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O currículo como narrativa étnica e racial

A teorização crítica sobre o currículo noritários. Embora muitas dessas análises


esteve inicialmente concentrada, como sa- se concentrassem nos mecanismos sociais
bemos, na análise da dinâmica de classe, da e institucionais que supostamente estavam
qual as chamadas "teorias da reprodução" na raiz desse fracasso, elas, em geral, dei-
constituem um bom exemplo. Tornou-se xavam de questionar o tipo de conheci-
logo evidente, entretanto, que as relações mento que estava no centro do currículo
de desigualdade e de poder na educação que era oferecido às crianças e jovens
e no currículo não podiam ficar restritas pertencentes àqueles grupos. Para essas
à classe social. Como análise política e perspectivas, não havia nada de "errado"
sociológica, a teoria crítica do currículo com o currículo em si, que deixava, assim,
tinha que levar em conta também as de- de ser problematizado. Foi apenas a partir
sigualdades educacionais centradas nas de uma segunda fase, surgida sobretudo
relações de gênero, raça e etnia. Ainda a partir das análises pós-estruturalistas e
mais importante era descrever e explicar dos Estudos Culturais, que o próprio cur-
as complexas inter-relações entre essas di- rículo passou a ser problematizado como
ferentes dinâmicas de hierarquização social: sendo racialmente enviesado. É também
não se tratava simplesmente de somá-las. nas análises mais recentes que os próprios
Tal como ocorrera com a classe e com conceitos de "raça" e "etnia" se tornam
o gênero, as teorias críticas focalizadas na crescentemente problematizados.
dinâmica da raça e da etnia também se No início de um debate publicado na
concentraram, inicialmente, em questões revista estadunidense Harper's Magazine,
de acesso à educação e ao currículo. A entre Cornel West, um intelectual negro,
questão consistia em analisar os fatores e Jorge Klor de Alva, um antropólogo de
que levavam ao consistente fracasso es- descendência mexicana, ambos estadu-
colar das crianças e jovens pertencentes a nidenses, lemos o seguinte diálogo (Earl
grupos étnicos e raciais considerados mi- Shorris é o intermediador): Earl Shorris
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- Para começar, gostaria de perguntar: A identidade étnica e racial é, desde 0
Cornel, você é um homem negro? Cornel começo, uma questão de saber e poder.
West - Sim. Earl Shorris - Jorge, você A própria história do termo mais forte-
acha que Cornel é um homem negro? mente carregado e polêmico, o de "raça",
Jorge K. de Alva - Não, por enquanto. está estreitamente ligada às relações de
Eles passam a expor, em seguida, as ra- poder que opõem o homem branco eu-
zões de suas respectivas respostas. Ao final ropeu às populações dos países por ele
do debate, o intermediador volta a repetir a colonizados. Consolidado no século XIX,
mesma pergunta: Earl Shorris - Vamos ver como uma forma de classificação suposta-
se aconteceu alguma coisa nesta conversa. mente científica da variedade dos grupos
Cornel, você é um homem negro? Cornel humanos, com base em características
West- É claro que sim. Earl Shorris - Jorge, físicas e biológicas, o termo "raça" tor-
ele é um homem negro? Jorge K. de Alva - É nou-se, nesse sentido, crescentemente
claro que não. desacreditado. A moderna genética demons-
A conversa entre os dois intelectuais trou que não existe nenhum conjunto de
ilustra algumas das dificuldades e com- critérios físicos e biológicos que autorize
plexidades da identidade racial e étnica. a divisão da humanidade em qualquer nú-
Jorge K. de Alva estava tentando enfatizar mero determinado de "raças''. A mesma
o caráter histórico e construído das cate- observação vale para o termo "etnia".Até
gorias raciais. Cornel West, sem deixar de mesmo a oposição que frequentemente
reconhecer esse caráter, tentava demons- se faz entre "raça" e "etnia" perde, dessa
trar a importância política e estratégica do perspectiva, o sentido. Em geral, reser-
sentimento de identificação étnica e racial. va-se o termo "raça" para identificações
Ambas as perspectivas podem ser encon- baseadas em caracteres físicos como a cor
tradas na teorização social contemporânea da pele, por exemplo, e o termo " etnia ."
sobre raça e etnia. É precisamente nessa para identificações baseadas em caract~-
difícil problemática que se inserem as te- rísticas supostamente mais culturais, tais
orizações críticas contemporâneas sobre como religião, modos de vida, língua ~te.
currículo preocupadas com a identidade A confusão causada por essa problemáti~a
étnica e racial. distinção é tão grande que em certas ana-
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lises "raça" é considerado o termo mais tal como a identidade, não é um fato, nem
