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ISSN 1413-389X Temas em Psicologia - 2009, Vol.

17, no 2, 405 – 415


Dossiê "Psicologia, Violência e o Debate entre Saberes"

De gestores e cães de guarda: sobre psicologia e violência

Maria Helena Souza Patto


Universidade de São Paulo – Brasil

Resumo
A partir de exemplos de práticas profissionais de psicólogos na área da educação escolar, e tomando
como pano de fundo a produção de conhecimento em sociedades fundadas em princípios
democráticos, mas marcadas por profundas e congênitas desigualdades sociais, o texto trata da adesão
das ciências humanas ao estabelecido, adesão que se dá por meio de teorias, conceitos e técnicas que,
ao naturalizarem homem e sociedade, participam da justificação da desigualdade social e de várias
formas de violência contra a cidadania.
Palavras-chave: Psicologia e violência, Ciências humanas e ideologia, Relações de poder.

Managers and watchdogs: Psychology and violence

Abstract
Based on examples of professional practices by psychologists working with school education, and
having as background the production of knowledge in societies grounded in democratic principles, but
marked by deep and congenital social inequalities, the text deals with the Humanities adhering to the
establishment by means of theories, concepts and professional practices that participate in the
justification of inequality and several forms of violence against citizenship as they naturalize man and
society.
Keywords: Psychology and violence, Humanities and ideology, Power relations.

No início dos anos de 1970, recém- Como resposta da academia à denúncia de


formada em Psicologia, morei nos Estados desigualdade e às reivindicações de direitos
Unidos. Eram tempos de grandes manifestações sociais e civis por parte dos negros norte-
públicas contra a guerra no Vietnã e em defesa americanos, a teoria da carência cultural foi
dos direitos humanos. Martin Luter King e discurso oficial gerado por forças-tarefa criadas
outros líderes do movimento haviam sido por órgãos estatais que reuniram psicólogos,
recentemente espancados, aprisionados, sociólogos, antropólogos, economistas,
assassinados. O clima era tenso naquele início pedagogos, educadores, assistentes sociais,
de década. Lembro-me que entrei numa linguistas. A essência da explicação das
lanchonete no Harlem, acompanhada de uma desigualdades sociais gerada por esses
professora da universidade, e que deixamos o especialistas é tautológica: a pobreza
local, depois de longa espera, sem sermos econômica (entendida como falta de recursos
atendidas. Enquanto procurávamos um outro para atender às necessidades de todos) gera
lugar, ela me contava lances da barbárie racista pobreza cultural que, por sua vez, produz
norte-americana remota e recente que latejava pobreza psíquica decorrente de
na situação que acabáramos de viver. Voltei desenvolvimento deficitário de todas as
para casa com a mala repleta de livros e artigos capacidades e habilidades mentais. O resultado
sobre a teoria da carência cultural, então a é a diminuição da inteligência, entendida como
última palavra em matéria de explicação da sinônimo de QI, que barra o sucesso escolar e
desigualdade social que marcava (e marca) a profissional e reinicia o ciclo da pobreza na
sociedade que se autoproclama a mais geração seguinte. (U.S. Department of Health,
democrática do planeta. Essa experiência e 1968/1981).
esses textos passaram a fazer parte das lentes Num país que se considera meritocrático –
pelas quais vejo o mundo e a psicologia. ou seja, que acredita que a ascensão social dá-
* se pelo mérito ou talento de cada um –
______________________________________
Endereço para correspondência: Maria Helena Souza Patto. Avenida Professor Mello Moraes, 1721 – CEP.:
05508-900. Fax: (11) 3813-8895, Fone: (11) 3091-4185. E-mail: spmhelena@gmail.com.
406 Patto, M. H. S.

