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AMÉLIE NOTHOMB E A ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA: UMA ANÁLISE DE
MÉTAPHYSIQUE DES TUBES
Banca examinadora:
Profa.Dra.Anamaria Skinner
Universidade Federal do Rio de Janeiro
3
RESUMO
4
RÉSUMÉ
5
SINOPSE
6
Ao meu marido Rafael e ao meu filho Miguel,
por terem revolucionado minha vida no meio do caminho.
7
AGRADECIMENTOS
Ao professor Marcelo Jacques, meu orientador, pela confiança depositada no projeto, e por
todo o apoio, atenção e dedicação a esse trabalho.
Aos professores Edson Rosa da Silva, Jovita Maria Gerheim Noronha, Anamaria Skinner e
Eurídice Fiqueiredo, por aceitarem fazer parte da banca examinadora.
Em especial aos professores Edson Rosa da Silva, pelas sugestões e ajuda teórica, e Márcia
Attala Pietroluongo, pela ajuda prática e compreensão.
A minha família como um todo, sempre em torno, sempre unida e pronta a ajudar.
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 11
CONCLUSÃO 115
BIBLIOGRAFIA 118
ANEXOS 125
10
INTRODUÇÃO
Les livres sont la forme de langage la plus forte que j’ai trouvée. Mes
premières années en Europe ont été d’une solitude effrayante. Si je n’avais
pas eu ma soeur, j’aurais été toute seule. Mais depuis la publication de mes
livres, c’est devenu exactement le contraire, parce que tant de gens m’ont lue,
et tant de gens m’ont bien lue. Il s’est passé entre moi et ces gens que je n’ai
pas forcément rencontrés des relations d’une profondeur absolument
extraordinaire. Quand on rencontre des gens, on n’a pas spécialment des
choses à leur dire, mais à travers la lecture, il se passe des choses, on va plus
loin dans des rapports humains (ZUMKIR, 2003 :156).
Para Nothomb, escrever sobre si mesma é atravessar a distância que a separa dos
outros indivíduos, estranhos ou familiares. A escrita autobiográfica, ao mesmo tempo que
expõe a autora, cria a possibilidade de conectá-la ao resto do mundo, amenizando o
sentimento de solidão. A singularidade que torna cada indivíduo único, no caso da obra
autobiográfica de Nothomb, em vez de segregá-lo, torna-se motivo para aproximá-lo dos
desconhecidos que formam seu cada vez maior grupo de leitores. Falar de si para chegar ao
outro, esta parece ser sua motivação. E, paradoxalmente, falar do outro como inimigo, em
seus textos. A dualidade conflituosa eu x outro é tema recorrente em sua obra, autobiográfica
e ficcional.
Nascida em 1967 em Kobe, no Japão, Amélie Nothomb provém de aristocrática
família belga e seu pai, Patrick Nothomb, era embaixador da Bélgica no Japão nessa ocasião.
Seus primeiros cinco anos de vida em Kobe a marcam profundamente, resultando numa crise
de identidade que tem na escrita autobiográfica um de seus grandes reflexos. Sua experiência
de expatriada em conflito entre duas identidades culturais, belga1 e japonesa, não tem fim em
terras estrangeiras. Por conta do serviço diplomático do pai, os deslocamentos contantes a
fazem viver em países como China, Bangladesh, Birmânia, Laos e Nova York, até
desembarcar aos dezessete anos na Bélgica, berço de sua família. O sentimento de expatriada
e exilada, porém, parece não ter fim, visto que não cria raízes em parte alguma:
1
Pelo fato de a Bélgica se caracterizar como um país bilíngüe, a questão da identidade cultural já se coloca para
alguém de origem belga. Porém, essa discussão não será trabalhada aqui, visto que a relação Bélgica/bilingüismo
não está presente na obra de Amélie Nothomb.
11
il a la réputation d'être un pays joyeux mais au début, cela ne m'a pas frappée.
J'ai vu la tristesse, la pesanteur, un côté lugubre. Il m’a fallu apprendre à
aimer la Belgique, la vie n’y est pas légère. 2
Alors, j'ai fini par comprendre que ma seule vraie nationalité, c'était l'exil.
Cela n'a d'ailleurs pas que des mauvais côtés, parce que ça veut dire que l'on
peut vivre partout. Mais j'ai vécu dans tant de pays au cours de ma vie qu'à
présent, mon fantasme, c'est la sédentarité. C'est de m'enraciner quelque part
dans un petit coin banal où personne ne viendra me retrouver. Un jardin bien
invisible avec peu de lumière, beaucoup d'arbres, une cachette. Avec l'âme
sour. 3
2
Citação retirada de entrevista ao site Le Club, em 05/09/2000, disponível no endereço:
http://www.grandlivredumois.com/static/actu/rencontres/nothomb.htm
3
Idem.
4
Fizemos um anexo (Anexo 1) com amostra de material sobre Amélie Nothomb, para que o leitor tenha idéia do
espaço que a autora ocupa na mídia européia.
5
Artigo sobre o lançamento de Biographie de la faim, na revista Le Point, n.668/2004, p.87.
12
Com seus tradicionais lançamentos anuais durante a “rentrée littéraire”, a obra de
Amélie Nothomb apresenta atualmente treze romances (sendo quatro autobiografias), uma
peça de teatro e nove contos, publicados em diversas revistas e livros. Em 1994, Hygiène de
l’assassin foi adaptado ao teatro pelo diretor Gérard Desarthe e, posteriormente, em 1999,
para o cinema por François Ruggieri. Les combustibles torna-se uma ópera, em 1997, pelas
mãos do compositor Daniel Schell e, mais recentemente, em 2002, Stupeur et tremblements
surge nas telas do cinema, em produção realizada por Alain Corneau e protagonizada por
Sylvie Testud no papel de Amélie.