geral, abrangendo o de "etnia", enquanto uma coisa.A diferença, assim como a iden-
que em outras análises é justamente tidade, é um processo relacional. Diferença
o contrário. Na primeira perspectiva, e identidade só existem numa relação de
as etnias seriam subconjuntos de uma mútua dependência. O que é (a identida-
determinada raça; na segunda, a "etnia" de) depende do que não é (a diferença) e
seria mais abrangente que "raça" por vice-versa. É por isso que a teoria social
compreender, além das características contemporânea sobre identidade cultural
físicas definidoras da raça, também carac- e social recusa-se a simplesmente descre-
terísticas culturais. Dadas as dificuldades ver ou celebrar a diversidade cultural. A
dessa distinção, grande parte da literatura diversidade tampouco é um fato ou uma
simplesmente utiliza os dois termos de coisa. Ela é o resultado de um processo
forma equivalente. relacional - histórico e discursivo - de
O que essa discussão demonstra é construção da diferença.
precisamente o caráter cultural e dis- Éatravés do vínculo entre conhecimen-
cursivo de ambos os termos. O fato de to, identidade e poder que os temas da
que o termo "raça" não tenha nenhum raça e da etnia ganham seu lugar na teoria
referente "físico", "biológico", "real", não curricular. O texto curricular, entendido
o torna menos "real" em termos culturais aqui de forma ampla - o livro didático e
e sociais. Por outro lado, na teoria social paradidático, as lições orais, as orientações
contemporânea, sobretudo naquela inspi- curriculares oficiais, os rituais escolares,
rada pelo pós-estruturalismo, raça e etnia as datas festivas e comemorativas - está
tampouco podem ser considerados como recheado de narrativas nacionais, étnicas e
construtos culturais fixos, dados, definiti- raciais. Em geral, essas narrativas celebram
vamente estabelecidos. Precisamente por os mitos da origem nacional, confirmam
dependerem de um processo histórico o privilégio das identidades dominantes
e discursivo de construção da diferença, e tratam as identidades dominadas como
raça e etnia estão sujeitas a um constante exóticas ou folclóricas. Em termos de
processo de mudança e transformação. Na representação racial, o texto curricular
teoria social contemporânea, a diferença, conserva, de forma evidente, as marcas
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da herança colonial. O currículo é, sem de questioná-las. Quais são os mecanismos
dúvida, entre outras coisas, um texto de construção das identidades nacionais,
racial.A questão da raça e da etnia não é raciais, étnicas? Como a construção da
simp1esmente um " tema transversaI": e 1a identidade e da diferença está vinculada
é uma questão central de conhecimento, a relações de poder? Como a identidade
poder e identidade. O conhecimento sobre dominante tornou-se a referência invisível
raça e etnia incorporado no currículo não através da qual se constroem as outras
pode ser separado daquilo que as crianças identidades como subordinadas? Quais são
e os jovens se tornarão como seres sociais. os mecanismos institucionais responsáveis
A questão torna-se, então: como descons- pela manutenção da posição subordinada
truir o texto racial do currículo, como de certos grupos étnicos e raciais? Um
questionar as narrativas hegemônicas de currículo centrado em torno desse tipo
identidade que constituem o currículo? de questões evitaria reduzir o multicul-
Uma perspectiva crítica buscaria incor- turalismo a uma questão de informação.
porar ao currículo, devidamente adapta- Um currículo multiculturalista desse tipo
das, aquelas estratégias de desconstrução deixaria de ser folclórico para se tornar
das narrativas e das identidades nacionais, profundamente político.
étnicas e raciais que têm sido desenvol- Um currículo crítico inspirado nas
vidas nos campos teóricos do pós-estru- teorias sociais que questionam a constru-
turalismo, dos Estudos Culturais e dos ção social da raça e da etnia também evi-
Estudos Pós-coloniais. Ela não procederia taria tratar a questão do racismo de forma
por simples operação de adição, através simplista. Em primeiro lugar, dessa pers•
da qual o currículo se tornaria "multicul- pectiva, o racismo não pode ser conce•
tural" pelo simples acréscimo de informa- bido simplesmente como uma questão
ções superficiais sobre outras culturas e de preconceito individual. O racismo é
identidades. Uma perspectiva crítica de parte de uma matriz mais ampla de es-
currículo buscaria lidar com a questão truturas institucionais e discursivas que
da diferença como uma questão histórica não podem simplesmente ser reduzidas ª
e política. Não se trata simplesmente de atitudes individuais.Tratar o racismo como
