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A SOCIEDADE DE RISCO E O RACISMO AMBIENTAL

Thiago Willy, IFCS/UFRJ

Nas estruturas teóricas clássicas da sociologia, o “meio ambiente” era


normalmente apresentado como um conceito periférico e não central na teorização social.
Embora os sociólogos clássicos, como Max Weber, Karl Marx, Émile Durkheim e George
Simmel, tinham uma ideia de uma dinâmica não-intencional da modernização capitalista
que muda e ameaça seus próprios fundamentos, como as consequências da exploração
constante dos recursos naturais, eles não pensaram o papel central do meio ambiente nas
transformações das próprias concepções de “sociedade”. Nessa concepção clássica, o
objeto da sociologia era principalmente feito de laços ou relações humanas estabelecidas,
desprendido do ambiente natural e seus processos. Este último foi reservado como objeto
das ciências da natureza. Diante disso, a maneira pela qual a sociologia foi historicamente
definida, em relação a disciplinas concorrentes como a biologia e a psicologia, relegou as
questões sobre o meio ambiente para as margens (Benton, 1994). Havia uma necessidade
de tornar a sociologia uma disciplina separada com um objeto distinto, isolando-a da
biologia e do reino natural (Durkheim, 1982 [1895]). Para tal, era preciso extrair
analiticamente o “social” de seu contexto ambiental, ao qual foi possibilitado
historicamente pela emergência da sociedade moderna industrial, que parecia superar as
restrições ecológicas e evidenciar a capacidade humana de controlar e explorar o mundo
biofísico (Goldblatt, 1996).

Nessa época, era comum pensar que os avanços tecnológicos tinham apenas
efeitos positivos na sociedade, estimulando o progresso material e científico. O meio
ambiente era presumido como capaz de absorver quaisquer doenças associadas à
modernização e, assim, não teria impacto nos fenômenos sociais. Esse era o espírito
humanista e bifurcado do surgimento da sociologia, que Ulrich Beck (2003) chamou de
“primeira modernidade”. Esse modo de fazer sociologia ainda permaneceu na geração de
sociólogos clássicos do pós-guerra, como Talcott Parsons (1965). A narrativa da
modernização do pós-guerra ainda pressupôs a separação entre forças “naturais” e
“sociais”, entre natureza e sociedade. No entanto, os riscos ambientais, na verdade,
demonstra e reforça exatamente o oposto, ou seja, uma extensão contínua e
aprofundamento de combinações, confusões e “misturas” de natureza e sociedade.

A emergência e a proliferação de riscos e perigos ambientais induzidos


antropogenicamente, trazendo aquilo que Bruno Latour (2013) chamou de objetos ou
processos “híbridos”, que borram as fronteiras entre natureza e sociedade, trouxe a
necessidade de revisar essas estruturas teóricas clássicas da sociologia. A emergência
dessa nova espécie de problema sociológico mostrou que “longe de transcender as
restrições ecológicas, as sociedades modernas estavam adquirindo outras de sua própria
criação” (Goldblatt, 1996). Muitos dos riscos globais que enfrentamos — tais como efeito
estufa, destruição da camada de ozônio, chuva ácida e doenças virais — trouxe a
necessidade de colocar o meio ambiente como uma variável central na teorização
sociológica. Além disso, segundo Beck, a proliferação intensificada da tecnologia e a
crise ecológica tornou a oposição entre natureza e sociedade questionável, pois, na
realidade, esses fenômenos se cruzam e dissolvem essa oposição. Assim, “aquilo que
chamamos de natureza há muito se integrou ao processo de industrialização e vem se
transformando em riscos e perigos que são negociados no processo de socialização e se
desdobram em uma dinâmica política autônoma” (Beck, 2003). Ele denomina esse novo
estado de coisas de “sociedade de risco”, característico daquilo que ele também
denominou de “segunda modernidade” ou “modernização reflexiva”, marcados pelos
processos de globalidade e individualização.

