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Uma coisa "estranha" no currículo: a teoria queer
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Seguindo na trilha da teorização femi- um absoluto cuja definição encerra-se em
nista sobre gênero, a teoria queer estende si mesma.A identidade é sempre uma rela-
a hipótese da construção social para o ção: o que eu sou só se define pelo que não
domínio da sexualidade. Não são apenas as sou; a definição de minha identidade é sem-
formas pelas quais aparecemos, pensamos, pre dependente da identidade do Outro.
agimos como homem ou como mulher Além disso, a identidade não é uma coisa
- nossa identidade de gênero - que são da natureza; ela é definida num processo
socialmente construídas, mas também as de significação: é preciso que, socialmente,
formas pelas quais vivemos nossa sexuali- lhe seja atribuído um significado. Como um
dade. Tal como ocorre com a identidade ato social, essa atribuição de significado
de gênero, a identidade sexual não é está, fundamentalmente, sujeita ao poder.
definida simplesmente pela biologia. Ela Alguns grupos sociais estão em posição de
tampouco tem qualquer coisa de fixo, impor seus significados sobre outros. Não
estável, definitivo. A identidade sexual é existe identidade sem significação. Não
também dependente da significação que existe significação sem poder. Aplicando
lhe é dada: ela é, tal como a identidade de esse raciocínio à questão da identidade
gênero, uma construção social e cultural. sexual, a definição da heterossexualidade
A teoria queer começa por proble- é inteiramente dependente da definição
matizar a identidade sexual considerada de seu Outro, a homossexualidade. Além
normal, ou seja, a heterossexualidade. Em disso, nesse processo, a homossexualidade
geral, é a identidade homossexual que é torna-se definida como um desvio da sexu-
,,
vista como um problema. A heterossexu- a1idade dominante, hegemônica, "norma1,
alidade é a norma invisível relativamente isto é, a heterossexualidade.
à qual as outras formas de sexualidade, A teoria queer, entretanto, quer ir além
sobretudo a homossexualidade, são vistas da hipótese da construção social da iden·
como um desvio, como uma anormalidade. tidade. Ela quer radicalizar a possibilidade
A teoria queer, seguindo os insights pós-es- do livre trânsito entre as fronteiras da
t~uturalistas sobre o processo de significa- identidade, a possibilidade de cruzamento
?ªº e_sobre a identidade, argumenta que a das fronteiras. Na hipótese da construção
identidade não é uma positividade, não é
social, a identidade acaba, afinal, se nd º
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fixada, estabilizada, pela significação, pela mológica. A teoria queer quer nos fazer
linguagem, pelo discurso. Com a introdução pensar queer (homossexual, mas também
do conceito de "performatividade", a teórica "diferente") e não straight (heterossexual,
queer Judith Butler quer enfatizar o fato de mas também "quadrado"): ela nos obriga a
que a definição da identidade sexual não considerar o impensável, o que é proibido
fica contida pelos processos discursivos pensar, em vez de simplesmente considerar
que buscam fixá-la. Nessa concepção, o pensável, o que é permitido pensar. É aqui
mesmo que provisoriamente, mesmo que entra a conotação ambígua do termo
que precariamente, nós somos aquilo que queer em inglês. O homossexual é o queer,
nossa suposta identidade define que somos. o estranho da sexualidade, mas essa estra-
Se a identidade é definida, entretanto, tam- nheza é virada contra a cultura dominante,
bém como uma performance, como aquilo hegemônica, para penetrar em territórios
que fazemos, sua definição torna-se muito proibidos de conhecimento e de identidade.
menos dependente de um núcleo, mesmo O queer se torna, assim, uma atitude episte-
que esse núcleo seja definido através de um mológica que não se restringe à identidade
processo discursivo de significação. O que e ao conhecimento sexuais, mas que se
eu faço num determinado momento pode estende para o conhecimento e a identidade
ser inteiramente diferente, até mesmo o de modo geral. Pensar queer significa ques-
oposto, daquilo que faço no momento tionar, problematizar, contestar, todas as
seguinte. É aqui que o travestismo, a mas- formas bem-comportadas de conhecimento
carada, a drag-queen tornam-se metáforas e de identidade. A epistemologia queer é,
para a possibilidade de subverter o confor- nesse sentido, perversa, subversiva, imper-
to, a ilusão e a prisão da identidade fixa. A tinente, irreverente, profana, desrespeitosa.