celebrar a diferença e a diversidade, mas questão individual leva a uma pedagogia
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e a um currículo centrados numa sim- Na análise cultural contemporânea, a
ples "terapêutica" de atitudes individuais questão do racismo não pode ser analisada
consideradas erradas. O foco de uma tal sem o conceito de representação. Nas
estratégia passa a ser o "racista" e não o análises tradicionais do racismo, o que se
"racismo". Um currículo crítico deveria, contrapõe ao racismo é uma "imagem ver-
ao contrário, centrar-se na discussão das dadeira" da identidade inferiorizada pelo
causas institucionais, históricas e discur- racismo. O racismo é, fundamentalmente,
sivas do racismo. É claro que as atitudes nessa perspectiva, uma descrição falsa da
racistas individuais devem ser questionadas verdadeira identidade que ele descreve
e criticadas, mas sempre como parte da de forma distorcida. Na crítica cultural
formação social mais ampla do racismo. recente, não se trata de uma questão de
Tratar o racismo como questão institu- verdade e falsidade, mas de uma questão
cional e estrutural não significa, entretanto, de representação que, por sua vez, não
ignorar sua profunda dinâmica psíquica. pode ser desligada de questões de poder.
A atitude racista é o resultado de uma A representação é sempre inscrição, é
complexa dinâmica da subjetividade que sempre uma construção linguística e dis-
inclui contradições, medos, ansiedades, cursiva dependente de relações de poder.
resistências, cisões. Aqui, torna-se útil a O oposto da representação racista de uma
compreensão pós-estruturalista da subje- determinada identidade racial não é sim-
tividade como contraditória, fragmentada, plesmente uma identidade "verdadeira",
cindida e descentrada. O racismo é parte de mas uma outra representação, feita a partir
uma economia do afeto e do desejo feita, de outra posição enunciativa na hierarquia
em grande parte, de sentimentos que po- das relações de poder. Um currículo crí-
dem ser considerados "irracionais". Como tico que se preocupasse com a questão
consequência, um currículo anti-racista do racismo poderia precisamente colocar
não pode ficar limitado ao fornecimento de no centro de suas estratégias pedagógicas
informações racionais sobre a "verdade" do a noção de representação tal como defi-
racismo. Sem ser terapêutico, um currículo nida pelos Estudos Culturais. Essa noção
anti-racista não pode deixar de ignorar a permitiria deslocar a ênfase de uma preo-
psicologia profunda do racismo. cupação realista com a verdade para uma
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preocupação política com as formas pelas Leituras
quais a identidade é construída através da KING, Joyce E. "A passagem média revisitada: a
representação. educação para a liberdade humana e a crítica
epistemológica feita pelos estudos negros".
O que um currículo critico deveria ln SILVA, Luiz H. et alii (orgs.). Novos mapas
evitar, de todas as formas, seria uma culturais, novas perspectivas educacionais. Porto
abordagem essencialista da questão da Alegre: Sulina, 1996: p.75-1 O1.
identidade étnica e racial. Não é suficien- LIMA, Ivan C. e ROMÃO,J. (orgs.). Negros e currículo.
te evitar simplesmente as formas mais Florianópolis: Núcleo de Estudos Negros, 1997.
evidentes de essencialismo, como aquelas LIMA, Ivan C., ROMÃO, Jeruse e SILVEIRA, Sônia
fundamentadas na biologia, por exemplo. M. Os negros, os conteúdos escolares e a diversi-
É preciso questionar também formas mais dade cultural. Florianópolis: Núcleo de Estudos
sutis de essencialismo, como aquela que Negros, 1998.
se manifesta através do essencialismo MEYER, Dagmar E. "Alguns são mais iguais que os
cultural. Embora não reduza a identidade outros: etnia, raça e nação em ação no currículo
étnica e racial a seus aspectos biológicos, escolar". ln SILVA, Luiz H. da (org.). A escola
o essencialismo cultural concebe a identi- cidadã no contexto da globalização. Petrópolis:
Vozes, 1998: p.369-380.
dade simplesmente como a expressão de
alguma propriedade cultural intrínseca dos SILVA, Luiz H. da (org.).A escola cidadã no contexto da
diferentes grupos étnicos e raciais. Nessa globalização. Petrópolis:Vozes, 1998: p.381-396.
concepção a identidade, embora cultural, SILVA, Petronilha G. e. "Espaços para educação das
é vista como fixa e absoluta. No centro de relações interétnicas: contribuições da produção
científica e da prática docente, entre gaúchos,
uma perspectiva crítica de currículo deve-
sobre negro e educação". ln WEST, Cornel.
ria estar uma concepção de identidade que
Questão de raça. São Paulo: Cia. das Letras, 1994·
a concebesse como histórica, contingente
e relacional. Para uma perspectiva crítica,
não existe identidade fora da história e da
representação.