A globalidade refere-se à origem e textura cada vez mais transnacional da


experiência, presente nas rotinas da vida cotidiana cada vez mais definidas pelo ecletismo
cultural e nas identidades cada vez mais moldada por um “cosmopolitismo banal”. Já a
individualização refere-se a um processo inter-relacionado em que a agência individual,
o exercício da escolha, tornou-se essencial para quem somos e a atrator básico da estrutura
social, substituindo a classe, o estado-nação e os chamados “conceitos zumbis”
semelhantes que forneciam pontos fixos de navegação para a identidade. Uma vez
deslocados, somos impelidos a um processo experimental e multifacetado de
individualização, definindo experiências dinâmicas, transitórias e desterritorializadas.
Assim, para Beck, o amadurecimento do capitalismo neoliberal global articulou
sociologicamente uma experiência cada vez mais transnacional do processo de
globalização, onde a tecnologia e o risco ambiental são os pilares estruturantes desse
novo estágio da modernidade.

Essa sociedade de risco é dominada pelos perigos e ameaças potenciais


desencadeados pelas forças produtivas sociais que ultrapassam os contornos da sociedade
industrial clássica do Estado-nação. Nesse contexto, os pensamentos e as ações dos
indivíduos são organizados para evitar e calcular riscos, e não só para acumular riquezas.
Embora os seres humanos fossem relativamente eficazes no controle do meio ambiente,
antecipando e atenuando os perigos naturais, os perigos estão cada vez mais ligados aos
riscos tecnológicos decorrentes de forças antropogênicas invisíveis, imensuráveis e
colaterais. Não são mais os perigos pré-industriais, considerados “golpes do destino que
caíam sobre a humanidade ‘de fora’ e atribuíveis a um ‘outro’ — deuses, demônios ou a
Natureza”, mas os efeitos globais não-previstos dos “riscos industriais na tomada de
decisões”, surgindo o problema da responsabilidade social (Beck, 1992). Nesse sentido,
as consequências do avanço científico já não passam despercebidas. A sociedade está se
tornando cada vez mais consciente dos riscos criados pela modernização. A degradação
ambiental não ocorre mais fora do nosso campo de visão. Simultaneamente a essa
crescente conscientização social dos riscos, de acordo com Beck, está a desmistificação
da “racionalidade científica”. Assim, a modernização reflexiva também significa que os
perigos e riscos dos empreendimentos e instituições científicas não estão mais protegidas
da desconfiança, emergindo um processo multifacetado de individualização e
experiências organizacionais de lidar com os riscos. É diante dessa individualização
institucionalizada que Beck vai sugerir que a ameaça dos riscos atravessa as linhas de
classe e, portanto, a desigualdade de classe, típica da sociologia clássica, está sendo
substituída pela desigualdade da distribuição de riscos.

Nesse sentido, colocar o “meio ambiente” no centro da sociologia significa


também vinculá-lo internamente na dinâmica de poder e conflito das desigualdades
sociais de outra maneira (Beck, 2010). É necessário romper com o quadro de referência
do “produto social bruto” ou da “renda per capita” na concepção de desigualdade social.
É preciso se concentrar na conjunção entre “pobreza, vulnerabilidade social, corrupção,
acúmulo de perigos e perda de dignidade em escala global”, onde “situações de vida e
chances de vida, antes avaliadas dentro do horizonte de uma desigualdade confinada ao
Estado-nação, estão se transformando em situações de sobrevivência ou chances de
sobrevivência na sociedade mundial de risco” (ibid.). Para Beck, a categoria de
“vulnerabilidade” é central. Pois, de acordo com ele, alguns países ou grupos são capazes
de absorver até certo ponto desastres ambientais, outros, não privilegiados na escala de
vulnerabilidade social, vivenciam o colapso da ordem social e a escalada da violência
(Beck, 2009).

