamento argumentando que, para que a matriz colonial possa efetuar seu poder
regulador nas colônias, ela necessita de duas instâncias enunciativas: o
[heterocis]patriarcado e o racismo. É nesse sentido que devemos fazer, continuamente, a
mesma pergunta de Yukerkys Miñoso, citada por Rea e Amancio: "O que uma teoria
elaborada nos Estados Unidos e na Europa do Norte vem fazer na América Latina e nos
contextos diferentes do Sul Global? Tal processo poderia parecer com uma expansão do
eurocentrismo e do seu programa humanístico" (p.5). As autoras seguem com Miñoso no
questionamento sobre a forma como essas teorias são recebidas e integradas no contexto
latino-americano, argumentando sobre a "aceitação incondicional de marcos conceituais
e analíticos produzidos dentro da experiência histórica" (p.6) de países do Norte Global.
A produção de saber sobre o tema, no Sul Global, privilegia a modificação de estruturas
históricas de poder e conhecimento que, continuamente, situam migrantes e refugiados
não-cisheterossexuais em posições de apagamento, silêncio e violência? É, portanto,
necessário que essa produção de saberes seja elaborada a partir de experiências do Sul
Global, de análises interseccionais e decoloniais, como "veículos" para realização do
trânsito das teorias do Norte para o Sul, ou como sugerem Rea e Amancio, "Suis",

84
marcados pela heterogenidade. Somente através da exploração crítica de processos
históricos que marcaram as identidades do Sul pela "subalternização, racialização da
sexualidade e sexualização das relações socias", seremos capazes de construir novas
ferramentas conceituais e teóricas descolonizadas.
O próximo capítulo dedica-se a análises das experiências de vida de Mariel,
Danny e Alejandra (nomes fictícios), que fizeram parte desta pesquisa e se identificam
como mulheres não-cisheterossexuais venezuelanas, solicitantes de refúgio no Brasil.
Procuro mobilizar as interpretações sobre suas experiências de vida como modo de
explorar elementos estruturantes de alternativas e práticas cotidianas das vidas de
migrantes/refugiadas não-cisheterossexuais tanto no país de origem (Venezuela), quanto
a seus percursos migratórios para o Brasil e a permanência correpondente nos Estados de
Roraima e Rio de Janeiro. Espero, dessa maneira, ser capaz de contribuir para o debate
central deste texto de dissertação: - de que formas gênero e sexualidade determinam as
experiências migratórias, em sua totalidade, e são por elas, da mesma maneira,
determinados.

85
Capítulo 3 - Experiências de Vida

4.1 Mariel

Encontrei-me a primeira vez com Mariel no dia 13 de junho de 2018, durante uma
visita ao abrigo Latife Salomão em Boa Vista, Roraima. Ela me foi apresentada por
assistentes de proteção do ACNUR, como uma das lideranças políticas do grupo de
pessoas LGBTI (termo usado pelo ACNUR) do abrigo e também como uma das
coordenadoras gerais do local. Voltamos a nos falar, brevemente, durante uma conversa
via Skype dias antes da sua interiozação para o Rio de Janeiro. Encontramos-nos na Casa
de Acolhida, já no Rio, em 26 de julho de 2018. A partir dessa data, mantivemos contato
frequente via Whatsapp e, com certa frequência, nos encontrávamos pessoalmente.
Sempre que conseguia, tentava abordar com ela um pouco sobre suas experiências de
vida, fazendo o registro posterior das conversas, como mencionado. Consegui gravar três
de nossas conversas, duas em suas residências (dois aluguéis em localidades distintas da
cidade) e uma delas em um café. Grande parte das narrativas aqui citadas foram fruto
dessas conversas gravadas e exprimem detalhes de suas vida e intimidade. Por essa
questão, mantenho todos os nomes como fictícios, das interlocutoras e pessoas citadas
em conversas e entrevistas.
Mariel nasceu na capital venezuelana, Caracas, em família de classe média72, com
seis irmãos. Uma irmã e um irmão do mesmo pai e mãe (esse último irmão, se identifica
também como mulher transexual, aqui referida como Crystiannys) e outras duas irmãs e
dois irmãos somente por parte de pai. Sua mãe era gerente de vendas em companhia de
televisão a cabo, e seu pai era policial militar, das forças especiais; ou, segundo a sua
própria comparação: "ele era igual ao BOPE aqui, matava pessoas que nem louco, entrava
nas operações já com raiva, era um sanguinário". Quando alcançou oito anos, seus pais
se separaram, ele se ausentando e deixando a casa que passou parte da sua infância e
adolescência com a mãe, a irmã e o irmão (Crystiannys). Contou-me que o que mais
gostava de fazer quando criança era esperar a mãe sair para o trabalho e se vestir com as
suas roupas.
Colocava a roupa completa, vestido, salto, prendia uns negócios na orelha porque não
tinha furo, colocava lenço, passava batom e pó. E ficava desfilando pela casa. Eu

72
Não faço referências as concepções de raça pelas interlocutoras pois, na convivência com elas, pude
perceber essa concepção é distinta entre os venezuelanos, e aquela discutida no Brasil. Pelo que
compreeendi, não é comum a distinção das pessoas como branca, negra ou parda, por exemplo. É
importante dizer que no Brasil, elas são compreendidas como migrantes racializadas, e isso tmabém afeta
suas experiências de vida. Contudo, é necessário um maior aprofundamento nessa experiência e concepção.

86
morria de medo. Morria mesmo, mas sabia a hora que minha mãe chegava. Então o
que a gente fazia era colocar um tapete vermelho de pelôs que tinha lá em casa,
colocavamos ele no corredor, e faziamos modelagem. Eu era a estrela. As meninas
não brilhavam tanto. Eu amava fazer aquilo, aquela atenção toda, eu linda, todos me
aplaudindo. Eu já me sentia mulher nessa época, sentia algo quando desfilava que não
sabia explicar quando criança. Quando a gente é criança não precisamos pensar pra
explicar, eu só era e pronto, era coisa minha ser mulher. Mas eu sabia que se me
pegassem, eu ia apanhar.

Enquanto Mariel me contava esse episódio, lembrei-me da grande polêmica


gerada em torno do projeto de Iran Giusti, intitulado "Criança Viada", em que pessoas de
sua rede social Tumblr enviaram fotos de suas infâncias que se identificaram como
agentes de uma quebra a cisheteronorma, comentando sobre como se reconheciam como
sujeitos não-cisheteronormativos desde crianças. Em cerca de uma semana, a página do
Tumblr tinha mais de dois milhões de acessos73. A página não insinuava as crianças como
sujeitos não-cisheterossexuais, mas questionava, justamente, o que está por trás do
conceito de heteronormatividade. Isto é, que as crianças, mesmo sendo apartadas de ideias
sexualizados ou romantizados, são assumidas como seres cisgênero e heterossexuais. Um
paradoxo. Qualquer expressão de gênero ou performance que se assuma (por um adulto)
como não coerente diante dessa suposta essência cisheterossexual infantil é considerada
desviante. E tende a ser reprimida pelos pais, escola ou pessoas próximas, como
aconteceu na experiência de Mariel. Algum tempo depois, a artista Bia Leite selecionou
algumas fotos do projeto de Giusti para criar obras que misturassem as fotografias com
pinturas. As obras de Bia fizeram parte da exposição QueerMuseum que foi
primeiramente exposta no Santader Cultural em Porto Alegre, e lá foram alvo de fortes
críticas, que insinuavam as obras como apologias a pedofilia. O filósofo Paul Preciado,
em texto institulado "Quem defende a criança queer?"74 critica a ideia de que "proteger
as crianças" de conteúdos julgados como sexuais, "permite ao adulto naturalizar a norma
[cis]heterossexual" (p.6). Segundo o autor a criança é um artefato biopolítico 75 que
garante a normalização do adulto. O filósofo argumenta como a biopolítica é introduzida
nas representações das crianças na associação de que todas as formas que fujam da norma
cisheterossexual, são associadas a formas impossíveis de vida, condizentes com a morte
social e física da pessoa. Por isso, a lógica pressupõe a "proteção".

73Como está na matéria: https://medium.com/@Irangiusti_/como-o-criança-viada-virou-militância-


motivo-de-histeria-reacionária-e-um-crime-e97b50a12f8b

74
O texto está disponível em: http://revistageni.org/10/quem-defende-a-crianca-queer/
75
Preciado (2018) define o conceito de Biopolítica de forma simplificada: como um conceito
Foucaultiano que se refere ao poder que se exerce sobre os corpos e populações.

87
Após Mariel me contar esse episódio ela também me disse que já sabia que
gostava de homens naquela idade. Suas primeiras experiências foram com o irmão mais
velho dos vizinhos, com cerca de 10 anos. Contou que tudo começou com algumas
brincadeiras de um sentar no colo do outro, ambos descobrindo que "dava uma sensação
gostosa", até que decidiram ir mais a fundo nessa sensação e se chuparam. Ela me disse
que a partir daí não queria saber de outra coisa, "era video-game e chupadas". Mas tudo
sempre escondido, com muito medo. Perguntei-lhe porque ela acha que crianças sentem
medo?
Eu sabia que era errado. A gente cresceu com meu pai falando mal de homem que era
mulher, que era gay. As pessoas falavam, elas que acham que as crianças não ouvem,
eu ouvia tudo. Mas não era só ruim ser escondido, dava também um tesão a mais. A
vida de criança às vezes é muito chata, ter um perigoso é gostoso. Todo mundo gosta
de perigo, criança também. Era divertido não ser pego. Até que a mãe do vizinho
pegou a gente, e aí nunca mais ficamos sozinhos. Ela sabia que eu gostava de putaria
e ele também. Minha mãe me bateu muito, bateu de cinto, de ficar marca. Mas eu não
estava nem aí... fiquei quieto por um tempo, e esperei ter outras oportunidades.

Aos 13 anos, se apaixonou pela primeira vez, pelo irmão de um amigo, que era
mais velho, tinha 17 anos. Numa ocasião em que estavam jogando videogame juntos, ele
começou a provocá-lo, e eles foram para o banheiro transar. Contou-me que foi uma
experiência estranha, um tanto ambígua. Estava com muita vontade, mas teve muita dor.
No entanto, relatou sair da casa do amigo ainda mais apaixonado. Na adolescência, aos
15 anos, a famíia se mudou para Monagas, um dos vinte e três estados da Venezuela,
cerca de 650km de Caracas. Mariel contou que a família se mudou pois o pai foi
transferido, a mãe quis que os irmãos permanecessem próximos e decidiu mudar-se
também. Completou o ensino médio, ou como se refere o "Liceu" em Monagas. Disse
que nessa época tinha muito mais vergonha e medos do que quando criança,
principalmente em relação aos colegas de colégio. Relatou não ter colegas que gostassem
de homens no Liceu. Chegou a namorar uma menina, mas disse que não conseguia fazer
mais nada além de beijá-la, e logo confessou que, na verdade, gostava mesmo do melhor
amigo, mas que não queria arriscar que ele soubesse e contasse para alguém.

Eu tinha muitos amigos nessa época. Rolavam algumas orgias, e eu morria de vontade
de ficar com os meninos, mas toda vez que tentava eles me paravam e falavam: "que
isso cara!!" E eu fingia que tinha sido por engano, que era só parte daquela coisa
embolada que são as orgias. Mas na verdade eu sabia que queria aquilo e não podia
ter porque ninguém aceitava. Uma amiga ainda no liceu começou a me apresentar
amigos gays e nessa época, com 18, foi a primeira vez que fui numa boate gay. Aí não
consegui esconder mais, comecei a ficar com vários meninos, conheci muitos outros
gays, festas, casas de amigos. A minha família já meio que sabia, mas como eu não
tinha assumido, ficava um coisa que ninguém falava sobre.

88
A escola aparece nos relatos de Mariel como um ambiente ambíguo, tanto de
disciplinarização, quanto de acesso a sua rede de afetos, e abertura de novas
possibilidades de vida e experiências (COUTO JR, D.R.; POCAHY, F.; OSWALD,
M.L.M.B, 2018). Há de um lado, normas regulatórias de gênero e sexualidade, fiéis a
cisheteronorma, que recaem sobre o poder disciplinar exercido nas escolas, como descrito
por Foucault (1982). E de outro lado, existem atos de resistência, previstos em toda
relação de poder, que podem representar o mínimo de liberdade, como é o caso da amiga
que leva Mariel em sua primeira experiência numa boate gay.
Mariel me confidenciou que só entrou para Universidade pela pressão da mãe.
Passou para uma universidade pública em Caracas, para o curso de Engenharia de
Sistemas, porém queria cursar Engenharia do Petróleo, um dos mais concorridos na
Venezuela. Cursou quatro semestres na Universidade Central da Venezuela, comenta
então: "nesses quatro meses eu experimentei quase tudo, digo no sexo. Tudo que antes
era tão proibido, na universidade era comum, e não tinha jeito, eu gostava de homens
mesmo, e gostava muito (riu)". Contudo, decidiu abandonar o curso e tentar entrar em
Engenharia Industrial, uma universidade particular. Iniciou o curso na Universidade
Santiago Marinho. Relatou que, ao contrário da universidade antiga, tinha poucos amigos,
e conseguindo se concentrar melhor nos estudos. Foi também a primeira vez que namorou
um homem, em um relacionamento que durou cerca de dois anos.
Ao terminar o curso de graduação em Engenharia Industrial, aos 24 anos, se
estabeleceu como engenheiro na empresa Pedevesa, na cidade de Maracaibo. Trabalhou
por quase um ano na área e, nesse meio tempo, conseguiu financiar sua casa própria.
Quando imaginava estar em uma fase de vida "estável", me relatou com espanto, que o
pai ficou sabendo que estava vivendo abertamente como um homem gay.

Meu pai descobriu que eu estava assumidademente vivendo como gay, e descobriu
onde era minha casa em Maracaibo. Chegou lá, ele arrombou a porta, quebrou minha
casa inteira, com o fuzil, não atirando, mas quebrando as coisas mesmo. Eu fiquei em
choque quando soube, senti que minha vida tinha acabado. Eu não estava em casa
nesse dia, mas os vizinhos me contaram. Ele era policial, muito violento, sempre foi.
Ele destruiu tudo. Eu quis matar ele. Ele não suportava ter filho que gostasse de
homem.

Depois desse violento episódio e ainda sob as ameaças do pai, decidiu pedir demissão do
trabalho, que confessou não gostar e só continuar por pedidos da mãe, e ir para a cidade
de El Callao. Disse-me que uma amiga (mulher cisgênero), que na ocasião trabalhava
como prostituta, convidou lhe para ir passar uma temporada nas minas de garimpo,
ganhando dinheiro com prostituição.

89
Essa amiga falou que os caras iam gostar de mim, porque eu era viado, me vestia bem,
tinha um corpo bom. Enfim, ela queria que eu começasse a me prostituir. E eu fui, lá
para o Callao. As minas do Callao. Foi horrível chegar lá, eu nunca tinha visto tanto
homem amado. Muitas armas, pra todos os lados. Só malandro76 controla o Callao.
Eu tinha certeza que ia morrer lá. Ainda mais sendo viado. Eu comecei a trabalhar
num salão de beleza, mas eu queria já fazer uns serviços por fora pra sair mais barato
pras meninas e pra eu conseguir mais dinheiro. Então eu comprei tudo, chapinha,
secador, todos os esmaltes, levei tudo. Aí eu fechava o pacote mensal com as meninas
da prostituição. Comecei a ganhar dinheiro com isso. Lá tinha muitas trans. Eu
passava o dia todo no meio delas. E comecei a gostar daquilo, do jeito delas, das
formas, das belezas. Eram mulheres muito fortes, eu nunca tinha visto aquela força
toda. Eram lindas e perigosas também. Eu entendi o que era ser trans lá no Callao.

A percepção do ambiente social, como relatado por Mariel, quanto as suas


experiências no Callao, indica pontos comuns apontados na etnografia de Olivar (2008)
sobre a prostituição nas áreas de conflito armado na Colômbia. Apesar de situações
distintas, pois segundo os relatos de Mariel não havia a presença de grupos paramilitares
na região, sua descrição sobre o domínio dos malandros das atividades de garimpo ilegal,
davam a ideia de que esse domínio também se extendia ao controle da prostituição na
área. Olivar (2008) descreve as redes de prostituição e tráfico na fronteira Brasil-
Venezuela, comentando que a prostituição é praticamente toda voltada aos mineiros que
trabalham com a atividade de garimpo, sendo que, muitas vezes, as casas de show e bares,
principais concentrações de prostituição, são controladas pelo tráfico. Mariel relatou que
presenciou episódios de ameaças, violências e consumo forçado de drogas durante sua
permenência em Callao, situações que também apareceram no relato de Lady (nome
fictício de uma das interlocutoras) no trabalho etnográfico de Olivar (2008).
Porém, foi no meio dos relatos de violência e medo na região dos garimpos, que
Mariel começou a contar como foi se constuindo a sua relação com as mulheres
transexuais e travestis que também viviam na mesma região. Era a primeira vez que
Mariel mergulhava nesse universo. Confessou-me que, antes, muitas vezes discriminou
mulheres transexuais na rua, por desconhecer o que eram. Ressaltou que foi no salão que
também aprendeu "o jeito" das mulheres transexuais e travestis, toda a sua
performatividade, como eram "lindas e perigosas". Fica evidente na fala de Mariel o
quanto a experiência no Callao foi fundamental para construção da sua pessoa travesti,
para utilizar a expressão de Pelúcio (2005a), em referência ao sentido maussiano do
termo, que considera que "as culturas investem diretamente sobre os corpos (...) sendo
capazes de orientar todo um conjunto de práticas estruturadoras das experiências

76
A categoria de malandro aparece em algumas falas das interlocutoras, elas se referem a pessoas
envolvidas com o narcotráfico e com o controle de determinadas regiões.Os malandros ou malandras são
consideradas por elas pessoas perigosas, sobretudo, se há alguma dívida com eles. Caso, sejam pessoas
muitos próximas, como amigos e familiares, podem indicar proteção também.

90
humanas" (p. 222). É através das amizades, da convivência cotidiana muito próxima,
trocas de confidências e histórias pessoais e das observações do "ser travesti", que vão se
constituindo os processos de subjetivação de Mariel. Foucault (2006) considera a
subjetividade como uma experiência de si mesmo, como um "jogo de verdades" no qual
o sujeito joga consigo e com outras/os, e ao se realizar isso, se reconhecem como sujeitos
de uma sexualidade (LONGARAY e RIBERIRO, 2016). A relação com as outras
mulheres transsexuais e travestis do local se estreitou quando Mariel abriu um pequeno
salão de beleza independente, onde fechava pacotes mensais com as clientes. Ela relata
que era no fazer dos cabelos e unhas que ela ficava sabendo das experiências de vida de
cada uma delas. Disse-me que a maioria só queria ganhar dinheiro para melhorar a
situação financeira da família, "poder comprar coisas, mas que não gostavam de ser puta.
E que tinham aquelas que sonhavam em "casar com dinheiro", isto é, conseguir se casar
com alguma pessoa que lhe porporcionasse bens materiais e conforto. A descrição de
Mariel se assemelha muito àquela discutida por Pelúcio (2005a), quanto à prostituição,
tal como entendida pelas trans e travestis:

A prostituição é entendida de diversas formas pelas travestis: (1) como uma atividade
desprestigiosa, com a qual só se envolveriam por necessidade, saindo dela assim que
possível; (2) como uma forma de ascender socialmente e ter conquistas materiais e
simbólicas; (3) como um trabalho, sendo, portanto, geradora de renda e criadora de
um ambiente de sociabilidade. Essas não são posições estanques e definitivas, mas
pontos de vista e percepções que se entrecruzam e dialogam. (Pelúcio, 2005a, p. 223)

Até então, Mariel só realizava poucos programas e apenas como homem. Eventualmente
se maquiava, mas permanecia na performance masculina. Até que um dia, tudo se
modificou.

Um dia uma amiga falou: "por que você não se veste de mulher? Você vai ganhar
muito dinheiro. Você não gosta de pau? Então vai la, eles vao querer te comer, e você
ainda consegue mais". Eu via que as meninas trans trabalhavam em bar e conseguiam
os clientes. Essa menina me comprou uma peruca, enorme e morena, porque meu
cabelo não era grande. Me colocou um vestido lindo, salto altíssimo, eu nem sabia
andar. Me montei toda, estava uma mulher feita. Quando me olhei no espelho, me
emocionei. Fiz meu primeiro programa aquela noite como mulher, foi muito diferente,
me emocionei muito. Alguma coisa em mim tinha mudado. Eu tinha achado a mulher
em mim. Foi bom demais, eu fiz muito dinheiro em um dia só. E a partir daí, comecei
a ganhar muito bem. Eu era mulher, desde esse dia não usei mais roupa de homem.
Eu era mulher.

A escritora Amara Moira (2017) relata no livro Vidas Trans, que uma de suas
experiências de transição foi durante o carnaval, onde a "montação" era socialmente
permitida, "era como se eu tivesse carta branca para descobrir quem eu era" (p.45).

