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Resumo
A partir de exemplos de práticas profissionais de psicólogos na área da educação escolar, e tomando
como pano de fundo a produção de conhecimento em sociedades fundadas em princípios
democráticos, mas marcadas por profundas e congênitas desigualdades sociais, o texto trata da adesão
das ciências humanas ao estabelecido, adesão que se dá por meio de teorias, conceitos e técnicas que,
ao naturalizarem homem e sociedade, participam da justificação da desigualdade social e de várias
formas de violência contra a cidadania.
Palavras-chave: Psicologia e violência, Ciências humanas e ideologia, Relações de poder.
Abstract
Based on examples of professional practices by psychologists working with school education, and
having as background the production of knowledge in societies grounded in democratic principles, but
marked by deep and congenital social inequalities, the text deals with the Humanities adhering to the
establishment by means of theories, concepts and professional practices that participate in the
justification of inequality and several forms of violence against citizenship as they naturalize man and
society.
Keywords: Psychology and violence, Humanities and ideology, Power relations.
venceriam os mais aptos, seja na escola, seja no mediante práticas escolares que mais
mundo do trabalho. E esta crença é tão antiga desqualificam outras formas de viver e de
quanto o país, fundado na ética protestante, pensar do que oferecem possibilidades reais de
base cultural da gênese do capitalismo segundo formação intelectual. Entre as deficiências
Weber (1920/1989) em A ética protestante e o apontadas, destaca-se nessa literatura científica
espírito do capitalismo. Pelo mesmo motivo, é a deficiência de linguagem, o código restrito de
antiga na América do Norte a presença da comunicação. A esse respeito, ouçamos Chauí
psicologia, cujas práticas de avaliação e (1980), comentando análise de Ecléa Bosi
classificação de indivíduos e grupos sobre o estilo popular de linguagem:
encontraram terreno mais do que propício num
país plantado na crença de que diferenças estamos habituados, dizia ela, a supor
individuais de capacidade explicam a que o “povo” tem um código perceptivo
desigualdade de condições de vida. Não por e linguístico restrito (eufemismo para
acaso, foi nos Estados Unidos que a psicologia encobrir palavras como inferior, pobre,
aplicada floresceu (Paicheler, 1992). estreito), pois tomamos nossos próprios
Inicialmente entendidas como genéticas, estas códigos como paradigmas e somos
diferenças foram, a partir dos anos de 1960, e incapazes de apreender a diferença de
por motivos políticos que não cabe desenvolver um outro código, conciso pela fala e
aqui, tomadas como fruto de diferentes expressivo pelo gesto, marcado pela
condições de estimulação ambiental. Esta fadiga, por uma relação com o trabalho
mudança de ênfase nos pólos hereditariedade- na forma de cansaço, numa exaustão que
meio não impediu, entretanto, que se determina a maneira de designar o
continuasse a defender a origem genética das espaço e viver o tempo. Porque já
diferenças individuais e étnicas, como o fez o sabemos o que é a consciência de classe
professor da Universidade de Harvard R. J. correta, tudo o que escapa ao nosso saber
Herrnstein, que, embora falando de dentro de serve apenas para afirmarmos a
uma sociedade geradora de privilégios e de existência de alienação ali onde
diferenças profundas de condições de vida, certamente não se encontra. (p. 47)
repôs a tese da predominância das capacidades A psicologia da carência cultural afastava-
humanas herdadas, realidade biogenética que se temporariamente do biologismo que a
forma grupos de excelência intelectual, rege a dominou por mais de um século e substituía as
mobilidade social e garante que portadores dos explicações genéticas, que lastrearam
quocientes intelectuais mais altos atinjam status concepções racistas, de forte e permanente
social e econômico privilegiado (Herrnstein, presença no imaginário social. Oficialmente, o
1971/1975). evolucionismo suplantou o darwinismo social.