No que diz respeito à escrita autobiográfica, a obra de Nothomb apresenta aspectos
que revelam tênues fronteiras entre real e ficção. Tanto para a crítica literária, quanto para o
público leitor, a vida e a obra de Nothomb estão nitidamente entrelaçadas em seus textos:
On n'en attendait pas moins d'elle. A 36 ans, forte d'une douzaine de romans
publiés - et célébrés - Amélie Nothomb, la plus excentrique des Belges, tombe
le masque. A sa manière. Enlevée, méticuleuse, ironique, intelligente. Fil
rouge de cette autobiographie singulière, clef du succès de la seule romancière
francophone qui, bon an mal an, pulvérise les ventes: la faim, la sur-faim,
dont Amélie est habitée depuis sa prime enfance.Faim de tout: des sucreries,
du Japon, de l'amour familial, de l'alcool de prune, d'eau, de la carte du
monde, des livres, des mots... Jamais rassasiée, toujours en quête, la fille du
consul décline, avec subtilité, ses années de formation, éclairant, au détour
d'une phrase, d'une anecdote, de nombreux pans de son oeuvre. 6
Se o nome “Amélie” aparece uma única vez em sua obra, na narrativa Stupeur et
tremblements, a aproximação entre o texto da vida e o texto da obra se faz evidente: suas
narrativas autobiográficas compõem um painel fragmentado da infância e das experiências
6
Resenha crítica sobre Biographie de la faim, na revista L’Express, em 30/08/2004, e disponível no endereço
http://livres.lexpress.fr/critique.asp/idC=8907/idR=9/idG=3.
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pelos diversos países por que passou. Se não há correspondência explícita entre o nome da
autora e o da narradora, há constantes alusões nominais a membros da família, como o pai
Patrick, a mãe Danielle, o irmão André e a irmã Juliette, assim como aos países formadores de
sua identidade cultural, a Bélgica e o Japão.
Estas são algumas das questões apresentadas pela escrita autobiográfica de Nothomb,
mostrando a dificuldade em ser classificada como tal, pela ambigüidade com que a autora
constrói as fronteiras entre ficção e realidade.
Como textos de base para esse estudo, compreendi inicialmente as quatro narrativas de
cunho autobiográfico da autora: Le sabotage amoureux, Stupeur et tremblements,
Métaphysique des tubes e Biographie de la faim. Ao me deparar com a dificuldade de
trabalhar de maneira rigorosa quatro narrativas, optei por Métaphysique des tubes como
narrativa central deste trabalho, pelo fato de ser, a meu ver, a mais desafiadora, no que diz
respeito à construção das relações entre escrita e memória. Primeiramente, Amélie se propõe a
escrever um texto autobiográfico compreendido entre a idade de zero a três anos, época não
alcançada pela memória consciente. Em segundo lugar, a narrativa se inicia com a
apresentação de um narrador-tubo que se identifica, nas páginas iniciais, como Deus. Somente
nas páginas seguintes, o leitor compreende que se trata de um bebê, pois Deus-tubo e o bebê
são o mesmo personagem e possuem a mesma identidade. Amélie Nothomb propõe ao leitor
um relato de seus primeiros anos de infância no Japão, pondo em cena uma “metafísica dos
tubos” que a faz compreender tanto o ser humano quanto a vida como tubos, imagem
representativa do fluxo e dos constantes movimentos aos quais a existência é sujeita, com seus
espaços ora plenos, ora vazios.
As outras três narrativas, no entanto, não poderiam ser desconsideradas, devido à sua
importância para uma análise completa da escrita autobiográfica da autora belga. Assim, elas
estarão presentes, de maneira secundária, integrando, porém, o quebra-cabeças memorialístico
de Nothomb e dialogando com Métaphysique, sempre que isso parecer pertinente para o
propósito do trabalho.
Apesar de Nothomb ter sua obra classificada como roman, críticos e leitores não se
furtam a considerar as quatro narrativas aqui em estudo como relatos autobiográficos, fato que
põe em questão, mais uma vez, a ambigüidade instaurada em torno de sua obra, e fortalece a
discussão sobre gênero.
Na escrita autobiográfica de Nothomb, marcada pelos sucessivos deslocamentos
geográficos da narradora, o tema da identidade cultural também desperta especial interesse e,
mais do que isso, parece estar significativamente conectado ao projeto autobiográfico da
14
autora. Assim, julguei que seria pertinente apresentar e discutir questões à formação
identitária da autora/narradora, devido ao fato de que a obra autobiográfica de Nothomb está
ligada ao diálogo e ao confronto de culturas (belga e japonesa). A narradora nothombiana é
construída a partir dos processos de deslocamentos, dividida entre duas identidades culturais
opostas – Japão e Bélgica – e em constante tensão. É preciso, então, traçar um paralelo entre
autobiografia e identidade, visto que, na obra de Nothomb, ambas se apresentam ora como um
confronto entre indivíduos, ora como um confronto entre culturas. Confronto este presente em
sua obra, exposto de maneira contundente através da experiência da narradora em diversos
países, sobretudo no Japão, fato que a marcará de maneira profunda. Vida e obra, narradora e
autora; tudo se confunde. Percebe-se que as impressões relatadas também pertencem à autora.