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Uma coisa "estranha" no currículo: a teoria queer

A teoria queer representa, de certa for- Através da "estranheza", quer-se perturbar


ma, uma radicalização do questionamento a tranquilidade da "normalidade".
da estabilidade e da fixidez da identidade A teoria feminista tinha, através do con-
feito pela teoria feminista recente. A teo- ceito de gênero, problematizado as con-
ria queer surge, em países como Estados cepções que viam as identidades masculina
Unidos e Inglaterra, como uma espécie de e feminina como biologicamente definidas
unificação dos estudos gays e lésbicos.Antes ou, na melhor das hipóteses, como forma-
de mais nada, o termo expressa, em inglês, das por um núcleo essencial, fixo, estável,
uma ambiguidade que é convenientemente de qualquer forma dependente de caracte-
explorada pelo movimento queer. Histori- rísticas biológicas. A teoria feminista argu-
camente, o termo queer tem sido utilizado mentava não apenas que nossa identidade
para se referir, de forma depreciativa, às como homem ou como mulher não podia
pessoas homossexuais, sobretudo do sexo ser reduzida à biologia, que tinha uma
masculino. Mas o termo significa também, importante dimensão cultural e social,
de forma não necessariamente relacionada mas que as próprias concepções do que
às suas conotações sexuais, "estranho", era considerado puramente biológico, físico
"esquisito", "incomum", "fora do normal", ou corporal estavam sujeitas a um processo
"excêntrico". O movimento homossexual, histórico de construção social. Nem sequer
numa reação à histórica conotação negativa a biologia podia ser subtraída ao jogo da
do termo, recupera-o, então, como uma significação. O conceito de gênero foi criado
forma positiva de autoidentificação. Além precisamente para enfatizar o fato de que as
disso.aproveitando-se do outro significado,o identidades masculina e feminina são histó-
de"estranho",o termo queerfunciona como rica e socialmente produzidas. É suficiente
uma declaração política de que o objetivo da observar como sua definição varia ao longo
teoria queer é o de complicar a questão da da história e entre as diferentes sociedades
identidade sexual e, indiretamente, também para compreender que elas não têm nada
a questão da identidade cultural e social. de fixo, de essencial ou de natural.