No entanto, apesar de Beck reconhecer que os perigos ambientais exacerba as


desigualdades existentes entre pobres e ricos, entre o centro e a periferia, ele também
acredita que as dissolve. Para ele, quanto maior a ameaça planetária, menor a
possibilidade de que mesmo os mais ricos e poderosos a evitem. Isso sugere que, embora
hierárquicas, as ameaças ambientais sistemáticas e globais tornam-se relativamente
igualitárias e, em certo sentido, “democráticas” (Beck, 1992). Os conflitos de risco são,
assim, “além da classe e do status”, impulsionados por “coalizões de ansiedade” em vez
da classe social. Na sociedade de risco, mesmo os ricos não estão a salvo dos efeitos
colaterais do processo de modernização; o perpetrador e a vítima, mais cedo ou mais
tarde, tornam-se “iguais”. Assim, mesmo que ele reconheça que na sociedade de risco
ocorra um atrito entre os que lucram com os riscos e os que são afligidos pelos riscos, em
última análise ele afirma que muitos dos riscos globais não obedecem a fronteiras
definidas juridicamente ou divisões de classe e, portanto, acredita que esses riscos afetam
todos os membros igualmente, reestruturando a sociedade de classe tradicional. Ele
negligencia qualquer discussão significativa sobre como os perigos e riscos localizados
tendem a reforçar estruturalmente as divisões de classe e/ou raça, e não transcendê-las.
No contexto do chamado capitalismo neoliberal, existem razões econômicas para as
corporações transnacionais localizarem indústrias perigosas em comunidades de baixo
nível socioeconômico com certo grupo racial preponderante, pois historicamente esse tem
sido o caminho de menor resistência. As ciências sociais contemporâneas estão repletas
de estudos que encontram evidências de injustiças ambientais. Pessoas de baixo nível
socioeconômico e pessoas de cor são expostas sistemática e desproporcionalmente aos
perigosos subprodutos da modernização, enquanto recebem apenas uma fração pequena
dos benefícios. Tal fenômeno reforça a necessidade de trazer uma perspectiva
intersecional para abordar o cruzamento de experiências locais assimétricas da sociedade
de risco. Os efeitos multidimensionais das experiências vividas pelos indivíduos e os
processos pelos quais as políticas baseadas em risco e as redes institucionais perpetuam
a desigualdade de maneiras complexas (Hae Yeon e Ferree, 2010) permanecem
subdesenvolvidos na teorização do risco.

As abordagens clássicas de foco único ou aditivo sobre os fenômenos sociais


(por exemplo, raça, gênero ou classe) deixaram pouco espaço para abordar problemas
complexos, tais como aqueles induzidos ou exacerbados pelas crises ecológicas, exigindo
uma abordagem mais interseccional desses fenômenos. A interseccionalidade tem como
base filosófica as críticas pós-estruturalistas do sujeito como descentrado e seu foco nas
imbricações de categorias sociais múltiplas e diferencialmente significativas; a
compreensão das identidades, muitas vezes tidas como certas, como o produto de eixos
de diferença múltiplos e multicamadas. Nos estudos sociais, essa abordagem observa
como as categorias sociais como gênero, raça, classe, idade, deficiência e orientação
sexual se cruzam para impulsionar e exacerbar o privilégio, a discriminação e a opressão
social (Collins, 2022). Nesse sentido, a interseccionalidade é uma lente conceitual central
para entender como várias formas de desigualdades e vulnerabilidades sociais se
interconectam e se sobrepõem umas às outras. Com raízes no feminismo negro, essa teoria
postula que diferentes identidades sociais — gênero, raça, classe socioeconômica, etc. —
se imbricam para criar modos únicos de desvantagem e opressão (Crenshaw, 2017). No
entanto, a interseccionalidade não diz respeito apenas às categorias de identidades, mas
também abarca as complexidades essenciais para entender as desigualdades sociais,
políticas e estruturais enraizadas, que se traduzem em diferentes tipos de
vulnerabilidades, necessidades e responsabilidades de cuidado desiguais entre as
populações. Integrada na teoria e pesquisa sobre a “sociedade de risco”, a
interseccionalidade está cada vez mais lançando luz sobre os sistemas sobrepostos e
interligados de desvantagem e opressão que restringem a capacidade de certas indivíduos
de lidar com os riscos ambientais e criam novas ou reforçam vulnerabilidades
socioecológicas existentes. A razão para isso, como mencionado, é que a
interseccionalidade recusa a seleção de uma categoria particular como determinante da
experiência do risco em favor da compreensão das dimensões sobrepostas da
desigualdade como sendo constitutivas do risco. Implícito nisso está a compreensão de
que diferentes dimensões de categorias imbricadas de opressão importam de forma
diferente conforme o contexto.