identidade, incluindo a identidade sexual, É a partir da teoria queer que autoras
torna-se uma viagem entre fronteiras. como Deborah Britzman, por exemplo,
A teoria queer não se resume, entretan- propõem uma pedagogia queer. Tal como
to, à afirmação da identidade homossexual, a teoria queer, a pedagogia queer não se
P<>r mais importante que esse objetivo pos- limitaria a introduzir questões de sexuali-
sa ser.Tal como o feminismo, a teoria queer dade no currículo ou a reivindicar que 0
efetua uma verdadeira reviravolta episte- currículo inclua materiais que combatam
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as atitudes homofóbicas. É claro que uma lógico uma questão que pertence ao nível
pedagogia queer estimulará que a questão institucional, social, cultural, histórico. A
da sexualidade seja seriamente tratada no pedagogia queer não objetiva simplesmente
currículo como uma questão legítima de incluir no currículo informações corretas
conhecimento e de identidade. A sexu- sobre a sexualidade; ela quer questionar
alidade, embora fortemente presente na os processos institucionais e discursivos,
escola, raramente faz parte do currículo. as estruturas de significação que definem,
Quando a sexualidade é incluída no currí- antes de mais nada, o que é correto e 0
culo, ela é tratada simplesmente como uma que é incorreto, o que é moral e o que é
questão de informação certa ou errada, imoral, o que é normal e o que é anormal.
em geral ligada a aspectos biológicos e A ênfase da pedagogia queer não está na
reprodutivos. Especificamente em relação informação, mas numa metodologia de
à homossexualidade, a pedagogia queer não análise e compreensão do conhecimento
quer simplesmente estimular uma atitude e da identidade sexuais.
de respeito ou tolerância à identidade ho- Tai como a teoria queer, de forma mais
mossexual. Ela tampouco quer estimular geral, a pedagogia queer também pretende
uma abordagem terapêutica, na qual a estender sua compreensão e sua análise da
ênfase estaria no tratamento individual identidade sexual e da sexualidade para a
do preconceito e da discriminação. A questão mais ampla do conhecimento. O
abordagem baseada nas noções de tole- currículo tem sido tradicionalmente con-
rância e do respeito deixa intocadas as cebido como um espaço onde se ensina a
categorias pelas quais a homossexualidade pensar, onde se transmite o pensamento,
tem sido definida, histórica e socialmente, onde se aprende o raciocínio e a racio~
como uma forma anormal de sexualidade: nalidade. Essa ênfase no pensamento e
ela apenas produz uma outra espécie de fortemente estimulada por uma pedagogia
binarismo ao admitir, como diz Deborah inspirada nas diversas formas de psicolo-
Britzman, as categorias do heterossexual gia e, mais recentemente, na psicologia
tolerante e do homossexual tolerado. Da construtivista. Num currículo inspirado
mesma forma, a abordagem terapêutica na teoria e na pedagogia queer, essa ênfase
transfere para o nível individual e psico- sofre um importante deslocamento. Para
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citar novamente Deborah Britzman, a Leituras
questão não é mais simplesmente: "como BRITZMAN, Deborah. "O que é esta coisa cha-
pensar?", mas: "o que torna algo pensá- mada amor?". Educação e realidade, 21 ( 1), 1996:
vel?". Examinar o que torna algo pensável p.71-96.
estimula, por sua vez, pensar o impensável. LOURO, Guacira L. (org.). O corpo educado. Pedago-
Um currículo inspirado na teoria queer gias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica,
1999.
é um currículo que força os limites das
epistemes dominantes: um currículo que
não se limita a questionar o conhecimento
como socialmente construído, mas que se
aventura a explorar aquilo que ainda não
foi construído.A teoria queer - esta coisa
"estranha" - é a diferença que pode fazer
diferença no currículo.
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O fim das metanarrativas: o pós-modernismo
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autônomo e em moldar o cidadão e a cida- Para a crítica pós-moderna, essas noções,
dã da moderna democracia representativa. ao invés de levar ao estabelecimento da
Éatravés desse sujeito racional, autônomo sociedade perfeita do sonho iluminista,
e democrático que se pode chegar ao ideal levaram ao pesadelo de uma sociedade
moderno de uma sociedade racional, pro- totalitária e burocraticamente organizada.
gressista e democrática. Nesse sentido, o Na história da Modernidade, em nome da
questionamento pós-modernista constitui razão e da racionalidade, frequentemente
um ataque à própria ideia de educação. se instituíram sistemas brutais e cruéis de
Mas quais são os pontos centrais do opressão e exploração. Tanto as estruturas
questionamento que o pós-modernismo estatais quanto as estruturas organizacionais
faz às noções modernas? O pós-modernis- das empresas capitalistas, supostamente
mo tem uma desconfiança profunda, antes construídas e geridas de acordo com os
de mais nada, relativamente às pretensões critérios da razão e da racionalidade, produ-
totalizantes de saber do pensamento mo- zem apenas sofrimento e infelicidade.Visto
derno. Na sua ânsia de ordem e controle, a da perspectiva pós-modernista, o passivo da
perspectiva social moderna busca elaborar ideia de razão é bem maior do que seu ativo.