No bojo dessa versão ambientalista, o que No discurso oficial de então, negros e pobres
se pode é tentar reverter, por meio de não eram tidos como inferiores geneticamente,
programas de educação compensatória, as pois podiam evoluir. Numa sociedade
supostas deficiências sensoriais e motoras, supostamente igualitária, bastava dar-lhes
intelectuais e neurológicas, verbais e morais, oportunidades educacionais. Nessas
emocionais e de ajustamento presentes entre as circunstâncias, os que continuassem perdedores
crianças das classes populares, para que possam teriam sua incapacidade comprovada. Voltava-
competir com as demais pelos melhores lugares se, assim, ao ponto de partida, embora nos anos
sociais. Programas que, partindo do de 1970 já houvesse críticas às pesquisas que
pressuposto do primitivismo (da deram força à crença na inferioridade psíquica
irracionalidade) da cultura popular, pretendem dos pobres e fundamentaram os programas de
democratizar a educação escolar e o mercado educação compensatória. Críticas que remetiam
de trabalho pelo exercício de “violência a desigualdade social à lógica das sociedades
simbólica”, tal como a entende Bourdieu e capitalistas industriais. Diante disso, é legítimo
Passeron (1975), pela imposição do habitus de perguntar se esta nova versão sobre o processo
classe da classe média (tida, nesta literatura, de produção da desigualdade social não foi
como sinônimo de classe dominante, dada a sua apenas uma nova expressão da crença na
dominância numérica!) – seus usos e costumes, inferioridade de pobres e não brancos, uma
crenças e estereótipos, valores e expectativas, forma sutil de repor o preconceito, até porque,
estilos de pensamento e de linguagem – nesse contexto teórico, ambiente é concebido
Sobre psicologia e violência 407
como produto da história natural, isento das Por isso, vale perguntar se na psicologia da
relações de poder historicamente engendradas pobreza não está ao mesmo tempo a pobreza e
pelos homens. a riqueza da psicologia. Pobre como produtora
Foi assim que o surgimento de uma de saber e, exatamente por isso, poderosa como
especialização – a psicologia – e de sua instrumento de justificação de uma sociedade
profissionalização criou um profissional tido atravessada de injustiça. Basta examinar laudos
como o único competente para dizer como as emitidos por psicólogos sobre alunos da rede
pessoas são, pois disporiam de teorias e de pública de ensino fundamental que apresentam
instrumentos científicos de avaliação, por dificuldades de escolarização para encontrar
suposto objetivos e neutros. Num mundo que fortes indícios disso. Neles, encontramos desde
“cultua patologicamente a cientificidade”, de absurdos como “o sujeito denota uma certa
“hipervalorização do conhecimento dito dissimulação do caráter, numa tentativa de
científico”, “o discurso competente é o discurso controle. Apresenta personalidade primitiva,
instituído”, é “a linguagem institucionalmente agindo mais por instinto do que pela razão” ou
permitida e autorizada”, é “a ciência como “a nível emocional, o paciente (...) tende
saber separado e como coisa privada” que “se também a apresentar dificuldades com a
instala e se conserva graças a uma regra que realidade do meio, com predomínio da vida
pode ser assim resumida: não é qualquer um instintiva”, até textos elaborados com termos e
que pode dizer qualquer coisa a qualquer outro jargões de uma psicologia psicométrica. No
em qualquer ocasião e em qualquer lugar. Com entanto, mesmo quando mais elaborados e no
esta regra, ele produz sua contra-face: os formato-padrão ensinado em cursos de
incompetentes sociais”. Estão dadas as psicologia, os laudos falam, com convicção
condições científicas para dissimular a “divisão autoritária, de um sujeito abstrato, reduzido a
social do trabalho sob a imagem da diferença números e a chavões vincados de arbitrariedade
de talentos e de inteligências” (Chauí, 1980, p. e preconceito; silenciam sobre a realidade
1-13, passim). Noutras palavras, Chauí (1980) social, a política educacional, o cotidiano
afirma que: escolar e podem, por isso, culpar a vítima,
situando invariavelmente no aluno e em seu
o discurso sábio e culto, enquanto ambiente familiar tomados em si mesmos a
discurso do universal, pretende unificar e origem das dificuldades escolares.
