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GÊNERO E CULTURA:
PERSPECTIVAS FORMATIVAS
VOL. 2
W Edições Hipótese
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Guimarães, R. S.; Vergueiro, V; Marcos, M. A. de; Fortunato, I. (org.) Gênero e cultura: perspectivas
formativas vol. 2. São Paulo: Edições Hipótese, 2018.
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SUMÁRIO
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Guimarães, R. S.; Vergueiro, V.; Marcos, M. A. de & Fortunato, I. (org.).
Gênero e cultura: perspectivas formativas vol. 2
São Paulo: Edições Hipótese, 2018.
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CAPÍTULO 03 – CISHETERONORMATIVIDADE NO LIVRO DIDÁTICO DE
BIOLOGIA: ANÁLISE À LUZ DA PEDAGOGIA QUEER
Bruno Tavares
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Guimarães, R. S.; Vergueiro, V.; Marcos, M. A. de & Fortunato, I. (org.).
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(re)produção da cisheteronormatividade, e consequentemente implicado no
apagamento das outras formas de se vivenciar os corpos, gêneros e as
sexualidades, para além da matriz cisheternormativa.
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Só a partir dos anos 60, com a insurgência das lutas feministas e de Lésbicas,
Gays, Bissexuais e Trangêneros (LGBTs), há um progresso em termos do
tratamento das questões de gênero e sexualidade nas escolas brasileiras (César,
2009). Fato que logo se dissiparia, devido ao Golpe Militar que ocorreu em 1964, o
qual significou um retorno à invisibilização e subalternização desses grupos. Isso
porque em tal período, a educação sexual nas escolas foi terminantemente proibida,
em nome de uma moral conservadora. Por conta disso, “as iniciativas que
conseguiam resistir e burlar o controle se tornaram experiências de resistência e,
nas décadas seguintes, a educação sexual foi tomada como um dos marcos
educacionais das lutas pela democratização do país” (César, 2009, p. 41).
Ainda em um contexto ditatorial surge “a partir de 1975, o Movimento de
Libertação Homossexual no Brasil, do qual participam, entre outros, intelectuais
exilados/as durante a ditadura militar” (Louro, 2001, p. 3). Entretanto, mesmo com a
criação de tal movimento, e com o histórico da relação entre a luta LGBT e as lutas
feministas, a educação sexual no Brasil, a partir dos anos 90, ficou cada vez mais
voltada para a área da saúde. Uma das explicações para tal fato é a epidemia de
HIV/AIDS ocorrida no fim dos anos 80, que além de reacender estigmas aos sujeitos
LGBTs, também constituiu o caráter sanitarista da educação sexual como a
conhecemos atualmente. Por isso,
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Esses PCN visam fazer apontamentos curriculares à educação brasileira,
configurando-se como “um referencial fomentador da reflexão sobre os currículos
escolares, uma proposta aberta e flexível, que pode ou não ser utilizada pelas
escolas na elaboração de suas propostas curriculares” (Altmann, 2001, p. 5). Dentro
desses parâmetros curriculares são preconizados, além das temáticas básicas, os
Temas Tranversais, que se caracterizam enquanto temáticas sociais que deveriam
ser tratadas por todas as disciplinas “como forma de contemplá-las na sua
complexidade, sem restringi-las à abordagem de uma única área” (Brasil, 1997, p.
45). Esses temas se dividem em três categorias: “Ética”, “Meio Ambiente e Saúde” e
“Pluralidade Cultural e Orientação Sexual”.
No Eixo “Orientação Sexual” dos PCN, o conceito de sexualidade apresenta-
se até certo ponto com caráter histórico, mas funcionando sobre bases biológicas
(Altmann, 2001). Isso fica claro, por exemplo, se levarmos em conta o título de um
dos blocos desse Eixo: “Corpo: matriz da sexualidade”. Assim, ao longo do
documento, o conceito de sexo aparece enquanto um dado natural e a sexualidade
como conceito mais amplo, de caráter cultural.
O conceito de gênero no documento é apresentado como um:
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instituições, como a igreja, a psiquiatria e o direito, onde ela foi pensada enquanto
um desvio da norma heterossexual.
Dessa forma, criou-se uma identidade homossexual supostamente una e
coesa, sendo tomada como uma questão política e social, no sentido de reinvindicar
sua representatividade e um espaço na ordem social vigente. Entretanto, tal unidade
significava delimitar as fronteiras dessa identidade, para que se criasse uma
representação positiva de tal grupo, que vinha contrapor as versões estereotipadas
e marcadas pelo preconceito que circulavam na sociedade. Essa identidade logo
começou a sofrer rachaduras internas, quando se denunciou a imposição de uma
voz única, masculina, branca e de classe média dentro do movimento homossexual
(Louro, 2001).