venceriam os mais aptos, seja na escola, seja no mediante práticas escolares que mais
mundo do trabalho. E esta crença é tão antiga desqualificam outras formas de viver e de
quanto o país, fundado na ética protestante, pensar do que oferecem possibilidades reais de
base cultural da gênese do capitalismo segundo formação intelectual. Entre as deficiências
Weber (1920/1989) em A ética protestante e o apontadas, destaca-se nessa literatura científica
espírito do capitalismo. Pelo mesmo motivo, é a deficiência de linguagem, o código restrito de
antiga na América do Norte a presença da comunicação. A esse respeito, ouçamos Chauí
psicologia, cujas práticas de avaliação e (1980), comentando análise de Ecléa Bosi
classificação de indivíduos e grupos sobre o estilo popular de linguagem:
encontraram terreno mais do que propício num
país plantado na crença de que diferenças estamos habituados, dizia ela, a supor
individuais de capacidade explicam a que o “povo” tem um código perceptivo
desigualdade de condições de vida. Não por e linguístico restrito (eufemismo para
acaso, foi nos Estados Unidos que a psicologia encobrir palavras como inferior, pobre,
aplicada floresceu (Paicheler, 1992). estreito), pois tomamos nossos próprios
Inicialmente entendidas como genéticas, estas códigos como paradigmas e somos
diferenças foram, a partir dos anos de 1960, e incapazes de apreender a diferença de
por motivos políticos que não cabe desenvolver um outro código, conciso pela fala e
aqui, tomadas como fruto de diferentes expressivo pelo gesto, marcado pela
condições de estimulação ambiental. Esta fadiga, por uma relação com o trabalho
mudança de ênfase nos pólos hereditariedade- na forma de cansaço, numa exaustão que
meio não impediu, entretanto, que se determina a maneira de designar o
continuasse a defender a origem genética das espaço e viver o tempo. Porque já
diferenças individuais e étnicas, como o fez o sabemos o que é a consciência de classe
professor da Universidade de Harvard R. J. correta, tudo o que escapa ao nosso saber
Herrnstein, que, embora falando de dentro de serve apenas para afirmarmos a
uma sociedade geradora de privilégios e de existência de alienação ali onde
diferenças profundas de condições de vida, certamente não se encontra. (p. 47)
repôs a tese da predominância das capacidades A psicologia da carência cultural afastava-
humanas herdadas, realidade biogenética que se temporariamente do biologismo que a
forma grupos de excelência intelectual, rege a dominou por mais de um século e substituía as
mobilidade social e garante que portadores dos explicações genéticas, que lastrearam
quocientes intelectuais mais altos atinjam status concepções racistas, de forte e permanente
social e econômico privilegiado (Herrnstein, presença no imaginário social. Oficialmente, o
1971/1975). evolucionismo suplantou o darwinismo social.
No bojo dessa versão ambientalista, o que No discurso oficial de então, negros e pobres
se pode é tentar reverter, por meio de não eram tidos como inferiores geneticamente,
programas de educação compensatória, as pois podiam evoluir. Numa sociedade
supostas deficiências sensoriais e motoras, supostamente igualitária, bastava dar-lhes
intelectuais e neurológicas, verbais e morais, oportunidades educacionais. Nessas
emocionais e de ajustamento presentes entre as circunstâncias, os que continuassem perdedores
crianças das classes populares, para que possam teriam sua incapacidade comprovada. Voltava-
competir com as demais pelos melhores lugares se, assim, ao ponto de partida, embora nos anos
sociais. Programas que, partindo do de 1970 já houvesse críticas às pesquisas que
pressuposto do primitivismo (da deram força à crença na inferioridade psíquica
irracionalidade) da cultura popular, pretendem dos pobres e fundamentaram os programas de
democratizar a educação escolar e o mercado educação compensatória. Críticas que remetiam
de trabalho pelo exercício de “violência a desigualdade social à lógica das sociedades
simbólica”, tal como a entende Bourdieu e capitalistas industriais. Diante disso, é legítimo
Passeron (1975), pela imposição do habitus de perguntar se esta nova versão sobre o processo
classe da classe média (tida, nesta literatura, de produção da desigualdade social não foi
como sinônimo de classe dominante, dada a sua apenas uma nova expressão da crença na
dominância numérica!) – seus usos e costumes, inferioridade de pobres e não brancos, uma
crenças e estereótipos, valores e expectativas, forma sutil de repor o preconceito, até porque,
estilos de pensamento e de linguagem – nesse contexto teórico, ambiente é concebido
Sobre psicologia e violência 407

como produto da história natural, isento das Por isso, vale perguntar se na psicologia da
relações de poder historicamente engendradas pobreza não está ao mesmo tempo a pobreza e
pelos homens. a riqueza da psicologia. Pobre como produtora
Foi assim que o surgimento de uma de saber e, exatamente por isso, poderosa como
especialização – a psicologia – e de sua instrumento de justificação de uma sociedade
profissionalização criou um profissional tido atravessada de injustiça. Basta examinar laudos
como o único competente para dizer como as emitidos por psicólogos sobre alunos da rede
pessoas são, pois disporiam de teorias e de pública de ensino fundamental que apresentam
instrumentos científicos de avaliação, por dificuldades de escolarização para encontrar
suposto objetivos e neutros. Num mundo que fortes indícios disso. Neles, encontramos desde
“cultua patologicamente a cientificidade”, de absurdos como “o sujeito denota uma certa
“hipervalorização do conhecimento dito dissimulação do caráter, numa tentativa de
científico”, “o discurso competente é o discurso controle. Apresenta personalidade primitiva,
instituído”, é “a linguagem institucionalmente agindo mais por instinto do que pela razão” ou
permitida e autorizada”, é “a ciência como “a nível emocional, o paciente (...) tende
saber separado e como coisa privada” que “se também a apresentar dificuldades com a
instala e se conserva graças a uma regra que realidade do meio, com predomínio da vida
pode ser assim resumida: não é qualquer um instintiva”, até textos elaborados com termos e
que pode dizer qualquer coisa a qualquer outro jargões de uma psicologia psicométrica. No
em qualquer ocasião e em qualquer lugar. Com entanto, mesmo quando mais elaborados e no
esta regra, ele produz sua contra-face: os formato-padrão ensinado em cursos de
incompetentes sociais”. Estão dadas as psicologia, os laudos falam, com convicção
condições científicas para dissimular a “divisão autoritária, de um sujeito abstrato, reduzido a
social do trabalho sob a imagem da diferença números e a chavões vincados de arbitrariedade
de talentos e de inteligências” (Chauí, 1980, p. e preconceito; silenciam sobre a realidade
1-13, passim). Noutras palavras, Chauí (1980) social, a política educacional, o cotidiano
afirma que: escolar e podem, por isso, culpar a vítima,
situando invariavelmente no aluno e em seu
o discurso sábio e culto, enquanto ambiente familiar tomados em si mesmos a
discurso do universal, pretende unificar e origem das dificuldades escolares.
homogeneizar o social e o político, Nesses pareceres, não encontramos
apagando a existência efetiva das pessoas: os avaliados, como regra, não
contradições e das divisões que se pertencem a uma classe social; não se
exprimem como luta de classes. Este encontram numa instituição de ensino
apagamento se faz através de mil construída no interior de uma sociedade que a
recursos institucionais acerca dos quais determina; não vivem numa sociedade dividida,
podemos instruir-nos fartamente com a injusta, preconceituosa e violenta; não têm uma
leitura dos tratados de psicologia, história familiar e escolar; não têm uma vida
pedagogia e sociologia. O discurso fora da escola, não fazem parte de grupos de
grosseiro e grosso das elites tem pares onde brincam, dialogam, propõem,
exatamente a mesma finalidade, embora negociam – em suma, não têm experiências de
seus caminhos não sejam tão...civilizados vida, reduzidos que são a opiniões e
(p. 52). estereótipos incrustados na queixa escolar. A
julgar pelas deficiências que lhes atribuem
Há poucos anos, cruzei num corredor com psicólogos e professores, eles não teriam
um grupo de alunos da graduação do Instituto condições de sobreviver, muito menos em
de Psicologia da Universidade de São Paulo condições de vida em geral adversas. O que se
(IP/USP) que saía de uma sala de aplicação de tem é um feixe de deficiências deduzidas de seu
testes do PSA. Um deles exclamou: “Eu me desempenho na situação artificial e ameaçadora
sinto tão poderosa quando aplico um teste!” A da avaliação psicológica, sobretudo aos que já
moça tinha razão, pois é disto que se trata: de foram estigmatizados por avaliações
exercício de poder e da sedução que ele exerce peremptórias de competentes que os relegaram
numa sociedade hierarquizada e marcada pelo à condição de incapazes ou anormais.
autoritarismo das elites econômicas e Interessante notar que opiniões de professores e
intelectuais. pareceres de psicólogos geralmente convergem.
408 Patto, M. H. S.