Numa entrevista, Nothomb fala da importância do Japão e das razões pelas quais esse país a
marcou e se mostra tão presente na sua escrita:
Déjà pour des raisons biographiques, puisque je crois faire partie de ces gens,
qui sont souvent plus marqués par leurs premières imprégnations que par
toutes les autres. Ensuite, sans vouloir dénigrer les autres, le Japon est,
comment dire, un pays vraiment fort, c’est un pays mystique. D’autant plus
que c’était le Kansai, ce n’était pas Tokyo, c’était la montagne et j’avais l’âge
sacré. J’ai vraiment connu les circonstances parfaites pour, si l’on peut dire,
connaître le vrai Japon, idyllique. 7
A partir destas questões, organizei este estudo em três partes. A primeira, dedicada ao
estudo teórico da escrita autobiográfica, é voltada à discussão de gênero textual, apresentando
e interrogando – sempre que possível já a partir da obra de Amélie Nothomb - a proposta
tradicional do gênero autobiográfico postulada por Philippe Lejeune, assim como a noção de
autoficção, desenvolvida a partir das idéias de outros teóricos, tais como Jacques Lecarme e
Serge Doubrovsky. Além disso, a relação entre memória e escrita também será posta em cena,
à luz da linha teórica de Walter Benjamin e de suas reflexões sobre escrita e memória.
No segundo capítulo, intitulado “Amélie Nothomb e a ilusão realista”, desenha-se a
análise dos procedimentos narrativos, utilizados por Nothomb em suas obras autobiográficas,
que fortalecem os efeitos da ilusão realista e referencial. São analisados os olhares construídos
no interior do texto nothombiano, a função e a posição do narrador em Métaphysique des
tubes, assim como o uso de ferramentas discursivas próprias à escrita de Nothomb, tais como
a ironia e a intertextualidade.
O terceiro capítulo, “Entre lugares e não-lugares, a construção da infância e da
identidade”, relaciona e estuda a questão da autobiografia e da formação identitária no interior
7
Entrevista apresentada na revista Muteen, março/2005.
15
dos textos nothombianos, tendo em vista as relações que se estabelecem em sua obra entre
sujeito, autobiografia e identidade. A importância do espaço na obra autobiográfica de
Nothomb também se faz presente a partir da relação estabelecida entre lugar, escrita e
memória. Para a discussão sobre identidade cultural e lugares antropológicos, foram
utilizados, respectivamente, os trabalhos de Stuart Hall e de Marc Augé.
Desse modo, a partir de Métaphysique des tubes, texto central do projeto
autobiográfico de Amélie Nothomb e de seu diálogo com as narrativas Le sabotage
amoureux, Stupeur et tremblements e Biographie de la faim, pretendo apresentar alguns dos
temas-chave da escrita autobiográfica de Nothomb. Seu texto irônico, ambíguo e limítrofe
joga conscientemente com as fronteiras entre real e ficção e me convida ao desafio – e à
dificuldade – de estudar essa autora contemporânea.
16
1. MEMÓRIA E ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA
Uma das questões mais controversas tratadas pela teoria literária é a da relação entre
autor e texto. De Émile Benveniste, que afirma que o autor cede lugar à sua escrita, sendo
simplesmente o sujeito da enunciação que com ela se produz (COMPAGNON, 2003:50-51), a
Barthes, para quem o “autor nunca é mais que aquele que escreve, assim como eu não é outro
senão o que diz eu” (BARTHES,1984:63), diversos autores problematizaram a associação
entre pessoa gramatical e pessoa referencial numa obra. Um autor é, ao mesmo tempo, uma
pessoa real e o produtor de um discurso, como atesta Philippe Lejeune:
Um autor não é uma pessoa ; é alguém que escreve e que publica. Dividido
entre o extratextual e o intratextual, constitui a linha de contato entre os dois.
Define-se o autor como sendo simultaneamente uma pessoa real e socialmente
responsável e como o produtor de um discurso (LEJEUNE, 1975: 23).
Lejeune completa dizendo que, para o leitor, que não conhece essa pessoa real, e
credita sua existência à função social que ela exerce, o autor se define como aquele que é apto
a produzir esse discurso. A percepção do autor, pelo leitor, surge então a partir do discurso
produzido. Importante ressaltar que, já nesta breve definição do termo “autor”, algo da ordem
de uma suposição imaginária se faz presente, mesmo relacionado a uma pessoa real.
Por si só essa questão mostra a dificuldade em definir e analisar a escritura que se
apresenta como autobiográfica. Como se sabe, o termo autobiografia é composto por três
raízes gregas: graphein, escrever; bios, vida; e autos, próprio, que se refere a si mesmo. Uma
biografia é a narrativa de uma vida. Uma autobiografia é uma biografia escrita por aquele que
também se faz tema da obra.
Em Le Pacte Autobiographique (1975), Philippe Lejeune inicia com uma interrogação
que expõe a complexidade da questão: “É possível definir a autobiografia?” Logo adiante, ele
propõe sua resposta: “Narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria
existência, colocando em evidência sua individualidade e, em particular, a história de sua
personalidade”. Ele ressalta ainda a importância da presença da tripla identidade de nome,
entre autor, narrador e personagem; e determina como exemplo inaugural do gênero Les
Confessions (1782), de Jean-Jacques Rousseau. Lejeune foi o primeiro a propor uma
definição do gênero autobiográfico baseada num contrato de leitura entre autor, narrador e
leitor. Para o teórico, era preciso estabelecer as diferenças entre discurso ficcional e discurso
autobiográfico, ressaltando a oposição entre o compromisso de leitura característico da
17
autobiografia e o protocolo de leitura característico da ficção. No texto ficcional, há um
distanciamento entre autor e leitor, o que já não ocorre no texto autobiográfico, que remete ao
real:
Assim, a discussão não se limita apenas às relações entre autor e texto, estendendo-se
ao próprio estatuto do texto como representação de uma realidade apreendida ou de uma
realidade imaginada. Lembro que já Proust, em Contre Sainte-Beuve (Paris:1971), afirma que
a biografia do autor não explica a obra; e que, por outro lado, como afirma Doubrovsky
(Autobiographiques, 1988), não existe texto literário que não seja animado pelo movimento
de existência que ele carrega.