homogeneizar o social e o político, Nesses pareceres, não encontramos
apagando a existência efetiva das pessoas: os avaliados, como regra, não
contradições e das divisões que se pertencem a uma classe social; não se
exprimem como luta de classes. Este encontram numa instituição de ensino
apagamento se faz através de mil construída no interior de uma sociedade que a
recursos institucionais acerca dos quais determina; não vivem numa sociedade dividida,
podemos instruir-nos fartamente com a injusta, preconceituosa e violenta; não têm uma
leitura dos tratados de psicologia, história familiar e escolar; não têm uma vida
pedagogia e sociologia. O discurso fora da escola, não fazem parte de grupos de
grosseiro e grosso das elites tem pares onde brincam, dialogam, propõem,
exatamente a mesma finalidade, embora negociam – em suma, não têm experiências de
seus caminhos não sejam tão...civilizados vida, reduzidos que são a opiniões e
(p. 52). estereótipos incrustados na queixa escolar. A
julgar pelas deficiências que lhes atribuem
Há poucos anos, cruzei num corredor com psicólogos e professores, eles não teriam
um grupo de alunos da graduação do Instituto condições de sobreviver, muito menos em
de Psicologia da Universidade de São Paulo condições de vida em geral adversas. O que se
(IP/USP) que saía de uma sala de aplicação de tem é um feixe de deficiências deduzidas de seu
testes do PSA. Um deles exclamou: “Eu me desempenho na situação artificial e ameaçadora
sinto tão poderosa quando aplico um teste!” A da avaliação psicológica, sobretudo aos que já
moça tinha razão, pois é disto que se trata: de foram estigmatizados por avaliações
exercício de poder e da sedução que ele exerce peremptórias de competentes que os relegaram
numa sociedade hierarquizada e marcada pelo à condição de incapazes ou anormais.
autoritarismo das elites econômicas e Interessante notar que opiniões de professores e
intelectuais. pareceres de psicólogos geralmente convergem.
408 Patto, M. H. S.
As linhas da fala de uma professora dizem o Que ciência é esta que forma profissionais
mesmo que as entrelinhas de muitos laudos: que não questionam a competência que lhes é
atribuída para dizer sobre as pessoas, que não
“estas crianças vêm para a escola todas
se perguntam sobre a origem das ideias que
sujas, malcheirosas, a família não está
carregam e sobre as razões econômicas e
nem aí. Não têm o mínimo de noção de
políticas subjacentes à invenção das teorias e
espaço, coordenação, a lateralidade é
das aplicações profissionais da ciência que
toda atrapalhada. Algumas crianças não
praticam?
têm nada de discriminação visual, como
Que ciência é esta cujos profissionais não
é que eu posso alfabetizar? As histórias
podem e/ou não querem perceber que, quando
são de amargar: em casa tem pai
medem, classificam e redigem laudos para
bêbado, a mãe que espanca e vive cheia
subsidiar medidas de adaptação ao estabelecido
de amantes e o irmão drogado.”
ou de segregação, estão exercendo violência
Aderida “à opinião, principalmente à que que mantém o instituído, produz consentimento
está endossada pelo poder” (Bosi, 1992, p. e dá força aos que dominam?
118), a maior parte dos pareceres psicológicos Que ciência é esta que eterniza seus
que entopem arquivos de escolas, delegacias de instrumentos de medida, sem questionar os
ensino e de tantas outras instituições procedimentos que os construíram e as
disciplinares, nada mais faz do que dar concepções de inteligência e de normalidade
credibilidade a preconceitos de raça e de classe, que os presidem?
mesmo quando esses pareceres se valem de Que ciência é esta que invariavelmente
concepções caducas no campo das ciências culpa a vítima, imbuída da crença, tomada
humanas (por exemplo, a crença no como verdade inquestionável, de que os reveses
primitivismo dos não brancos) e de estereótipos que castigam os vitimados são consequência
verbais trazidos pela recente epidemia de livros natural de suas próprias características
de autoajuda (a psique humana reduzida a auto- psíquicas?
estima). E a credibilidade vem da condição do *
especialista, alçado à condição de único Psicólogos que exercem a profissão entre a
competente para dizer. É assim que a maioria opinião e o estereótipo aproximam-se das
dos laudos confirma queixas leigas e afirma o pessoas como se elas fossem coisas ou animais
que os solicitantes dos exames psicológicos e desconsideram a complexidade dos homens
querem ouvir. Ao agirem assim no âmbito como seres sociais historicamente construídos.