As linhas da fala de uma professora dizem o Que ciência é esta que forma profissionais
mesmo que as entrelinhas de muitos laudos: que não questionam a competência que lhes é
atribuída para dizer sobre as pessoas, que não
“estas crianças vêm para a escola todas
se perguntam sobre a origem das ideias que
sujas, malcheirosas, a família não está
carregam e sobre as razões econômicas e
nem aí. Não têm o mínimo de noção de
políticas subjacentes à invenção das teorias e
espaço, coordenação, a lateralidade é
das aplicações profissionais da ciência que
toda atrapalhada. Algumas crianças não
praticam?
têm nada de discriminação visual, como
Que ciência é esta cujos profissionais não
é que eu posso alfabetizar? As histórias
podem e/ou não querem perceber que, quando
são de amargar: em casa tem pai
medem, classificam e redigem laudos para
bêbado, a mãe que espanca e vive cheia
subsidiar medidas de adaptação ao estabelecido
de amantes e o irmão drogado.”
ou de segregação, estão exercendo violência
Aderida “à opinião, principalmente à que que mantém o instituído, produz consentimento
está endossada pelo poder” (Bosi, 1992, p. e dá força aos que dominam?
118), a maior parte dos pareceres psicológicos Que ciência é esta que eterniza seus
que entopem arquivos de escolas, delegacias de instrumentos de medida, sem questionar os
ensino e de tantas outras instituições procedimentos que os construíram e as
disciplinares, nada mais faz do que dar concepções de inteligência e de normalidade
credibilidade a preconceitos de raça e de classe, que os presidem?
mesmo quando esses pareceres se valem de Que ciência é esta que invariavelmente
concepções caducas no campo das ciências culpa a vítima, imbuída da crença, tomada
humanas (por exemplo, a crença no como verdade inquestionável, de que os reveses
primitivismo dos não brancos) e de estereótipos que castigam os vitimados são consequência
verbais trazidos pela recente epidemia de livros natural de suas próprias características
de autoajuda (a psique humana reduzida a auto- psíquicas?
estima). E a credibilidade vem da condição do *
especialista, alçado à condição de único Psicólogos que exercem a profissão entre a
competente para dizer. É assim que a maioria opinião e o estereótipo aproximam-se das
dos laudos confirma queixas leigas e afirma o pessoas como se elas fossem coisas ou animais
que os solicitantes dos exames psicológicos e desconsideram a complexidade dos homens
querem ouvir. Ao agirem assim no âmbito como seres sociais historicamente construídos.
escolar, os profissionais da psicologia cometem Psicólogos assim ficam, eles também,
pequenos assassinatos, quando minam a reduzidos a coisas: tornam-se máquinas de
identidade do culpado, e crimes de lesa- gestão de riscos sociais, exercem a função de
cidadania, quando justificam a negação do cães de guarda do sistema.
direito à educação escolar. A primeira expressão – gestores de riscos – é
Diante deste quadro, é imperativo de Robert Castel na análise que fez das
perguntar: mutações da psicanálise e da psiquiatria
Que ciência é esta que reduz uma clássica nos centros comunitários de saúde
complexa questão social a problemas mental norte-americanos da década de 1970,
psíquicos? que instalaram práticas preventivas que se
Que ciência é esta que desconsidera as queriam inovadoras, mas que repunham
relações de poder numa sociedade dividida, práticas de controle e domesticação. Velhos
desigual, fundada na exploração e na opressão? vinhos em novas garrafas: mudaram as formas,
Que ciência é esta que não percebe que, continuaram os princípios e conceitos que
numa sociedade assim, ela é instrumento de gerenciam os riscos de desobediência que
justificação da exploração econômica e da permanentemente ameaçam a sociedade
desigualdade que esta produz? disciplinar. Novas psicotecnologias pós-
Que ciência é esta que não tem condições psiquiátricas e pós-psicanalíticas deram
teóricas de pensar o seu próprio pensamento do continuidade ao psicologismo e disseminaram
ponto de vista epistemológico e ético-político? novas práticas de administração social e
Que ciência é esta que desconsidera as individual supostamente neutras, mito
especificidades do tempo e do lugar em que foi reforçado por psicanalistas que insistiram na
inventada? neutralidade política da psicanálise. Surgem,
Sobre psicologia e violência 409