8
Entrevista de Philippe Lejeune concedida a Jovita Maria Gerheim Noronha, disponível no endereço
http://www.revistaipotesi.ufjf.br/volumes/v6n1/cap02.pdf
18
Tendo por base os pressupostos teóricos, no que tange à escritura autobiográfica, de
Philippe Lejeune, Jacques Lecarme e Eliane Lecarme-Tabone, Serge Doubrovsky e Philippe
Gasparini, procurarei, neste capítulo, traçar um painel, primeiramente histórico, e
posteriormente teórico, deste gênero que, até os atuais dias, se mostra controverso. Em
seguida, exporei uma breve abordagem do gênero pelo viés de suas relações com a psicanálise
e a crítica literária: a poética do duplo. Por fim, antes de passar propriamente à análise da obra
de Amélie Nothomb, discutirei a função do tempo na escrita autobiográfica.
19
Lejeune assinala ainda os pressupostos socioeconômicos ao justificar o surgimento dessa nova
situação literária, intrinsecamente ligado à transformação da noção de indivíduo. Ele lembra
que a nova concepção surgiu com o início da civilização industrial moderna e com a ascensão
econômica da burguesia.
Em seu curso sobre a genealogia da autoridade, Antoine Compagnon 9 mostra que a
noção de autor não existia nem na Grécia nem na Idade Média, onde idéias como autoridade e
inspiração emanavam dos deuses, e a criação artística era completa em si mesma. A noção
surge somente a partir do Renascimento e da criação da imprensa, mas sem ser reconhecida
juridicamente. As idéias de legitimidade e de autoridade do autor são modernas, sobretudo se
pensarmos que o estatuto simbólico do autor, enquanto pessoa individual, atingiu seu ápice
somente no século XIX.
Compagnon lembra também a relação entre as noções dos termos latinos “auctor” e
“auctoritas”, que se conciliam com as duas definições expostas por ele:
Fica claro que a concepção do que é considerado como escrita autobiográfica – assim
como suas vertentes – está intimamente ligada às noções de sujeito e de autoridade/autoria ;
ou, mais especificamente, ao desenvolvimento desses conceitos. Como grande exemplo
inaugural do gênero autobiográfico, Lejeune cita Rousseau e sua obra Les Confessions (século
XVIII): ainda que não tenha “inventado” o gênero, ele certamente reuniu, como autor, os
grandes pontos-chave de tal escrita, como a utilização de técnicas romanescas para recriação
do passado, a busca por uma identidade, através do processo de “mise-en-écriture”’, e o
trabalho de busca das origens, principalmente no período que entendemos por infância, que
viria a ser tão recorrente nos relatos autobiográficos.
No entanto, no dossiê do periódico Magazine Littéraire dedicado às “escritas do eu”,
outros autores são citados como exemplo, antes de Rousseau: Santo Agostinho, com suas
Confissões, assim como Les Essais de Montaigne ou o Discours de la méthode de Descartes.
Embora não sejam considerados autores de uma obra autobiográfica no sentido estrito do
termo, foram precursores da problemática da narrativa autobiográfica, na medida em que
9
Compagnon, Antoine. Qu’est-ce qu’un auteur? Disponível no site
http://www.fabula.org/compagnon/auteur.php
20
põem questões como: o que dizer de si mesmo? Qual o resultado uma análise – ou uma
exposição – de si mesmo, vertida em palavras, em narrativa? Além disso, vê-se o início de um
caminho à introspecção, através da experiência da reflexão subjetiva.
A autobiografia, enquanto gênero literário, há muito tempo desperta opiniões
contraditórias em relação à sua definição. Muito já se discutiu sobre esse termo, surgido na
França em torno de 1850 como sinônimo para “memórias” (LECARME, 1999:07). Com o
desenvolvimento do termo, ocorreram também desdobramentos e variantes do conceito
tradicional de autobiografia postulado por Lejeune: é a partir de então que se discute a
diferença entre o romance autobiográfico e a autoficção. Uma das maiores dificuldades no
sentido de definir a autobiografia como gênero textual apresenta-se justamente na delimitação
de seus limites em relação a outros gêneros textuais – o que Lejeune chama de “gêneros
vizinhos” – tais como o diário, as memórias, o romance autobiográfico, a autoficção. Como a
autobiografia se produz nas fronteiras entre real e imaginário, o gênero romance,
caracterizado por sua ficcionalidade, também está em questão na reflexão sobre o gênero
autobiográfico, que se torna cada vez mais ambíguo.
No que se refere a Amélie Nothomb, há grande dificuldade em se aplicarem as
definições de Lejeune e os conceitos tradicionais de autobiografia, uma vez que a
ambigüidade nas relações e delimitações entre autor e personagem, realidade e ficção, vida e
obra é um traço constante em seus romances. As quatro narrativas a que aludirei diretamente
neste trabalho – Métaphysique des tubes (2000), Le Sabotage amoureux (1993), Stupeur et
tremblements (1999) e Biographie de la faim (2004) – utilizam a primeira pessoa, possuem
constantes referências a episódios e fatos da vida autora e são declaradas extra-textualmente
como obras autobiográficas. No entanto, se as referências a dados biográficos são freqüentes,
como as alusões aos membros da família e aos constantes deslocamentos sofridos por conta
do trabalho diplomático do pai, suas personagens não possuem nome ou descrição – apenas
em Stupeur et tremblements temos o primeiro nome da protagonista, Amélie. Tudo o que elas
possuem são experiências vividas em períodos, locais e datas determinados. São quatro
protagonistas, em idades diversas, contando diferentes histórias, mas que mesmo assim se
interligam, seja através das características em comum – a não-identidade nominal, as mesmas
referências a familiares e experiências– seja através das inter-referências, numa espécie de
metanarrativa (que será abordada no segundo capítulo), nas quais a narradora acena, num
certo texto, em direção aos outros textos memorialísticos.