91
Quanto mais a brincadeira carnavalesca se aprofundava, mais as fronteiras da brincadeira
eram deixadas para trás. Mariel relatou algo próximo à experiência da escritora. Foi na
intenção de conseguir mais clientes e ganhar mais dinheiro, que ela transicionou. O que
era algo pontual, com um fim bem delimitado, passou a ser a sua experiência de si
enquanto mulher transsexual.
Outra questão que aparece na narrativa de Mariel é a prostituição não apenas como
uma regime de trocas de sexo por dinheiro, mas um universo mais amplo de exploração
de si, dos seus desejos, prazeres e subjetividades. O universo de intercâmbio da
prostituição à qual Piscitelli (2016) se refere, ultrapassa a noção restrita das trocas por
dinheiro. Ainda que esse seja o fim assumido por Mariel, ela compõe a narrativa com
trocas de afeto e experiências entre as mulheres transexuais e travesti, também fazendo
referência a sua experiência de transição. Piscitelli comenta que o sentido atribuído por
Narotsky e Besnier (2014) sobre as economias sexuais, expande o conceito para noção
ampliada de economia, " que envolve todos os processos mediante os quais se sustenta a
vida, indo além das relações de mercado e do puramente material, incluindo estratégias
que envolvem relações de cuidado, circulações de afeto, redes de reciprocidade"
(Piscitelli, 2016, p. 12).

Passei um ano em Callao direto, e quando voltei a primeira vez para casa da minha
mãe, eles [mãe, irmãos e irmãs] mal me reconheceram. Ninguém sabia que eu estava
como mulher. Eu liguei antes pra minha mãe e avisei a ela que ia visitar eles e que
provavelmente eles iam ficar triste porque eu tava diferente. Mas eu fui bem clara,
falei no telefone mesmo que se não me aceitassem tava ótimo também, eu era
totalmente independente. Eu me sinto bem assim e pronto. Em um ano eu me
transformei, minha mente se modificou de uma forma que é dificil explicar. Parece
que sempre foi assim. Eu era mulher, e pronto. Eu joguei toda minha roupa de homem
fora, e passei a só comprar roupa de mulher. Usava bunda falsa e tudo. Cheguei na
casa da minha mãe com tudo isso, salto lá no alto, toda maquiada, vestido, cabelo com
aplique. Eu tinha ganhado muito dinheiro lá em Callao como puta, tinha chupado pau
pra caralho, tinha transado pra caralho e tinha um montão de dinheiro assim [fez o
gesto de um bolo enorme de dinheiro]. Então comprei muitos presentes, e enchi um
taxi todo. Quando cheguei na casa da minha mãe eu congelei, fiquei uns minutos
dentro do taxi com muito medo de sair. Eles ficaram me olhando como "o que é ou
não é"? Minha mãe me viu e depois entrou na casa chorando. Mas nessa época, eu era
muito agressiva, sempre estava na defensiva de tudo, Callao me ensinou isso, porque
a vida de trans lá exige isso. Você sempre tem que se defender de tudo, porque tudo
pode ser perigoso. Tinha sempre que estar pronta pra brigar, sempre "ah, vai tomar no
cu e foda-se!", pegava faca, o que fosse, eu tava sempre pronta pra guerra. Eu entrei
na casa, e fiquei na sala com meus irmãos. Eu falei pra minha mãe que não era mais
Marco que meu nome era Mariel Alexandra Fernandes. Avisei a todos que não queria
ouvir ningém me chamando de Marco, porque eu nao era mais essa pessoa. Virei pra
minha mãe e disse pra ela: "você sendo minha mãe quero que me chame de Mariel".
E repeti sou Mariel Alexandra Fernandes. Minha mãe começou a chorar, minha irmã
começou a chorar, foi horrível, mas eu tinha que ser firme. Com vocês ou sem vocês
vou continuar sendo Mariel. Eu falei, "ih gente, que isso, eu to viva, não to morta não,
viu? Estão chorando por qual motivo? Me expliquem. Eu sou totalmente
independente, se vocês ficarem chorando, eu vou embora. Eu trabalhei muito e me
sustento sozinha." Minha mãe começou a lamentar sobre meus estudos, sobre o por

92
que de estudar tanto tempo, pra nada, enfim, começou a jogar coisas na minha cara,
queria que eu me sentisse mal. Ela falou muitas coisas que me faziam mal. Eu falei
pra ela que sempre me senti mulher, que sempre fui. E que agora era de vez.

Há elementos na reflexão de Mariel que chamam atenção. Por aproximação de


sentidos de justificativas comportamentais de outros casos sobre as tentivas de
reestabelecimento de uma relação entre mulheres trans e família, Larissa Pelúcio (2011b)
tem refletido sobre o dinheiro e bens proporcionados pela prostituição. Pelúcio reflete:
"Por meio dessas teias complexas, a prostituição, tomada por tantas vozes como

antagônica à família e a relações afetivas, pode ser justamente promotora destas relações. "
(p.192) . Como Oliveira (2015) argumenta em etnografia sobre travestis e transexuais na
região de Campinas/SP, é através dos inúmeros presentes que pessoas passsando as
mesmas condições que Mariel esperam poder ser aceitas na família. A atribuição de
sentido destacada por Mariel pode ser explicada pela interpretação de Marcel Mauss
(2003) , sobre a dávida. Segundo o autor, as dádivas estabelecem relações de
reciprocidade, na qual há a obrigação de dar e a de receber:

"Se coisas são dadas e retribuídas, é porque se dão e se retribuem "respeitos" –

podemos dizer igualmente, “cortesias”. Mas é também porque as pessoas se dão ao


dar, e, se as pessoas se dão, é porque se “devem” – elas e seus bens – aos outros"
(Mauss, 2003, p. 263).

Os presentes de Mariel são as dádivas oferecidas a família, e essa troca presupõe a


reciprocidade dos últimos, relacionada com a aceitação de Mariel como uma mulher
transexual prostituta. Essa relação de reciprocidade, é demarcada por Pelúcio (2011b), na
possbilidade que a prostituição tem de estabelecer "uma ponte", um elemento que conecte
ambos os lados, de forma a permitir o deslocamento recíproco, entre a famílias e as
transsexuais e travestis. Mariel também elabora uma estratégia discursiva ao afirmar, de

forma impositiva e repetitiva seu nome e gênero para a família, marcando uma estratégia
de resistência diante da esperada rejeição da família. Pode ser refletida segundo
afirmações de Judith Butler em entrevista, quando ela esclarece que "os corpos na verdade
carregam discursos como parte de seu próprio sangue. E ninguém pode sobreviver sem,
de alguma forma, ser carregado pelo discurso (BUTLER, 2002, p. 163). O gênero, para
filósofa, deixa de se referir a um ‘ser’, para ser um ‘fazer’: que se faz em relação ao outro.

93
A esse fazer, ela dá o nome de performatividade de gênero77. O gênero, segundo ela, é
parte fundamental de toda e qualquer forma de interação, sendo indossociável a sua
performance de qualquer outra ação, gesto, ato ou representação. Por isso, Butler entende
a performatividade como uma forma discursiva, não do discurso que se descreve ou se
fala, mas daquele que é construído pelos atos que se executam a todo instante (BUTLER,
2016). No caso de Mariel, ela repete seu nome e gênero algumas vezes, reafirmando sua
posição como Mariel e mulher, e responde à quebra de expectativa da família reinterando
seu estar viva. A independência financeira parece ocupar um lugar fundamental que a
livra da ordem estrutural de gênero, como se afirmasse a possbilidade de vida das
mulheres trans e travestis pela lógica capitalista que as marginaliza.
Mariel ficou com a família durante um breve período. Não se sentiu bem na casa
da mãe, decidiu voltar para Callao. Dessa vez comentou que ficou triste, começou a beber
muito e também "a cheirar pó". Confessou-me que viviva sempre "bêbada e drogada",
para não pensar na família. Após outra temporada de cerca de seis meses em Callao, disse
que uma amiga, também mulher trans, a convidou para irem juntas a Boa Vista trabalhar
em um salão de beleza. Elas atravessaram a fronteira e alugaram pequenos quartos nos
fundos da casa da mãe de uma das amigas.

Era 2017, a Venezuela já não ia bem, as coisas já estavam ficando difíceis por lá, mas
Boa Vista ainda não estava ruim não. Tinham só quatro trans em Boa Vista, pelo
menos que eu conhecia, só. Tinha Lorrainy, que era de Caracas, Rubia, eu e
Cristiannys (irmã de Mariel). Só quatro trans venezuelanas. O resto eram brasileiras.
Em uma noite eu conseguia ganhar 600/700 reais nessa época. Rubia, que era novinha,
ganhava 1000. Fizemos muito dinheiro. Mas droga é uma merda. Também
gastavamos muito em droga. Eu fazia assim, trabalhava 15 dias e voltava pra casa,
com dinheiro, comida e coisas. A mãe da Lorrainy, dona do salão, ela alugava uns
quartinhos, por diária, era 20 reais. Eu fiz um acordo com ela de pagar o mês, porque
tem dias que fazíamos muito e dias que não fazíamos quase nada. Em algum momento
eu parei de trabalhar no salão, por que estava sem saco, e comecei a ficar na rua o dia
todo. Mas eu nunca ficava sozinha. Tinha medo, as pessoas olhavam muito. Se fosse
pra sair sozinha, eu ficava em casa. À noite saímos sempre em grupo, nós quatro.
Assim era mais dificil alguém mexer com a gente. Mas tiveram momentos violentos.
Era tudo muito violento nessa coisa da rua, um minuto está tudo calmo, no outro é
correria e você pode estar morta. Mas com quem a gente mais brigava mesmo, era

77 O conceito de performatividade a que me refiro, acompanha as discussões de Butler (2016): "O gênero
não deve ser construído como uma identidade estável ou locus de ação do qual decorrem vários atos; em
vez disso, o gênero é uma identidade tenuamente constituída no tempo, instituído no espaço externo por
meio de uma repetição estilizada de atos. O efeito do gênero se produz pela estilização do corpo e deve ser
entendido, consequentemente, como a forma corriqueira pela qual os gestos, movimentos, e estilos
corporais de vários tipos constituem a ilusão de um eu permanentemente marcado pelo gênero. Essa
formulação tira a concepção do gênero do solo de modelo substancial da identidade, delocando-a para um
outro que requer concebê-lo como temporalidade social constituída. Significativamente, se o gênero é
instituído mediate atos internamente descontínuos, então a aparência de substância é precisamente isso,
uma identidade construída, uma realização performativa em que a plateia social mundana, incluindo os
próprios atores, passa a acreditar, exercendo-a sob a forma de uma crença. (p.242/43)

94
com as outras trans brasileiras. Eu sempre brigava com elas, era uma guerra pelas
ruas. A gente tava lá fazendo a rua, aí elas chegavam, já falando mal da gente: "olha
lá as 4 venecas. Ih, elas todas piranhas." Eu respondia: "Vocês são donas da rua por
acaso?" Elas tem a mãe da rua, né. Ela [a mãe] chegou pra mim e falou que eu tinha
que pagar um tanto pra ela por dia, pra ficar trabalhando ali. Eu sempre fui bolada,
selvagem. Nunca quis pagar nada. Ela ia pra cima de mim, falava pra eu respeitar ela,
porque ela era a mãe da rua e nao sei que lá. Em um dia, a gente começou a se bater,
ela falou que ia me esfaquear, que ia me encher de tiro. Os malandros que trabalhavam
pra ela passavam de moto com uns facões enormes atrás de mim. Pegavam minha
bolsa. Eles iam atrás de mim pra pegar o dinheiro. Se ganhava qualquer coisa,
colocava na camisinha e enfiava no cu. Eles me bateram muitas vezes. Eu já subi em
cima de telhado de posto pra fugir deles. Era sempre isso. Eu não sei como me salvei,
acho que Deus quer que eu esteja viva mesmo. Porque foi bem difícil. Ela queria me
matar. Os brasileiros estavam cansados de ficar com as mesmas putas brasileiras. Aí
chegaram quatro venezuelanas, eles queriam sempre a gente. Todos queriam provar a
gente. E aí elas ficavam putas. Mas as coisas foram piorando bem rápido, começaram
a ficar dificil, no final de 2017 já tava tudo ruim... A Venezuela piorava mais todo dia.
E os venezuelanos já estavam vindo bastante pro Brasil. Começaram a chegar muitas
putas, mais e mais. Muitas trans também. A rua ficava cheia, não tinha cliente pra
todo mundo. A coisa foi ficando cada vez mais dificil de conseguir dinheiro pra viver.
Eu comecei a voltar mês a mês, ou de dois em dois meses. E mesmo assim com pouco
dinheiro. Teve uma vez que voltei e fiquei 1 mês em casa. E falei que ia viajar de novo
pra minha mãe. E que não sabia quando voltava. E aí, não voltei mais pra Venezuela.
Isso tem quase 3 anos. Eu fiquei quase 1 ano em Boa Vista direto. E estou a 1 ano e 1
mês aqui no Rio. Então a última vez que estive na Venezuela tem quase 3 anos.

Mariel reflete sobre as formas de rivalidade entre as mulheres transexuais e


travestis quanto ao poder das ruas. Esse tema foi objeto de análise de Pelúcio (2005b) que
descreve algumas cenas de rivalidades entre mulheres trans e travesti, situações, como a
que Mariel conta, da disputa por determinados pontos de prostituição que têm "donas".
Aquelas que os ocupam devem pagar uma taxa para cafetina local. Também a rivalidade
entre mulheres trans e travestis "veteranas" e as "novatas" ou ainda situações em que
algumas mulheres trans e travestis se sentem incomodadas pelo jeito ou tratamento umas
com as outras, e, em resposta, manda um "doce" (p.233), em linguagem pajubá, isto é,
arquitetam algo ruim ou armam uma cilada, que envolve, em alguns casos, violência
física, por exemplo, pedir para alguém bater ou ameaçar as outras. Outra questão que se
destaca na narrativa de Mariel é a categorização da mãe. Ela é também descrita pelos
autores de forma semelhante nas experiências com mulheres trans e travestis. Segundo
Pelúcio (2007), a categoria "geralmente se refere a proteger e ensinar a viver como
travesti, cabendo à categoria de mãe a iniciação propriamente dita." (p. 6), e se referem
às cafetinas. São poucas as trans e travestis que trabalham na rua que, como Mariel, se
intitulam,"selvagens", isto é, que não aceitam viver sobre a domesticação das cafetinas
ou mães78. Mariel marca o ano de 2017, com o aumento da entrada de venezuelanos no

78Não consegui determinar se essa é uma categoria nativa ou não entre mulheres trans e travesti
venezuelanas.

95
Brasil. Segundo a quarta edição do relatório Refúgio em Números79, em 2017 foram
registradas 17.865 solicitações de refúgio de venezuelanos. Em comparação com o ano
anterior (3.375 solicitações), o número aumentou mais de cinco vezes.
Conheci Mariel pessoalmente durante minha ida a Roraima, em junho de 2018.
Mariel era uma das coordenadoras do abrigo Latife Salomão, onde se concentrava a
maioria da população LGBTI (acrônimo utilizado pelo ACNUR) dos abrigos de Roraima.
Ao lhe perguntar como foi a sua entrada no abrigo, ela adianta um comentário, "essa
história é engraçada", e continua:

Eu não precisava morar no abrigo. Ainda em 2017 eu conheci um cara, ele era Policial
Militar, eu praticamente morava na casa dele. Foi coisa de um mês, eu parei de
trabalhar na rua e fiquei lá, ele me dava tudo. Mas eu era uma puta, eu não me
conformava com nenhum homem. Minha vida era prostituição. Viviam nessa casa
quatro trans, todas brasileiras. Ele não falava nada, eu fazia favores para ele. E ele não
mexia comigo e me deixava ficar lá. Então assim, eu tinha essa casa e tinha os
quartinhos lá atrás do salão, eu não precisava de abrigo. Mas aí acabei me
apaixonando por um menino. Eu tava trabalhando ali perto da rodoviária. Me
arrumava bastante pra rua, ficava toda linda. Eu vi uma menino loirinho, tão moço,
ele veio na minha direção e disse: "Oi, moça". Ele pensava que eu era brasileira. Ele
me perguntou o que eu estava fazendo por ali. Eu falei que ele podia falar em
espanhol, que eu era venezuelana também. Ele me disse que estava vendendo cigarro
pra conseguir dinheiro e me perguntou meu nome. Eu disse que me chamava Mariel
e perguntei o preço do maço. Ele respondeu quatro reais. Eu era piranha, piranha,
piranha, piranha, Nat. Eu falei pra ele: "você não acredita que ficando comigo você
não ganha melhor, não?". Ele riu. E disse que só queria dinheiro, porque precisava
mandar pra família. Eu passei a comprar um maço de cigarro dele todo dia. Todo dia
ele passava e falava: "Oi Mariel!". Sempre às 21h, ele passava no posto de gasolina
para tomar banho e depois vinha me perguntar se eu queria o maço de cigarro. Teve
um dia, que eu, especificamente, comprei dois, porque não vinha no outro dia. E ele
falou, " Mas por que?", eu respondi "Porque vou descansar". Ele disse que já não sabia
o que era descansar e que dormia no chão da rua com frio. Eu convidei ele pra dormir
comigo. Ele respondeu assustado: "Sério mesmo? Posso dormir na sua casa?" Eu dei
o endereço pra ele, daqueles quartinhos atrás do salão. Não é que ele foi lá, Nat? Ele
foi dormir lá em casa. A gente transou. Ele foi muito carinhoso comigo, me beijava
com intensidade, paixão mesmo. Me comeu de um jeito especial. Um amor como
nunca. Eu nunca tinha experimentado algo desse tipo. Amor, paixão. Aí, enfim, me
apaixonei por Jean. Então a minha história de chegar no abrigo, é na verdade uma
historia de uma paixão. Porque ele começou a falar que não podia ficar comigo porque
eu trabalhava na rua, mas que, ao mesmo tempo, gostava de mim. Só que era dificil
pra mim também né, porque eu sem dinheiro ficava morta. Eu tinha que fazer
programa ou tinha que roubar. Ninguém dava trabalho de verdade pra travesti. Jean
falou que queria morar comigo, e disse que se eu queria ele, e amava ele, tinhamos
que morar na praça juntos. (chorando) E foi uma coisa muito dificil pra mim. Eu
andava muito arrumada, sempre passava creme, sempre bem limpinha. Morar na praça
é dificil. Cuidava muito de mim. Não me imaginava fazendo aquilo, mas eu gostava
dele demais. Trabalhei até cinco horas da manhã nesse dia. Ele tinha uma barraca na
praça, eu voltei e chamei ele. Bati lá e disse, "Eu vim dormir". Tirei meu salto e botei
do lado da porta da barraca e botei minha bolsa dentro. Ele me disse: "é serio que você
vai dormir comigo aqui na praça?" Eu disse que sim, ele sempre parecia muito
surpreso, mas feliz. Eu não consegui dormir de noite, era muito calor, eu suava muito.
Ele sempre tentava de acalmar, falando que tudo ia ficar bem, que íamos ficar bem.

79
O relatório está disponível no link:
https://www.justica.gov.br/news/de-10-1-mil-refugiados-apenas-5-1-mil-continuam-no-brasil/refugio-
em-numeros_1104.pdf/@@download/file

96
Só que eu já ficava pensando que não ia conseguir viver com Jean, porque eu tinha
uma vida, eu comprava roupa, eu comprava perfume, eu comia fora. Todo dia eu
comia em restaurante, eu não cozinhava não. Fazia as três refeições em restaurante.
Eu tinha até crédito lá. Mas eu resolvi tentar, eu tinha duas malas enormes cheias de
coisa. Ele me ajudou a ir lá nos quartinhos, pegar elas e levar pra praça. No início eu
quase não saia da barraca. Ele fazia comida à lenha ou as vezes a gente conseguia
umas quentinhas. Comecei a pedir comida no supermercado, a pedir dinheiro na rua.
De tanto tempo que eu fiquei na praça, passei a conhecer todo mundo e mandar nas
coisas, porque eu sou assim, você sabe Nat. Se alguém tinha algum problema, ia me
chamar, se tinha briga, iam me chamar. Eu era a prefeita (risos). Tinha umas pessoas
sem vergonha, que se aproveitavam das outras. Eu não aguentava. Eu queria falar pra
todo mundo, organizar as pessoas. A praça tava lotada, era muita gente. Um dia tava
acontecendo uma confusão lá na praça e eu levantei e disse a Jean, que eu ia falar pra
todo mundo e do jeito que eu ia falar, os venezuelanos iam me escutar. Jean falou pra
eu ficar quieta. Mas eu sou teimosa, eu subi numas malas lá, e fiz um discurso de
presidenta. Porque eu queria ajudar todo mundo, e me ajudar também, eu tava
morando ali, a gente tinha que se organizar e viver bem. Muita gente me apoiou depois
do discurso. E aí pronto, a notícia se espalhou, eu virei Mariel, a menina trans que
manda na praça. Todo mundo me conhecia assim. E acabei mandando na praça
mesmo. E foi muito bom pra mim, porque eu não queria voltar pra prostituição.
Ocupou minha cabeça. Então eu e América, outra trans, coordenavamos a praça. Os
militares avisaram a gente um pouco antes que íamos ter que sair dali, e que iam nos
levar para um abrigo. Eles combinaram tudo comigo e com América, tinha que estar
tudo pronto às cinco da manhã no dia, todas as malas organizadas pra eles verem o
que tinha dentro. Eu fiquei super nervosa, era muita gente. E eles [militares] me
disseram que iam fechar a praça depois e ningém ia poder ficar ali. Eu fiquei pensando
nisso, com medo de alguém ficar pra trás, e aí? Faz como? Tava preocupada, no dia
anterior vi gente bebendo e ficando bêbada, fiquei mais nervosa. E ficou muita gente
mesmo, as pessoas foram depois entrando nos abrigos. O Latife então só foi mesmo
existir por mim e pela América. Quando a gente chegou no galpão do abrigo não tinha
nada lá, era só porque eles estavam cansados da gente arrumando confusão na praça.
Mas não tinha jeito de ficar na praça mais não, a vida já tava muito ruim lá, tudo muito
sujo, então comecei a organizar umas passeatas com a América, ali pelo entorno, pra
chamar atenção de todo mundo. Pra fazer escândalo mesmo, agitar as coisas, as
pessoas. E foi assim que a gente chamou atenção e eles decidiram mudar a gente pro
Latife. Aí depois de algum tempo lá no Latife, o Jean falou que não queria mais ficar
ali e que tinha conhecido um menino e que ia morar na casa dele. E assim tudo acabou.
Essa é a história de como fui parar no abrigo.