assim, novas formas de gestão social praticadas crítica da filosofia. A partir da questão da
por novos especialistas, que em outro lugar destinação das idéias, ele interroga a filosofia
denominei “mutações do cativeiro”. Segundo dominante na época, munido de indagações
Castel, assistimos, nas últimas décadas, ao fundamentais: a que ela serve? Quais as
advento de estratégias inéditas de relações possíveis entre a filosofia e os
gerenciamento de problemas sociais a partir da homens? O que ela faz pelos homens? O que
gestão das particularidades individuais que ela faz contra eles? A partir da tese de que há
passaram da instituição totalitária ao “inteligência contra o homem e a favor do
totalitarismo psicológico. No fundo, restos de homem” (Nizan, 1932/1998, p. 25), ele analisa
uma apropriação vulgar da psicanálise que sistemas filosóficos dominantes nas primeiras
agora se vê “mergulhada numa cultura décadas do século XX e encontra uma filosofia
psicológica que ela mesma ajudou a promover” fechada em si mesma, de costas para o mundo,
(Castel, 1981/1987, p. 15). A novidade não que se crê atemporal e faz reflexões
está, portanto, na administração autoritária das descarnadas, plenas de abstrações e inversões,
populações de risco, que continua diretamente sobre o Espírito, as Ideias, a Moral, o Bem
orquestrada pelo Estado, mas em técnicas pós- Supremo, a Razão, a Justiça. Seus criadores são
asilares que gerenciam fragilidades individuais filósofos idealistas alojados na universidade,
por meio de inovações aparentemente lúdicas: instituição cada vez mais anêmica, produtora de
exercícios de intensificação do “potencial uma filosofia-em-si, indiferente às misérias do
humano”, técnicas de desenvolvimento do mundo, que pensa um homem reificado. A isso
“capital relacional” segundo expressões usadas se contrapõe o jovem filósofo inconformado: “a
por Castel. e toda uma parafernália de exploração atual dos operários, a anarquia da
mercadorias oferecidas a consumidores que terra, a corrupção dos políticos, a miséria
buscam a felicidade e a sociabilidade perdidas. 1 sentimental em que todos estão em vias de
Diante disso, Castel (1981/1987) conclui: sucumbir não são desvios do destino de uma
humanidade-em-si.” (Nizan, 1998, p. 24).
A análise da cultura psicológica
Atento às misérias da época, entre as quais a
desemboca assim nessa terra de
miséria da academia e da filosofia, produtos e
ninguém, onde as fronteiras entre o
produtoras do vazio espiritual dos homens, ele
psicológico e o social se embaralham
declara: “há uma família de filósofos da qual
porque uma sociabilidade programada
sou inimigo”, entre eles Leon Brunschvicg,
por técnicas psicológicas e relacionais
filósofo idealista e espiritualista francês
representa o papel de substituto de um
influente no mundo político e universitário
social em crise” (p. 168). 2
naquele tempo e lugar. O “desgosto”, segundo
A expressão “cães de guarda” é o título de Hamili (1998a), é o sentimento dominante na
um ensaio de crítica da filosofia da autoria do geração de Nizan, única palavra escrita numa
filósofo francês Paul Nizan 3 e voltado para a folha de papel ao lado do corpo de René
Crevel, um jovem francês que participou do
1
Em Guardiães de Ordem (1995), Cecília Coimbra
movimento surrealista e que, ao suicidar-se,
percorre as “práticas psi” que floresceram no Brasil encarnou de modo dramático o mal-estar na
durante a ditadura militar de 1964. civilização dos intelectuais de seu tempo. 4
2
Em 1981, quando A gestão dos riscos foi *
publicado, a moda milionária da autoajuda ainda não
havia invadido o espaço editorial e a prática dos
psicólogos. A análise de Castel sobre as técnicas de
gestão das fragilidades individuais encontra Morreu em 1940, aos 35 anos de idade, na batalha
expressão perfeita nessa literatura e seus jargões que de Dunquerque, no início da Segunda Guerra
têm nos psicólogos consumidores privilegiados. Mundial.
3 4
Nizan, intelectual francês, nascido em 1905, foi Serge Hamili, filósofo e professor na Universidade
colega, na Escola Normal Superior, de Jean-Paul de Paris VIII, escreveu o Prefácio (Hamili, 1998a)
Sartre, Simone de Beauvoir, Simone Weil, membros deste livro de Nizan e é autor de Os novos cães de
da geração que se formou entre as duas grandes guarda (1998b), ensaio em que dá continuidade à
guerras e dedicou-se à militância política e à análise dos mecanismos de distorção da realidade
reflexão sobre temas políticos candentes naquele social e política pelos novos cães de guarda: os
período, como a miséria social, política e intelectual, jornalistas a serviço da produção do pensamento
a ascensão do nazismo e o neo-colonialismo. único em tempos de economia globalizada.
410 Patto, M. H. S.