Assim, se o pacto autobiográfico formulado por Lejeune não é assinado por Nothomb,
a autora também não o deixa de lado completamente. Em Biographie, ao mencionar seu ofício
21
de escritora, ela explica porque vida e obra estão tão entrelaçadas, aumentando a ambigüidade
presente em suas páginas: “Sans doute est-ce pour cette raison que j´y commençai à écrire. Ne
pas comprendre est un sacré ferment pour l´écriture. Mes romans mettaient en forme une
incompréhension qui croissait” (2004 :226).
Mais adiante, a fronteira entre o mundo real e o mundo escrito se torna ainda mais
tênue, quando a narradora volta a comentar sua escrita:
C´est en 1989 que je me mis à écrire à plein régime. Retrouver le sol japonais
m´en donna l´énergie. C´est là que j´adoptai ce qui est devenu mon rythme:
consacrer un minimum de quatre heures par jour à l´écriture.
Écrire n´avait plus rien à voir avec l´extraction hasardeuse des débuts; c´était
désormais ce que c´est aujourd´hui – la grande poussée, la peur joussive, le
désir sans cesse ressourcé, la nécéssité voluptueuse (2004 :234).
Ma soeur s´esclaffa :
- Menteuse ! [...]
10
Entrevista de Amélie Nothomb ao site Le Club, realizada em 05/09/2000, disponível em
http://www.grandlivredumois.com/static/actu/rencontres/nothomb.htm
22
Il fallait que je me fasse à cette idée : je n´étais pas crédible. Ce n´était pas
grave. Au fond, cela m´était égal, qu´on me croie ou non. Je continuerais à
inventer, pour mon plaisir.
Je me mis donc à me raconter des histoires. Moi au moins, je croyais à ce que
je me disais (2000 :111).
Em sua obra intitulada Est-il je? (2004:17), na qual reflete principalmente sobre as
diferenças e semelhanças entre romance autobiográfico e autoficção, Philippe Gasparini
afirma que o romance pode ser identificado a partir de três critérios: narrativo, ficcional e
literário. O primeiro critério é preenchido quando o enunciado é percebido como uma história,
e não um discurso, um poema ou uma peça de teatro. Gasparini cita ainda Genette ao afirmar
que os dois outros critérios seguem a mesma lógica, na medida em que a ficcionalidade de
uma narrativa garante sua literariedade:
Prossegue Gasparini ressaltando que, para que tais classificações textuais fiquem mais
claras, autor e editor, em comum acordo, garantem a “ficcionalidade” do texto com um
subtítulo – roman – na capa. 11 A ficcionalidade se opõe então, segundo ele, à
referencialidade, pois esta pede, necessariamente, a crença do destinatário (leitor/receptor) em
todas as referências à realidade apresentadas na obra. Esta crença, este engagement, é o que
Philippe Lejeune chama de pacto autobiográfico, caracterizado por essa espécie de contrato
entre autor e leitor. Neste sentido, pode-se afirmar que o romance autobiográfico não
11
Esta é uma tradição do mercado editorial francês. No Brasil, tal prática não é muito corrente e, portanto, não
serve como critério de classificação. Neste ponto, entram aqui em questão estratégias do mercado editorial, que
não pretendo discutir neste trabalho.
23
estabelece nenhum tipo de contrato de referencialidade. Segundo a concepção tradicional, a
tripla identidade da narrativa autobiográfica é sempre explícita para o leitor, e é justamente
este pacto que distingue a autobiografia propriamente dita do romance autobiográfico, no qual
o leitor pode, ou não, “descobrir” semelhanças entre o protagonista e o autor do livro, sem que
estes tenham necessariamente o mesmo nome, e sem que a obra deixe de lado seu caráter
fictício. Há ainda um segundo critério para a definição de ficção: a não-identidade entre autor
e narrador. Vale lembrar a afirmação de Gasparini de que a ficcionalidade de um romance não
reside nas situações, nos cenários, nem nos personagens, visto que estes podem ser tomados
de empréstimo da realidade; ela está situada justamente em seu protocolo de enunciação: o
romance é conduzido por um narrador que não tem nenhum comprometimento com a
realidade. Nesse sentido, um romance pode se tornar autobiográfico, combinando os dois
protocolos: o de enunciação e o autobiográfico.
Por fim, como nenhuma definição textual pode ter seus limites tão apurados e claros,
deve-se ainda lembrar de Marthe Robert (Roman des origines et origines du roman , 1972),
para quem o criador do romance, em qualquer caso, não seria mais do que um autobiógrafo
mais fabulador que os outros.
24
fundamental para tal classificação é a análise da intenção do autor: saber se quis escrever a
história de sua pessoa ou a de sua época.
A autobiografia é uma forma de literatura pessoal (littérature personnelle) como os
diários e as cartas, mas se distingue destes por seu caráter retrospectivo: o autor retoma os
acontecimentos de sua vida depois que foram vividos. No que se refere à correspondência,
Lejeune acrescenta um outro critério diferenciador, ao considerar as cartas como um ato
privado, princípio contrário ao da escrita autobiográfica:
Quanto aos diários (journal intime), na prática, a oposição não oferece dificuldade: a
autobiografia é, antes de tudo, uma “narrativa retrospectiva e global” (LEJEUNE, 1971:24)
com tendência à síntese; enquanto o diário se forma a partir de uma escrita contemporânea e
fragmentada, sem forma fixa. Lejeune reconhece, no entanto, que apesar de serem duas
formas opostas, podem ser complementares. Diversos escritores (Stendhal, J.Green, Gide,
entre outros), inclusive, praticaram os dois: tanto o diário quanto a autobiografia. Ele afirma
também que, apesar das diferenças visíveis, os dois gêneros textuais têm dois pontos de
contato:
- A autobiografia pode organizar sua narrativa de modo a pôr em evidência seu tempo
de escrita (através da inserção de acontecimentos contemporâneos ao momento da
escrita, por exemplo) paralelamente ao tempo da história que é contada.