teorias e explicações que sejam as mais O pós-modernismo também coloca em
abrangentes possíveis, que reúnam num dúvida a noção de progresso que está no
único sistema a compreensão total da es- próprio centro da concepção moderna de
trutura e do funcionamento do universo e sociedade. O prestígio dessa noção pode
do mundo social. No jargão pós-moderno, ser medido pelo prestígio do adjetivo
o pensamento moderno é particularmente correspondente: "progressista". Para 0
adepto das "grandes narrativas", das "nar- pós-modernismo, entretanto, o progresso
rativas mestras". As "grandes narrativas" não é algo necessariamente desejável ou
são a expressão da vontade de domínio e benigno. Outra vez, sob o signo do con-
controle dos modernos. trole e do domínio sobre a natureza e 0
De forma relacionada, o pós-moder- outro, o avanço constante da ciência e d~
nismo questiona as noções de razão e de tecnologia, apesar dos evidentes benefi-
racionalidade que são fundamentais para cios, tem resultado, também, em certos
a perspectiva iluminista da Modernidade. subprodutos claramente indesejáveis.
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Filosoficamente, o pensamento moder- moderno é guiado unicamente por sua
no é estreitamente dependente de certos razão e por sua racionalidade. O sujeito
princípios considerados fundamentais, moderno é fundamentalmente centrado: ele
últimos e irredutíveis. Em geral, esses prin- está no centro da ação social e sua cons-
cípios se baseiam nalguma noção humanista ciência é o centro de suas próprias ações.
de que o ser humano tem certas caracte- O sujeito da Modernidade é unitário: sua
rísticas essenciais, as quais devem servir de consciência não admite divisões ou contra-
base para a construção da sociedade. Eles dições.Além disso, seguindo Descartes, ele
constituem absolutos - axiomas inquestio- é identitário: sua existência coincide com
náveis. No jargão pós-modernista, por se seu pensamento.Aproveitando-se de várias
basear nessas "fundações", o pensamento análises sociais contemporâneas, entre elas
moderno é qualificado como "fundacional". a psicanálise e o pós-estruturalismo, todas
Do ponto de vista do pós-modernismo, elas desconfiadas do sujeito moderno, o
entretanto, não há nada que justifique pri- pós-modernismo coloca em dúvida sua au-
vilegiar esses princípios em detrimento de tonomia, seu centramento e sua soberania.
outros. Embora sejam considerados como Para o pós-modernismo, seguindo Freud
últimos e transcendentais, eles são tão con- e Lacan, o sujeito não converge para um
tingentes, arbitrários e históricos quanto centro, supostamente coincidente com sua
quaisquer outros. O pós-modernismo é consciência. Além disso, o sujeito é funda-
radicalmente antifundacional. mentalmente fragmentado e dividido. Para a
O pós-modernismo reserva um de seus perspectiva pós-modernista, nisso inspirada
mais fulminantes ataques ao sujeito racional, nos insights pós-estruturalistas,o sujeito não
livre, autônomo, centrado e soberano da é o centro da ação social. Ele não pensa, fala
e produz: ele é pensado, falado e produzido.
Modernidade. Esse sujeito é o correlativo
Ele é dirigido a partir do exterior: pelas
do privilégio concedido pela Modernidade
estruturas, pelas instituições, pelo discurso.
ao domínio da razão e da racionalidade.
Enfim, para o pós-modernismo, o sujeito
No quadro epistemológico traçado pelo
moderno é uma ficção.