Muitas etnografias que trabalham com mulheres transsexuais e travestis abordam


as relações de afeto e conjugalidade experienciadas por elas em seus percursos, e a relação
dessas com a prostituição (KULICK, 2008; PELÚCIO 2007; 2006; 2011b; PATRIARCA
2015; ZAMPIROLI 2017; 2018). A emputação de estigma relacionado à prostituição,
como atividade que deixa as trans e travestis "sujas", surge frequentemente em diversas
etnografias. Zampiroli (2018) associa essas atribuições às interpretadas por Mary Douglas
em Pureza e Perigo (1966). O corpo de Mariel era considerado por Jean como impuro,
associado à desordem e ao perigo desestabilização social (Silva, 2000). Esse estigma está
associado a sua atividade como prostituta, e não pelo fato de Mariel ser uma mulher
transsexual. A exigência de Jean era que Mariel parasse de se prostituir e, dessa forma,
permanecesse "limpa". Enquanto isso, Mariel também enfrentava um dilema. O de ter
que deixar de fazer os programas, e com isso perder seu poder financeiro e as conquistas

97
materias; que não apenas sustentavam sua subsistência, mas também eram parte essencial
do sustendo da sua pessoa travesti. Destaca Mariel toda uma estrutura financeira que
sustenta certas atividades performáticas, como determinantes para seu processo de
subjetivação80, como idas ao salão de beleza para fazer cabelo, tingimento, escovas,
penteados, unhas, a compra de roupas, cremes, perfumes. Essas ações são descritas por
ela como parte das tecnologias que compõem a produção de subjetividades trans e
travestis; tal como argumentado por Nascimento (2018). Longaray e Ribeiro (2016)
discutem como se dá a fabricação dos corpos trans e travestis a partir de processos de
subjetivação. Na pesquisa, as autoras discutem que mulheres trans e travesti operam ora
em processos de subjetivação normalizadores, que de alguma maneira mantém a
normativa socialmente estabelecida, ora em processos de subjetivação singularizadores,
que marcam um rompimento com a normativa estabelecida e fazem resistência a sistemas
de sexo-gênero-desejo determinados. Os sentidos analíticos carregados na fala de Mariel
demonstram como sua avaliação é estruturante da posição que ela reinvindica como uma
figura subversiva que quebra os padrões normativos, muito associados também ao
exercício da prostituição. Ora ela reinvidica querer "uma vida normal" ou mesmo
dependente da manutenção de atividades, como ela descreve, cabelo, unha, pintura,
perfumes e outros, para o exercício dos seus processos de subjetivação como uma mulher
transexual. Contudo, alguns autores já discutiram sobre esse contínuo processo de
subjetivação das mulheres trans e travesti, que são marcados pela transitoriedade e
constante construção e descontrução de categorias e normativas associadas a gênero,
sexualidade e desejos (PERES, 2012; PELÚCIO, 2006; LONGRAY e RIBEIRO, 2016)
Mariel também parece fazer uma distinção entre o amor de Jean e as outras
relações que manteve com outros homens. Certa vez, quando conversávamos sobre sua
relação com ele, Mariel me confessou que se sentia "mais mulher" com Jean. E essa
percepção analítica também é apresentada por Zampiroli (2017), ao considerar famílias e
conjugalidade entre prostitutas trans e travestis. O autor utiliza a expressão "sair do
subterrâneo" em detrimento àquela utilizada por Pelúcio (2011b) de "não-lugar", para se
referir a relações em que as mulheres transexuais ou travestis são assumidas em público

80 Atento para que essa observação não seja tomada como uma normativa do ser travesti, apenas estou me
referindo a experiência de Mariel como ela me relatou. Não há demarcações de ações que determinem um
pessoa como mais ou menos trans ou travesti, não há intuito de associar uma normativa ou mesmo uma um
cárater pré-discursivo a essas existências. Há muitas possibilidades de performances e performatividades
de gênero nas experiências trans e travestis e não é minha intenção restringí-las. Para além disso as mulheres
trans e travesti representam com seus corpos e performatividades um desafio a lógica cisheteronormativa,
subvertendo expectativas e identidades de gênero, ou como Preciado (2018) comenta, são hackers de
gênero.

98
pelo parceiro(a). Segundo sua pesquisa, a "saída do subterrâneo" nas relações afetivo-
amorosas, "em certo grau, as conformam com a sociedade", de alguma maneira. Segundo
Zampiroli, "o papel da esposa tem potência de torná-las mulheres", isto é, há nessa "saída
do subterrâneo" uma mudança de posição social que altera as dinâmicas de poder que
mantém mulheres transexuais e travestis geralmente em posições restritas à esfera do
privado. Segundo Mariel, que hoje tem 30 anos de idade, a relação com Jean foi a única
em que ela experimentou o reconhecimento público da relação enquanto mulher
transsexual. Esse é um dos motivos pelos quais ela aponta a certeza de que "era amor".
Mariel optou parar com a forma de sustento da sua pessoa travesti, a prostituição, em
troca da relação com Jean. Essa troca da categoria de "puta" pela de "esposa", modificou
a experiência trans/travesti de Mariel, no sentido de que a "saída do subterrâneo" validava
a sua existência e materialidade como mulher.
Quando estive na capital de Roraima em junho de 2018, observei que as principais
praças da cidade estavam fechadas com tapumes que levavam placas escritas: "Em
manutenção". Durante as entrevistas que realizei em Roraima, com diversos atores da
sociedade civil envolvidos no apoio direito a migrantes e refugiados venezuelanos na
cidade, alguns deles comentaram sobre o episódio de retirada dos migrantes, solicitantes
e refugiados que viviam nas praças e o cercamento das mesmas. Segundo matérias
jornalísticas 81 a retirada dos venezuelanos das praças e o fechamento das mesmas
começaram a acontecer ao final do mês de março de 2018, como iniciativa da prefeitura
da cidade. Da praça em que Mariel morava, nomeada Simón Bolívar, foram retiradas 846
pessoas que foram encaminhadas para os abrigos Latife Salomão e Santa Teresa. O abrigo
Latife Salomão se iniciou, portanto, com cerca de 410 abrigados, entre eles homens e
mulheres solteiros; casais sem filhos e pessoas LGBTI (acrônimo usado pelo ACNUR).
Desde a sua formação, Mariel e América coordenaram o abrigo, pois eram reconhecidas
como lideranças pelas pessoas que viviam na praça. Mariel comentou, em uma de nossas
conversas, as condições de funcionamento da rotina do abrigo e como era sua relação
com os militares.

Eu tinha muitas funções, ficava o dia inteiro nisso. Eu é quem falava com as pessoas
da UNFPA, ACNUR e do Exército sobre o abrigo. Fazia as requisições de material

81 Matérias jornalísticas sobre:


(1) https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/prefeitura-fecha-praca-onde-vivem-centenas-de-venezuelanos-
em-boa-vista.ghtml
(2) https://veja.abril.com.br/brasil/mais-de-800-venezuelanos-sao-retirados-de-praca-e-levados-a-abrigos-
em-rr/
(3) https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/exercito-retira-centenas-de-venezuelanos-de-praca-cercada-
com-tapumes-em-boa-vista.ghtml

99
de limpeza, coordenava a questão da comida, o recebimento de doações, as coisas de
higiene pessoal. A questão da comida era um desastre, sempre ficava faltando alguém.
A gente controlava falando que quem não estivesse na fila às 8 horas não ia receber.
O banheiro tinha que estar limpo às 10 horas da manhã. O salão completo e os quartos
tinham que estar limpos tambem às 10 horas. Eu pegava o microfone e ficava gritando
que nem uma maluca, as pessoas me odiavam, chamavam de louca. Eu era mesmo.
Se chegava perto de mim pra reclamar que não pegou o café da manha às 8h porque
tava com dor de dente, dor de cabeça, eu falava: "Problema seu, eu não quero nem
saber." Era assim, mas dava certo.

Se o banheiro não tava limpo às 10horas, eu colocava pra fora. Colocava a equipe
toda. Ficavam de castigo, depois voltavam, mas aconteceram poucas vezes, eles nem
tentavam porque sabiam que eu ia por pra fora mesmo. Eu ameaçava todo mundo, era
brava. Teve um dia que um menino veio bravo pra cima de mim, eu falei pra ele
arrumar a mochila e pedi aos militares colocarem ele na rua. Eu disse pra ele que
quem mandava ali era eu e os militares, e que ele não sabia o esforço que eu tinha
feito pra tirar ele da praça a levar pra lá. Ele implorou para eu não pôr ele na rua. Mas
os militares pegaram e levaram ele. Todo mundo ficou com medo no Latife, ficou
tudo um silêncio. Eu é que mandava. O Exército não gosta de bagunça. Eles me
apoiavam em tudo. No fim ficou tudo mais tranquilo, as pessoas me respeitavam. E
passei a ganhar muita confiança dos militares. Transei com vários deles. Tinha um
poderoso, que eu gostava muito. Acabei ficando com ele. Fiquei sempre fora do abrigo
né. Não dava pra ficar dentro.

Como relatei no primeiro capítulo, durante a minha visita ao abrigo Latife


Salomão em junho de 2018, os militares responsáveis me mostraram o abrigo, e durante
essa visita comentaram que Mariel e América eram parte "dos organizadores" do abrigo.
Utilizo o masculino aqui, pois foi na utilização desse pronome que os militares se
referiram a elas. A questão que me chamou mais atenção durante a apresentação do abrigo
pelos militares, para além da utilização do pronome masculino ao se referir as mulheres
trans e travestis, foi a questão dos banheiros. Após uma pergunta sobre a questão, os
militares me informaram que as mulheres transexuais e travestis tinham um banheiro
exclusivo para elas, dentro do container do banheiro masculino. A questão do banheiro
está presente no ativismo de pessoas trans, pois este espaço permanece como
representante da generificação de determinados espaços, que segrega as pessoas baseadas
no sexo biológico (CRUZ, 2011). Preciado (s/d), no texto Basura y Género - Mear/Cagar.
Masculino/Feminino, faz uma reflexão crítica e um tanto sarcástica sobre a relação entre
a arquitetura dos banheiros masculinos/femininos e os papéis de gênero, que estabelecem
um regime heteronormativo de inspeção e regulação dos corpos.

Una arquitectura que fabrica los géneros mientras, bajo pretexto de higiene pública,
dice ocuparse simplemente de la gestión de nuestras basuras orgánicas. Infalible
economía productiva que transforma la basura en género. No nos engañemos: en la
máquina capital-heterosexual no se desperdicia nada. Al contrario, cada momento de
expulsión de un desecho orgánico sirve como ocasión para reproducir el género. Las
inofensivas máquinas que comen nuestra mierda son en realidad normativas prótesis
de género. (Paul Preciado, s/d, p.4)

100
Entretanto, como comento no primeiro capítulo, somente quando eu abordei essa
questão diretamente com Mariel, muito tempo após a visita ao abrigo, é que pude
compreender que havia uma estratégia associada à utilização do banheiro masculino, em
detrimento do feminino. Estratégia essa que se assemelha com as reinvicadações e
práticas de mulheres transexuais e travestis em situação de privação de liberdade, tanto
que relatam preferir estar em presídios masculinos, do que em presídios femininos, pois
é nos presídios masculinos que podem organizar seus "barracos" e conseguir clientes para
as trocas sexuais (ZAMBONI, 2017). Também porque é somente nos presídios
masculinos que a convivência com maridos e namorados é permitida.

O que aconteceu foi que as piranhas [se refere às mulheres cisgênero do abrigo] não
queriam que a gente entrasse no banheiro feminino. Dizendo que quem não tem buceta
não é mulher. Aquelas piranhas... Mas no final, era muito melhor a gente ter um
banheiro dentro do banheiro masculino, porque a gente tinha a chave e só a gente
entrava, e dava pra gente transar tranquilo. E a gente convenceu os militares, falando
que as mulheres tinham preconceito com a gente. Foi assim.

Ter acesso ao banheiro masculino garante um espaço físico para "transar" dentro
do abrigo, o que era bastante difícil, pois as barracas em que ficavam as pessoas não-
cisheterossexuais eram individuais e bastante restritas em espaço. Mariel descreve as
transas do abrigo como um regime diverso de trocas por favores, informações, produtos,
afetos e outras motivações. Piscitelli (2016) se refere a diversas formas possíveis de trocas
sexuais que ultrapassam as formas convencionais, que restrigem a prostituição a trocas
econômicas.
Em julho de 2018, Mariel conta que um dos assistentes de proteção do ACNUR
lhe disse que um grupo de venezuelanos realizaria a interiorização para o Rio de Janeiro
e que haviam quatro vagas para mulheres trans/travestis. Ela me disse que ficou
apreenssiva em um primeiro momento, pois gostaria de ir para Santa Catariana, onde ela
conhecia algumas pessoas, mas que logo aceitou ir para o Rio de Janeiro, pois não via
perspectivas de se estabelecer em Boa Vista. Dessa forma, não iria sozinha, mas na
companhia de Crstiannys (sua irmã), Danny e Consuelo. As primeiras interiorizações
aconteceram em abril de 2018, e, por algum tempo, a única modalidade possível era a
abrigo-abrigo82. Foi justamente por meio dessa modalidade que Mariel, em conjunto com
outras três mulheres trans/travestis chegaram ao Rio de Janeiro. Inicialmente, as
interiorizações envolviam processos planejados, eram realizados acompanhamentos

82
As cinco modalidades possíveis foram descritas no primeiro capítulo.

101
individuais dos sujeitos por uma equipe, mesmo após a interiorização. Atualmente,
sobretudo após outubro de 2019, quando o Governo Federal lançou a segunda fase da
operação acolhida, com a campanha "interiorização + humana"83, essa passou a abranger
as cinco formas de interiozação (descritas no primeiro capítulo) e passou a ser realizada
de forma muito menos "qualitativa", e mais "quantitativa", priorizando a saída mais
rápida dos solicitantes de refúgio em situação de abrigamento em Roraima. A
LGBT+Movimento que, inicialmente, recebia os casos de pessoas declaradamente não-
cisheterossexuais que estavam sendo interiorizadas para Rio de Janeiro, antes mesmo de
sua chegada, passou a receber os casos, posteriormente dificultando o trabalho de
acolhimento aos migrantes, solicitantes e refugiados. Contudo, no caso de Mariel e as
outras três mulheres trans/travestis, a situação foi completamente distinta.
A LGBT+Movimento por ter sede no Rio de Janeiro, foi identificada como rede
de apoio local, e fomos avisadas com uma semana de antecedência que esse grupo
chegaria. Foi nessa ocasião que realizamos um Skype com algumas funcionárias da
UNFPA e as quatro mulheres trans/travesti que realizariam, em breve, a interiorização
para o Rio e que eu havia, um mês antes, conhecido durante a visita ao abrigo Latife
Salomão. Durante esse Skype combinamos (eu e Marina) com elas, que iríamos encontrá-
las, no dia 26 de julho de 2018, dois dias após a sua chegada, na casa de acolhida,
localizada em um bairro nobre da Zona Oeste do Rio de Janeiro. No dia 30 de julho, como
relatei no primeiro capítulo, recebi, por volta das 19 horas, um telefonema de Mariel
dizendo que ela havia sido expulsa da casa de acolhida, porque havia brigado com outra
moradora da casa. Durante as entrevistas voltamos a esse dia, e ela me contou outra versão
do evento.

Eu estava com muito medo de chegar no Rio. As coisas que eu tinha escutado me
deixavam assustada. Um cidade que era perigosa demais pra trans. Depois que a gente
chegou na casa [de acolhida] eu fui me acalmando, fiquei muito emocionada quando
vi você e Marina lá, visitando a gente. Me senti mais feliz. Tinha duas amigas. Mas
aí tudo ficou ruim. Foi muito traumático e violento. Até hoje eu tenho vontade de
descobrir a cara da mulher que me jogou na rua [se refere a funcionária da ONG
responsável que comunicou a Mariel a expulsão da casa de acolhida]. Foi muito feio.
Eu não sei se já te contei isso, Nat (risos). Mas foi assim, a gente foi pra praia naquele
dia, todas nós. Achamos uns caras gringos lá. Eles ficaram pagando bebida pra gente.
A gente bebeu muito. Tava todo mundo bêbado. Eu roubei o celular dos quatro caras
e peguei o dinheiro na carteira de um deles, tinha uns 500 reais. Eles não estavam nem
aí, não viram nada. Era só a gente ter ido embora que ia ficar tudo bem. Mas a Danny
burra, foi lá e falou pros caras que eu tinha pego o dinheiro e os celulares, pra culpa
ficar só comigo. Aí deu merda, a gente correu e conseguiu entrar na casa [de acolhida],
mas os caras abriram o portão. Me baterem muito, quebraram meu dente, me
machucaram. Foi um escândalo lá dentro. Deu polícia e tudo. Logo depois me

83
https://www.defesa.gov.br/noticias/61414-governo-federal-lanca-nova-fase-da-operacao-acolhida-para-
acelerar-interiorizacao-de-venezuelanos

102
expulsaram da casa [de acolhida], eu fui dormir na praia e depois, fui pra frente da
casa. Eu só te liguei depois, porque eu não acreditei que não iam mais deixar eu voltar
pra casa [de acolhida], porque eu só tava lá por 5 dias, ninguém nem me conhecia. E
eu era bem conhecida em Boa Vista. Fui muito ruim. Eu não sabia pra onde ir, o que
fazer, minhas coisas tavam todas lá dentro, eu sozinha na rua. Não sabia nem andar
ali, pegar onibus, nada. Eu fiquei apavorada. Mas eu achei que em algum momento
alguém vinha me ajudar, porque era injustiça eu estar ali.

No primeiro capítulo descrevo o evento do meu ponto de vista, pois ele foi parte
fundamental da consolidação da minha relação com Mariel e as outras mulheres
trans/travestis que foram interiorizadas para o Rio naquela época. Segundo a
coordenadora responsável pela casa, Mariel havia quebrado algumas regras pré-
estabelecidas da casa de acolhida, que foram comunicadas às moradoras logo no dia de
sua chegada à casa. Algumas dessas regras resultavam em advertências e outras,
especificamente, determinavam a expulsão da pessoa. Mariel, nesse dia, quebrou três
dessas regras que resultavam na expulsão: roubar, deixar que pessoas estranhas entrassem
na casa e participação em brigas. Na época da expulsão de Mariel, ela me contou que
havia sido expulsa por uma briga com uma moradora da casa. Só na ocasião das
entrevistas, mais de um ano após o ocorrido, é que ouvi dela uma versão distinta (já havia
também ouvido a versão de Consuelo, que era bastante próxima a que Mariel me contou
durante essa entrevista). Quando lhe perguntei porque tinha contado histórias diferentes,
ela me disse: "ah Nat, naquele tempo não sabia que éramos amigas, você podia não gostar
de mim, não querer mais me ajudar". Essa percepção de Mariel sobre mim implica a
definição do meu papel brokers, assim concebido por Veena Das (2014) que apresentei
no primeiro capítulo para descrever a minha relação com as interlocutoras.
Com a expulsão de Mariel da casa de acolhida, as outras três mulheres
trans/travestis que permaneceram na casa, decidiram sair e acompanhar Mariel e morar
em uma casa de acolhimento para pessoas não-cisheterossexuais, que ficava no centro do
Rio de Janeiro. Como comentei no primeiro capítulo, essa casa tinha uma dinâmica bem
diferente daquela que Mariel e as outra mulheres estavam acostumadas, pois não havia a
estrutura de um abrigo, tudo era autogerido pelas moradoras da casa. Fora que essa casa
funcionava como uma ocupação, e portanto tinha infra-estutura precária, diferente dos
abrigos e casas de acolhimento para migrantes, solicitantes e refugiados. O regime da
comida também era distinto, não haviam "quentinhas" como no abrigo Latife Salomão ou
uma equipe de cozinha como na casa de acolhida para migrantes, solicitantes e
refugiados. Havia uma cozinha na casa, mas ela era dividida e contava com estrutura
bastante simples. Sobre a experiência nessa casa, Mariel comenta:

103
Foi muito difícil viver lá. Pra mim digo que foi um inferno. Ali eu fiquei pensando
que eu era mulher, eu era trans, mas a vida de trans não dava pra mim não. Eu não
quero viver pobre a vida toda, sem conseguir trabalho normal, sem conseguir um
namorado de verdade, sem poder viajar o mundo, morar bem, comer bem. Como trans
isso tudo é sonho, mas nunca acontece. Todo mundo acha que trans só pode ser puta.
Ser trans dentro da sociedade é muito dificil. Sofremos muito. As pessoas julgam, te
maltratam, por nada. Nada, às vezes você nem olhou, nem viu a pessoa, e ela já está
falando mal de você. Ali, nessa casa, dava pra ver isso tudo. Um monte de trans juntas,
vivendo uma vida merda, fazendo programa, se drogando, morando na rua ou ficando
doente lá dentro. Por isso era tão difícil ficar naquela casa, porque antes eu não via a
vida das trans. Eu era a única trans dos lugares. Ali todo mundo era trans e todo mundo
era fudido. Não tinha ninguém que tinha dinheiro, que podia abrir seu próprio negócio,
ser cabeleireira, vender pipoca, churros, doces, sei lá, poder ter coisas. Não dá nem
pra começar, não tem começo pra trans. Você nasce sem começo e fica a vida toda
sem começar. E aí você acaba vivendo nesse círculo de trans de pessoas trans fudidas
e pessoas de rua. Pessoas de rua que trabalham na rua. É muito dificil. Eu fiquei mal
lá, a gente ia todo dia pra rua, até que não aguentei, porque sou louca, né Nat, me
droguei, arrumei confusão com um menina lá. Me cortei toda no braço pra parecer
que tinham sido elas que tinham me cortado. Eu tava louca, aquele lugar era um
inferno.