escolar, os profissionais da psicologia cometem Psicólogos assim ficam, eles também,
pequenos assassinatos, quando minam a reduzidos a coisas: tornam-se máquinas de
identidade do culpado, e crimes de lesa- gestão de riscos sociais, exercem a função de
cidadania, quando justificam a negação do cães de guarda do sistema.
direito à educação escolar. A primeira expressão – gestores de riscos – é
Diante deste quadro, é imperativo de Robert Castel na análise que fez das
perguntar: mutações da psicanálise e da psiquiatria
Que ciência é esta que reduz uma clássica nos centros comunitários de saúde
complexa questão social a problemas mental norte-americanos da década de 1970,
psíquicos? que instalaram práticas preventivas que se
Que ciência é esta que desconsidera as queriam inovadoras, mas que repunham
relações de poder numa sociedade dividida, práticas de controle e domesticação. Velhos
desigual, fundada na exploração e na opressão? vinhos em novas garrafas: mudaram as formas,
Que ciência é esta que não percebe que, continuaram os princípios e conceitos que
numa sociedade assim, ela é instrumento de gerenciam os riscos de desobediência que
justificação da exploração econômica e da permanentemente ameaçam a sociedade
desigualdade que esta produz? disciplinar. Novas psicotecnologias pós-
Que ciência é esta que não tem condições psiquiátricas e pós-psicanalíticas deram
teóricas de pensar o seu próprio pensamento do continuidade ao psicologismo e disseminaram
ponto de vista epistemológico e ético-político? novas práticas de administração social e
Que ciência é esta que desconsidera as individual supostamente neutras, mito
especificidades do tempo e do lugar em que foi reforçado por psicanalistas que insistiram na
inventada? neutralidade política da psicanálise. Surgem,
Sobre psicologia e violência 409
assim, novas formas de gestão social praticadas crítica da filosofia. A partir da questão da
por novos especialistas, que em outro lugar destinação das idéias, ele interroga a filosofia
denominei “mutações do cativeiro”. Segundo dominante na época, munido de indagações
Castel, assistimos, nas últimas décadas, ao fundamentais: a que ela serve? Quais as
advento de estratégias inéditas de relações possíveis entre a filosofia e os
gerenciamento de problemas sociais a partir da homens? O que ela faz pelos homens? O que
gestão das particularidades individuais que ela faz contra eles? A partir da tese de que há
passaram da instituição totalitária ao “inteligência contra o homem e a favor do
totalitarismo psicológico. No fundo, restos de homem” (Nizan, 1932/1998, p. 25), ele analisa
uma apropriação vulgar da psicanálise que sistemas filosóficos dominantes nas primeiras
agora se vê “mergulhada numa cultura décadas do século XX e encontra uma filosofia
psicológica que ela mesma ajudou a promover” fechada em si mesma, de costas para o mundo,
(Castel, 1981/1987, p. 15). A novidade não que se crê atemporal e faz reflexões
está, portanto, na administração autoritária das descarnadas, plenas de abstrações e inversões,
populações de risco, que continua diretamente sobre o Espírito, as Ideias, a Moral, o Bem
orquestrada pelo Estado, mas em técnicas pós- Supremo, a Razão, a Justiça. Seus criadores são
asilares que gerenciam fragilidades individuais filósofos idealistas alojados na universidade,
por meio de inovações aparentemente lúdicas: instituição cada vez mais anêmica, produtora de
exercícios de intensificação do “potencial uma filosofia-em-si, indiferente às misérias do
humano”, técnicas de desenvolvimento do mundo, que pensa um homem reificado. A isso
“capital relacional” segundo expressões usadas se contrapõe o jovem filósofo inconformado: “a
por Castel. e toda uma parafernália de exploração atual dos operários, a anarquia da
mercadorias oferecidas a consumidores que terra, a corrupção dos políticos, a miséria
buscam a felicidade e a sociabilidade perdidas. 1 sentimental em que todos estão em vias de
Diante disso, Castel (1981/1987) conclui: sucumbir não são desvios do destino de uma
humanidade-em-si.” (Nizan, 1998, p. 24).