Uma das implicações dessa abordagem, então, é visualizar aquilo que foi
denominado de racismo ambiental. Racismo ambiental, segundo Benjamin Chavis,
criador do termo, é a “discriminação racial na formulação de políticas ambientais, na
aplicação de regulamentos e leis, no direcionamento deliberado de comunidades de cor
para instalações de lixo tóxico, na sanção oficial da presença de venenos e poluentes com
risco de vida nessas comunidades”. Os processos simultâneos de globalização e
neoliberalização econômica impulsionou a concentração de indústrias sujas em
localizações periféricas, locais frequentemente caracterizados por pessoas de menores
níveis socioeconômicos e por abrigarem populações de grupos étnicos e raciais
minoritários (as “pessoas de cor”). Essa mobilidade do capital transnacional mantém
relações legitimadoras de subordinação (entre os países periféricos e centrais, e entre as
populações periféricas e a elite transnacional) diante das autoridades públicas na medida
em que adia o impacto da degradação ambiental e das desigualdades sociais nos países
centrais. O acesso a medicamentos, saneamento e boa alimentação, por exemplo,
distribuídos de forma diferenciada por sexo, faixas etárias e etnia em muitos países, é um
fator determinante na probabilidade de se infectar com tuberculose, assim como a moradia
precária. Isso mostra não apenas que a degradação ambiental desproporcional em
localizações periféricas está diretamente ligada à reconfiguração estrutural global e à
agenda neoliberal do capital transnacional, mas, e principalmente, que essa degradação
também tem um caráter constitutivo de classe, raça e etnia, evidenciando uma
desigualdade mais estrutural nas experiências dos riscos.

Diante disso, podemos ver que trazer a interseccionalidade mais diretamente


para a teoria da “sociedade de risco” pode esclarecer como essas novas configurações dos
riscos ambientais produzem novas desigualdades enquanto mantém velhas estruturas, tal
como o racismo. Levanta a importância conceitual de integrar a teoria da “sociedade de
risco” com a interseccionalidade para avaliar como o risco e várias formas de
desigualdade se cruzam e são mutuamente constitutivos. Mas isso mostra algo mais
profundo na estrutura teórica da sociologia em si. Embora a nova abordagem sociológica
de Beck nos leve a repensar os pressupostos conceituais da sociologia clássica e aponte
para a necessidade de incluir o “meio ambiente” como um conceito central na construção
da teoria, ele ainda mantém resquícios do “imperialismo conceitual” eurocêntrico que ele
próprio critica (Beck, 2003). Ele não contemplou suficientemente como os fenômenos da
globalização e individualização intensificou as desigualdades sociais, que beneficiam os
países centrais e a elite transnacional, enquanto os países periféricos e as classes
subordinadas enfrentam cada vez mais a privação material e a degradação ambiental. Sua
hipotética ausência de classes na sociedade de risco depende da pressuposição de que os
riscos ambientais globais organizam as sociedades modernas de maneira mais ou menos
igualitária, sem distinções de classe ou raça, o que não é empiricamente sustentável. Em
vez disso, os riscos tecnológicos e ambientais têm um impacto diferencial e profundo nas
experiências das comunidades locais e tendem a reforçar as divisões de classe e as
injustiças raciais, como o racismo ambiental. Isso levanta a necessidade de complementar
sua “nova sociologia” com a abordagem da interseccionalidade de Kimberlé Crenshaw e
Patricia Hill Collins, para então podermos repensar a teoria sociológica tradicional de
maneira mais radical, não apenas dissolvendo e superando seu antropocentrismo, mas
também seu etnocentrismo.

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