Alguns elementos na narrativa de Mariel apontam a questão da estigmatização de


mulheres transexuais e travestis na sociedade, questão recorrente na avaliação de pessoas
em condições sociais semelhantes. No artigo Estigma e resistência entre travestis e
mulheres transexuais em Salvador, Bahia, Brasil (2018), os autores discutem o conceito
de Estigma de Goffmann (1988), a partir de três componentes: "a simplificação das
diferenças, associação das diferenças com características negativas e a separação de
sujeitos em grupos" (p.5). O primeiro componente é referido pelos autores como o
responsável pela manutenção da matriz heterossexual84, descrita por Judith Butler, que
prevê a coerência em sistema gênero-sexo-desejo produtor da normativa que associa
homens/mulheres ao sexo biológico determinado ao nascimento, a construção social do
gênero como associada a práticas sociais determinadas pelo sexo e, o desejo heteressexual
como compulsório. A coerência exigida para manutenção dessa matriz desloca as
identidades trans e travestis para a abjeção (Butler, 2016), pois seus corpos, práticas e
performatividades rompem com a dinâmica pré-discursiva do sexo, que simplica as
diferenças presentes nas experiências trans e travestis. O segundo componente, de certa
maneira, continua a "naturalização" ou "biologização" presente no primeiro, e estabelece

84 Como descrita por ABREU (2010): "A matriz de inteligibilidade ou matriz heterossexual, termo
desenvolvido por Judith Butler (2007), é a forma pela qual se organizam as identidades de gênero e de
sexualidade, aplicando significados a uns determinados tipos de corpos e excluindo outros. Corresponde
aos processos sociais que determinam que um ser humano deva corresponder sempre a um gênero, e essa
correspondência acontece em virtude do seu sexo. Desse modo se produz uma cadeia que estabelece uma
continuidade entre sexo, gênero, desejo e prática sexual, o que confere inteligibilidade aos corpos que são
recipientes de coerência, estabilidade e unidade. Desse modo, a matriz heterossexual define tanto a
coerência como a incoerência, a continuidade como a descontinuidade. Aqueles corpos cujo gênero não é
concordante com seu sexo “natural”, inclusive os corpos que não possuem uma definição clara de sua
anatomia, estão fora da matriz de inteligibilidade." (p.1)

104
os esteriótipos associados a determinadas características que se tornam marcas
depreciativas de sujeitos ou grupos, como aparece na narrativa de Mariel em diversos
momentos como: ". Nada, às vezes você nem olhou, nem viu a pessoa, e ela já está falando
mal de você." ou "Todo mundo acha que trans só pode ser puta". O terceiro componente
ocorre quando a diferença se torna tão radical que institui uma separação entre "nós" e
"eles", análoga à determinação daquilo ou daqueles que são considerados "normais" e
"anormais". Mariel faz referência a essa questão, ao expressar o desejo por uma vida
normal"ou um "trabalho normal".
Um elemento recorrente na narrativa de Mariel é a questão do dinheiro. Em alguns
momentos de sua reflexão, ela aponta a falta de dinheiro como grande dificuldador de sua
vida como mulher trans. Em outros momentos ela reconhece que essa dificuldade é
estrutural e resultado de um processo de marginalização das identidades trans e travesti,
condição que dificulta o acesso dessas pessoas à educação ou a empregos formais, muitas
vezes justificando sua entrada no trabalho sexual. Mariel descreve sua qualidade de vida
como atrelada ao dinheiro e à capacidade de adquirir bens materiais, para seu próprio uso
e de outros. Em muitos momentos ela se refere à família dizendo que ela é, em parte,
dependente do dinheiro que Mariel manda de forma intermitente. Reaparece novamente
a ligação com a família através do dinheiro, mas nessa ocasião de duas formas. Uma que
envolve o sentido já mencionado anteriormente por Pelúcio (2009), sobre o dinheiro ser
promotor de relações entre a família e Mariel, que se dedicava exclusivamente à
prostituição até então. A outra forma é que Mariel tornou-se, do ponto de vista de seus
familiares que permanecem na Venezuela, o elemento "estrangeiro" à crise venezuelana,
com o advento da migração para o Brasil, sobretudo, para a "cidade internacional" do Rio
de Janeiro. A sua família espera um retorno financeiro na forma de ajuda econômica, o
que estabelece e mantém o vínculo entre Mariel e sua família, mesmo à distância.
Após a saída dessa casa de acolhida para pessoas não-cishterossexuais, Mariel e
Criystiannys passaram duas noites no Hotel Popular da Prefeitura. Em seguida, as quatro
trans/travestis se reuniram novamente, e passaram um mês na casa de Pat (Nome fictício),
uma cafetina que possui uma casa de prostituição no centro do Rio. No decorrer desse
período, tivemos pouco contato. Mariel saiu da casa em meados de outubro de 2018, e
foi, junto com Crystiannys, para a casa de um amigo na comunidade dos Tabajaras, em
Copacabana.

Lá em Copacabana eu decidi cortar o cabelo. Eu vi meu amigo, gay e venezuelano,


mais novo que eu, tinha só ensino médio, trabalhando, ganhando o dinheiro dele,
namorando. Decidi ir no salão ali da esquina cortar o cabelo e pronto. Eu fui toda de

105
mulher. No salão, a parte de mulher era embaixo; e a de cima, de homem. Eu entrei e
subi direto para parte dos homens. Imagina eu toda vestida de mulher, maquiada, com
aplique no cabelo, e peitão. O cara falou: "menina, você vai cortar o cabelo?" Eu disse
que sim. Aí ele falou: "mas porque você não vai lá embaixo pras meninas cortarem
pra você?" Aí eu disse: "não cara, corta meu cabelo como de homem, um corte de
homem bonito". Eu com aqueles brincos grandões. Quando ele passou a máquina, eu
quase morri, meu coração ficou disparado. Tive vontade de pedir pra ele parar, mas
não, eu precisava trabalhar, conseguir emprego, independência. Eu já estava cansada
de depender das pessoas. Eu não queria mais ajuda de ninguém, era isso o tempo todo.
Não aguentava mais isso. Eu ficava pensando que era só por um tempo, que era só até
eu ter dinheiro e conseguir ser trans direito. Aí não deu duas semanas, eu consegui
aquele meu primeiro emprego, onde esse amigo trabalhava já. Mas foi muito dificil
me acostumar como homem. Horrível, parecia um louco. Um mendigo com a roupa
de homem. De noite, quando eu deitava assim, não sentia meus peitos. Eu pegava
aquela bunda, e não era bundona. Era horrível. Eu não me reconhecia no espelho. Via
minhas fotos antigas, muito antigas, como homem. Era muito estranho. Mas aí eu já
tinha emprego, passava todo dia fora de casa e voltava exausto. Não dá tempo de
pensar na gente. Mas assim Nat, eu não perco as esperanças de que um dia eu vá viver
como mulher. Isso tá aqui em mim. Eu vou ter meus peitos. Eu tenho que morrer de
peitos e com buceta. Tu pensa que eu não sofro? Eu sofro muito. Ainda mais quando
vejo uma trans. Fico com vontade de ser ela. Eu tenho que botar peito e buceta. Assim
vou ser uma mulher, vou morrer assim, não quero morrer de homem.

Pouco se fala sobre a destransição de gênero. De fato, o assunto é delicado. Letícia


Lanz (2016), como citei no primeiro capítulo, defende que a destransição é uma
possibilidade enquanto uma das experiências de gênero, que são fluídas e não devem
exigir nenhuma coerência determinista. Assumir que a destransição de Mariel é
enfrentada somente sob caráter forçado, retira dela a sua capacidade de agência diante da
situação. Porém, pela narrativa de Mariel, a destransição perpassa episódios de
"estranhamento de si", que são compreendidos por ela como dolorosos. Não há como
negar que a destransição, no caso de Mariel, é um episódio de violência, mas é também a
forma como Mariel agiu diante das suas experiências enquanto uma mulher trans
venezuelana, solicitante de refúgio no Rio de Janeiro. Sem emprego formal e sem
moradia, Mariel destransionou e passou a performar como um homem cisgênero gay e
usar roupas de homem, se apresentando como Marco (outro nome). Em duas semanas,
Marco conseguiu um emprego de garçom em um restaurante em copacabana, com carteira
assinada. A dificuldade inicial que Mariel teve após a destransição foi em relação aos
seus documentos com que Mariel havia solicitado refúgio em Pacaraima, cidade que faz
fronteira com a Venezuela em Roraima. Os solicitantes de refúgio tem direito a retirada
do Protocolo de Refúgio, que serve como Documento Provisório de Identidade de
Estrangeiro, Cadastro de Pessoa Física (CPF) e Carteira de Trabalho. Na primeira linha
do Protocolo de Refúgio de Mariel está seu nome civil (Marco), na linha abaixo, em

106
negrito, está seu nome social85 (Mariel). A foto desse documento foi retirada em Roraima,
quando ela estava performando como mulher. Na carteira de trabalho de Mariel, havia
apenas seu nome civil, porém a foto era a mesma do protocolo, isto é, ela performando
como mulher. Para que Marco fosse aceito no novo emprego, como garçom, tanto a
carteira de trabalho, quanto o protocolo de refúgio tinham que ser apresentados para
legalização de sua situação laboral. A primeira reação de Marco foi não entregar os
documentos e seguir trabalhando. Com duas semanas de trabalho o gerente do restaurante
cobrou os documentos a ele. Nessa ocasião Marco pediu ajuda para LGBT+Movimento
explicando que estava com medo de entregar os documentos e perceberem que ele era
uma mulher transexual. Após pedir orientação para para a advogada do Centro de
Proteção a Refugiados e Imigrantes (CEPRI), orientamos Marco a ir na Delegacia de
Imigração da Polícia Federal (DELEMIG) pedir a supressão do nome social e a
atualização da fotografia de identificação. Em seguida, deveria repetir o procedimento no
Ministério de trabalho, atualizando a fotografia de identificação, em coerência com o
novo Protocolo de Refúgio. Eu e Marina nos oferecemos para acompanhar Marco na ida
a DELEMIG, marcamos com ele em três ocasiões, e nas três, ele não apareceu. Alguns
dias depois, Marco nos disse que havia perdido todos os documentos e teria que retirá-los
novamente. Ajudamos ele a preencher o Boletim de Ocorrência da perda de documentos
de identificação, e ele foi a DELEMIG sozinho retirar novos documentos, agora sem o
nome social, apenas com nome civil e com a foto de identificação pós-destransição. Após
a retirada desses documentos, cerca de cinco meses depois do início do seu emprego no
restaurante, Marco entregou seus documentos para assinatura da carteira de trabalho.
Visitei Marco algumas vezes em sua nova residência na Zona Oeste da cidade do
Rio de Janeiro (após se mudar de Copacabana), onde estava morando há alguns meses
com o namorado. A primeira vez que fui em sua casa, iria realizar uma entrevista com
Marco, mas não pudemos realizá-la, pois ele não se sentiu à vontade de conversar sobre
detalhes de sua vida como Mariel na frente do namorado, pois o mesmo não sabia que
Marco já se identificou como uma mulher transexual, e nem que ainda tem vontade de
realizar as cirurgias de resignação sexual. Segundo Marco, o namorado não entenderia, e

85 No formulário de solicitação de refúgio é possível colocar o seu nome social, caso em que o protocolo
apresentará ambas as nomeações. De acordo com a nova Lei de Migrações, "poderá o imigrante requerer,
a qualquer tempo, a inclusão de seu nome social nos bancos de dados da Administração Pública,
acompanhado do nome civil" (art.69,§4o). No entanto, a lei não menciona a hipótese de ser colocado apenas
o nome com o qual a pessoa se identifica, excluindo o de registro. É um direito que se encontra ainda em
disputa, já tendo sido debatido perante o CONARE.

107
ele tinha medo que ele descobrisse. Nesse dia, seguimos conversando muitas outras coisas
sobre sua família e a vida na Venezuela, eu fui tomando registro de muitas informações,
pois Marco parecia estar contando histórias que eu jamais havia ouvido, de muitas viagens
que realizou e morou em outros países da América Latina. Assim que saímos da sua casa,
Marco foi me levar sozinho no ponto de ônibus. Eu lhe perguntei sobre detalhes das novas
narrativas, pois parecia não saber sobre nenhuma delas. Até que ele me interpelou e disse:
"Amiga, era tudo mentira o que eu falei agora. Eu só tava falando aquilo porque Pedro
(namorado) tava lá, e eu não quero que ele pense que fui trans. Então fico falando que
viajei e morei fora, não falo a verdade pra ele não." Utilizei o pronome "ele" para me
referir a Marco nessa parte final, apenas para que não ficasse confusa a descrição da
situação, mas desde que Mariel passou a performar como Marco, ainda me refiro a ela no
feminino quando nos encontramos ou falamos de forma remota. Já tivemos algumas
conversas sobre e em todas elas, Mariel/Marco diz não se incomodar com a referência
feminina quando estamos sozinhas. Em um dos encontros informais, durante um almoço
no centro do Rio, ela me disse as seguintes palavras, que tentarei reconstruí-las, pois não
foram gravadas:
"ser trans é um sofrimento social amiga, não há nada em que podemos nos segurar,
tudo se vai embora, entende? sou uma mulher vestida de homem (...) isso aqui [aponta
para as roupas masculinas] são só roupas, mas o que adianta se só falo disso com
você?.(...) meu coração é de mulher...eu sei que isso aqui vai passar, e quando passar
eu vou perder tudo de novo, ninguém que me conhece hoje vai entender. Mas eu vou
morrer mulher, e é tudo que quero, poder fazer minhas cirurgias."

Mariel utiliza a expressão "sofrimento social" para se referir a exclusão


experienciada por pessoas trans e travestis no meio social, cotidianamente. Dejours
(1987), ao abordar a questão do sofrimento entre trabalhadores, observa que o sofrimento
gerado pelo trabalho causa repercussões diretas na saúde física e psíquica do trabalhador.
Dessa dinâmica, podem surgir estratégias para que o sofrimento seja suavizado ou
terminado, com intuito de evitar o risco à crise psíquica ou doença mental. Apesar de nas
narrativas registradas por meio das entrevistas a questão mental ser pouco levantada pelas
interlocutoras, em nossos contatos diários, com trocas de mensagens, essa questão
apareceu frequentemente, sobretudo associada ao que Mariel se refere como "sofrimento
social". Mensagens como: "estou cansada de viver asssim"; "não aguento mais"; "não
quero mais viver"; "não consigo viver assim", evidenciavam a violência sofrida por
Mariel. A destransição é para Mariel uma situação transitória que entra em conflito com
a formação de novas redes de afeto, que estão consolidando sua imagem como Marco e
não como Mariel. Criando uma fronteira intrasponível entre essas duas identidades, "vou
perder tudo de novo, ninguém que me conhece hoje [como Marco] vai entender", e sendo

108
fonte de um medo que Mariel expõe ao afirmar que deseja morrer como uma mulher.
Mariel, assim como muitas outras trans e travestis, associa a cirurgia de resignação sexual,
bem como a colocação de silicone como uma forma de "dar existência" a si própria como
uma mulher, e não como uma trans ou uma travesti. Apesar de Mariel se compreender e
se afirmar como uma mulher, ela aponta elementos do seu corpo, como a genitália, os
peitos, a bunda e outros... como incompletudes que a impedem de "ser mulher" e ser
reconhecida como tal. Por isso sente a necessidade de realizar cirurgias de modificação
corporal que lhe aproximaram desse ideial. Essa forma de expressão de contradições foi
interpelada por Butler (2016), nos termos da matriz heterossexual ou matriz de
intelegibilidade. Essa cadeia estabelece um sistema de continuidade entre esses três
pilares e confere intelegibilidade ao sistema. Assim como Butler defende, para além do
gênero, o sexo é também construído e produzido a partir de discursos sociais, históricos,
culturais. E é atraves dessas formas discursivas repetitivas que a ordem compulsória da
matriz heterossexual ou matriz de intelegibilidade se estabelece como uma normativa. É
igualmente através dela, que também ocorrem processos de rompimento e desconstrução.
Após a última entrevista com Mariel, continuei acompanhando-a via remota,
porém com menor frequência. Em janeiro 2020 ela foi demitida do restaurante em que
trabalhava, mas logo duas semana após, conseguiu um emprego em um hotel que fica na
Zona Sul da cidade. Em uma das mensagens que mandou também me disse que ainda tem
o sonho de ir encontrar alguns de seus parentes que moram na Espanha.

109
4.2 - Danny

Conheci Danny na mesma ocasião de Mariel, no abrigo Latife Salomão em Boa


Vista, Roraima. Diferente de Mariel, Danny sempre foi mais tímida e pouco falava. Ela
tem 23 anos e nasceu em Ciudad Bolívar, a capital do Estado de Bolívar no sudeste da
Venezuela. Tive dificuldades em realizar as entrevistas com Danny, pois em todas as
ocasiões que reservamos para tal, nos sentamos na área externa da Universidade Estadual
do Rio de Janeiro (os encontros se deram lá pois nas duas ocasiões ela estava indo a
Cáritas Arquidioceseana, que fica próxima a Universidade), e ela não parou de mexer no
celular enquanto conversávamos. Mantinha a cabeça baixa virada para o celular e jamais
encarava meu olhar. Suas respostas eram curtas e as mais simples possíveis. Tive que
direcionar a entrevista com perguntas e comentários que pediam para ela detalhar mais
os acontecimentos descritos. Mesmo em locais mais informais, Danny sempre falava
muito pouco, diferente de Mariel, Consuelo ou Crystiannys, que falavam muito e
gostavam de contar sobre suas experiências de vida, a voz de Danny quase nunca se ouvia.
Comecei perguntando a Danny sobre sua infância, ela me contou que seus pais se
separaram quando ela tinha 10 anos, e que desde então ela passou a viver na casa dos
avós maternos. Sua mãe trabalhava em outra cidade e eventualmente, vinha visitá-la. Seu
pai, no entanto, nunca a aceitou ou apoiou, "era muito violento", em suas palavras. Assim
como Mariel, Danny também relatou saber que gostava de homens desde os cinco anos
de idade, e me contou que até os 10 anos não deixava ninguém cortar o seu longo cabelo,
que exibe com orgulho até hoje.

Eu sempre fui menina, gostava de brincar de coisas de meninas, de ter cabelão, de


dançar, fazer coisas de casa. Nunca me senti menino, não sei ser menino, fazer coisas
que meninos fazem, eu sempre fui menina mesmo. Com 10 anos eu já quase me vestia
de menina o tempo todo, só não podia se fosse um aniversário de família, que ia muita
gente. Mas em casa, eu me vestia como queria. Meus avós sempre me aceitaram, a
gente brigava às vezes, mas eles não me proibiam de nada, eu era assim desde que
nasci, não tinha muito como brigar.

Muitos relatos de mulheres transexuais e travestis indicam a performance de


gênero "afeminada" desde a primeira infância, com a percepção de si como uma menina
ou mulher. Essa percepção vem acompanhada de objetos ou elementos que marcam,
socialmente, a feminilidade, como brinquedos e brincadeiras que são consideradas
femininas ou o "cabelão", como se refere Danny. O corpo e os objetos parecem estar em
destaque nessa relação de identidade. É através da associação por esses elementos que
Danny experimenta a percepção de si enquanto uma menina/mulher. Portanto, não há

110
uma forma de destacar esses elementos dessas experiências. Segundo Magno, Dourado e
Silva (2018), inspirados nas discussões travadas por Butler, esses elementos têm um papel
central em processo de rotulação de gênero, reafirmando a matriz heterossexual que
divide meninos e meninas com base em elementos genderificados aos quais eles ou elas
se associam, ou como Butler (2016) afirma, o gênero reside no fazer. Segundo Danny foi
a partir de 15 anos que ela passou a ter mais problemas com o pai, e também com o avô
paterno, que a xingavam, discriminavam e ameaçavam.