O psiquiatra inglês Donald Laing, num Como exemplo deste olhar, trago um texto
texto que trata da difícil e polêmica relação que denuncia a brutalidade da colonização,
entre o psíquico e o social, fala da reinterpreta a psicologia do colonizado escrita
impossibilidade de dissociar interioridade e pelo colonizador, assinala a colaboração de
exterioridade, indivíduo e sociedade, eu e psiquiatras e psicólogos com a doutrinação e a
mundo em termos que permitem a crítica da tortura que corre nos porões da guerra colonial 5
psicologia da pobreza e a elaboração de uma e apresenta casos de distúrbios psíquicos
psicologia social do oprimido: surgidos num cenário de violência multiforme,
longa e extrema: a guerra de libertação da
Uma lição fundamental que quase todos Argélia (1954-1962), colônia francesa desde
os estudiosos das Ciências Sociais 1830. Trata-se de Os condenados da terra
aprenderam é que a inteligibilidade dos (1961), da autoria de Paul Nizan e prefaciado
acontecimentos socais exige que eles por Jean-Paul Sartre. 6
sempre sejam vistos num contexto que se Sartre percebe que Fanon não fala aos
estende espacial e temporalmente. (...) À franceses, mas dos franceses aos colonizados.
medida que partimos de micro-situações Sua voz é a de um africano, de um homem do
e nos dirigimos a macro-situações, Terceiro Mundo, de um colonizado que não
verificamos que a aparente está preocupado com a França, que não quer
irracionalidade do comportamento numa curá-la, nem fazer-lhe sugestões, mas
pequena escala assume certa forma de empenhado em oferecer aos colonizados um
inteligibilidade quando visto num diagnóstico da colonização que os municie na
contexto. Movemo-nos, por exemplo, da ação libertadora: “amiúde fala de vós, mas
aparente irracionalidade de um único nunca a vós.” (Sartre, 1961/1968, p. 5). Porta-
indivíduo ‘psicótico’ para a voz das análises de Fanon, o autor de Com a
inteligibilidade dessa irracionalidade morte na alma fala aos franceses da história
dentro do contexto da família. Por sua colonial como uma história de opressão e de
vez, a irracionalidade da família deve ser “hipocrisia liberal” de um país que prega o
situada no contexto de suas redes tempo todo a Liberdade, a Igualdade e a
circundantes, as quais devem ser vistas Fraternidade, mas invade, oprime, tortura e
no contexto de organizações e mata. Quando muito, seus representantes fazem
instituições ainda maiores. Esses propostas de aparente generosidade, como se
contextos mais amplos não existem lá não soubessem que “essa bela palavra sonora
fora, num lugar periférico do espaço só tem um sentido: estatuto outorgado” e que,
social: eles penetram nos interstícios de para esses escravos dos tempos modernos,
tudo o que abrangem. (...) Comecei “ninguém tem o poder nem o privilégio de dar
tentando ver através da densa opacidade nada a ninguém. Todos têm todos os direitos.”
dos acontecimentos sociais, estudando (Sartre, 1961/1968, p. 18). Um país que, ao
certas pessoas tachadas de psicóticas ou instituir-se como civilizador de homens
neuróticas, como as que vemos nos primitivos, muniu-se de teorias raciais que
hospitais de alienados, unidades
psiquiátricas e clínicas de pacientes não-
hospitalizados. Comecei a ver que estava 5
Coimbra (1995) analisa formas de colaboração,
envolvido no estudo de situações, e não com mão-de-ferro ou luva-de-pelica, com ciência ou
apenas de indivíduos. (...) O inconsciência, de profissionais da psicologia
comportamento dessa gente era brasileiros com a ditadura militar de 1964.
considerado como sinais de um processo 6
Nascido na Martinica, em 1925, colônia francesa
patológico em andamento dentro delas desde o séc. XVII, Fanon, filho de pai negro e mãe
(...) Uma pessoa não existe sem um mestiça, conheceu na pele a barbárie colonial.
contexto social; não se pode tirar uma Estudou medicina e formou-se em psiquiatria na
pessoa do seu contexto social e ainda França, em 1951, onde frequentou também cursos
considerá-la como pessoa ou agir em de literatura e filosofia e foi aluno de Merleau-
relação a ela como tal. E se não agimos Ponty. Em 1953, às vésperas da guerra de libertação,
para com outrem como pessoa, foi enviado pelo governo francês a um hospital na
Argélia, onde trabalhou até 1957, quando foi
despersonalizamo-nos a nós mesmos. expulso da Argélia, acusado de subversão pelos
(Laing, 1968, p. 15-17, passim). governantes franceses locais.
Sobre psicologia e violência 411