- O fato de que, em princípio, um homem escreve uma única autobiografia, o que dá
uma certa característica de “eternidade” ao que Lejeune chama de “ato
autobiográfico”; enquanto que os diários, ao contrário, são baseados no recomeço sem
fim, num eterno “refazer-se” através da escrita. 12
12
cf. Lejeune, 1971:25.
25
Um dos critérios de avaliação adotado por Philippe Lejeune, a fim de identificar uma
obra autobiográfica, é a tripla identidade de nome entre autor, narrador e protagonista. Já me
referi antes ao caso do romance autobiográfico, no qual o narrador/protagonista não possui o
mesmo nome do autor, ficando suas semelhanças em outras aspectos da obra. É possível
narrador, protagonista e autor terem a mesma identidade e, no entanto, tratar-se claramente de
uma obra de ficção? Essa indagação surgiu em Lejeune:
O herói de um romance pode ter o mesmo nome que o autor? Nada impede
que isso aconteça, o que talvez seja uma contradição interna que produz
efeitos interessantes. Mas, na prática, nenhum exemplo justifica um trabalho
desse gênero (LEJEUNE, 1975:31).
26
É importante lembrar que o termo autoficção é recente e está em constante discussão.
A partir de trabalhos cada vez mais numerosos, as críticas e pesquisas ajudam a construir e a
elaborar este novo termo, variante da autobiografia, que se torna cada vez mais forte.
Apesar das inúmeras tentativas de definição do gênero autobiográfico, a de Lejeune,
surgida em Le Pacte Autobiographique, se mostra mais clara e objetiva. Fundamenta-se em
três critérios: narrativa retrospectiva em prosa; tripla identidade de nome entre autor, narrador
e personagem; e pacto autobiográfico entre autor e receptor (leitor).
Alguns anos mais tarde, numa entrevista em 2002, ele tece algumas considerações
sobre o pacto:
Em 1986, num artigo intitulado “Le Pacte Autobiographique (bis)” (Revue Poétique,
n. 56), Lejeune já havia feito uma autocrítica ao retomar os conceitos elaborados em 1975,
afirmando que “as discussões críticas me ajudaram a ver as imperfeições e os limites de
minhas análises”. Cita então Vapereau, para quem a autobiografia deixa um grande espaço à
fantasia, e completa afirmando que o sucesso do termo “autobiografia” está, sem dúvida,
ligado à tensão entre dois pólos (ficção/realidade) que dão margem à ambigüidade e à
indecisão.
Ao comentar o termo autoficção, ele afirma que “faltava um termo do vocabulário
crítico e Doubrovsky o forneceu”. Sua definição designa a autoficção como o espaço entre
uma autobiografia que não quer dizer seu nome e uma ficção relacionada ao seu autor: “[...] O
termo designa a lacuna entre uma autobiografia que não se assume como tal e uma ficção que
não quer se separar de seu autor” (Magazine Littéraire, 2002:23).
Lejeune, além disso, destaca o tom da subjetividade e da ambigüidade que o termo
implica, ao afirmar, na mesma entrevista:
Observa-se, portanto, que Lejeune abre as portas não apenas para as variantes do
gênero autobiográfico, já citadas por ele em sua própria obra, mas também para os gêneros e
27
autores que trabalham com os limites e as fronteiras propostos por uma nova concepção da
escrita que ainda se define como autobiográfica. É a força da autoficção que se impõe,
preenchendo as lacunas deixadas por uma definição objetiva, porém insuficiente. É
interessante observar também a resistência dos próprios escritores ao pacto proposto por
Lejeune: “A palavra autobiografia assusta os escritores; é como se afirmasse que eles não são
artistas” (Magazine Littéraire, 2002:23).
Ainda que variantes da escrita autobiográfica, termos como o de autoficção ou o de
romance autobiográfico se mostram muito mais propensos ao jogo subjetivo da ambigüidade
entre autor/leitor, ficção/real. No que se refere a Amélie Nothomb e a seu conjunto de textos
autobiográficos, nos quais as fronteiras entre real e ficção são ambíguas, o termo autoficção
encontra seu espaço, não porém de maneira completa. Para Doubrovsky, a autoficção se
aplica na lacuna deixada por Lejeune e por sua definição tradicional; se a obra de Nothomb
está inserida nesta lacuna, também não se pode afirmar que, segundo os critérios de
Doubrovsky, sua obra seja um exemplo de autoficção. Para o teórico, é preciso que haja tripla
identidade nominal entre autor, protagonista e narrador, além do protocolo que ateste a obra
como ficcional, configurando a proposta do termo como uma “ficção sobre si mesmo”. Ora,
no caso das narrativas autobiográficas de Nothomb, as únicas informações expostas ao leitor
sobre as protagonistas/narradoras são seu gênero (feminino) e suas idades. No mais, nenhuma
informação é fornecida e, portanto, não há como afirmar que há tripla identidade nominal.
Além disso, a questão da ficcionalidade também é subjetiva, na medida em que não há como
se afirmar se os fatos relatados são inteiramente autênticos ou imaginados. Nas palavras da
própria autora, existe ambigüidade na referência à sua obra como fictícia ou autobiográfica:
Je crois que c'est dans les oeuvres fictives qu'on a encore le plus de liberté de
parler de soi. Mais ce n'est pour ça que ce n'est pas sorti de l'imagination ; elle
ne se nourrit pas de rien. Le combustible de l'imagination, c'est ce que l'on a
vécu. 13
28
da narradora (“Vint enfin le jour de mes trois ans. C´était le premier anniversaire dont j´étais
consciente” [2000 :29].) e dados referentes à profissão de seu pai, da qual resultam os
freqüentes deslocamentos da família, e ao país de origem da autora:
Na introdução de sua obra Je est un autre (1980), Lejeune faz uso da mesma frase que
dá nome ao livro: “Eu é um outro”. Mas que outro é esse, no qual me ponho, o qual também
sou? Num relato de infância, que se identifica como autobiográfico, qual a relação que se
estabelece entre o eu-adulto que escreve e o eu-criança representado? Em Métaphysique, a
criança rememora sua infância para que este período de sua vida, em particular, não seja
14
Famosas palavras de Rimbaud em “Lettre du Voyant”, e também título de um dos livros de Philippe Lejeune,
que comentaremos a seguir.