Eu era uma vergonha pra eles. Todo mundo sabia que eu era filha do meu pai, então
todo mundo falava mal dele porque eu era travesti e ele não aguentava isso e me
tratava mal por isso. Meu avô, pai dele, a mesma coisa. Eles não entendiam que não
dava pra consertar, então eram violentos, sempre ameaçavam me bater, me xingavam
falando que eu era feia, que era errada, que nao tinha que estar na família, que era
suja, coisas assim ruins. Com 15 anos eu me apaixonei por um primo meu, mais velho
do que eu, por isso meu pai ficou muito bravo comigo, ele ficou sabendo que eu tinha
um coisa com ele. Me bateu muito, mas minha mãe me defendeu. E tirou ele da casa.

Danny completou o ensino médio e foi cursar a gradução em design gráfico na


UNEFA (Universidad Nacional Experimental Politécnica de la Fuerza Armada
Bolivariana). Mas disse que não gostava de ir a Universidade pois não podia se vestir
como gostava, tinha que usar roupas de homem, porque em seus "papéis" (se refere aos
documentos) era homem. Apesar de diversos relatos de pessoas transexuais que tiveram
dificuldades na alteração do seu nome civil para o social, desde 2018, no Brasil, é possível
realizar essa alteração em cartório, sem necessidade de realizar cirurgia de resignação
sexual ou qualquer intervenção corporal. Na Venezuela não há nenhuma legislação
semelhante, que garanta que pessoas trans possam fazer a mudança do nome civil para o
nome social em documentos. Alguns trabalhos discorrem sobre o constrangimento de
pessoas trans no âmbito escolar, ao serem referidas por seu nome civil, situação que
geralmente é determinante para o abandono dos estudos (VIDAL, 2019; SILVA 2019;
BENTO, 2014). Foi justamente o que aconteceu com Danny, que abandonou o curso dois
semestres depois do ínicio, e pensou em entrar em medicina, que, segundo ela, "era seu
sonho", mas desistiu porque teve que começar a trabalhar e ajudar na renda da família.
Nesse período ela me conta que "adotou" o filho de uma mulher que morava próxima à
casa, que tinha cinco anos. Segundo Danny, a mãe do menino estava doente e tinha poucas
condições de criá-lo. Então Danny e sua mãe adotaram a criança para que ele não ficasse
na rua.

Eu fiz curso de massoterapia, já tinha também trabalhado em salão de cabeleireiro e


como auxiliar de cozinha. Na Venezuela também é dificil conseguir trabalho como

111
trans86, a maioria das trans trabalha em salão de beleza, com cabelo, unha, massagem,
coisas asssim. É dificil ver trans em outras coisas. Mas nessa época trabalhei bastante
em um salão e fazendo massagem e bolos também, trabalhei muito pra poder ajudar
o menino, criei como filho mesmo. Ele sempre entendeu que eu era mulher, não sei
nem se sabe se sou travesti, acho que não, eu nunca conversei sobre essas coisas com
ele. Ele é um menino muito bom, quase não dá trabalho, e hoje tem 10 anos e ajuda
minha mãe lá. Tenho muita saudade deles, são minha família. Meu medo é morrer
sem ver eles de novo.

Comenta que dos 16 anos até a sua saída da Venezuela para o Brasil, com 21 anos,
se relacionou com um homem, que se refere como "ex-marido". Segundo Danny a relação
começou muito boa, mas foi ficando ruim porque ele era muito ciumento e violento, e
ameaçava bater em todas as pessoas que se aproximavam dela, principalmente homens.

Eu cheguei a morar na casa dele por um tempo, mas ele era muito ciumento. Me
pegava com força quando ficava chateado, não gostava que eu falasse com ningém,
via meu celular. Eu deixava, porque ele ajudava a cuidar da minha mãe e meu filho.
Mas era dificil viver com ele assim, eu tinha muitos amigos, mas não podia ver
ninguém com ele. Então fui ficando sozinha. Mas tinha dia que eu não aguentava, saía
sem ele saber e voltava só no dia seguinte, ele ficava muito bravo. Mas eu tava
acostumada.

[Mas você não tinha medo dele?]

Tinha sim, mas eu nunca achei que ele fosse fazer algo sério comigo, ele me batia
quando ficava bravo comigo, mas depois passava.

A situação concebida por,Danny se referindo-se ao homem desse seu


relacionamento como "ex-marido" tem sido recorrentemente citada em outras etnografias.
Danil, interlocutor de Larissa Pelúcio (2009), que se relaciona com travestis, afirmou para
87
a pesquisadora que "travesti não tem namorado, tem marido" (p.77). Kulick (2008)
autor de uma das primeiras etnografias sobre mulheres trans e travestis em Salvador,
Bahia, Brasil, defende que "sem compreender o papel dos namorados, fica impossível
compreender qualquer outra dimensão da vida das travestis" (p. 114). A análise das

86 Danny alterna a referência de si mesma como trans, em referência a mulher transexual, e travesti. Quando
lhe perguntei qual era a identificação de sua preferência, ela disse que fala que é uma travesti, mas que usa
trans também, concluindo que, para si mesma, não existe uma diferença entre as categorias. A fluidez e
instabilidade dessas categorias identitárias é descrita em alguns trabalhos (ÁRAN e MURTA, 2009;
BARBOSA, 2010; LONGARAY e RIBEIRO, 2016). Porém, na relação com a interlocutoras não consegui
determinar nenhuma diferença entre as categorias, não há indicação que a compreensão de travesti passa
pela inserção de atributos femininos, sem o desejo de realização de cirurgias de resignação da genitália ou
pela relação com a prostituição, como indica Kulick (2008), também não parece estar relacionado ao uso
de hormônios e outras modificações corporais ou "tecnologias de gênero" (Pelúcio, 2005a), e muito menos,
parece estar associada a uma duplicidade sexual na afirmação identitária (Lionço, 2009). Espero
futuramente, poder explorar mais a fundo a diferenciação dessas categorias com as interlocutoras, buscando
também formas alternativas de referenciação identitária a mulheres transexuais e travestis na Venezuela.
87
Na etnografia de Pelúcio (2006) “marido” aparece como uma categorização nativa das trans e e travestis
para se referir as suas conjugalidades, em contraposição a categoria "namorado" que indicaria laços e
compromissos, semelhantes aos sustentados na normativa heterossexual, isto inclui, o reconhecimento
público da relação e a monogamia.

112
formas de conjugalidade trans e travestis88 é importante para compressão do poder da
matriz heterossexual sobre essas subjetividades, razão pela qual muitas trans e travestis
se esforçam para manter a cascata gênero-sexo-desejo em sua forma inteligível, isto é, de
acordo com a heterossexualidade.

Ao naturalizarem o sexo, que exige um gênero supostamente coerente a uma


anatomia, as travestis mantêm-se atadas à matriz heteronormatizadora, uma vez que
aquele seria definidor de papéis claros e legítimos. Informadas por uma gramática de
conjugalidade heterossexual, as travestis têm dificuldades em elaborar um outro
léxico para as relações conjugais que desenvolvem. (PELÚCIO, 2006, p.532)

Danny me contou que já queria sair da Venezuela por ter problemas com o "ex-marido"
e que a situação do país não estava boa. Segundo ela, a família tinha muito dinheiro em
casa, "uma montanha mesmo, mas não valia nada". Foi procurando na internet que ela
decidiu vir para o Brasil. Sua busca foi por "travesti brasil". Ela contou-me que viu muitas
coisas boas e muitas coisas ruins, mas que poucas informações conseguiu entender por
completo, por causa da língua. Outro motivo que foi decisivo para a vinda ao Brasil foi o
fato da fronteira com o país não ser muito distante, segundo Danny, um dia de viagem
apenas. Seu percurso até chegar ao Brasil incluiu uma carona até Santa Elena de Uaíren
e depois outra carona até Boa Vista. Danny falou que ambas as caronas eram caras, e para
economizar o dinheiro que havia levado, pagou fazendo "programa" com os motoristas.
Já em Boa Vista ela disse que, o último homem que lhe deu carona, lhe indicou uma casa
para trabalhar como diarista. Ela disse que conseguiu o trabalho, e ficou dois meses como
diarista de uma família, mas que depois desse tempo teve que sair da casa e foi morar na
praça Simon Bolívar.
Eu conheci todas as meninas [se refere a Mariel, Crystiannys e Consuelo] na praça
Bolívar. Mariel era a que mais arrumava confusão, "barraco", ela sempre tava
brigando com alguém ou se metendo em alguma coisa. Todo mundo conhecia ela por
isso. Conheci todas elas morando na praça, mas também na prostituição. Tinham
muitas travestis lá, e todas se prostituiam. Mesmo depois de entrar no Latife continuei
fazendo prostituição, porque era a única forma de comer bem. Eu não gostava das
quentinhas de lá, às vezes a comida vinha estragada. Mas era bem tranquilo viver lá,
aconteciam brigas todos os dias, mas eu não sou de brigar, então nunca sabia direito
o que estava acontecendo. Mariel e Crystiannys estavam sempre no meio das brigas,
inclusive com os militares. Nos quatro meses lá no Latife, fiz muitas amizades, falo
com muitas pessoas até hoje, que estão em outros lugares do Brasil. É muito bom ter
amigos.

Um dia Mariel chegou me perguntando se eu queria ir pro Rio com ela e outras
meninas. Eu fiquei com medo no início porque já tinha ouvido que o Rio era perigoso
demais, e também porque era bem longe. Mas aí eu pensei que eu queria conhecer
novos horizontes, novas formas de vida, novas pessoas e eu nunca ia conseguir fazer
isso na Venezuela. Posso ir onde quiser, porque sou uma travesti.

88
Para uma análise mais extensa sobre as diversas dimensões de relações afetivas entre mulheres
transexuais e travesti e homens cisgênero, ver Zampiroli (2017)

113
Quando cheguei no Rio, fiquei feliz, é tudo tão diferente de Boa Vista. Mas foi muito
difícil. Sair da casa de acolhida, foi horrível. Eu não queria ir embora, Consuelo e
Crystiannys é que queriam. Por mim eu teria ficado e deixado Mariel. Ela que fez tudo
aquilo. Mas eu não queria ficar sozinha lá, tinha muito preconceito também na casa,
sozinha não ia dar. A outra casa (se refere a de acolhida de pessoas
nãocisheterossexuais) era terrível, tudo era muito ruim, as camas, as coisas, tudo sujo,
eu tinha nojo até de tomar banho. Mas fiz algumas amizades com as travestis de lá,
tinham pessoas boas, elas falaram bastante sobre a prostituição no Rio, a gente sabia
pouco àquela época. Eu lá descobri que existe homem trans também, antes não
conhecia, só mulher. Mas assim amiga, eu não voltaria pra lá não. Mariel e
Crystiannys arrumaram muita confusão lá, tavam drogadas, e só queriam confusão, a
vida tava muito ruim. Eu fiquei com muito medo no dia que a gente foi expulsa, perdi
meus documentos na confusão, roupas, coisas...não foi legal não.

Depois fomos viver na casa da Pat, foi perigoso demais, aquela mulher é perigosa. Eu
saí da Lapa ameaçada de morte porque ela achou que eu não tava respeitando ela como
cafetina. Que eu tinha que obedecer ela. Eu briguei com ela e ela me ameaçou quando
saí, disse que se eu pisasse na Lapa, que ela ia mandar me pegar e me cortar. Foi aí
que decidi ir pra Gardênia com Consuelo, a gente tinha umas amizades lá, que tinham
saído da casa de acolhida e ido pra lá alugar, foi a melhor coisa. Me afastar de Mariel
e Crystiannys, a vida só melhorou. Foi muito bom quando consegui um trabalho. Eu
fiquei muito feliz de trabalhar lá na empresa. Eu tinha dinheiro, podia alugar, podia
comprar coisas. Mas quando eu fui demitida foi a pior coisa, eu não gosto de falar
disso que me deixa mal.

Na narrativa de Danny, a palavra amizade se repete muitas vezes. Na maioria


delas, ela faz uso da palavra para concluir que a experiência teve um "lado bom", o de
fazer muitas amizades, conhecer novas pessoas. Na sua narrativa, a palavra aparece tanto
relacionada ao evento migratório, de saída da Venezuela, quanto relacionada ao exercício
da prostituição. Pelúcio (2005), que descreve como essa percepção também é reconhecida
pelas amizades entre travestis sendo importante para a produção de subjetividades e
identidades, além da troca de informações. Alguns outros autores descrevem como as
redes de amizades são essenciais para trans e travestis prostitutas em situação migratória
na Europa, estabelecendo uma "rede de ajuda" entre travestis no local de destino, que tem
como principal função a troca de informações entre as travestis que estão há mais tempo
no local e aquelas recém-chegadas (Teixeira, 2008).
Tanto na narrativa de Danny quanto na de Mariel, a relação entre travestis parece
ser marcada por relações de amizade, mas também por relações de rivalidade e ameaças.
Contudo, o estabelecimento de uma rede de amizades como uma rede de ajuda é marcante
nas experiências das interlocutoras. Eu e Marina, por conta do nosso trabalho com a
LGBT+Movimento, fazíamos parte da rede de amizade das interlocutoras e, por isso, em
momentos que elas necessitavam de alguma ajuda, éramos acionadas, assim como outras
pessoas que também faziam parte dessa rede pessoal de cada uma delas. Em muitas
ocasições Danny me mandou mensagens pedindo ajuda diante de alguma questão, e
quando fui trocar informações sobre ela com Marina, ela já havia recebido a mesma

114
mensagem de Danny. Essa rede de ajuda era extensa, e envolvia não só amigos e
familiares, mas também afetos amorosos. Em algumas ocasiões eu demorava para
responder Danny por mensagem, mas ao final do dia, quando respondia sua solicitação,
ela me respondia que já havia conseguido com outra pessoa, a informação ou ajuda.
Muitas pessoas faziam parte da rede de Mariel e Danny, muitas delas ligadas às redes
humanitárias de proteção a refugiados, como agentes do ACNUR, UNFPA, Cáritas
Arquidioceseana do Rio de Janeiro, outros faziam parte de uma rede pessoal de amizades,
que se formava, na maioria das vezes, nos locais onde morou, como ela cita amigos que
co-habitaram a praça Simón Bolívar ou o abrigo Latife Salomão, também comenta sobre
mulheres que compartilharam a casa de acolhida no Rio de Janeiro, entre outro locais.
Apesar da rede extensa, a concretização dos pedidos de ajuda era bastante incerta,
sobretudo se precisavam ajudas em dinheiro.
A Gardênia Azul, bairro da Zona Oeste do Rio de Janeiro, para onde Danny e
Consuelo se mudaram, após sairem do centro do Rio, concentra, atualmente, uma rede de
venezuelanos migrantes, solicitantes e refugiados. A proximidade do bairro com uma das
casas de acolhida para migrantes e refugiados, é uma das razões para a Gardênia Azul
concentrar essa rede que tomei conhecimento pelo relato das interlocutoras que lá
moraram (Danny, Consuelo e Alejandra) e também pelas visitas que fiz à casa delas.
Outra razão é a facilidade no aluguel e o preço mais baixo do que em outras regiões mais
centrais da cidade. As modalidades de interiorização por reunião familiar e reunião social
também influenciaram na concentração de venezuelanos no bairro, pois nessa modalidade
a pessoa interiorizada não vai para uma casa de acolhimento, mas sim para a casa de um
parente ou amigo que comprove ter emprego e moradia. Consuelo, que junto a Danny
conseguiu emprego de auxiliar de limpeza em uma empresa, durante um recrutamento
feito apenas para pessoas trans, recebeu meses depois, em sua casa na Gardênia Azul,
dois primos: a esposa de um deles e o filho do casal, um bebê de 3 meses. Danny foi
demitida do emprego sete meses depois de ser admitida, mas ela nunca quis comentar
qual foi a razão da demissão. Depois da demissão, Danny confessou que pensou em
destransicionar, porque não queria voltar para a prostituição.

Nessa época, eu pensei muito em ficar como homem aqui no Rio, porque tinha perdido
o emprego e estava com medo de voltar pra prostituição, por causa violência. Até hoje
tenho medo, não quero que me batam ou que me machuquem porque sou mulher. Eu
sei que o Rio é uma cidade bem violenta pra travestis, eu vi as vezes que Mariel levou
porrada. Eu fico com medo disso. Mas eu não consigo ficar de homem. Eu sou mulher,
é impossível. Eu não conseguiria nem ficar algumas horas como homem. Não dá, não
sei explicar amiga. A prostituição é a unica forma que a gente, como travesti, encontra
de se sustentar. Hoje em dia eu faço pra poder comprar comida. Eu acho que nem

115
sempre a prostituição é uma violência, mas muitas vezes ela é. Tem muitos caras que
maltratam e machucam. Ou não te tratam bem. E isso é muito ruim. Nós travestis
somos marcadas pela violência. Olha essa cicatriz que tenho aqui (perto do pescoço)
foi um cara que eu fiz programa aqui no Rio, e no meio ele não quis pagar e colocou
a faca no meu pescoço e chegou a cortar. Eu fiquei com muito medo, e eu acho ele
gostou mais ainda disso, foi muito ruim. Mas o que eu mais aprendi com a prostituição
foi a improvisar. Porque tudo que acontecia era diferente do que eu tinha imaginado
que ia acontecer. Então eu tinha que improvisar tudo. O português também (risos).

Refletindo sobre experiências de vida de mulheres transexuais e travestis, que


acompanhei para essa pesquisa, ressalto a inserção no mercado de trabalho formal
demarca um ponto de inflexão na vida das interlocutoras. Foi assim com Mariel, após sua
destransição, quando ela ela conseguiu emprego como garçom em restaurante, e com
Danny e Consuelo, que conseguiram emprego, através de vagas reservadas para pessoas
trans, como auxiliares de limpeza numa empresa. Após a aquisição dos empregos formais,
a vida delas se transformou, conseguiram pagar o valor do aluguel, comprar comida,
mandar algum dinheiro para a família e amigos e adquirir bens pessoais. No caso de
Danny e Consuelo, elas tinham direito a plano de saúde e foram atendidas por médicos
conveniados, sobretudo para tratamento dentário. Danny vivenciou isso por sete meses e,
após a demissão, ficou com muito medo de perder tudo que tinha adquirido nesse período.
Como ela confessa, a destransição passou por sua cabeça, mas ela nunca chegou a
concretizar. Passou a pedir, para mim e para Marina, que imprimíssemos seu currículo
em duas versões: uma somente com seu nome social e outra somente com o nome civil.
Diferente de Mariel, Danny não tinha o nome social no Documento Provisório de
Identidade de Estrangeiro, o Protocolo de Refúgio. Também não tinha na carteira de
trabalho, mas na foto de identificação de ambos os documentos, a performa de
feminilidade, comum ao seu cotidiano como travesti. Ela relatou, diversas vezes, se sentir
constrangida de ter que apresentar documentos que não tinham seu nome social. Mas ao
oferecermos a tentativa de retificação dos documentos, ela também confessava medo em
realizar a mudança. Danny prefere manter a estratégia de utilizar dois currículos e utilizar
ora o que contém seu nome social, ora o que contém seu nome civil, de acordo com seu
julgamento. Essa é um estratégia que Danny realiza para poder lidar com uma
ambiguidade entre a sua identificação como travesti e a permanência do nome civil em
seus documentos.
Segundo ela, "nós travestis somos marcadas pela violência". Essa frase aponta
para algumas passagens do livro de Amara Moira, E se eu fosse puta, em que ela descreve
sua primeira situação de violência sexual como travesti e puta (p.51). Na situação descrita
por Amara, um cliente força o segundo ato sexual com ela mesmo após ela deixar claro

116
que estava estava sentindo dor e pedir que ele parasse. A última frase de relato é:
"Sinalizar sofrimento não foi o bastante para evitar que ele continuasse e, na verdade,
hoje me parece até que ele se excitou mais em imaginar que, com seu pau, conseguiu
machucar uma profissional do sexo" (p.53). Semelhante ao relato de Danny, posto que
ela observa que o homem que a violentava, sentia prazer em seu medo. No decorrer do
livro Amara descreve violências que ela sofreu, e outras que ouviu de amigas e
conhecidas transexuais e travestis, que também se prostituiam. As marcas, para além de
marcas físicas pelo corpo, como me mostrou Danny, são marcas psicológicas e
emocionais, que marcam os percursores de vida e produções de si das travestis.
Quando perguntei a Danny se ela identificava alguma diferença entre as travestis
venezuelanas e as brasileiras, ela me respondeu:

Tem muitas coisas. Aqui as travestis são hormonizadas, botam peito, às vezes bunda
também. Na Venezuela isso não existe, é muito difícil colocar peito e conseguir
hormônios. Tem que ser muito, muito rico, e conseguir de fora. As vezes nem assim.
Mas eu nunca quis mudar meu corpo com cirurgia. Eu gosto do meu corpo como ele
é. Tomo hormônio aqui no Brasil, desde que cheguei no Rio. Em Roraima eu não
consegui. Aqui eu vou na clínica da família da Gardênia e tomo um injetável, todo
mês. Eu penso também em mudar meu nome, que nem as travestis daqui, pra ter todos
os documentos no meu nome. Mas eu acho que não é por isso que não me dão
emprego. Eu acho que todo mundo pensa que travesti rouba ou que gosta de enganar
os outros. Na Venezuela também acham isso. Mas é menos, aqui o preconceito é muito
maior. Lá eu conseguia trabalho, nem que fosse em salão de beleza. Mas aqui é muito
difícil, ninguém dá oportunidade pra mim, ninguém para pra me ver e me conhecer.
Ninguém sabe o que as pessoas tão passando dentro delas. Por isso que eu digo que
vida de travesti é sofrimento e alegria, sofrimento porque as pessoas te julgam antes,
e porque a gente vive com medo. Alegria por ser quem a gente quer ser, as pessoas
têm inveja disso. Ah, eu acho que travestis aqui também são mais barraqueiras, e olha
que as venezuelanas brigam muito.