A análise da cultura psicológica
Atento às misérias da época, entre as quais a
desemboca assim nessa terra de
miséria da academia e da filosofia, produtos e
ninguém, onde as fronteiras entre o
produtoras do vazio espiritual dos homens, ele
psicológico e o social se embaralham
declara: “há uma família de filósofos da qual
porque uma sociabilidade programada
sou inimigo”, entre eles Leon Brunschvicg,
por técnicas psicológicas e relacionais
filósofo idealista e espiritualista francês
representa o papel de substituto de um
influente no mundo político e universitário
social em crise” (p. 168). 2
naquele tempo e lugar. O “desgosto”, segundo
A expressão “cães de guarda” é o título de Hamili (1998a), é o sentimento dominante na
um ensaio de crítica da filosofia da autoria do geração de Nizan, única palavra escrita numa
filósofo francês Paul Nizan 3 e voltado para a folha de papel ao lado do corpo de René
Crevel, um jovem francês que participou do
1
Em Guardiães de Ordem (1995), Cecília Coimbra
movimento surrealista e que, ao suicidar-se,
percorre as “práticas psi” que floresceram no Brasil encarnou de modo dramático o mal-estar na
durante a ditadura militar de 1964. civilização dos intelectuais de seu tempo. 4
2
Em 1981, quando A gestão dos riscos foi *
publicado, a moda milionária da autoajuda ainda não
havia invadido o espaço editorial e a prática dos
psicólogos. A análise de Castel sobre as técnicas de
gestão das fragilidades individuais encontra Morreu em 1940, aos 35 anos de idade, na batalha
expressão perfeita nessa literatura e seus jargões que de Dunquerque, no início da Segunda Guerra
têm nos psicólogos consumidores privilegiados. Mundial.
3 4
Nizan, intelectual francês, nascido em 1905, foi Serge Hamili, filósofo e professor na Universidade
colega, na Escola Normal Superior, de Jean-Paul de Paris VIII, escreveu o Prefácio (Hamili, 1998a)
Sartre, Simone de Beauvoir, Simone Weil, membros deste livro de Nizan e é autor de Os novos cães de
da geração que se formou entre as duas grandes guarda (1998b), ensaio em que dá continuidade à
guerras e dedicou-se à militância política e à análise dos mecanismos de distorção da realidade
reflexão sobre temas políticos candentes naquele social e política pelos novos cães de guarda: os
período, como a miséria social, política e intelectual, jornalistas a serviço da produção do pensamento
a ascensão do nazismo e o neo-colonialismo. único em tempos de economia globalizada.
410 Patto, M. H. S.
O psiquiatra inglês Donald Laing, num Como exemplo deste olhar, trago um texto
texto que trata da difícil e polêmica relação que denuncia a brutalidade da colonização,
entre o psíquico e o social, fala da reinterpreta a psicologia do colonizado escrita
impossibilidade de dissociar interioridade e pelo colonizador, assinala a colaboração de
exterioridade, indivíduo e sociedade, eu e psiquiatras e psicólogos com a doutrinação e a
mundo em termos que permitem a crítica da tortura que corre nos porões da guerra colonial 5
psicologia da pobreza e a elaboração de uma e apresenta casos de distúrbios psíquicos
psicologia social do oprimido: surgidos num cenário de violência multiforme,
longa e extrema: a guerra de libertação da
Uma lição fundamental que quase todos Argélia (1954-1962), colônia francesa desde
os estudiosos das Ciências Sociais 1830. Trata-se de Os condenados da terra
aprenderam é que a inteligibilidade dos (1961), da autoria de Paul Nizan e prefaciado
acontecimentos socais exige que eles por Jean-Paul Sartre. 6
sempre sejam vistos num contexto que se Sartre percebe que Fanon não fala aos
estende espacial e temporalmente. (...) À franceses, mas dos franceses aos colonizados.