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Seguindo na trilha da teorização femi- um absoluto cuja definição encerra-se em
nista sobre gênero, a teoria queer estende si mesma.A identidade é sempre uma rela-
a hipótese da construção social para o ção: o que eu sou só se define pelo que não
domínio da sexualidade. Não são apenas as sou; a definição de minha identidade é sem-
formas pelas quais aparecemos, pensamos, pre dependente da identidade do Outro.
agimos como homem ou como mulher Além disso, a identidade não é uma coisa
- nossa identidade de gênero - que são da natureza; ela é definida num processo
socialmente construídas, mas também as de significação: é preciso que, socialmente,
formas pelas quais vivemos nossa sexuali- lhe seja atribuído um significado. Como um
dade. Tal como ocorre com a identidade ato social, essa atribuição de significado
de gênero, a identidade sexual não é está, fundamentalmente, sujeita ao poder.
definida simplesmente pela biologia. Ela Alguns grupos sociais estão em posição de
tampouco tem qualquer coisa de fixo, impor seus significados sobre outros. Não
estável, definitivo. A identidade sexual é existe identidade sem significação. Não
também dependente da significação que existe significação sem poder. Aplicando
lhe é dada: ela é, tal como a identidade de esse raciocínio à questão da identidade
gênero, uma construção social e cultural. sexual, a definição da heterossexualidade
A teoria queer começa por proble- é inteiramente dependente da definição
matizar a identidade sexual considerada de seu Outro, a homossexualidade. Além
normal, ou seja, a heterossexualidade. Em disso, nesse processo, a homossexualidade
geral, é a identidade homossexual que é torna-se definida como um desvio da sexu-
,,
vista como um problema. A heterossexu- a1idade dominante, hegemônica, "norma1,
alidade é a norma invisível relativamente isto é, a heterossexualidade.
à qual as outras formas de sexualidade, A teoria queer, entretanto, quer ir além
sobretudo a homossexualidade, são vistas da hipótese da construção social da iden·
como um desvio, como uma anormalidade. tidade. Ela quer radicalizar a possibilidade
A teoria queer, seguindo os insights pós-es- do livre trânsito entre as fronteiras da
t~uturalistas sobre o processo de significa- identidade, a possibilidade de cruzamento
?ªº e_sobre a identidade, argumenta que a das fronteiras. Na hipótese da construção
identidade não é uma positividade, não é
social, a identidade acaba, afinal, se nd º
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fixada, estabilizada, pela significação, pela mológica. A teoria queer quer nos fazer
linguagem, pelo discurso. Com a introdução pensar queer (homossexual, mas também
do conceito de "performatividade", a teórica "diferente") e não straight (heterossexual,
queer Judith Butler quer enfatizar o fato de mas também "quadrado"): ela nos obriga a
que a definição da identidade sexual não considerar o impensável, o que é proibido
fica contida pelos processos discursivos pensar, em vez de simplesmente considerar
que buscam fixá-la. Nessa concepção, o pensável, o que é permitido pensar. É aqui
mesmo que provisoriamente, mesmo que entra a conotação ambígua do termo
que precariamente, nós somos aquilo que queer em inglês. O homossexual é o queer,
nossa suposta identidade define que somos. o estranho da sexualidade, mas essa estra-
Se a identidade é definida, entretanto, tam- nheza é virada contra a cultura dominante,
bém como uma performance, como aquilo hegemônica, para penetrar em territórios
que fazemos, sua definição torna-se muito proibidos de conhecimento e de identidade.
menos dependente de um núcleo, mesmo O queer se torna, assim, uma atitude episte-
que esse núcleo seja definido através de um mológica que não se restringe à identidade
processo discursivo de significação. O que e ao conhecimento sexuais, mas que se
eu faço num determinado momento pode estende para o conhecimento e a identidade
ser inteiramente diferente, até mesmo o de modo geral. Pensar queer significa ques-
oposto, daquilo que faço no momento tionar, problematizar, contestar, todas as
seguinte. É aqui que o travestismo, a mas- formas bem-comportadas de conhecimento
carada, a drag-queen tornam-se metáforas e de identidade. A epistemologia queer é,
para a possibilidade de subverter o confor- nesse sentido, perversa, subversiva, imper-
to, a ilusão e a prisão da identidade fixa. A tinente, irreverente, profana, desrespeitosa.
identidade, incluindo a identidade sexual, É a partir da teoria queer que autoras
torna-se uma viagem entre fronteiras. como Deborah Britzman, por exemplo,
A teoria queer não se resume, entretan- propõem uma pedagogia queer. Tal como
to, à afirmação da identidade homossexual, a teoria queer, a pedagogia queer não se
P<>r mais importante que esse objetivo pos- limitaria a introduzir questões de sexuali-
sa ser.Tal como o feminismo, a teoria queer dade no currículo ou a reivindicar que 0
efetua uma verdadeira reviravolta episte- currículo inclua materiais que combatam

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as atitudes homofóbicas. É claro que uma lógico uma questão que pertence ao nível
pedagogia queer estimulará que a questão institucional, social, cultural, histórico. A
da sexualidade seja seriamente tratada no pedagogia queer não objetiva simplesmente
currículo como uma questão legítima de incluir no currículo informações corretas
conhecimento e de identidade. A sexu- sobre a sexualidade; ela quer questionar
alidade, embora fortemente presente na os processos institucionais e discursivos,
escola, raramente faz parte do currículo. as estruturas de significação que definem,
Quando a sexualidade é incluída no currí- antes de mais nada, o que é correto e 0
culo, ela é tratada simplesmente como uma que é incorreto, o que é moral e o que é
questão de informação certa ou errada, imoral, o que é normal e o que é anormal.
em geral ligada a aspectos biológicos e A ênfase da pedagogia queer não está na
reprodutivos. Especificamente em relação informação, mas numa metodologia de
à homossexualidade, a pedagogia queer não análise e compreensão do conhecimento
quer simplesmente estimular uma atitude e da identidade sexuais.
de respeito ou tolerância à identidade ho- Tai como a teoria queer, de forma mais
mossexual. Ela tampouco quer estimular geral, a pedagogia queer também pretende
uma abordagem terapêutica, na qual a estender sua compreensão e sua análise da
ênfase estaria no tratamento individual identidade sexual e da sexualidade para a
do preconceito e da discriminação. A questão mais ampla do conhecimento. O
abordagem baseada nas noções de tole- currículo tem sido tradicionalmente con-
rância e do respeito deixa intocadas as cebido como um espaço onde se ensina a
categorias pelas quais a homossexualidade pensar, onde se transmite o pensamento,
tem sido definida, histórica e socialmente, onde se aprende o raciocínio e a racio~
como uma forma anormal de sexualidade: nalidade. Essa ênfase no pensamento e
ela apenas produz uma outra espécie de fortemente estimulada por uma pedagogia
binarismo ao admitir, como diz Deborah inspirada nas diversas formas de psicolo-
Britzman, as categorias do heterossexual gia e, mais recentemente, na psicologia
tolerante e do homossexual tolerado. Da construtivista. Num currículo inspirado
mesma forma, a abordagem terapêutica na teoria e na pedagogia queer, essa ênfase
transfere para o nível individual e psico- sofre um importante deslocamento. Para
100
citar novamente Deborah Britzman, a Leituras
questão não é mais simplesmente: "como BRITZMAN, Deborah. "O que é esta coisa cha-
pensar?", mas: "o que torna algo pensá- mada amor?". Educação e realidade, 21 ( 1), 1996:
vel?". Examinar o que torna algo pensável p.71-96.