Na Venezuela não há nenhuma lei que garanta que pessoas transexuais possam
utilizar o nome social em seus documentos. Esse direito é garantido no Brasil, em âmbito
federal, pelo o Decreto n.º 8.727/2016,89 que normatiza o uso do nome social pelos órgãos
e entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional. Da mesma
forma, em minhas pesquisas, não encontrei nada semelhante, na Venezuela, ao "Processo
Transexualizador" brasileiro, que é instituído no Sistema Único de Saúde pela Portaria nº

89 Como consta na cartilha sobre nome social do Ministério do Desenvolvimento Social: "De acordo com
o Decreto, os órgãos e as entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional,
deverão adotar em seus atos e procedimentos o nome social da pessoa travesti ou transexual, de acordo com
seu requerimento. Deverá também constar o campo “Nome Social” nos registros de sistema de informação,
de cadastros, de programas, de serviços, de fichas, de formulários, de prontuários e congênere. O Nome
Social deverá vir em destaque nestes instrumentos, acompanhado do nome civil, o qual deverá ser utilizado
apenas para fins administrativos internos. Desta forma, deverá constar nos documentos oficiais o nome
social da pessoa travesti ou transexual (feminino e masculino), assim como requerido pela interessada ou
pelo interessado, a qualquer tempo." (BRASIL, s/d, p.4)

117
1.707/GM/MS, de 18 de agosto de 2008 e e pela Portaria nº 457/SAS/MS, de 19 de agosto
de 2008. Ambas garantem o atendimento integral de saúde a pessoas trans que desejam
acessar tecnologias de modificação corporal, incluindo desde a hormonioterapia até
cirurgias. Contudo, sabemos que entre o âmbito jurídico e concretização prática desses
direitos existe um abismo. Camilo Braz (2019) realizou uma pesquisa antropológica
comparativa entre as "esperas" de homens trans no acesso à saúde no Brasil e na
Argentina, aborda a frustração de pessoas trans brasileiras com a espera por hormônios e
cirurgias.
Por fim, perguntei a Danny se ela pretendia permanecer no Rio de Janeiro, e ela
me contou seu sonho:

Mas eu quero ficar muito tempo no Rio, gosto muito daqui, tenho muitas amizades
que fiz e gosto. Eu tenho muita saudade do meu filho, minha mãe e meu avô, mas eu
não quero voltar pra Venezuela não. Quero ficar aqui e depois sonho conhecer a Itália
e ter marido lá. Eu quero muito viajar. Não nasci para ficar em um lugar só não.

Diversas pesquisas analisam as experiências de vida, mobilidades e


deslocamentos transnacionais de transexuais e travestis brasileiras para Europa
(PATRICIO, 2009; PELÚCIO, 2009; PELÚCIO, 2011a; VARTABEDIAN, 2014;
BELIZARIO; 2019). Em sua maioria, as trans e travestis perseguem o sonho de ir morar
na Europa, procurando lá se estabelecer através das redes de prostituição, com a intenção
de concretizar seus projetos de ascesão financeira. Pelúcio (2011a) ultrapassa a análise
das motivações econômicas, apontando uma certa colonização da imaginação, que pode
ser enunciada, presente, sobretudo, nas pessoas que moram em países do Sul,
considerados "atrasados" pelo imaginário colonial. A partir da reflexão de Appadurai
(1999), Pelúcio discute sobre a "imaginação" como um importante fator social que
possibilita, promove e sustenta os fluxos migratórios entre Brasil-Europa. Segundo
Appadurai, a imaginação deixou de ser uma pauta individual e tornou-se uma pauta
coletiva, definindo o consumo, estilo, gostos e, portanto:

Se trata de una facultad que interviene en la vida cotidiana de las personas normales
de diversas maneras: es la facultad que permite a las personas considerar la emigración
como remedio para resistir a la violencia del Estado, buscar compensaciones sociales
y diseñar nuevas formas de asociación cívica y colaboración, a menudo más allá de
las fronteras nacionales (APPADURAI, 1999 p. 4 apud PELÚCIO, 2011a, p.78)

Pelúcio chama atenção para a falta de pesquisas que enfoquem a capacidade de


agência das mulheres trans e travesti ao tomar a decisão de ir para Europa, bem como há
poucos estudos que correlacionam os estudos pós-coloniais e decolonias com essas
mobilidades, procurando abordar a relação entre corporalidades entre o Norte e o Sul.

118
Acredito que o trabalho de Belizário (2019) seja uma importante contribuição para essa
discussão.
Continuei acompanhando Danny de forma remota até meados de novembro de
2019. Nessa data ela iniciou o relacionamento com um homem, que segundo outras
pessoas da sua rede com quem falei, é considerado agressivo e perigoso. Depois que
Danny iniciou esse relacionamento, falamo-nos poucas vezes. Ela sempre afirmou em
nossos contatos que não estava sofrendo violência, mesmo com algumas pessoas do seu
entorno me relatando que já presenciaram cenas de agressão física. Nesse meio tempo,
Danny já afirmou ter terminado o relacionamento, mas depois admitiu que continua
vendo-o esporaticamente. Após tentar novos contatos com ela, não obtive mais respostas.

119
4.3 - Alejandra

Conheci Alejandra no dia 23 de janeiro de 2019, por intermédio de uma agente de


proteção do ACNUR. Ela havia chegado ao Rio de Janeiro no dia 31 de dezembro de
2018, juntamente com outras 29 mulheres e crianças venezuelanas, após passar quatro
meses em um abrigo na cidade de Boa Vista, em Roraima. Ela estava em situação de
moradia temporária, na mesma casa de acolhida para solicitantes e refugiados que havia
recebido Mariel e Danny em julho de 2018. Alejandra era a única mulher lésbica da casa.
Logo que cheguei e lhe fiz a pergunta sobre como ela entendia a sua orientação sexual,
ela, ainda sem saber falar português muito bem, fez um gesto que apontava a sua roupa
em pleno auge do verão carioca: calça jeans, uma blusa bem larga e boné voltado para
trás. Compreendi que sua expressão de gênero declarava mais sobre sua orientação sexual
do que ela podia, naquele momento, verbalizar em português. Em poucos minutos de
conversa, compreendi sua maior angústia: não ter meios de comunicação para conseguir
falar com nenhuma das três filhas (13 ,11 e 6 anos de idade) há mais de três meses. As
filhas haviam ficado na Venezuela, com os avós paternos, após a sua migração para o
Brasil por motivos relacionados à crise sócio econômica generalizada no país, somados a
perseguição e ameaça pela sua orientação sexual, principalmente por parte de seu pai e
do ex-marido.
Alejandra tem 30 anos e nasceu na capital venezuelana, Caracas. Porém, aos nove
anos, com a separação dos pais, ela, a mãe e duas irmãs e um irmão se mudaram para
Anzoátegui, um Estado ao Norte da Venezuela, composto um extenso litoral de praias.
Seu pai esteve ausente até seus 16 anos, quando sua mãe e ele voltaram a se relacionar
novamente. Segundo Alejandra, sua mãe sabia que ela gostava de mulheres desde os nove
anos, quando a viu beijando a prima da mesma idade. Só aos 18 anos Alejandra decidiu
contar a mãe que era lésbica, e comenta que, apesar do conservadorismo e religiosidade
(católica) da família, a mãe sempre a aceitou como uma mulher lésbica. Entretanto, o pai,
que só veio saber sobre sua orientação sexual quando ela já contava com 22 anos, nunca
teve a mesma postura. Alejandra completou o ensino fundamental e teve o ensino médio
"liceu" interrompido para ajudar a mãe nas tarefas domésticas. Segundo ela, sua irmã
"estava tendo problemas" e não queria cuidar do sobrinho de dois anos, deixando-o na
responsabilidade de Alejandra e a mãe. Em pouco tempo ela começou a fazer um
supletivo aos sábados, para conseguir finalizar o ensino médio, conseguindo terminar
posteriormente. Ressaltou, muitas vezes, que tinha muito medo de falar que era lésbica,

120
que tinha medo o tempo inteiro, pois a família era muito conservadora e não lhe permitia
sair muito ou ter amigos.
Aos 16 anos, Alejandra disse que não aguentava mais o controle imposto sobre
ela e as brigas, muitas vezes físicas, com o pai e o irmão, que a impediam de ter amigos
e se relacionar intimamente (ainda que com homens), pois ela só poderia fazer isso depois
que se casasse. Decidiu então se mudar para a casa de Anthony, pai de suas três filhas.

Essa relação foi como que forçada. Eu era lésbica, e se eu falasse aquilo, eu ia ter que
sair de casa. Mas para onde eu iria? E se não falasse nada, eu tinha que ficar naquela
casa, trancada. Meu pai e meu irmão me controlavam o tempo inteiro, eu não podia
dar uma volta na rua que eles ficavam me vigiando. Não dava para fugir. Por isso
decidi ir para casa de Anthony, assim pelo menos eu me livrava deles e seguia com
minha vida. Logo no primeiro ano, quando tinha 17, fiquei grávida e tive minha
primeira filha. Passei a viver uma vida normal, como se não existisse aquilo [ser
lésbica]. Em alguns momentos era difícil, eu tinha que me calar, não era fácil não.
Mas estar na casa de Anthony era uma forma de não estar na rua, uma estratégia para
poder sair de casa, mas não ficar sem casa nenhuma, eu era muito nova, não sabia
nada da vida ainda.

A estratégia de Alejandra se repete em muitas outras formas de gestão de


constrangimentos sociais vivenciados por mulheres lésbicas. A suposição de que a
heterossexualidade é inata entre as mulheres, faz parte da discussão em torno do conceito
de heterossexualidade compulsória, cunhado por Adrienne Rich (1980). O conceito surge
na tentativa de desnaturalizar o "modelo de dois sexos" que sustenta, desde o século XIX,
a existência de distinções corporais entre homens e mulheres como determinantes para
divisão dos papéis sociais entre sexos, estabelecendo o conceito de gênero como
subordinado ao de sexo. A divisão dos atributos sociais em masculinos e femininos
passou a ser deduzida a partir dos papéis reprodutivos associados a cada sexo/gênero,
supondo a heterossexualidade como natural e universal (RUBIN, 1986). Adriana
Piscitelli (2003), ao comentar a obra de Gayle Rubin, expõe os dois pilares que a autora
utiliza, em crítica ao parentesco de Lévi-Strauss, para descrever a organização da
atividade sexual humana: gênero e heterossexualidade compulsória.

Rubin afirma que, nas formulações de Lévi-Strauss, o parentesco instaura a diferença,


a oposição, exacerbando, no plano da cultura, as diferenças biológicas entre os sexos.
Os sistemas de parentesco envolveriam a criação social de dois gêneros dicotômicos,
a partir do sexo biológico, uma particular divisão sexual do trabalho, provocando a
interdependência entre homens e mulheres, e a regulação social da sexualidade,
prescrevendo ou reprimindo arranjos divergentes dos heterossexuais. E esse é o ponto
interessante, a autora destaca o fato de que na teoria levistraussiana há uma relação na
criação de gênero, nesses termos, e heterossexualidade. E, ainda mais, essa relação
não pode ser desvinculada da reprodução, biológica e social. Os indivíduos seriam
marcados por gênero para garantir o matrimônio. Mas, segundo Rubin, gênero, no
trabalho de Lévi- Strauss, não significaria apenas a identificação com um sexo,
exigiria também que o desejo sexual seja dirigido ao outro sexo. A divisão sexual do

121
trabalho criaria homens e mulheres e os criaria heterossexuais. (PISCITELLI,
2003, p. 213)

Portanto, Rubin argumenta que a lesbianidade, bem como outras orientações não-
heterossexuais, foram desconsideradas por esse sistema sexo-gênero estabelecido a partir
do parentesco, como descrito por Strauss. A estratégia de Alejandra de estabelecer um
casamento heterossexual e, dessa forma, uma aliança entre as famílias, para viver uma
"vida normal, como se não existisse aquilo [ser lésbica]" foi a forma que ela encontrou
para se esquivar do controle da sua sexualidade pela família. Porém, ao tentar sair desse
sistema por meio do casamento, Alejandra se submeteu novamente ao mesmo sistema de
controle hegemônico, e dele se viu refém novamente.

Eu aprendi com Anthony mecânica. A consertar carros, motores...Mas tive


dificuldade de arranjar emprego com isso, sendo mulher. Era o que eu amava, mas
sabia que não podia ficar parada, então decidi montar uma coisa minha. Foi aí que
montei um lava-jato, mesmo com o pai das minhas filhas sendo contra e
desaprovando. Mas graças a Deus deu tudo certo, o negócio foi bem. Então depois
que tive minha primeira filha, eu estava trabalhando, consegui comprar uma casa e
um carro. Dois anos depois tive minha segunda filha. Nesse período as coisas já
estavam diferentes e mais difíceis com Anthony. Eu me sentia apertada, sufocada por
estar numa relação com um homem. Eu não queria, mas não sabia o que fazer. As
vezes ia pra festas entre amigas, e soltava tudo isso que estava preso dentro de mim,
ficando com elas. Depois de um tempo, o lava-jato foi ficando ruim, e cada vez mais
e mais fraco. Foi aí que decidi fazer um curso pra entrar na polícia. Cinco anos depois
tive a minha terceira filha. Eu já era da polícia nessa época, trabalhava para o governo.
Trabalhar no governo na Venezuela é trabalhar com corrupção. Se você não faz o que
o governo manda, ou te matam, ou fazem alguma coisa de ruim para sua família.
A relação com o pai das minhas filhas foi piorando cada vez mais, depois da
segunda filha. Ele já não queria ficar com elas, o que era difícil, porque eu também
tinha um trabalho. Ele foi ficando cada vez mais agressivo. Primeiro ele começou com
agressões verbais, depois elas foram ficando físicas. Eu apelei duas vezes pra “Lei
Orgânica - de proteção a criança, adolescente e mulheres", eles me ouviram, mas não
fizeram nada. Me mandaram ao "ensecna"- que tambem é um lugar pra proteção da
mulher - lá me disseram que as agressões eram coisas que aconteciam, e que se eu era
casada isso era um problema da relação entre mim e meu marido, e que eu tinha que
resolver com ele. A solução deles era essa!!! Que "em relação de marido e mulher
ninguém mete a colher", porque amanhã ou depois acabam juntos. E eu não falava
disso pra ninguém, sobre as ameaças e violências dele.
Não podia falar isso pra minha mãe, ela já tinha a saúde ruim, tinha diabetes que
era difícil de controlar e estava começando com o câncer nessa época. Não podia
preocupar mais ela. Não podia falar para o meu pai também porque ele tinha raiva de
mim. Meu irmão também não porque pouco nos relacionávamos. E com amigos eu
não conseguia, não me sentia a vontade de falar disso. Era uma questão minha, e eu
sempre achei que meus amigos fossem muito mais me criticar do que me ajudar.
Aí fui me afastando de tudo e todos. Fui entrando numa depressão. Depois de 3
anos, tomei a decisão de me separar do pai das minhas filhas. Tomei essa decisão. Eu
não queria estar com um homem, queria estar com uma mulher, eu não podia mais,
não conseguia mais viver aquilo. Eu tinha 25/26 anos. Mas eu também não podia me
assumir, porque assumir ser lésbica na Venezuela é um problema. A sua vida acaba.
Acaba mesmo, as pessoas nem querem chegar perto de você, e você vive ameaçada.
Muitas vezes os lgbt se encontravam na casa de alguém, algumas amigas da polícia,
e outros lgbt, mas nunca na rua. Uma vez nós fizemos isso e foi uma amiga travesti,
ela quis sair na rua depois, vestida de mulher, pra voltar pra casa. Prenderam ela nesse
dia, e a mataram. Eu vi isso acontecer mais de uma vez, com conhecidos e amigos.

122
Isso é na minha cidade, pra ter mais liberdade eu tinha que ir pra capital, que ficava a
duas horas de lá
Eu então me separei do pai das minhas filhas e voltei pra casa da minha mãe,
sozinha. Ele dizia que eu era má influencia pra elas, porque eu era lésbica. E aí ele
começou a me humilhar, na rua, e principalmente no Facebook, me humilhando e
colocando em público mensagens de ódio, expondo que eu era lésbica. Foi horrível...
Ele escrevia que eu era uma péssima influencia pra minhas filhas, escrevia como era
possível uma mulher estar tanto tempo com um homem e virar lésbica... até que
chegou o momento que ele disse que eu tinha AIDS, e era soropositiva. Eu fiz meu
exame, e tive que mostrá-lo a muita gente. Pra mostrar que ele estava equivocado. Eu
via pouco as minhas filhas. Sempre que podia ia no horário de saída delas da escola.
A avó dela é que pegava elas, e muitas vezes ela me convidava pra ir na casa dela vê-
las. Ela entendia que eu precisava das meninas e elas precisavam de mim também,
mas se o pai soubesse, ele me expulsava e falava que eu fazia mal pra elas.

Veena Das (2008), no artigo "Violence, Gender, Subjectivity", argumenta como a


categoria gênero é crucial para a compreensão que conecta o âmbito privado ou doméstico
com o âmbito público, do Estado. No artigo ela discute sobre o conceito de violência
doméstica, que até os dias atuais, não foi totalmente estabelecido. A primeira razão,
apontada pela autora, está no desconforto da intervenção do Estado na vida familiar,
sendo essa uma razão sustentada não apenas pelas linhas conservadoristas, mas também
por algumas feministas, que argumentam que as emoções complexas geradas durante a
intimidade sexual, correm o risco de estar sob a intervenção e controle do Estado.
Portanto, uma definição de violência doméstica ampliada, que englobe desde
xingamentos até a agressão física, pode atrapalhar a possibilidade da intimidade entre
duas pessoas. A segunda razão está na difícil determinação do conceito de consentimento,
quando associado a violência doméstica, como compara Das, "é como definir a
participação de um soldado na guerra" (p. 293). Algumas linhas de pensamento defendem
que a própria presença de uma homem na casa já impossibilita a determinação de "lares
tranquilos" ou "lares violentos", pois a presença masculina já determina a violência
potencial. Enquanto outras linhas argumentam que existem maneiras de delimitar
condições específicas que permitem essa distinção, e que ela é essencial, sobretudo, para
casos em que a mulher vive com medo constante da violência. A terceira razão discutida
pela autora aponta que a universalização do conceito torna-se uma tarefa complexa, pois
há uma conexão estrutural entre economias transnacionais e a vulnerabilidade a que estão
expostas as mulheres à violência doméstica.
Segundo Diniz (1997), de cada cinco mulheres no mundo, quatro sofrem violência
associada a gênero. Esse tipo de violência é considerada uma grave violação dos direitos
humanos, e é reconhecida como uma questão global de saúde pública pela OMS
(Organização Mundial da Saúde), sendo o silêncio e a invisibilidade são importantes
temas aliados (Gomes, 1996; Soares, 1999). De acordo com Das, (2008), a ajuda das

123
agências estatais é difícil de ser obtida, porque a violência doméstica por parte do
parceiro/marido da vítima é compreeendida como uma questão privada, exatamente como
descrito por Alejandra. Os papéis de gênero esteriotipados, que associam as
mulheres/mães/esposas/filhas à subordinação masculina minimiza, banalizam, negam e
naturalizam a violência doméstica sofrida pelas mulheres (Narvaz e Koller, 2006). No
caso de Alejandra, tal como compreendeu Veena Das em seu artigo, ocorre a
culpabilização da mulher por não produzir um lar "ideal", justificando o impedimento de
Alejandra de ter contato com as filhas por ser uma "má influência".