Portanto, ocorreu uma crise da identidade homossexual, resultando na
multiplicidade de lutas. Enquanto alguns desses grupos continuaram lutando para
integrar a ordem social heteronormativa,
Sem dúvida, a autora Judith Butler pode ser considerada uma das mais
conhecidas teóricas queer, tendo lançado, no início dos anos 90, seu livro mais
destacado: “Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade”. Nele, a
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autora traz conceitos importantes como heteronormatividade e performatividade de
gênero, mostrando como a regulação binária unida ao alinhamento entre sexo-
gênero-desejo, acaba produzindo gêneros inteligíveis e constituindo os ‘corpos
normativos’ (Butler, 2017). A partir dessa mesma matriz de inteligibilidade, serão
produzidas também as identidades subversivas e desviantes. Essas que:
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utilizo aqui um “olhar queer”, o qual me possibilitou vislumbrar os discursos que
produzem corpos normativos e subalternizam os corpos abjetos, ininteligíveis à
lógica heteronormativa. Desse modo, fazendo um movimento contrário a essas
normatizações, “a pedagogia queer procura observar essas práticas abrindo
espaços para as mais diversas formas de expressão da sexualidade e das
individualidades” (Neto, 2016, p. 34).
Metodologia
O livro didático foi escolhido como objeto de estudo nessa pesquisa, devido a
sua importância enquanto recurso pedagógico no processo de ensino-aprendizagem
e levando em conta sua presença dominante na maioria das escolas brasileiras.
Ainda, soma-se a isso, o fato de que esse livro é considerado, muitas vezes, o único
que alguns estudantes terão contato ao longo da vida (Fracalanza et al, 1986).
Outra questão relevante se refere ao fato de que esses materiais didáticos
não servem apenas como simples veículos de informação sobre as questões de
gênero e sexualidade, mas “são constituídos por essas distinções e, ao mesmo
tempo, seus produtores”. (Louro, 2013, p. 68).
A natureza do estudo aqui apresentado se caracteriza como qualitativa,
compreendendo a análise do texto escrito e imagético presente nas coleções de
livros didáticos de biologia, com foco principal aos conteúdos correlatos às questões
de gênero e sexualidade. Essas análises foram feitas partindo de pressupostos da
pedagogia queer, no sentido de contestar a heteronormatividade e os binarismos
homem/mulher, heterossexual/homossexual, abrindo a possibilidade de pensar
multiplicidades de gênero e sexualidade dentro da educação.
Para a seleção dos livros, buscaram-se no Programa Nacional do Livro e do
Material Didático (PNLD), as coleções didáticas de biologia do ano de 2018. Do total
de 10 coleções encontradas, uma fora selecionada para posterior análise: a coleção
“BIO”, dos autores Sergio Rosso e Sônia Lopes, da Editora Saraiva Educação.
Dentro de tal coleção, selecionou-se especificamente o volume três– dedicado ao 3º
ano do Ensino Médio –, pois nele consta o conteúdo de “Reprodução e
Desenvolvimento Humano”, correlato aos interesses de análise já estabelecidos
anteriormente.
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Resultados e Discussão
Como forma de facilitar a apresentação das análises, essa seção foi
subdividida em quatro partes:
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coerência e continuidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo” (Butler, 2017,
p. 43).
Como ressaltado anteriormente, nota-se que o livro trata a temática de gênero
e sexualidade num viés anatomo-fisiológico e biomédico, secundarizando as
questões sócio-culturais que compõe essas categorias. Esssa situação já foi descrita
em diversas outras pesquisas que voltaram seu olhar aos livros didáticos de biologia
(Ludovico, Maistro, 2017; Salton, 2016; Silva, Sousa, Galvão, 2015). Essa
problemática suscita uma pergunta muito importante, e que está longe de ser
compreendida totalmente: “[...] por que as discussões sobre gênero e sexualidade,
numa perspectiva cultural e social são quase abolidas dos livros didáticos, em pleno
século XXI?” (Mello, Nogueira, 2016, p. 268). Ainda que esse questionamento seja
de difícil explicação, cabe aos educadores, um posicionamento que estranhe tais
práticas, encontrando outras formas de trabalhar com a temática, rejeitando
abordagens reducionistas e essencialistas. Uma possível alternativa seria trazer as
dimensões sociais, culturais e políticas das questões de gênero e sexualidade, para
compôr os debates dentro da sala de aula.