desnudam sua “bela alma racista.” (Sartre, obedecem ao princípio da exclusão


1961/1968, p. 14). recíproca: não há conciliação possível,
Mas se não fala a nós, poderiam um dos termos é demais. A cidade do
argumentar os franceses, este livro não nos colono é uma cidade sólida, toda de ferro
interessa. Ao que Sartre contra-argumenta: e pedra. É uma cidade iluminada,
“nossas vítimas nos conhecem por suas feridas asfaltada, onde os caixotes de lixo
e seus grilhões. Basta que nos mostrem o que regurgitam de sobras desconhecidas,
fizemos delas para que conheçamos o que jamais vistas, nem mesmo sonhadas. (...)
fizemos de nós.” 7. E o que fizeram delas impõe A cidade do colono é uma cidade
aos franceses o rubor: “Tende a coragem de o saciada, indolente, cujo ventre está
ler por esta primeira razão de que ele fará com permanentemente repleto de boas coisas.
que vos sintais envergonhados, e a vergonha, A cidade do colono é uma cidade de
como disse Marx, é um sentimento brancos, de estrangeiros. (...) A cidade do
revolucionário” (Sartre, 1961/1968, p. 8). colonizado, ou pelos menos a cidade
Por que trazer Os condenados da terra a indígena, a cidade negra (...) é um lugar
um evento sobre psicologia e violência? Porque mal-afamado, povoado de homens mal-
ele examina as várias formas de violência no afamados. Aí se nasce não importa onde,
contexto da guerra colonial. Porque, como não importa como. Morre-se não importa
psiquiatra crítico, Fanon está atento à onde, não importa de que. É um mundo
psicologia do colonizado elaborada por sem intervalos, onde os homens estão
psiquiatras que insistem numa “ignorância uns sobre os outros, as casas umas sobre
maciça do contexto social” (Laing, 1968, p. as outras. A cidade do colonizado é uma
17)e à participação de psiquiatras e psicólogos cidade faminta, faminta de pão, de carne,
nas violências cometidas. Porque ele desmonta de sapatos, de carvão, de luz. A cidade
a versão oficial da psicologia do argelino, do colonizado é uma cidade acocorada,
mostra seu caráter ideológico e propõe uma uma cidade ajoelhada, uma cidade
outra, que não ignora a presença maciça do acuada. É uma cidade de negros, uma
contexto social. cidade de árabes (Fanon, 1961/1968, p.
O mundo colonial é dividido; no 28-29).
apartheid, há uma cidade indígena e uma
européia, há escolas para colonizados e escolas Ou seja, a colônia é um mundo dividido e
para europeus. Enquanto nos países europeus, habitado por espécies diferentes, e o que o
colonizadores, procura-se incutir o respeito à cinde é “o fato de pertencer ou não a tal
ordem por meio do ensino religioso ou leigo, da espécie, a tal raça. (...) A espécie dirigente é
formação de hábitos morais que passam de pais especialmente a que vem de fora, a que não se
para filhos, da premiação de operários parece com os autóctones, os outros.” (Fanon,
exemplares, do amor à harmonia e à prudência 1961/1968, p. 30, itálico nosso)
que torna mais fácil o trabalho das instituições
de coerção física; enquanto neles a relação Mas não basta limitar o nativo fisicamente,
entre o explorado e o poder é mediada pela não só porque, sozinha, a violência física pode
ação de “uma multidão de professores de produzir reações violentas, mas porque não se
moral, de conselheiros, de desorientadores” pode exterminar aqueles que servem aos
(Fanon, 1961/1968, p. 28, itálico nosso), o interesses do capital europeu, primeiro como
mesmo não se dá nas regiões coloniais. Nelas o mão-de-obra gratuita, depois como mercado
policial e o soldado, “por sua presença consumidor. É preciso limitá-lo pela coerção
imediata, por suas intervenções diretas e psicológica, por várias formas de violência
frequentes, mantêm contato com o colonizado e simbólica, a violência que afirma a supremacia
o aconselham, a coronhadas, ou com explosões dos valores brancos, a agressividade que
de napalm, a não se mover. (...) O intermediário impregna o confronto vitorioso desses valores
leva a violência à casa e ao cérebro do com os modos de vida ou de pensamento dos
colonizado” (Fanon, 1961/1968, p. 28). colonizado. Uma delas, a imposição arbitrária
As duas zonas não são complementares: de um arbitrário cultural – apresentado, no
entanto, como o único verdadeiro, pois
7
Este é o tema do filme Caché, dirigido por Michael evoluído, civilizado – opera pela detração do
Haneke, França, 2005. colonizado e de suas formas de viver, chave
412 Patto, M. H. S.

que abre a porta para a ideologização larga e discípulo desse professor encontrou traços de
funda. melancolia nos sujeitos examinados, mas não a
esperada tendência ao suicídio. Para resolver o
O mundo colonizado é um mundo
impasse teórico, deram continuidade à detração
maniqueísta. Não basta ao colono limitar
do nativo: sendo a melancolia causada por
fisicamente, com o auxílio da polícia
problemas de consciência moral que levam à
(...), o espaço do colonizado. Ilustrando o
autopunição, conclui-se pela carência de senso
caráter totalitário da exploração colonial,
moral do norte-africano, causada por debilidade
o colono faz do colonizado uma espécie
mental, por capacidade verbal reduzida, por
de quintessência do mal. (...) O indígena
impulsividade e agressividade natas, segundo a
é declarado impermeável à ética, ausente
semiologia da escola psiquiátrica de Argel.
de valores, negação dos valores. É,
Carentes de senso moral, não se sucidam,
ousemos confessá-lo, o inimigo dos
matam: são melancólicos homicidas.
valores. Nesse sentido, é o mal absoluto
Em 1935, o Dr. Porot compareceu ao
(...) depositário de forças maléficas,
Congresso dos Alienistas e Neurologistas de
instrumento inconsciente e irrecuperável
Língua Francesa, realizado em Bruxelas, para
de forças cegas. (...) Os costumes dos
defender uma tese envolta em credibildiade
colonizados, suas tradições, seus mitos,
científica: “o indígena africano, cujas
sobretudo seus mitos, são a própria
atividades superiores e corticais são pouco
marca desta indigência, desta depravação
evoluídas, é um ser primitivo cuja vida
constitucional. (Fanon, 1961/1968, p. 30-
essencialmente vegetativa é instintiva e dirigida
31)
principalmente por seu diencéfalo” (Porot,
Os intelectuais colonizados, sejam eles 1935, citado por Fanon, 1961/1968, p. 259). O
europeus ou nativos europeizados, “meninos que equivale a afirmar que, compartilhando
mimados ontem pelo colonialismo”, tornam-se com os vertebrados inferiores a predominância
cães de guarda do sistema no exercício de diencefálica, distancia-se da espécie humana,
cargos administrativos, técnicos e acadêmicos, cuja característica distintiva é a corticalização.
onde gerenciam riscos de vários modos. As De onde é legítimo concluir que, para o
formas mais civilizadas consistem na psiquiatra francês instalado na Argélia, os
disseminação da ideologia liberal reduzida ao nativos norte-africanos estão privados de
culto do eu, do individualismo como expressão córtex. Em 1939, ele voltou à carga: “o
de liberdade que lhes foi incutido na metrópole, primitivismo não é uma carência de
ênfase esta que conspira contra o nós, maturidade, uma parada observada no
desmobiliza a ação coletiva. Em cargos desenvolvimento do psiquismo intelectual (...)
universitários, esses intelectuais elaboram e Esse primitivismo não é somente resultante de
disseminam uma psicologia do colonizado. uma educação especial; tem fundamentos muito
Magistrados, policiais, advogados ou médicos, mais profundos, e acreditamos mesmo que tem
eles afirmam a presença de taras no povo seu substrato numa disposição particular da
argelino valendo-se de um discurso oficial arquitetura, pelo menos da hierarquização
supostamente comprovado pela ciência: os dinâmica dos centros nervosos”. (Porot, 1939,
nativos são "indolentes natos, mentirosos natos, citado por Fanon, 1961/1968, p. 259-260).
ladrões natos, criminosos natos" (Fanon, A confirmação científica das
1961/1968, p. 256), um discurso oficial possibilidades biologicamente limitadas do
“cientificamente estabelecido”. colonizado foi levada adiante em 1954 pelo Dr.
Pesquisa realizada por mais de trinta anos Carothers, um perito da Organização Mundial
sob a coordenação de um certo Prof. Porot, de Saúde que, em Psicologia normal e
docente de psiquiatria na Faculdade de Argel, patológica do africano, disparou: “o africano
com o objetivo identificar e explicar as utiliza muito pouco seus lóbulos frontais. Todas
modalidades do crime nos países do norte da as particularidades da psiquiatria africana
África, resultou no perfil do criminoso norte- podem ser relacionadas com uma preguiça
africano e tornou-se matéria do curso de frontal”. Não satisfeito, e sem deixar de lado a
psiquiatria na Universidade de Argel. Médicos comparação, concluiu: “o africano normal é um
jovens aprendiam que o norte-africano é europeu lobotomizado” (citado por Fanon, p.
agressivo, instável, insensato, impulsivo, 260). Sartre (1961/1968) decanta o espírito da
incapaz de pensamento cartesiano. Um coisa: “a ordem é rebaixar os habitantes do
Sobre psicologia e violência 413