Eu tive que sair do trabalho com esse escândalo, não dava mais pra trabalhar. E as
coisas estavam ficando mais tensas com o Maduro, tinha muita corrupção na polícia,
eu já estava com medo disso. As coisas também foram piorando na saúde da minha
mãe, ela já tinha diabetes há anos, e o cancêr já estava chegando em um estágio final.
Eu comecei a vender as minhas coisas pra conseguir comprar remédio e comida pra
ela. Eu tinha 6 carros, vendi quase todos pra ajudar ela. Até o dia que meu pai me
tirou da casa da minha mãe. Ele tinha muita raiva que eu era lésbica. Ele me expulsou
da casa, e eu fiquei sem nada, sem dinheiro sem nada. Eu vivi na rua por três meses,
só não morri porque uma prima começou a me ajudar me dando um prato de comida
enquanto eu levava as filhas dela pro colégio. Minha mãe estava muito doente, ela
não caminhava, nem falava. O pouco que falava era para me chamar. Eu tentei voltar
para casa algumas vezes. Em uma delas meu pai me golpeou com um pedaço de
madeira nas escápulas, doeu muito. Ele me disse que eu não podia pisar ali, disse que
eu era filha do demônio, que eu era o pior que já havia acontecido na vida dele e da
minha mãe. A minha prima nessa época, saiu da Venezuela, então eu não tinha nem
quem me ajudasse mais. Eu passei 15 dias só comendo manga, na rua. Sempre na rua.
Eu tentava todo dia ver minha mãe, as vezes eu conseguia saltar pela janela da frente,
e debruçava na janela pra falar com ela. Nessa época, minha mãe conseguiu ir até a
casa da minha avó, mãe dela, e eu fiquei lá com ela um tempo. Até que um tio meu,
irmão da minha mãe, soube que eu era lésbica, e foi até a casa da minha avó. Ele me
bateu lá, minha mãe tentou me defender, e ele bateu nela. Minha mãe teve
deslocamento de útero [prolapso uterino], eu não sabia o que fazer. Eu dizia que era
por minha culpa, eu me sentia culpada por tudo, por tudo. Ninguém me aceitava e
tudo de ruim que acontecia era por minha culpa. Eu fui com minha mãe ao hospital,
fiquei um mês com ela lá. Até que deram alta a ela, e ela voltou para casa. Chegando
lá, meu pai tinha queimado minhas roupas e jogado na rua todo resto das minhas
coisas que tinham ainda na casa. Eu só tinha um telefone na minha mãe. Minha mãe
estava deitada na cama, e ela me dizia: "eu sei que sei pai vai te expulsar da casa, e eu
não posso fazer nada". Eu disse para ela ficar tranquila, que eu era jovem, e eu podia
seguir minha vida. Nesse dia minha mãe tinha fome, porque não tinha nada de comer
na casa, nada mesmo. E eu prometi pra ela que iria arranjar alguma coisa para ela
comer. Era quase impossível conseguir comida nessa época, era muito difícil. Tinha
que pegar uma carona de 3/4 horas para conseguir comprar alguma comida. Eu saí na
rua, vendi meu telefone. Levei comida a minha mãe. Ela me pediu uma coca-cola, era
um pedido impossível, levei um pouco de aipim e arroz, e disse a ela que não era
muito mas que ela podia comer. Ela começou a chorar, porque sabia que era o último
prato de comida que iria comer das minhas mãos. E eu a dei razão a ela, e disse que
onde eu estivesse, eu ia tentar ajudar ela. Eu saí da casa expulsa pelo meu pai. Fiquei
dias na rua, em depressão, estava muito muito triste. Até que comecei a pegar caronas
e mais caronas, até chegar em um pueblo chamado "Caicara del Orinoco", é mais ou
menos, 12 horas de onde eu estava. Eu não fui com nada, só a roupa do corpo, e a
vontade de ajudar minha mãe e minhas filhas. Cheguei as três da manhã nesse
"pueblo", não conhecia ninguém, não tinha nenhuma amizade que pudesse me ajudar.
Passei a noite inteira me perguntando onde eu estava e o que eu estava fazendo.
Pedindo ajuda a Deus. Já de manhã, uma senhora me ajudou, me levou até a casa dela,
me deu um prato de comida. Ela me deu alguns "helados"/picolés e disse que eu os

124
vendesse na rua. Eu sai e comecei a vendê-los, como louca. Em questão de dois meses,
eu consegui algum dinheiro, e mandei para minha mãe e minhas filhas, e montei uma
"heladeria"/ sorveteria. Eu estava bem, a sorveteria vendia bem. Eu conheci também
uma mulher, passei a viver com ela. Mas a família dela não sabia de nada. Então
viviamos feitos "ratas". Ela saia primeiro e depois de algum tempo eu saía da casa,
nunca nem nos olhavamos direto na rua. Eu estava 3/4 meses nesse "pueblo". Sem
falar com minhas filhas ou com minha mãe, eu não tinha celular. Mas no dia 26 de
julho, aniversário da minha mãe, eu tinha que ligar pra ela, eu queria muito. Minha
mãe estava entre a vida e a morte. E quem perde uma mãe, perde tudo. Consegui um
telefone emprestado e liguei para minha mãe. Foi a última vez que falei com ela. Me
deu um aperto muito forte no peito, eu disse que amava muito ela. Disse a ela: "te amo
muito, sinto muita sua falta, velha". Eu a chamava de "vieja"/velha. "Daria minha vida
em troca da sua" (chorando). Disse que iria vê-la mais uma vez. Que iria vê-la de
qualquer jeito, porque, como ela sabia, eu era rebelde. A última palavra que ouvi dela
foi: "te amo". E a chamada caiu. No dia 8 de agosto, eu liguei de novo para casa.
Quem atendeu foi meu pai. Eu perguntei o que tinha acontecido com minha mãe, ele
me disse assim: "sua mãe? já fazem 10 minutos que sua mãe morreu. se você tiver "la
gana"/coragem de vir vê-la, bem, se não foda-se" (chorando). Fiquei imediatamente
sem forças, fiquei sem nada. Fui então com a roupa do corpo, e com um dinheiro que
tinha na sorveteria ir encontrar ela. Isso foi as 8:30. Peguei um ônibus 11:30. Um
amigo me deu um telefone pequeno, para que eu pudesse me comunicar. Eu liguei de
novo para meu pai, ele me disse que eu não fosse porque já iam enterrar ela. Ele
repetiu para que eu não fosse. Eu então liguei para um tia, ela me disse que minha
mãe estava ainda no hospital, e que não tinham nem roupas para vestir ela. Eu
retruquei, "como assim ela não tem roupas?" E porque meu pai me disse que já iam
enterrar ela se ela ainda nem saiu do hospital?? (chorando) Foi quando me dei conta
que meu pai não queria que eu chegasse até lá. Cheguei a "Ciudad Bolívar" como que
às 18h. De "Ciudad Bolívar" tinha que pegar um taxi até "tigre", e de lá outro, até
onde ela estava. Eu cheguei lá perto de meia noite. Cheguei na rua e não vi nada, só
havia um carro parado na frente da casa. Nesse momento eu pensei: "já me disseram
tantas mentiras, minha mãe deve estar viva". Fiquei feliz aí, fiquei muito aliviada, tive
a sensação que tudo ia ficar bem e ela estava viva. Mas minha triste realidade foi
quando cheguei na casa e havia um silência absoluto. Nunca tinha silêncio. Minha
mãe gritava muito de dor, ou pra chamar alguém pra ajudá-la. Não ouvi nada. Quando
cheguei na frente, despenquei, me joguei no chão, eu vi aquele carro de funerária. Me
despedacei totalmente, não sabia o que fazer. Fui até onde minha mãe estava, lhe pedi
a benção, e fiquei ali do lado dela toda noite, lhe pedindo perdão (chorando). No dia
seguinte, meu pai me colocou para fora de casa, mesmo minha mãe estando ali, morta.
Ele me levou à força pra fora da casa, me xingando e dizendo que eu era uma
vergonha, que eu não deveria ter ido lá. Que toda doença da minha mãe era culpa
minha. Uma coisa horrível. Uma amiga da minha mãe me defendeu. E meu pai se deu
conta que não podia me tirar de lá de dentro assim, e me deixou entrar de novo. Fiquei
aqueles últimos momentos junto da minha mãe, e fomos enterrá-la. Quando voltamos
para a casa, ele me expulsou de novo. Eu não tinha o que fazer ou para onde ir. E
minha tristeza era tão tão grande, que fiquei mais de 10 dias dormindo ao lado da
tumba da minha mãe no cemitério. Eu não comia, não bebia agua, até que fiquei
doente, fui pra casa de uma prima. E quando estava bem de novo, tomei a decisão de
ir embora, não sabia nem para onde, nem como. Mas decidi que iria. Era cinco da
manhã, eu havia dormido no cemitério de novo, fui até uma via expressa e pedi carona.
Não sabia o que ia fazer ou para onde eu ia. Só pensava que minha vida estava
destruída. Fiquei recordando tantas coisas. Sobre como meu pai me tratava, me
humilhava, me xingava e batia, uma pessoa da minha família..até que de carona em
carona, cheguei a Santa Elena [de Uairén].

Veena Das em seu livro Afflition (2014) aborda a doença e subsequente morte de
Meena, através da percepção de seu filho Mukesh, ainda uma criança. Logo no início do
capítulo, ela cita a definição de doença de Georges Canguilhem (1991) como um
"experimento da vida", como fonte de inspiração para "não apenas compreender a vida
individual do organismo em relação ao seu ambiente, mas também a relação dentro da

125
qual o organismo está inserido e que molda o curso da doença tanto quanto é por ela
moldado" (p. 59). A autora procura explorar como o evento da doença da mãe constrói e
destrói o mundo de seu filho. Para isso ela utiliza a noção de quasi events [quase eventos]
em contraposição à noção de eventos críticos, trabalhada por ela anteriormente (1997), e
que faz referência a eventos catastróficos de grandes proporções, como é o caso da
partilha da Índia. Com a noção de quase eventos a autora busca registrar, através de
trajetórias sociais, as pequenas formas de alterações cotidianas, infinitesimais, que podem
se transformar em eventos críticos e castastróficos na vida de um ou mais indivíduos. A
etnografia de Veena Das irá pensar a doença como um quase evento, um evento ordinário,
mas que em alguns casos, como o de Mukesh, e também de Alejandra, é capaz de expor
as redes de relações sociais e suas fragilidades (BISPO, 2018). No caso de Alejandra, a
doença de sua mãe e a sua orientação sexual, como mulher lésbica marcam a conturbada
relação com sua família. A compreensão da sexualidade de Alejandra como uma "opção
sexual" e não como uma "orientação sexual", supõe que Alejandra poderia rejeitar "sua
escolha" a qualquer momento, mas que também "por escolha" a mantém. A compreensão
das subjetividades não-cisheterossexuais como "gêneros/sexualidades não inteligíveis",
que não mantêm relações de coerência e continuidade entre sexo, gênero, prática sexual
e desejo (BUTLER, 2016), desafiam a ideia da heterossexualidade como inata. Isto é, se
a heterossexualidade é inata, então todas as outras sexualidades são uma opção, e se são
uma opção, então é possível culpar os sujeitos por ter optado por ela. O que envolve
regimes de castigo e violências, experienciados por Alejandra. E que estendem a
culpabilização de Alejandra pelo quase evento, a doença e morte, de sua mãe. Veena Das
argumenta que as dores e emoções envolvidas nos quase eventos são ainda mais difíceis
de serem captadas etnograficamente, pois carregam em si um paradoxo: "um sofrimento
que é assimilado em um contexto de normalidade e, ao mesmo tempo, não é plenamente
absorvido pelas pessoas, deixando nelas marcas e um senso de que algo não está muito
bem." (BISPO, 2018, p.276). Alejandra, diante da não aceitação da sua sexualidade por
parte da sua família, situações de violência e expulsão de casa, somadas à morte da mãe,
a ausência de redes de acolhimento sensíveis, e o agravamento da crise socio-econômica
venezuelana, migra em direção a fronteira entre a Venezuela e o Brasil.

Foram quase dois dias de viagem para chegar em Santa Elena [de Uaíren]. Duas
caronas que peguei tive que abandonar, os caras tentaram me "violar"/estrupar, só
porque eu era uma mulher, sozinha, pedindo carona. Eu não sabia para onde ir.
Quando cheguei finalmente em Santa Elena, eu ouvi algumas vezes que no Brasil
estavam ajudando os venezuelanos. Fiquei uma semana lá, e escutei que dois
homens tinham morrido em Boa Vista. Eu não sabia o que fazer, se ia pro Brasil ou
se ficava por lá mesmo. Parece que um venezuelano matou um brasileiro e depois

126
mataram ele. E aí os brasileiros se voltaram contra todos os venezuelanos. E
colocaram fogo em barracas, parece que foi assim que tudo aconteceu. Fecharam as
fronteiras. Eu fiquei três dias em um monte, que também fazia fronteira com Brasil.
Era por ali que muitas pessoas atravessavam por conta do fechamento da fronteira.
Minha sorte é que comprei um pacote de calabresa, então durei 3 dias com isso. Eu
não sabia o que fazer, se cruzava ou não. Tinha medo porque nem brasileira eu podia
fingir que era né, era só falar qualquer coisa que já viam que eu era venezuelana. Eu
estava com muito medo. Sabe como é: "por um, pagam todos". Um dia eu atravessei
e cheguei em Pacaraima, muda. Fiz tudo a pé. Mas voltei no mesmo dia pra a Santa
Elena para comprar comida, pois como tinha a moeda venezuelana, era mais barato
lá. Nessa volta, eu encontrei uma ex-namorada minha. Eu acabei ficando com ela,
voltamos a uns tempos bons, que nos gostamos muito. E um dia eu estava sentada
na calçada com ela, estávamos conversando, e na hora que fui dar um beijo nela,
vieram uns homens, venezuelanos, com uma pedra e me golpearam na cabeça. Eu
falei pra ela: "corre, corre, que eu vou ficar". Eles me bateram, me deram chutes,
fiquei muito machucada. Eles não aceitam lésbicas lá. Era outubro nessa época.
Depois disso eu fui na casa de uma amiga tomar um banho e lavar as feridas, minha
cara estava imensa. Eu perguntei a ela se no Brasil era bom, se era fácil passar para
lá, e ficar. E assim foi, eu passei pra Pacaraima, tinha decidido ir ao Brasil. Fui até
o ACNUR, lá em Pacaraima. Lembro que fiquei com muito medo de dizer que era
LGBT, mas eu estava numa situação tão ruim, que eu só queria que as coisas
acontessem logo. Então eu queria logo falar que era LGBT, porque assim descobria
logo se iam me prender ou me matar ali, ou não. Eu não conhecia nada do Brasil,
não sabia como era, não sabia o que fazer. Eu só conhecia a Venezuela, e lá, não dá,
é violência com a gente o tempo todo. Eu decidi falar que era lésbica porque vi a
bandeira LGBT em um cartaz na parede do escritório, que tinha as cores do arco-
iris. Entrei no escritório, e na hora de falar, gagajei muitas vezes. Eu ficava: "eu
sou... eu sou... sou... sou lésbica!" Eles riram um pouco daquilo tudo. Eu falei que
tinha muito medo. Que não sabia se isso podia me matar ou não ali. Mas eles me
trataram muito bem, com carinho. Disseram que eu poderia ficar em um abrigo ali
em Pacaraima, que me mandarim a Boa Vista para outro abrigo. Eu fiquei três dias
ali. Um dia eu sai do abrigo, e depois de andar um pouco, me deparei com os caras
que haviam me batido em Santa Elena. Eles correram na minha direção, eu corri,
pela estrada, como se tivesse saindo de Pacaraima mesmo. Fui até a "balança", mais
ou menos, um quilômetro depois, e eles vieram correndo atrás de mim. Eu pedi
ajuda a um guarda, ele demorou pra me entender, mas me protegeu. Eu decidi não
voltar a Pacaraima, decidi seguir direto para Boa Vista. E peguei caronas até lá.
Cheguei e dormi na praça Simon Bolívar, perto da rodoviária. Eu dormi 15 dias na
praça. Até que fui a igreja Consolata. Lá eu fiquei sabendo que tinha um abrigo em
Boa Vista que acolhia pessoas LGBT. Só que eu não sabia nada, não andava por
Boa Vista. Não sabia onde ficava. Nesse meio tempo eu encontrei um amigo, que
também é LGBT. Ele me disse que correu pelo mesmo motivo que eu, que iam matar
ele em Pacaraima. Mas ele tinha chegado bem antes de mim ali. Ele disse que ali
nós eramos livres, que era diferente da Venezuela. Ele me levou ao Latife, eu chamei
o encarregado, mas ele foi grosso comigo, disse que não havia vaga pra mim. Uns
cinco dias depois eu encontrei com um dos homens do ACNUR que tinham me
ajudado lá em Pacaraima, ele me disse que ficou me procurando lá. Eu expliquei
tudo que aconteceu para ele. Ele então me levou para a Universidade, lá eu encontrei
as mulheres da UNFPA. Elas me disseram que estavam já me procurando quase um
mês (risos). Já era novembro quando eu entrei no Latife. Dois de novembro, eu
lembro. Minha vida se transformou lá, eu fiz muitas amizades, todo mundo tinha a
ver comigo. Eu soube que as interiorizações estavam acontecendo. Então, eu fui ver
minha filhas na Venezuela. Fui escondida. Todo mundo sabia no Latife que eu ia.
Mas eu me escondi dos que controlavam entrada e saída. Fiquei três dias com
minhas filhas e depois voltei ao Latife. Foi a última vez que vi elas. Quando voltei
pro Latife todos tentaram me consolar, eu fiquei muito triste, era muito difícil ficar
longe delas. O pessoal do ACNUR falou que tinha essa viagem para o Rio, e que eu
podia ir. Eu fiquei com muito medo de ir, mas todo mundo falava que eu tinha que
ir, que qualquer lugar era melhor do que ali. Eu gostava de Boa Vista. Mas ainda
tinha muito homofobia lá. Quando eu estava na praça, vi muitas vezes as travestis
serem espancadas, ou chegarem assim. A Samantha era uma amiga travesti, e ela
foi morta em Boa vista. As travestis morrem muito, já soube de umas sete que

127
morreram. Eu tinha apoio de muita gente pra ir pro Rio, dos meus amigos, dos
militares, das pessoas do ACNUR, todos queriam que eu fosse, e que eu tivesse uma
vida melhor.Mesmo assim eu morri de medo de vir pro Rio, porque é muito longe.
Não sabia o que ia fazer da minha vida, vim totalmente sozinha. Não conhecia
nenhuma das mulheres que ia pra casa de acolhida, conheci elas só no abrigo
Rondon. Mas foi tudo muito rápido.

O episódio comentado por Alejandra aconteceu no dia 6 de setembro de 2018.


Segundo reportagem90, um homem venezuelano tentou furtar um mercado no bairro
Jardim Floresta, em Boa Vista, e foi perseguido por um homem brasileiro. O brasileiro
conseguiu alcançar o venezuelano, que o golpeou com uma faca no pescoço, causando
um ferimento fatal. Em seguida o venezuelano foi capturado por um grupo de brasileiros
e foi linchado até à morte, e teve seu corpo arrastado até a entrada no abrigo que vivia,
no mesmo bairro. O episódio teve grandes repercussões de ambos os lados, mas foi
marcado, principalmente, por atos xenofóbicos por parte dos brasileiros, que chegaram a
atear fogo em abrigos improvisados de venezuelanos em Pacaraima. Nessa ocasião,
diversos vídeos foram gravados e ganharam grande circulação na internet. A fronteira
entre Brasil e Venezuela foi fechada durante alguns dias do mês de setembro, por conta
dos protestos. Roberto Efrem Filho (2016) elabora faz uma interessante análise de como
as mortes de pessoas não-cisheterossexuais são reinvidicadas pelo "Movimento LGBT"
na articulação identitária do próprio movimento, e de quais maneiras as imagens de
brutalidade atuam na produção desses corpos não-cisheterossexuais, como vitimizados,
sobretudo, pela homofobia.

Nesse contexto, os mortos conjugam verbos. E não apenas no passado. Eles e as


narrativas de violência, consubstanciadas pelas imagens de brutalidade, fazem-se
presentes no cotidiano do Movimento. Próximos ou distantes, os mortos são contados
e o modus operandi da violência passa a ser detalhadamente conhecido pelos
militantes. (...). No recurso às mortes, as vidas dos mortos são esquadrinhadas em
socorro às vidas dos vivos. Vidas e mortes, assim, acham-se dialeticamente
comprometidas. (...) O recurso às mortes oportuniza uma identificação dos próprios
integrantes do Movimento com a condição da vulnerabilidade. Não à toa, as
entrevistas com os militantes vêm oferecendo histórias inescapáveis – e irrecusáveis
– de experiências pessoais com a violência. Elas concernem a episódios nas escolas,
na vizinhança, no trabalho ou nas esquinas. São distintas em gravidade e ocasião, mas
conduzem, invariavelmente, à conclusão de que a violência que o Movimento
denuncia atravessa com intimidade as vidas de seus militantes. (...). Essa lógica
guarda reciprocidades dolorosas com a realidade. Os integrantes do Movimento não
só se entendem como vítimas possíveis, como, não raras vezes, veem os nomes de
seus companheiros ingressarem nas listas dos mortos. Vínculos pessoais e afetivos
adentram o jogo da contagem e da denúncia. (...) Em algum sentido, a exposição de
cabeças esmagadas, órgãos genitais decepados e corpos crucificados “humaniza” as
mortes pranteadas, os corpos destroçados e as vidas pelas quais o Movimento LGBT
existe. (EFREM FILHO, 2016, p. 317-319)

90
Como está disponível na matéria do portal de notícias da globo:
https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2018/09/06/brasileiro-e-venezuelano-morrem-apos-confusao-em-
boa-vista.ghtml

128
Da mesma maneira Isadora França (2017), ao comentar sobre o trabalho de Efrem
Filho, argumenta que, no contexto do refúgio de pessoas não-cisheterossexuais, a mesma
violência e brutalidade atuam na produção de "vítimas legítimas", que são acionadas tanto
pelos solicitantes quanto pelas narrativas do humanitarismo. Essa é uma das articulações
entre a produção da violência em conjunto com a sexualidade, atuando na produção da
imagem do "refugiado". Não é meu desejo aqui aprofundar sobre os intrincados meios de
produção de verdade associados ao processo de reconhecimento de solicitantes de
refúgio91. Entretanto, gostaria de ressaltar esse caráter produtivo da violência,
brutalidades e mortes como comentado por Efrem Filho (2016), como um
entrecruzamento entre a substância política e a intimidade pessoal dos sujeitos. É
perceptível como a narrativa de Alejandra é marcada pelos acontecimentos violentos
tanto sofridos por ela, quanto por amigos e conhecidos e que envolvem tanto situações
ligadas a homofobia quanto a xenofobia. Da maneira como Butler argumenta: "acho que
discursos na verdade habitam corpos. Eles se acomodam em corpos; os corpos na verdade
carregam discursos como parte de seu próprio sangue. E ninguém pode sobreviver sem,
de alguma forma, ser carregado pelo discurso." (BUTLER, 2002, p. 163). Discursos que
produzem em Alejandra a sensação de estar sempre entre a vida e a morte, ou como
Isadora Lins (2017) comentou, ao utilizar a comparação desse estado de liminaridade com
o gato de Schrodinger92, entre a criminalização e proteção. Essa situação alcança nitidez
na descrição de Alejandra, quando ela se refere à a ocasião do seu primeiro atendimento
para solicitação de refúgio em Pacaraima, "eu queria logo falar que era LGBT, porque
assim descobria logo se iam me prender ou me matar ali ou não". Nesse momento,
Alejandra não sabia se seria enquadrada como "vítima" ou como "suspeita", o que
determinava também a sua "vida"e "morte", assim como a de outras pessoas não-
cisheterossexuais também migrantes, solicitantes ou refugiadas.
Uma semana após meu primeiro encontro com Alejandra, em 23 de janeiro de
2019, ela começou a relatar que estava tendo problemas com outras moradoras da casa

91
Para discussões aprofundadas nessa temática: Facundo (2014), Vitor Andrade (2016, 2017) e Isadora
Lins (2017).

92 O Gato de Schrodinger é um experimento mental concebida pelo físico Erwin Schrodinger, com a
intenção de descrever o comportamento das partículas subatômicas em duas situações: quando estão sendo
observadas e quando não. Na situação por ele criada, um gato está preso dentro de uma caixa hermética
que contém um conteúdo radioativo. Com o vazamento do conteúdo radioativo, o gato morreria. Entretanto,
da perspectiva quântica, se a caixa permanece fechada, sem que ninguém observe seu interior, então o
estado do gato é vivo e morto, ao mesmo tempo, pois no mundo das partículas subatômicas ambas as
possbilidades permancem possíveis até que o objeto seja observado. Ao abrir a caixa, a pessoa que olhar
para dentro dela, verá apenas um gato vivo ou morto, mas nunca ambos os estados ao mesmo tempo.