medida que partimos de micro-situações Sua voz é a de um africano, de um homem do
e nos dirigimos a macro-situações, Terceiro Mundo, de um colonizado que não
verificamos que a aparente está preocupado com a França, que não quer
irracionalidade do comportamento numa curá-la, nem fazer-lhe sugestões, mas
pequena escala assume certa forma de empenhado em oferecer aos colonizados um
inteligibilidade quando visto num diagnóstico da colonização que os municie na
contexto. Movemo-nos, por exemplo, da ação libertadora: “amiúde fala de vós, mas
aparente irracionalidade de um único nunca a vós.” (Sartre, 1961/1968, p. 5). Porta-
indivíduo ‘psicótico’ para a voz das análises de Fanon, o autor de Com a
inteligibilidade dessa irracionalidade morte na alma fala aos franceses da história
dentro do contexto da família. Por sua colonial como uma história de opressão e de
vez, a irracionalidade da família deve ser “hipocrisia liberal” de um país que prega o
situada no contexto de suas redes tempo todo a Liberdade, a Igualdade e a
circundantes, as quais devem ser vistas Fraternidade, mas invade, oprime, tortura e
no contexto de organizações e mata. Quando muito, seus representantes fazem
instituições ainda maiores. Esses propostas de aparente generosidade, como se
contextos mais amplos não existem lá não soubessem que “essa bela palavra sonora
fora, num lugar periférico do espaço só tem um sentido: estatuto outorgado” e que,
social: eles penetram nos interstícios de para esses escravos dos tempos modernos,
tudo o que abrangem. (...) Comecei “ninguém tem o poder nem o privilégio de dar
tentando ver através da densa opacidade nada a ninguém. Todos têm todos os direitos.”
dos acontecimentos sociais, estudando (Sartre, 1961/1968, p. 18). Um país que, ao
certas pessoas tachadas de psicóticas ou instituir-se como civilizador de homens
neuróticas, como as que vemos nos primitivos, muniu-se de teorias raciais que
hospitais de alienados, unidades
psiquiátricas e clínicas de pacientes não-
hospitalizados. Comecei a ver que estava 5
Coimbra (1995) analisa formas de colaboração,
envolvido no estudo de situações, e não com mão-de-ferro ou luva-de-pelica, com ciência ou
apenas de indivíduos. (...) O inconsciência, de profissionais da psicologia
comportamento dessa gente era brasileiros com a ditadura militar de 1964.
considerado como sinais de um processo 6
Nascido na Martinica, em 1925, colônia francesa
patológico em andamento dentro delas desde o séc. XVII, Fanon, filho de pai negro e mãe
(...) Uma pessoa não existe sem um mestiça, conheceu na pele a barbárie colonial.
contexto social; não se pode tirar uma Estudou medicina e formou-se em psiquiatria na
pessoa do seu contexto social e ainda França, em 1951, onde frequentou também cursos
considerá-la como pessoa ou agir em de literatura e filosofia e foi aluno de Merleau-
relação a ela como tal. E se não agimos Ponty. Em 1953, às vésperas da guerra de libertação,
para com outrem como pessoa, foi enviado pelo governo francês a um hospital na
Argélia, onde trabalhou até 1957, quando foi
despersonalizamo-nos a nós mesmos. expulso da Argélia, acusado de subversão pelos
(Laing, 1968, p. 15-17, passim). governantes franceses locais.
Sobre psicologia e violência 411
que abre a porta para a ideologização larga e discípulo desse professor encontrou traços de
funda. melancolia nos sujeitos examinados, mas não a
esperada tendência ao suicídio. Para resolver o
O mundo colonizado é um mundo
impasse teórico, deram continuidade à detração
maniqueísta. Não basta ao colono limitar
do nativo: sendo a melancolia causada por
fisicamente, com o auxílio da polícia
problemas de consciência moral que levam à
(...), o espaço do colonizado. Ilustrando o
autopunição, conclui-se pela carência de senso
caráter totalitário da exploração colonial,
moral do norte-africano, causada por debilidade
o colono faz do colonizado uma espécie
mental, por capacidade verbal reduzida, por
de quintessência do mal. (...) O indígena
impulsividade e agressividade natas, segundo a
é declarado impermeável à ética, ausente
semiologia da escola psiquiátrica de Argel.