território anexado ao nível do macaco superior primitivo é homem-natureza, é animal dotado


para justificar que o colono os trate como de violência inevitável, porque incivilizado;
bestas de carga. A violência colonial não tem supera a tese de que sempre haverá barbárie
somente o objetivo de garantir o respeito desses porque o homem está condenado ao mal-estar
homens subjugados; procura desumanizá-los” (abstrato) na cultura (abstrata); pensa que só se
(p. 9). pode “curar” o colonizado se por
Fanon dedicou-se a minucioso trabalho de “normalidade” não se entender “adaptação” ao
ressignificação da psicologia do colonizado que existe.
segundo o colonizador, valendo-se não só de No horror da batalha, chegam diariamente
estudos de antropologia cultural, mas também à ala psiquiátrica dos hospitais argelinos casos
de observações sistematizadas que registrou ao de distúrbios psíquicos contraídos num
longo dos anos em que viveu e praticou a confronto desigual 8. Fanon sabe que o clima de
medicina numa terra invadida e em estado de guerra só continuou e aumentou a produção
guerra. Este material permitiu-lhe construir desses casos, pois “a colonização, em sua
uma outra visão dos argelinos, não mais como essência, já se apresentava como uma grande
abstratos seres inferiores , mas como homens fornecedora dos hospitais psiquiátricos (...),
concretos numa situação concreta, cujas [pois há] uma regular e importante patologia
características é preciso esclarecer. mental produzida diretamente pela opressão”
As múltiplas violências da colonização (Fanon, 1961/1968, p. 212). A colonização
produzem corpos e mentes violentados. As mina a identidade do colonizado, nega-lhe
ações dos encarregados de manter a ordem qualquer atributo de humanidade, reifica-o ao
orientam-se pelo intento de imobilizar os reduzi-lo a componente de uma paisagem hostil
nativos. O cotidiano da cidade ocupada é e rebelde em que selva, mosquitos, nativos e
“imóvel, mundo de estátuas: a estátua do febres encontram-se no mesmo plano. Para
general que realizou a conquista, a estátua do compreendermos as angústias e defesas da
engenheiro que construiu a ponte. (...) A personalidade colonizada, “basta simplesmente
primeira coisa que o indígena aprende é a ficar estudar, apreciar o número e a profundeza das
no seu lugar, não ultrapassar os limites”. Disso feridas causadas a um colonizado no decorrer
resultam “núcleos de desespero cristalizados no de um único dia passado no seio do regime
corpo do colonizado” (Fanon, 1961/1968, p. colonial” (Fanon, 1961/1968, p. 212).
254). São muitas as formas de manifestação Os casos relatados, atendidos por ele em
dessa “agressividade sedimentada nos hospitais, domicílios e postos de saúde do
músculos” que fazem parte da econômica Exército de Libertação Nacional, incluem
libidinal do oprimido. Seus sonhos são argelinos e franceses portadores de intenso
frequentemente “sonhos musculares”, de ação, sofrimento psíquico contraído num cenário de
de agressão, de proezas físicas sempre bem- guerra. Havia os que portavam perturbações
sucedidas, o que leva este autor afirmar que “o reativas a fatos bem determinados (por
colonizado não cessa de se libertar entre as exemplo, homens que presenciaram o estupro
nove horas da noite e as seis horas da manhã”. de suas mulheres por soldados franceses;
O fatalismo é sustentado por mitos, magias, sobreviventes de chacinas; torturadores
possessões e danças rituais, onde o corpo franceses que passaram a torturar suas mulheres
“derrama-se em demonstrações musculares” e filhos). Outros manifestavam distúrbios
que esgotam por um tempo a tensão acumulada. contraídos na atmosfera de guerra generalizada,
A violência contra os iguais, individual (as sem evento desencadeador específico (delírios
brigas de rua) ou grupal (as rixas de gangues, as acompanhados de tentativas de suicídio;
lutas tribais), é o recurso mais imediato de psicoses puerperais em acampamentos de
autoafirmação (Fanon, 1961/1968). Formas de refugiados; sintomas penosos de ansiedade
“rebeldia primitiva” (sabotagens, assassinatos, difusa). Havia ainda os que apresentavam
baixa produtividade do trabalho) são tomadas perturbações mentais posteriores a várias
pelos psiquiatras colonialistas de plantão como formas de tortura, em geral acompanhadas ou
prova de tendências inatas ao crime e à realizadas por médicos psiquiatras, e a sessões
preguiça. de dinâmica de grupo para arrancar confissões,
Fanon não participa dos preconceitos de
raça e de classe validados por cientistas da 8
Narrada no filme A batalha de Argel, direção de
metrópole; não endossa a crença de que o Gillo Pontecorvo, Itália, 1965.
414 Patto, M. H. S.