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definição está alinhada com a concepção que os PCN trazem de sexo como “[...]
expressão biológica que define um conjunto de características anatômicas e
funcionais (genitais e extragenitais)” (Brasil, 1997, p. 295).
Em seguida, aparecem no texto definições do Ministério da Saúde sobre o
que é orientação sexual e identidade de gênero. Na definição de orientação sexual,
gênero e sexo foram utilizados como sinônimos, reiterando a concepção dos autores
sobre o alinhamento existente entre sexo e gênero, como já mencionado
anteriormente. Foram conceituadas categorias como: homossexualidade,
heterossexualidade e bissexualidade, enquanto fazendo parte das orientações
sexuais inteligíveis. Ainda que a multiplicidade de sexualidades escape a esse
modelo heteronormativo, a inserção da bissexualidade contrapõe, até certo ponto, a
dicotomia homossexualidade/heterossexualidade. E representa um avanço em
relação a diversos livros didáticos de ciências e biologia analisados em outros
trabalhos, que não trazem outras sexualidades fora dessa dicotomia (Nascimento,
Silva, 2014).
No restante do texto, ocorre a explicação do termo identidade de gênero,
sendo contraditoriamente ao que foi apresentado antes, encarado como categoria
cultural e que age sobre o sexo biológico. Entretanto, como expresso por Judith
Butler:
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Considerações Finais
Ainda que vários estudos anteriores tenham lançado um olhar queer aos
livros didáticos de ciências e biologia, considero necessário que a cada nova edição
desses livros, esses olhares continuem atentos, para vislumbrar como se dá a
dinâmica dos conteúdos permeados por questões de gênero e sexualidade nessas
obras. Por isso, a presente pesquisa pretendeu constituir uma pequena parte de um
panorama geral que vem sendo construído há anos, o qual denuncia a exclusão dos
desviantes de gênero e sexualidade dos livros didáticos de ciências e biologia,
principalmente em se tratando do contexto brasileiro.
Através da análise aqui empreendida, ficou clara a cisheteronormatividade
presente no livro de biologia analisado: desde imagens de corpos enquadrados nos
binários masculino/feminino ou homem/mulher, até na representação escrita, onde
conceitos de sexo e gênero aparecem ao longo de todo o livro enquanto categorias
binárias. Ainda que ocorra menção à homossexualidade, bissexualidade e
transexualidade no livro analisado, essas aparecem apenas pontualmente, não
compondo as narrativas textuais e imagéticas ao longo da obra.
Tendo em vista a presença dessas relações cisheteronormativas nos livros
didáticos, é preciso assumir uma postura crítica frente a eles, no sentido de conduzir
uma prática educacional pautada em gênero e sexualidade, que fuja dos modelos
opressores presentes nesses materiais. É nesse sentido que todo esse esforço de
análise queer se justifica, uma vez que:
A problematização daquilo que está posto nesses livros pode ser uma forma
de trabalhar com os alunos, fomentando uma subversão do que está apresentado
como normalidade, trazendo olhares outros sobre as questões de gênero e
sexualidade. Só através da expansão dessas fronteiras, é que a educação poderá
pautar a multiplicidade, jogando luz sobre todas aquelas outras formas de existência
que são ininteligíveis à cisheteronormatividade.
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Referências
Altmann, H.(2001). Orientação sexual nos Parâmetros Curriculares Nacionais.
Estudos Feministas, Florianópolis, v.9, n.2, p. 575-85.
Furlani, J. Educação sexual: possibilidades didáticas. In: Louro, G. L.; Neckel, J. F. &
Goellner, S. V. (org.). (2003). Corpo, gênero e sexualidade: um debate
contemporâneo na educação. Petrópolis: Vozes. p. 66-81
Imperatori, T.; Lionço, T.; Diniz, D. & Santos, W.(2008).Qual a diversidade sexual
dos livros didáticos brasileiros? Fazendo Gênero 8- Corpo, Violência e Poder.
UFSC: Florianópolis.
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Gênero e cultura: perspectivas formativas vol. 2
São Paulo: Edições Hipótese, 2018.
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Louro, G. L.(2004). O corpo estranho: teoria queer e educação. Belo Horizonte:
Autênica.
Ludovico, R.O. & Maistro, V.I.A. (2017). Sexualidade humana: um desafio nos livros
didáticos. X Congresso Internacional sobre Investigación em Didáctica de las
Ciencias. Sevilla: Espanha.
Mello, L.H.M. & Nogueira, S.V. (2016). Identidades de gênero nos livros didáticos de
biologia para o Ensino Médio. Anais do Congresso Latino-Americano de Gênero
e Religião. São Leopoldo: EST, v. 4, p. 255-269.
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