estimula, por sua vez, pensar o impensável. LOURO, Guacira L. (org.). O corpo educado. Pedago-
Um currículo inspirado na teoria queer gias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica,
1999.
é um currículo que força os limites das
epistemes dominantes: um currículo que
não se limita a questionar o conhecimento
como socialmente construído, mas que se
aventura a explorar aquilo que ainda não
foi construído.A teoria queer - esta coisa
"estranha" - é a diferença que pode fazer
diferença no currículo.

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O fim das metanarrativas: o pós-modernismo

O chamado pós-modernismo é um pensamento social e político estabelecidos


movimento intelectual que proclama que e desenvolvidos a partir do Iluminismo.As
estamos vivendo uma nova época histó- ideias de razão, ciência, racionalidade e
rica, a Pós-Modernidade, radicalmente progresso constante que estão no centro
diferente da anterior, a Modernidade. O desse pensamento estão indissoluvelmen-
pós-modernismo não representa, entre- te ligadas ao tipo de sociedade que se
tanto, uma teoria coerente e unificada, desenvolveu nos séculos seguintes. De
mas um conjunto variado de perspectivas, uma certa perspectiva pós-modernista, são
abrangendo uma diversidade de campos precisamente essas ideias que estão na raiz
intelectuais, políticos, estéticos, episte- dos problemas que assolam nossa época.
mológicos. Em termos sociais e políticos, Em termos estéticos, o pós-modernismo
o pós-modernismo toma como referência ataca as noções de pureza, abstração e
uma oposição ou transição entre, de um funcionalidade que caracterizaram o mo-
lado, a Modernidade, iniciada com a Re- dernismo na literatura e nas artes.
nascença e consolidada com o Iluminismo Por efetuar uma reviravolta nas no-
e, de outro, a Pós-Modernidade, iniciada ções epistemológicas da Modernidade e
em algum ponto da metade do século XX. das ideias que a acompanham, o pós-mo-
Em termos estéticos, a referência relativa- dern ismo tem importantes implicações
mente à qual o pós-modernismo se define curriculares. Nossas noções de educação,
é o movimento modernista, iniciado em pedagogia e currículo estão solidamente
meados do século XIX, de reação às regras fincadas na Modernidade e nas ideias
e aos cânones do classicismo na literatura modernas.A educação tal como a conhe-
e nas artes. cemos hoje é a instituição moderna por
Na sua vertente social, política, filosó- excelência. Seu objetivo consiste em trans-
fica • ep·1stemo1og1ca,
, • ,
o pos-mo d ernismo
· mitir o conhecimento científico, em formar
questiona os princípios e pressupostos do um ser humano supostamente racional e