de valores, negação dos valores. É,
Carentes de senso moral, não se sucidam,
ousemos confessá-lo, o inimigo dos
matam: são melancólicos homicidas.
valores. Nesse sentido, é o mal absoluto
Em 1935, o Dr. Porot compareceu ao
(...) depositário de forças maléficas,
Congresso dos Alienistas e Neurologistas de
instrumento inconsciente e irrecuperável
Língua Francesa, realizado em Bruxelas, para
de forças cegas. (...) Os costumes dos
defender uma tese envolta em credibildiade
colonizados, suas tradições, seus mitos,
científica: “o indígena africano, cujas
sobretudo seus mitos, são a própria
atividades superiores e corticais são pouco
marca desta indigência, desta depravação
evoluídas, é um ser primitivo cuja vida
constitucional. (Fanon, 1961/1968, p. 30-
essencialmente vegetativa é instintiva e dirigida
31)
principalmente por seu diencéfalo” (Porot,
Os intelectuais colonizados, sejam eles 1935, citado por Fanon, 1961/1968, p. 259). O
europeus ou nativos europeizados, “meninos que equivale a afirmar que, compartilhando
mimados ontem pelo colonialismo”, tornam-se com os vertebrados inferiores a predominância
cães de guarda do sistema no exercício de diencefálica, distancia-se da espécie humana,
cargos administrativos, técnicos e acadêmicos, cuja característica distintiva é a corticalização.
onde gerenciam riscos de vários modos. As De onde é legítimo concluir que, para o
formas mais civilizadas consistem na psiquiatra francês instalado na Argélia, os
disseminação da ideologia liberal reduzida ao nativos norte-africanos estão privados de
culto do eu, do individualismo como expressão córtex. Em 1939, ele voltou à carga: “o
de liberdade que lhes foi incutido na metrópole, primitivismo não é uma carência de
ênfase esta que conspira contra o nós, maturidade, uma parada observada no
desmobiliza a ação coletiva. Em cargos desenvolvimento do psiquismo intelectual (...)
universitários, esses intelectuais elaboram e Esse primitivismo não é somente resultante de
disseminam uma psicologia do colonizado. uma educação especial; tem fundamentos muito
Magistrados, policiais, advogados ou médicos, mais profundos, e acreditamos mesmo que tem
eles afirmam a presença de taras no povo seu substrato numa disposição particular da
argelino valendo-se de um discurso oficial arquitetura, pelo menos da hierarquização
supostamente comprovado pela ciência: os dinâmica dos centros nervosos”. (Porot, 1939,
nativos são "indolentes natos, mentirosos natos, citado por Fanon, 1961/1968, p. 259-260).
ladrões natos, criminosos natos" (Fanon, A confirmação científica das
1961/1968, p. 256), um discurso oficial possibilidades biologicamente limitadas do
“cientificamente estabelecido”. colonizado foi levada adiante em 1954 pelo Dr.
Pesquisa realizada por mais de trinta anos Carothers, um perito da Organização Mundial
sob a coordenação de um certo Prof. Porot, de Saúde que, em Psicologia normal e
docente de psiquiatria na Faculdade de Argel, patológica do africano, disparou: “o africano
com o objetivo identificar e explicar as utiliza muito pouco seus lóbulos frontais. Todas
modalidades do crime nos países do norte da as particularidades da psiquiatria africana
África, resultou no perfil do criminoso norte- podem ser relacionadas com uma preguiça
africano e tornou-se matéria do curso de frontal”. Não satisfeito, e sem deixar de lado a
psiquiatria na Universidade de Argel. Médicos comparação, concluiu: “o africano normal é um
jovens aprendiam que o norte-africano é europeu lobotomizado” (citado por Fanon, p.
agressivo, instável, insensato, impulsivo, 260). Sartre (1961/1968) decanta o espírito da
incapaz de pensamento cartesiano. Um coisa: “a ordem é rebaixar os habitantes do
Sobre psicologia e violência 413
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Sobre a autora: Maria Helena Souza Patto: Docente do Instituto de Psicologia – USP. Coordenadora do
Grupo de Estudos sobre Temas Atuais da Educação, Instituto de Estudos Avançados (IEA-USP).