15
Declaração retirada de uma entrevista realizada em 28 de setembro de 2001, disponível no site
http://www.fluctuat.net/livres/interview/nothomb.htm
29
apagado: “Si tu parviens à écrire les merveilles de ton paradis dans la matière de ton cerveau,
tu transporteras dans ta tête sinon leur réalité miraculeuse, au moins leur puissance”
(2000 :127).
Neste caso, o eu-adulto existe a serviço do eu-criança, buscando retratar suas
experiências infantis e, desta forma, aproximar o adulto já presente por trás da narrativa.
Baseando-se no fundamento japonês que determina os primeiros três anos de vida como
estado divino, a narradora reflete que o fim da infância implica grandes perdas que não podem
ser recuperadas:
Avoir trois ans n´apportait décidément rien de bon. Les Nippons avaient
raison de situer à cet âge la fin de l´état divin. Quelque chose – déjà ! – s´était
perdu, plus précieux que tout et qui ne se récupérerait pas : une forme de
confiance en la pérennité bienveillante du monde (2000 :141).
Se “eu é um outro”, isto não ocorre somente porque sua enunciação esconde
múltiplas instâncias, mas também porque toda narrativa de vida não passa de
16
Noção de duplo a partir do estudo elaborado por Freud em:
FREUD, S. O estranho. In: Obras completas. Rio de Janeiro, Imago:1919. (v.27)
30
uma reprise ou uma transformação das formas de vida preexistentes. É uma
evidência; mas esta evidência implica um efeito de transparência (LEJEUNE,
1980:08).
[...] j´avais cinq ans quand j´y suis arrivée et huit quand j´en suis repartie.
Je me souviens très bien du jour où j´ai appris que j´allais vivre en Chine.
J´avais à peine cinq ans, mais j´avais déjà compris l´essentiel, à savoir que
j´allais pouvoir me vanter (1993 :12).
Récapitulons. Petite, je voulais devenir Dieu. Très vite, je compris que c´était
trop demander et je mis un peu d´eau bénite dans mon vin de messe : je serais
Jésus. [...] Adulte, je me résolus à être moins mégalomane et à travailler
comme interprète dans une société japonaise (1999 :13).
[...] falaremos de bio/grafia, com uma barra que une e separa dois termos em
relação instável. “Bio/grafia” que se percorre nos dois sentidos: da vida rumo
à grafia ou da grafia rumo à vida. A existência do criador desenvolve-se em
função da parte de si mesma constituída pela obra já terminada, em curso de
remate ou a ser construída. Em compensação, porém, a obra alimenta-se dessa
existência que ela já habita (MAINGUENEAU, 1995:46).
A questão do nome próprio, “quem diz eu?”, é essencial ao tema. Fernando Pessoa
utiliza uma série de heterônimos auto-referenciais cujo conjunto forma uma “auto-hetero-
31
biografia”. Borges distorce sistematicamente a relação entre seu nome e um referente que se
designa como ficção (como exemplo dessa “dupla identidade homônima” há o conto Borges e
eu). Em Nothomb, a relação entre nome e referente também será distorcida, de maneira sutil e
ambígua, uma vez que, na narrativa, nunca há um nome completamente explícito para que
uma associação possa ser feita entre autor e personagem. O que há são indícios de um duplo
que não exclui, mas agrega; que opõe, mas também se insere no outro. O adulto que
rememora ou vive as histórias narradas é composto – e oposto – pela criança personagem, já
que, embora tenham a mesma identidade, estabelecem uma relação de oposição entre “o que
fui” e “o que me tornei”. Em Métaphysique, esse outro, por vezes, é Deus, mas também forma
o eu/criança e o eu/adulto: “Dieu, c´était moi en état de plaisir ou de potentialité de plaisir:
c´était donc moi tout le temps” (2004 :40). Na narrativa de Nothomb, a relação entre
identidade e alteridade é sempre posta em questão, seja através das dualidades criança/adulto,
autor/personagem ou oriente/ocidente, a qual será abordada no último e terceiro capítulo deste
estudo.
Trataremos agora da função do tempo e da memória na escrita, e de que maneira o
texto autobiográfico problematiza a relação entre ficção, realidade e memória.
17
Watt, Ian. A ascensão do romance. São Paulo, Cia. Das Letras: 1996.
32
romance 18 que é a sua própria vida” , escreve, por exemplo, a psicanalista Maria Rita Kehl em
seu artigo “Minha vida daria um romance” (2001), citando as palavras de Jacques Lacan.
Impotente diante do futuro desconhecido, o homem é confrontado com o poder real e
simbólico do tempo e sente sua passagem de forma inexorável. Dessa forma, pensar a própria
vida tal qual um romance significa tentar estruturá-la de maneira lógica e linear, quer dizer,
projetar nela um começo, um meio e um fim:
Portanto, pensar nossas vidas através de um fio narrativo é uma tentativa de lhe
fornecer unidade, sentido e coerência; é pensar que, como indivíduos coesos, não vivemos
dias transcorridos a esmo, sem controle e sem conhecer os acontecimentos seguintes, tendo
como única certeza o vazio representado pelo não-ser, pela morte. As ficções, nesse sentido,
mostram-se como opção para preencher o vazio metafísico, uma tentativa de aplacar a
angústia do desconhecimento do futuro, como afirma o filósofo Michel Onfray:
18
Maria Rita Kehl alude aqui à concepção de romance que aparece no “romance familiar”, conceito criado por
Freud e do qual Lacan faz uso.