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autônomo e em moldar o cidadão e a cida- Para a crítica pós-moderna, essas noções,
dã da moderna democracia representativa. ao invés de levar ao estabelecimento da
Éatravés desse sujeito racional, autônomo sociedade perfeita do sonho iluminista,
e democrático que se pode chegar ao ideal levaram ao pesadelo de uma sociedade
moderno de uma sociedade racional, pro- totalitária e burocraticamente organizada.
gressista e democrática. Nesse sentido, o Na história da Modernidade, em nome da
questionamento pós-modernista constitui razão e da racionalidade, frequentemente
um ataque à própria ideia de educação. se instituíram sistemas brutais e cruéis de
Mas quais são os pontos centrais do opressão e exploração. Tanto as estruturas
questionamento que o pós-modernismo estatais quanto as estruturas organizacionais
faz às noções modernas? O pós-modernis- das empresas capitalistas, supostamente
mo tem uma desconfiança profunda, antes construídas e geridas de acordo com os
de mais nada, relativamente às pretensões critérios da razão e da racionalidade, produ-
totalizantes de saber do pensamento mo- zem apenas sofrimento e infelicidade.Visto
derno. Na sua ânsia de ordem e controle, a da perspectiva pós-modernista, o passivo da
perspectiva social moderna busca elaborar ideia de razão é bem maior do que seu ativo.
teorias e explicações que sejam as mais O pós-modernismo também coloca em
abrangentes possíveis, que reúnam num dúvida a noção de progresso que está no
único sistema a compreensão total da es- próprio centro da concepção moderna de
trutura e do funcionamento do universo e sociedade. O prestígio dessa noção pode
do mundo social. No jargão pós-moderno, ser medido pelo prestígio do adjetivo
o pensamento moderno é particularmente correspondente: "progressista". Para 0
adepto das "grandes narrativas", das "nar- pós-modernismo, entretanto, o progresso
rativas mestras". As "grandes narrativas" não é algo necessariamente desejável ou
são a expressão da vontade de domínio e benigno. Outra vez, sob o signo do con-
controle dos modernos. trole e do domínio sobre a natureza e 0
De forma relacionada, o pós-moder- outro, o avanço constante da ciência e d~
nismo questiona as noções de razão e de tecnologia, apesar dos evidentes benefi-
racionalidade que são fundamentais para cios, tem resultado, também, em certos
a perspectiva iluminista da Modernidade. subprodutos claramente indesejáveis.
112
Filosoficamente, o pensamento moder- moderno é guiado unicamente por sua
no é estreitamente dependente de certos razão e por sua racionalidade. O sujeito
princípios considerados fundamentais, moderno é fundamentalmente centrado: ele
últimos e irredutíveis. Em geral, esses prin- está no centro da ação social e sua cons-
cípios se baseiam nalguma noção humanista ciência é o centro de suas próprias ações.
de que o ser humano tem certas caracte- O sujeito da Modernidade é unitário: sua
rísticas essenciais, as quais devem servir de consciência não admite divisões ou contra-
base para a construção da sociedade. Eles dições.Além disso, seguindo Descartes, ele
constituem absolutos - axiomas inquestio- é identitário: sua existência coincide com
náveis. No jargão pós-modernista, por se seu pensamento.Aproveitando-se de várias
basear nessas "fundações", o pensamento análises sociais contemporâneas, entre elas
moderno é qualificado como "fundacional". a psicanálise e o pós-estruturalismo, todas
Do ponto de vista do pós-modernismo, elas desconfiadas do sujeito moderno, o
entretanto, não há nada que justifique pri- pós-modernismo coloca em dúvida sua au-
vilegiar esses princípios em detrimento de tonomia, seu centramento e sua soberania.
outros. Embora sejam considerados como Para o pós-modernismo, seguindo Freud
últimos e transcendentais, eles são tão con- e Lacan, o sujeito não converge para um
tingentes, arbitrários e históricos quanto centro, supostamente coincidente com sua
quaisquer outros. O pós-modernismo é consciência. Além disso, o sujeito é funda-
radicalmente antifundacional. mentalmente fragmentado e dividido. Para a
O pós-modernismo reserva um de seus perspectiva pós-modernista, nisso inspirada
mais fulminantes ataques ao sujeito racional, nos insights pós-estruturalistas,o sujeito não
livre, autônomo, centrado e soberano da é o centro da ação social. Ele não pensa, fala
e produz: ele é pensado, falado e produzido.
Modernidade. Esse sujeito é o correlativo
Ele é dirigido a partir do exterior: pelas
do privilégio concedido pela Modernidade
estruturas, pelas instituições, pelo discurso.
ao domínio da razão e da racionalidade.
Enfim, para o pós-modernismo, o sujeito
No quadro epistemológico traçado pelo
moderno é uma ficção.
pensamento moderno, o sujeito está sobe-
ranamente no controle de suas ações: ele O pós-modernismo não se limita,
é um agente livre e autônomo. O sujeito entretanto, a atacar os fundamentos do