pensamento moderno, o sujeito está sobe-
ranamente no controle de suas ações: ele O pós-modernismo não se limita,
é um agente livre e autônomo. O sujeito entretanto, a atacar os fundamentos do
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pensamento moderno. Inspirado por sua não é difícil verificar que a cena social e
vertente estética, o pós-modernismo cultural contemporânea apresenta mui-
tem um estilo que em tudo se contrapõe tas das características que são descritas
à linearidade e à aridez do pensamento na literatura pós-moderna. Sobretudo,
moderno. O pós-modernismo privilegia o os "novos" meios de comunicação e
pastiche, a colagem, a paródia e a ironia; informação parecem corporificar mui-
ele não rejeita simplesmente aquilo que tos dos elementos que são, nessa lite-
critica: ele, ambígua e ironicamente, imita, ratura, descritos como pós-modernos:
incorpora, inclui. O pós-modernismo não fragmentação, hibridismo, mistura de
apenas tolera, mas privilegia a mistura, o gêneros, pastiche, colagem, ironia. Pode-
hibridismo e a mestiçagem - de culturas, se, inclusive, observar a emergência de
de estilos, de modos de vida. O pós-mo- uma identidade que se poderia chamar
dernismo prefere o local e o contingente de pós-moderna: descentrada, múltipla,
ao universal e ao abstrato. O pós-moder- fragmentada. As instituições e os regimes
nismo inclina-se para a incerteza e a dúvida, políticos que tradicionalmente encarna-
desconfiando profundamente da certeza e ram os ideais modernos do progresso e
das afirmações categóricas. No lugar das da democracia parecem crescentemente
grandes narrativas e do "objetivismo" do desacreditados. A saturação da base
pensamento moderno, o pós-modernismo de conhecimentos e de informações
prefere o "subjetivismo" das interpretações disponíveis parece ter contribuído para
parciais e localizadas. O pós-modernismo solapar os sólidos critérios nos quais se
rejeita distinções categóricas e absolutas baseava a autoridade e a legitimidade da
como a que o modernismo faz entre "alta" epistemologia oficial. A ciência e a tec-
e "baixa" cultura. No pós-modernismo,
nologia já não encontram em si próprias
dissolvem-se também as rígidas distinções
a justificação de que antes gozavam. O
entre diferentes gêneros: entre filosofia e li-
cenário é claramente de incerteza, dúvida
teratura, entre ficção e documentário, entre
e indeterminação. A cena contemporânea
textos literários e textos argumentativos.
é - em termos políticos, sociais, culturais,
Mesmo que não se aceitem certos epistemológicos - nitidamente descentra-
elementos da perspectiva pós-moderna,
da, ou seja, pós-moderna.
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Nesse contexto, parece haver uma pós-modernismo desconfia profunda-
incompatibilidade entre o currículo mente dos impulsos emancipadores e
existente e o pós-moderno. O currícu- libertadores da pedagogia crítica. Em
lo existente é a própria encarnação das última análise, na origem desses impul-
características modernas. Ele é linear, sos está a mesma vontade de domínio
sequencial, estático. Sua epistemologia e controle da epistemologia moderna.
é realista e objetivista. Ele é disciplinar e A pedagogia tradicional e a pedagogia
segmentado. O currículo existente está crítica acabam convergindo em uma
baseado numa separação rígida entre genealogia moderna comum.
"alta" cultura e "baixa" cultura, entre O pós-modernismo empurra a pers-
conhecimento científico e conhecimento pectiva crítica do currículo para os seus
cotidiano. Ele segue fielmente o script das limites. Ela é desalojada de sua confor-
grandes narrativas da ciência, do trabalho tável posição de vanguarda e colocada
capitalista e do estado-nação. No centro numa incômoda defensiva. O pós-mo-
do currículo existente está o sujeito racio- d ern ismo, de certa forma, constitui
nal, centrado e autônomo da Modernidade. uma radicalização dos questionamentos
Da perspectiva pós-moderna, o pro- lançados às formas dominantes de co-
blema não é apenas o currículo existente; nhecimento pela pedagogia crítica. Em
é a própria teoria crítica do currículo que sua crítica do currículo existente, a pe-
é colocada sob suspeita.A teorização crí- dagogia crítica não deixava de supor um
tica da educação e do currículo segue, em cenário em que ainda reinava uma certa
linhas gerais, os princípios da grande narra- certeza. Com sua ênfase na emancipa-
tiva da Modernidade.A teorização crítica ção e na libertação, a pedagogia crítica
é ainda dependente do universalismo, continuava apegada a um certo funda-
do essencialismo e do fundacionalismo cionalismo. O pós-modernismo acaba
do pensamento moderno. A teorização com qualquer vanguardismo, qualquer
crítica do currículo não existiria sem o certeza e qualquer pretensão de eman-
pressuposto de um sujeito que, através cipação. O pós-modernismo assinala 0
de um currículo crítico, se tornaria, fim da pedagogia crítica e o começo da
finalmente, emancipado e libertado. O pedagogia pós-crítica.
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Leituras
MOREIRA, Antonio Flavio B. Currículo, utopia e
pós-modernidade. ln Antonio F. B. Moreira
(org.) Currículo: questões atuais. Campinas: Papi-
rus, 1997: p.9-28.
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