129
de acolhida, também mulheres venezuelanas solicitantes de refúgio, porém
declaradamente heterossexuais.

O que acontece é que [na casa de acolhida] já não me sinto bem porque as amigas
aqui da casa estão um pouco nervosas, pois querem que eu tenha um namorado
homem. Elas disseram que até vão me apresentar alguns, porque não gostam de andar
com uma mulher que gosta de outra mulher. Elas me dizem que ficam desconfortáveis.
Que eu tenho que me vestir com roupas mais bonitas e apertadas e deixar o cabelo
crescer, senão não vou conseguir nem trabalho, nem um homem. E eu não quero um
homem. É por isso que estou louca para sair daqui. Tudo isso me agonia.

Ontem elas disseram que não me querem nem no quarto que eu compartilho com elas.
Elas disseram que se sentem desconfortáveis trocando de roupa ou ficando lá, porque
eu posso assediá-las.

A vivência lésbica, segundo Adrienne Rich (1980), inclui tanto "a ruptura de um
tabu, quanto a rejeição de um modo compulsório de vida" (p. 36), o que engloba situações
de isolamento, rejeição e violência entre mulheres, como as descritas por Alejandra.
Quando compreendidas somente pela identidade de gênero enquanto "mulheres", a
inserção da mulher lésbica migrante, solicitante ou refugiada é alcançada, em grupos de
mulheres, geralmente da mesma nacionalidade, o que no caso de Alejandra não a
salvaguardou de episódios de lesbofobia. Segundo Luibhéid (2019), a sexualidade, bem
como outras intersecções de posições não-hegemônicas, não funciona somente no
sentido, largamente concebido, de um somatório de vulnerabilidades que atravessam a
existência daquela pessoa, mas, sobretudo, se refletem na ausência ou falta de narrativas
amplamente visíveis e compreendidas que sejam capazes de comunicar a experiência
dessa pessoa para o mundo, vivências, como as de Alejandra, que são silenciadas. Nesse
caso, as violências cotidianas por parte das outras moradoras da casa de acolhida em
relação a sua sexualidade e expressão de gênero, e a inação da coordenação da ONG
diante dos episódios, culminaram na sua saída, antes do prazo de 3 meses, da casa de
acolhida, ainda na situação de desemprego, sem nenhuma fonte de renda.
Alejandra foi morar na casa de Danny, ambas se conheceram na praia por amigos
venezuelanos em comum. Danny, nessa ocasião, já estava vivendo no bairro da Gardênia
Azul. Alejandra foi, dessa forma, introduzida na rede de amizades de Danny que é,
majoritariamente, composta por homens cisgênero gays venezuelanos e brasileiros, que
passaram a ser a principal rede de afeto e lazer de Alejandra também. Nesse espaço,
Alejandra comentava se sentir aceita como lésbica, porém sentia ter sua identidade de
"mulher" incompreendida pelos homens gays, que reproduzem atitudes misóginas
enraizadas em uma masculinidade heterossexista, que associava a sexualidade e
expressão de gênero de Alejandra a uma identidade transexual masculina: "O que

130
acontece amiga, é que eles me chamam de Alex, acho que não entendem como posso
gostar de mulheres e me vestir assim, mas ser uma mulher. Para eles sou um homem. ".
Além disso, Alejandra comentava se sentir desconfortável em ter relações mais íntimas
com outra mulher enquanto morava com Danny, pois comentava que a casa estava sempre
cheia de gays. Quando compreendida apenas pela sua orientação sexual e expressão de
gênero, a inserção da mulher lésbica em grupos de pessoas não-cisheterossexuais também
pode ocasionar situações de não-acolhimento e incompreensão, entendendo que esses
espaços são, ainda, em sua maioria, masculinos, compostos por homens cisgênero gays,
onde as mulheres lésbicas não têm espaço de protagonismo ou, como no caso de
Alejandra, têm sua identidade de gênero questionada. As experiências de Alejandra
refletem a incompreensão da mulher lésbica através da identidade de gênero e orientação
sexual, o que se manifesta como um "não-lugar" 93.
Não-lugar esse que é agravado nas situações de deslocamento pelo consequente
afastamento ou perda das redes de afeto previamente constituídas no local de origem. De
modo que, por um lado, a primeira inserção social incentivada é na rede de pessoas de
mesma nacionalidade, que se encontram no mesmo local de destino. Situação que, nos
contextos da migração e refúgio não-cisheterossexual, pode ocasionar a reprodução dos
preconceitos já sofridos antes do deslocamento (ANDRADE, 2016). De outro lado, o
desconhecimento total ou parcial dos espaços e redes de afeto de mulheres lésbicas no
local de destino dificultam a interação com essa comunidade. Estar presente em espaços
de acolhimento, política e lazer junto a outras mulheres lésbicas, compartilhando
vivências e dores, faz parte da produção de subjetividades e agenciamentos que geram
sentidos de pertencimento a essas mulheres.
Alejandra foi apresentada a redes de mulheres lésbicas por mim e Marina, como
parte das atividades da LGBT+Movimento, através de espaços de afeto e política, o que,
nas vivências lésbicas, são inseparáveis. Frequentando espaços como o "Isoporzinho das
Sapatão", a festa "Velcro", o "Slam das Minas", o lançamento de edições da Revista
Brejeiras, o "Ocupa Sapatão", que marca o dia da visibilidade lésbica na Cinelândia, e
outros eventos informais. Alejandra experimentou em alguns desses espaços contar um
pouco sobre suas experiências de vida e suas principais dificuldades enquanto uma
mulher venezuelana lésbica e solicitante de refúgio, em outros ela trabalhou, no bar ou

93
A expressão utiliza aqui não é a mesma como concebida pelo antropólogo Marc Augé (1992). A minha
intenção é demarcar um lugar de apagamento e não pertencimento da mulher lésbicas nas intersecções
estabelecidas.

131
vendendo balas e doces, e em outros ela apenas participou. Quando lhe perguntei sobre
como ela se sentia nesses espaços, ela me confessou com grande animação:

Me sinto fantástica. Me sinto no meu mundo. Me sinto como eu. Me deixa


segura estar em um grupo de mulheres que são iguais a mim, que sentem como eu.
Não tenho medo de ser julgada ou que vão me dizer que sou errada ou doente. São
pessoas que sentem o que sinto. Para mim isso é importante e me faz sentir bem
comigo mesma. Se você me fala: "vai ter um evento de sapatão, eu fico eufórica:
onde? onde? onde?". Sou feliz só por estar ali.

Eu imaginava que o mundo inteiro fosse como é na Venezuela, que todo lugar fosse
daquele jeito. Lá você não vê LGBT. Ela tem que se esconder, ter medo, correr, gritar,
uma luta pra não morrer pra dar um beijo, pra trocar carinho... coisas tão simples. Eu
fiquei muito espantada quando vi mulheres juntas na rua aqui no Brasil, aqui no Rio
tem muitas mais que Roraima. Mas, nossa... é lindo, é lindo, dá vontande de viver só
em lugares assim!

A construção política do movimento de mulheres lésbicas foi inteiramente


atravessada pela ocupação e socialização em espaços semelhantes aos citados (FRANÇA,
2006). São espaços de afeto, resistência, compreensão de diferentes interseccionalidades
e produção de subjetividades.
Alejandra recebeu por cinco meses o auxílio CBI, que também foi concedido, pelo
ACNUR, para Mariel e Danny. Nesse período ela conseguiu se estabelecer em uma casa
alugada sozinha. Contudo, após o período de concessão do auxílio, Alejandra ainda não
havia conseguido um emprego formal. Realizou muitas entrevistas de emprego, muitas
das quais ela dependia do custeio da passagem de transporte para chegar 94. Em todas ela
recebeu negativas. Em nosso último contato, ela me disse que estava morando na casa de
um amigo, e tentando conseguir bicos pela Gardênia Azul. Falou-me que quer muito ficar
no Rio de Janeiro, mas que, se não conseguir nenhum trabalho ela irá ficar sem moradia,
e cogita ir para o interior do Mato Grosso, onde está morando seu irmão. Ele trabalha em
um frigorífico da cidade, e disse a ela que ela conseguiria trabalho facilmente por lá.
Porém Alejandra me disse que o irmão avisou a ela, que se ela fosse morar com ele, não
podia "ser homem". Eu confusa lhe perguntei: "homem, como assim?". Ela me disse, que
"ser homem" é como o irmão fazia referência a ser "sapatão" e usar roupas que não
performam feminilidade. Conversamos bastante também sobre suas filhas. Ela me
afirmou que seu sonho é conseguir um emprego e poder trazê-las para morar com ela. A

94
A problemática da locomoção pela cidade é recorrente nas narrativas. Muitas vezes as histórias são
marcadas por "eu consegui uma entrevista de emprego, mas não tinha passagem para ir" ou "preciso ir até
a Cáritas, mas não tenho passagem" e até mesmo quando a LGBT+Movimento pode custear a passagem,
existe a dificuldade de poder encontrar a pessoa para lhe dar o dinheiro da passagem. A dificuldade em
abrir contas bancárias, sendo solicitante de refugio, ou mesmo sem comprovamente de renda ou moradia,
também agrava essa barreia.

132
LGBT+Movimento custeia um valor mensal de Skype para que ela consiga manter o
contato com elas. Alejandra me confessou, com um misto de pavor e alegria, que sua filha
mais velha, que está com 13 anos, lhe disse que gosta de mulheres também. Ela também
me perguntou quando iriamos realizar outra palestra nos "abrigos".
A LGBT+Movimento realizou algumas palestras para os funcionários das casas
de acolhida da cidade Rio de Janeiro, para abordar o tema da migração e refúgio de
pessoas não-cisheterossexuais e para falar sobre temáticas ligadas a gênero e sexualidade.
Porém, em maio de 2019, fomos convidadas por uma dessas organizações para
conversarmos, não com os funcionários, mas com as pessoas em situação de abrigamento,
todos solicitantes de refúgio venezuelanos e cisheterossexuais, para abordarmos a questão
do preconceito e discriminação a pessoas não-cisheterossexuais. O convite foi feito pois
um dos abrigados estava realizando o processo seletivo para trabalhar em um hotel da
cidade, e foi dispensado do processo após discriminar o facilitador do curso, que era um
homem gay. Aceitamos o convite, preparamos uma apresentação reduzida, e convidamos
Alejandra para falar um pouco da sua experiência. Quando chegamos, havia cerca de
vinte pessoas entre homens e mulheres, e muitas crianças. Enquanto eu montava o
projetor, Alejandra já iniciou a conversa, e realizou a palestra inteira de forma
independente. Muitos dos venezuelanos cisheterossexuais ficaram surpresos com os
episódios de violência que Alejandra narrou. A maioria acreditava que na Venezuela as
coisas eram mais tranquilas e que não existiam muitas pessoas não-cisheterossexuais.
Nessa minha última conversa com Alejandra, relembramos esse dia e
conversamos sobre a possibilidade de realizarmos outras palestras juntas. Ela comentou
que sente falta de falar das suas experiências e de "lutar por uma causa". Questão
recorrente nessas situações, Isadora Lins França (2017) comenta sobre o raro
engajamento político por parte de migrantes, solicitantes e refugiados. Poucos são os
migrantes, solicitantes ou refugiados não-cisheterossexuais que falam publicamente sobre
a causa. Em São Paulo, a rede MILBI (Rede de Mulheres Imigrantes Lésbicas e
Bissexuais) faz um trabalho importante, promovendo encontros, conversas e exposições
com a temática. A refugiada moçambicana Lara Lopes, que mora também em São Paulo,
e se entende como uma mulher lésbica. Também é uma importante figura do engajamento
político de refugiados não-cisheterossexuais. Porém, diante da complexa desigualdade
estrutural, pouco são os atores que conseguem driblar as dificuldades cotidianas
relacionadas, principalmente a empregabilidade e a moradia, para realizarem tais
atividades.

133
Após essa nossa última conversa, Alejandra me mandou uma mensagem de
Whatsapp no dia 3 de dezembro de 2019, falando que seu processo de solicitação de
refúgio tinha sido aceito. Alejandra era uma, entre os 21.432 solicitantes de refúgio
venezuelanos que tiveram a aprovação de seus processos, em dezembro de 2019, pelo
CONARE. Danny e Mariel ainda aguardam a aprovação.

134
5. Considerações Finais

São ainda poucos os trabalhos acadêmicos sobreo refúgio e a migração de pessoas


não-cisheterossexuais, especialmente quanto aos referidos contextos da migração
venezuelana para o Brasil. Dessa forma, um dos intentos dessa pesquisa foi a
consideração da orientação sexual e identidade de gênero como categoria analítica
determinante para a análise das experiências de vida de pessoas nesses contextos.
O domínio da produção de conhecimento sobre a temática pelas áreas de Direito
e Relações Internacionais com o enfoque na concessão do status de refugiado a
solicitantes de refúgio que sofreram perseguição ou tinham fundado temor de serem
perseguidos pelas sua orientação sexual ou identidade de gênero, retira do foco das
experiências de vida de migrantes, solicitantes e refugiados em seus percursos
migratórios cotidianos.
A escolha em realizar a análise de experiências de vida de migrantes, solicitantes
e refugiados venezuelanos não-cisheterossexuais, é decorrente do fato que meu objetivo
inicial não foi me debruçar sobre a análise das políticas migratórias voltadas a esses
sujeitos no Brasil, nem analisar as tensões do reconhecimento jurídico de refugiados não-
cisheterossexuais, como fizeram outros autores. Interessava-me sobretudo, o contato mais
próximo com os migrantes, solicitantes e refugiados não-cisheterossexuais, nos seus
próprios contextos de vida diários. No decorrer da convivência com as interlocutoras
desta pesquisa, compreeendi que suas experiências de vida extrapolavam as análises
jurídicas e burocráticas, que, em muitos casos, restringem a compreenssão de suas
vivências a legitimação do seu status legal como refugiadas.
Pela proposta de análise, tornou-se necessário construir fundamentos teóricos e
metodológicos para referenciar a requerida construção do objeto de estudo. A construção
dos sujeitos invizibilizados é atravessada por discursos de poder que marcam as
experiências de abjeção dos sujeitos como inseparáveis do exame de processos históricos
de marginalização. A enunciação de tais processos, sobretudo no âmbito acadêmico, com
o que me referi metaforicamente como "fissura" entre as áreas de gênero e sexualidade e
migração e refúgio, posiciona a pesquisadora e os leitores para a reflexão sobre outros
conceitos e perspectivas que permitiram a análise das experiências de vida das
interlocutoras, de forma a compreender que a invisibilidade do tema nos meios
acadêmicos não se restringe ao mesmo. Ao contrário, reverbera na invizibilização da
temática como um todo.

135
As narrativas das interlocutoras demonstraram que os percalços enfrentados por
elas em seus percusos migratórios, aproximam-se muito mais das performatividades e
práticas associadas à orientação sexual, identidade de gênero e ao exercício da
prostituição do que situações ligadas à documentação ou à legitimização do status como
refugiadas no Brasil. A análise das experiências ressalta que muitos aspectos associados
à discriminação, estigma, violência e sofrimento "acompanharam" as interlocutoras em
seus processos migratórios para o Brasil, e fazem parte dos seus cotidianos. Aspectos
semelhantes são descritos por muitos autores que analisaram as experiências de vida e
trajetórias de pessoas não-cisheterossexuais não-migrantes, sobretudo mulheres trans e
travestis.
A diáspora venezuelana para diversos países da América Latina e Caribe difere
em muitos aspectos do evento comumente referido como "a crise migratória da Europa".
Porém, gostaria de destacar um deles nestas considerações finais. Grande parte das
discussões em foco no Norte Global, acerca de solicitantes de refúgio não-
cisheterossexuais, gira em torno da categorização da noção de homossexualidade pelas
políticas migratórias como produtoras de uma verdade do sexo/gênero. Ou como Fassin
e Salcedo (2015) comentam, inspirados pelos argumentos de Foucault: "As políticas de
imigração são, portanto, atualmente organizadas em torno da idéia de que nossa verdade
nacional (ou mesmo européia) reside no sexo, ou seja, como lidamos com o sexo (tanto
com o gênero quanto com a sexualidade) revela nossa verdade última" (p.1118). Essa é
uma importante e imbricada discussão que deve ser continuamente abordada. Entretanto,
deve haver cuidado no trânsito dessa discussão para o Sul Global, especialmente no
tocante à migração venezuelana de pessoas não-cisheterossexuais para o Brasil. Afinal há
uma grande quantidade de solicitações de refúgio, associadas ao incentivo do governo
federal pelo programa de interiozação e ao reconhecimento, pelo CONARE, da crise
venezuelana como grave e generalizada violação aos direitos humanos, que resultou no
reconhecimento de mais de 21 mil solicitações de refúgio de uma só vez. Faz-se
necessária a produção de análises que enfoquem nos aspectos infinitesimais, microsociais
e etnográficos, sobre as condições sociais, de agência e resistência vivenciadas por
migrantes, solicitantes e refugiados venezuelanos não-cisheterossexuais nos seus
percursos migratórios. Essas abordagens são fundamentais para "materialização" (no
sentido utilizado por Butler) de corpos invizibilizados, suas narrativas e experiências de
vida e seu poder de existir nas considerações das relações de poder.
As redes de apoio para migrantes, solicitantes e refugiados são restritas, e são
ainda ainda mais escassas para pessoas não-cisheterossexuais. Apesar de muitos

136
venezuelanos não-cisheterossexuais buscarem redes de apoio para moradia,
empregabilidade, convívio social entre conterrâneos muitos relatam sofrer discriminação
e violências nessas mesmas redes. Nenhuma instituição ou orgãos governamentais (na
cidade do Rio de Janeiro) oferecem atendimento, acolhimento ou programas públicos
especializados para essa população. O esforço pioneiro da LGBT+Movimento, é de os
migrantes, solicitantes e refugiados não-cisheterossexuais participarem das redes
regionais voltadas para o público não-cisheterossexual, e poderem nelas encontrar redes
de afeto e solidariedade. Em 2019 se consolidou a Rede Regional de Proteção a Pessoas
LGBTI+ refugiadas, solicitantes de refúgio e migrantes das Américas formada por
ONG's e projetos, como a LGBT+Movimento, que lidam diretamente com essa
população. Fazem parte da Rede instituições e projetos do Brasil, Colombia, Chile, Peru,
Equador, México, Argentina e Venezuela. A Rede serve como um espaço de articulação
e exposição das problemáticas associadas ao atendimento, acolhimento e integração dessa
população. Muitas questões comentadas ao longo desse texto de dissertação foram
também discutidas no espaço da Rede.
Diante da complexidade do tema, julgo o tempo de duração do mestrado um
grande limitador para a abordagem das questões relacionadas às experiências de vidas e
narrativas de migrantes, solicitantes e refugiados não-cisheterossexuais. Por isso,
pretendo seguir com o tema no curso de doutorado. De toda maneira, este texto de
dissertação procurou, não simplesmente adicionar considerações às experiências de vida
de migrantes, solicitantes e refugiados não-cisheterossexuais, mas ser agente (e inspirar
agência) para a transformação das relações de poder e conhecimento que situam esses
sujeitos constantemente em lugares de apagamento.

137
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