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pensamento moderno. Inspirado por sua não é difícil verificar que a cena social e
vertente estética, o pós-modernismo cultural contemporânea apresenta mui-
tem um estilo que em tudo se contrapõe tas das características que são descritas
à linearidade e à aridez do pensamento na literatura pós-moderna. Sobretudo,
moderno. O pós-modernismo privilegia o os "novos" meios de comunicação e
pastiche, a colagem, a paródia e a ironia; informação parecem corporificar mui-
ele não rejeita simplesmente aquilo que tos dos elementos que são, nessa lite-
critica: ele, ambígua e ironicamente, imita, ratura, descritos como pós-modernos:
incorpora, inclui. O pós-modernismo não fragmentação, hibridismo, mistura de
apenas tolera, mas privilegia a mistura, o gêneros, pastiche, colagem, ironia. Pode-
hibridismo e a mestiçagem - de culturas, se, inclusive, observar a emergência de
de estilos, de modos de vida. O pós-mo- uma identidade que se poderia chamar
dernismo prefere o local e o contingente de pós-moderna: descentrada, múltipla,
ao universal e ao abstrato. O pós-moder- fragmentada. As instituições e os regimes
nismo inclina-se para a incerteza e a dúvida, políticos que tradicionalmente encarna-
desconfiando profundamente da certeza e ram os ideais modernos do progresso e
das afirmações categóricas. No lugar das da democracia parecem crescentemente
grandes narrativas e do "objetivismo" do desacreditados. A saturação da base
pensamento moderno, o pós-modernismo de conhecimentos e de informações
prefere o "subjetivismo" das interpretações disponíveis parece ter contribuído para
parciais e localizadas. O pós-modernismo solapar os sólidos critérios nos quais se
rejeita distinções categóricas e absolutas baseava a autoridade e a legitimidade da
como a que o modernismo faz entre "alta" epistemologia oficial. A ciência e a tec-
e "baixa" cultura. No pós-modernismo,
nologia já não encontram em si próprias
dissolvem-se também as rígidas distinções
a justificação de que antes gozavam. O
entre diferentes gêneros: entre filosofia e li-
cenário é claramente de incerteza, dúvida
teratura, entre ficção e documentário, entre
e indeterminação. A cena contemporânea
textos literários e textos argumentativos.
é - em termos políticos, sociais, culturais,
Mesmo que não se aceitem certos epistemológicos - nitidamente descentra-
elementos da perspectiva pós-moderna,
da, ou seja, pós-moderna.
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Nesse contexto, parece haver uma pós-modernismo desconfia profunda-
incompatibilidade entre o currículo mente dos impulsos emancipadores e
existente e o pós-moderno. O currícu- libertadores da pedagogia crítica. Em
lo existente é a própria encarnação das última análise, na origem desses impul-
características modernas. Ele é linear, sos está a mesma vontade de domínio
sequencial, estático. Sua epistemologia e controle da epistemologia moderna.
é realista e objetivista. Ele é disciplinar e A pedagogia tradicional e a pedagogia
segmentado. O currículo existente está crítica acabam convergindo em uma
baseado numa separação rígida entre genealogia moderna comum.
"alta" cultura e "baixa" cultura, entre O pós-modernismo empurra a pers-
conhecimento científico e conhecimento pectiva crítica do currículo para os seus
cotidiano. Ele segue fielmente o script das limites. Ela é desalojada de sua confor-
grandes narrativas da ciência, do trabalho tável posição de vanguarda e colocada
capitalista e do estado-nação. No centro numa incômoda defensiva. O pós-mo-
do currículo existente está o sujeito racio- d ern ismo, de certa forma, constitui
nal, centrado e autônomo da Modernidade. uma radicalização dos questionamentos
Da perspectiva pós-moderna, o pro- lançados às formas dominantes de co-
blema não é apenas o currículo existente; nhecimento pela pedagogia crítica. Em
é a própria teoria crítica do currículo que sua crítica do currículo existente, a pe-
é colocada sob suspeita.A teorização crí- dagogia crítica não deixava de supor um
tica da educação e do currículo segue, em cenário em que ainda reinava uma certa
linhas gerais, os princípios da grande narra- certeza. Com sua ênfase na emancipa-
tiva da Modernidade.A teorização crítica ção e na libertação, a pedagogia crítica
é ainda dependente do universalismo, continuava apegada a um certo funda-
do essencialismo e do fundacionalismo cionalismo. O pós-modernismo acaba
do pensamento moderno. A teorização com qualquer vanguardismo, qualquer
crítica do currículo não existiria sem o certeza e qualquer pretensão de eman-
pressuposto de um sujeito que, através cipação. O pós-modernismo assinala 0
de um currículo crítico, se tornaria, fim da pedagogia crítica e o começo da
finalmente, emancipado e libertado. O pedagogia pós-crítica.
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Leituras
MOREIRA, Antonio Flavio B. Currículo, utopia e
pós-modernidade. ln Antonio F. B. Moreira
(org.) Currículo: questões atuais. Campinas: Papi-
rus, 1997: p.9-28.

SILVA, Tomaz T. da. (org.). Teoria educacional crítica


em tempos pós-modernos. Porto Alegre: Artes
Médicas, 1993.

SILVA, Tomaz T. da. Identidades terminais. Petrópolis:


Vozes, 1996.

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