declarações de arrependimento e fazer lavagem sujeito e a realidade e a pessoa já não se


cerebral, geralmente conduzidas por espanta com nada, vive na opacidade das
psicólogos. Sartre (1961/1968) resume a certezas”; se, por isso, “tudo recomeça numa
presença da psicologia nessas circunstâncias: afinidade, numa simpatia do sujeito da
“A coisa é conduzida a toque de caixa por percepção e da ação pelo seu objeto”; se “para
peritos: não é de hoje que datam os serviços alcançar esse alto grau de tomada de
psicológicos” (p. 10). consciência da vida há um momento de recusa
Fanon faz questão de enfatizar que esses do estabelecido”. Se, assim sendo, “é preciso
relatos são apenas “notas de psiquiatria” que que o psicólogo busque simpatizar para que ele
falam por si mesmas dos danos causados à possa voltar às coisas e às pessoas” e se “esta
“pessoa humana” pela barbárie da colonização. atitude não é uma técnica, é uma conversão” –
Para dar relevo a essa dimensão, ele evita se tudo isto que nos ensina Bosi (1992, p. 116 e
qualquer discussão semiológica, nosológica ou 118) é digno de atenção, pois afirma a
terapêutica nos termos da psiquiatria clássica. importância da atitude filosófica na produção
Ao contrário, não rotula, mas acolhe, ouve, do saber e no exercício profissional, então
dialoga, assinala. Os assinalamentos vêm para precisamos urgentemente repensar, com
ajudá-los a contar o acontecido, nomear o coragem e sem corporativismos, a formação de
sofrimento e identificar-lhe as causas. Situar o psicólogos como um projeto ético-político.
“problema no plano da história colonial, tal
como ele aparece nas histórias individuais”,
“conhecer os motivos” dos distúrbios instalados
Referências
vale não só como antídoto às falsas explicações
da comunidade científica, mas como recurso
para trabalhar com os próprios adoecidos a Bosi, E. (1992). Entre a opinião e o estereótipo.
insegurança e o medo, a angústia da Novos Estudos, 32, 111-118.
humilhação, a identidade destroçada, a Bourdieu, P., & Passeron, J.-C. (1975). A
personalidade desintegrada e a tendência a se reprodução. (R. Bairão, P. B. Garcia, A. &
autoculparem pelas situações vividas (Fanon, M. Baeta, Trads.). Rio de Janeiro: Francisco
1961/1968, p. 263). Por isso, esse psiquiatra Alves. (Trabalho original publicado em
nascido na Martinica recusa o argumento 1970).
comum entre seus colegas de que é preciso
levar em conta predisposições individuais, a Castel, R. (1987). A gestão dos riscos: da anti-
história psicológica, afetiva, familiar e psiquiatria à pós-psicanálise (C. Luz, Trad.)
biológica do paciente. Para ele, fazê-lo é Rio de Janeiro: Francisco Alves (Trabalho
reforçar preconceitos e a tendência a culpar a original publicado em 1981).
vítima, é escamotear o principal causador dos Chauí, M. (1980). Cultura e democracia: o
sofrimentos relatados: a desumanidade que discurso competente e outras falas. São
instala e mantém a colonização. Como Laing, Paulo: Moderna.
Fanon sabe que a inteligibilidade das condutas
exige que elas sejam vistas num contexto; que Coimbra, C. M. B. (1995). Os guardiães da
se trata de estudar situações e não apenas ordem: uma viagem pelas práticas psi no
processos patológicos em andamento dentro de Brasil do “milagre”. Rio de Janeiro:
indivíduos; que os contextos mais amplos não Oficina do Autor.
existem lá fora, em determinada periferia do Fanon, F. (1968). Os condenados da terra (J. L.
espaço social, mas estão nos interstícios de tudo de Mello, Trad.) Rio de Janeiro: Civilização
o que abrangem. Brasileira. (Trabalho original publicado em
Qualquer semelhança com concepções, 1961).
situações e práticas profissionais atuais num
Hamili, S. (1998a). “Prefácio”. In P. Nizan, Les
país desigual, injusto como o nosso, que
chiens de garde (pp. 5-15). Paris: Agone
sempre exerceu toda a sorte de violências
(Trabalho original publicado em 1998).
físicas e psíquicas imobilizadoras contra os
despossuídos, não terá sido mera coincidência. Hamili, S. (1998b). Os novos cães de guarda.
Se “o mundo é opaco para a consciência (G.L. de F. Teixeira, Trad.) São Paulo:
ingênua que se detém nas primeiras camadas do Vozes. (Trabalho original publicado em
real”; se “a opinião afasta a estranheza entre o 1998).
Sobre psicologia e violência 415

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1961).

Sobre a autora: Maria Helena Souza Patto: Docente do Instituto de Psicologia – USP. Coordenadora do
Grupo de Estudos sobre Temas Atuais da Educação, Instituto de Estudos Avançados (IEA-USP).

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