33
enredo, e essa unidade do texto parece dar unidade à vida. Se a sociedade espera que o tempo
de vida de cada um seja uma sucessão de eventos significativos, que projetem transformações
e crescimento interior no indivíduo, a passagem do tempo na narrativa deve implicar
igualmente mudanças na construção de nossas identidades e em nossas consciências; passado
e presente se associam através das lembranças e da memória. A memória surge então como
construto desse poder de controle – fictício – sobre o tempo. Ou, como afirma Kehl, o
homem, ao se colocar na escrita, torna-se atemporal, pois luta contra o poder do tempo: “O
sentido da vida como uma unidade coesa orienta toda a ação do romance, até se revelar no
capítulo final, geralmente com a morte de um dos personagens, ou talvez [...] com a morte de
suas ilusões juvenis” (KEHL, 2001:61). O episódio, narrado em Stupeur et tremblements, em
que a protagonista luta contra o tempo e termina por aniquilá-lo, num sentido simbólico,
ilustra bem essa questão:
Como afirma Watt, o romance realista, que tinha por objetivo o retrato da verdade
humana, se interessou pela evolução dos personagens ao longo de um processo temporal. É
preciso então dar um sentido ao tempo das nossas vidas, através do sentido (semiológico) da
linguagem; e é aí que entra o trabalho de rememoração e escrita. A passagem do tempo, na
obra de Nothomb, é sempre sentida pela protagonista de maneira angustiante: o tempo corre, e
se escorre, gerando mudanças e/ou deslocamentos. Em Métaphysique, a associação entre
tempo e natureza é mostrada através das variações estações do ano, que no Japão são bem
definidas. Assim, quando a paisagem ao seu redor se transforma, a narradora se mostra
perturbada, sobretudo no outono, onde a queda das folhas e os tons cinzentos dão sempre a
idéia de morte e de fim para que algo possa recomeçar. A narradora associa as mudanças de
estação às etapas do desenvolvimento do ser humano; a infância é associada à primavera e, o
outono, ao crescimento e à maturidade: “Il y a la croissance et puis il y a la décrépitude ; entre
les deux, il n´y a rien. Il y avait un long printemps, une montée spectaculaire des sèves et des
désirs : mais dès que cette poussée était finie, c´était déjá la chute” (2000 :142).
Assim, enquanto observa a paisagem se transformando em torno de si, a narradora
reflete sobre a angústia provocada pela idéia de que, após o “florescimento”
(primavera/infância) há a “decrepitude”, o fim (outono/maturidade):
34
A trois ans, je ne savais rien de cela. J´étais à des années-lumière du roi qui se
meurt en s´écriant: ‘Ce qui doit finir est déjá fini.’ J´aurais été incapable de
formuler les termes de mon angoisse. Mais je sentais, oui, je sentais qu´une
agonie se préparait. La nature en faisait trop : cela cachait quelque chose
(2000 :142).
Ora, pensar a memória como esse duplo gesto é pensá-la também como uma
desmemória, como alguma coisa que se tece, ou que sobrevive, justamente a
partir do esquecimento, a partir dessa estranha urdidura, desse absurdo
suporte que, afinal, não passa de uma ausência, de uma lacuna, de um buraco
(BRANCO, 1994:36).
Pois, o que se mostra essencial para o autor que retoma suas lembranças, não
é de maneira alguma o que ele viveu, mas a urdidura dessas lembranças, o
trabalho de Penélope da rememoração. Ou dever-se-ia falar então do trabalho
de uma Penélope do esquecimento? A memória involuntária de Proust não se
19
BENJAMIN, Walter. « L´Image proustienne », in Oeuvres II. 2000:136.
20
Na mitologia grega, Mnemosyne, a deusa da memória, é responsável não somente pelo resgate do passado,
mas também pela sua perda.
35
torna, portanto, muito mais próxima do esquecimento do que daquilo que se
convencionou chamar de lembrança? (BENJAMIN, Walter. 2000:136).
Ao analisar La Recherche du temps perdu, Benjamin atesta que Proust não descreve
uma vida exatamente como esta aconteceu, mas sim como uma vida rememorada, e esta é a
chave para toda obra que se propõe memorialística. Benjamin fala também da aproximação
entre o mundo textual e o mundo onírico: para o crítico, as imagens rememoradas descritas no
texto se assemelham aos acontecimentos e imagens que produzimos quando sonhamos, que,
mesmo quando correspondam à realidade, nunca são rigidamente precisas e idênticas como as
imagens reais:
Como mundo onírico, há mais uma vez, através das palavras de Benjamin, a
legitimação do papel da imaginação, de uma imagem do “irreal” na configuração da escrita
memorialística e autobiográfica. Esta correspondência entre mundo rememorado e mundo
onírico é ressaltada pelo narrador proustiano que, em sua narrativa, oscila sempre entre os
estados de sono e de vigília, como ilustra seu célebre início:
36
O mesmo se dá no momento em que a narradora de Métaphysique se questiona se a
lembrança do que ela viveu não é mais do que um sonho: “Parfois je me demande si je n´ai
pas rêvé, si cette aventure fondatrice n´est pas un fantasme. Je vais alors me regarder dans le
miroir et je vois, sur ma tempe gauche, une cicatrice d´une éloquence admirable”
(2000 :157). Se as imagens da lembrança por vezes são tão fluidas que se aproximam mais de
um sonho do que da realidade, as marcas deixadas pelo vivido são precisas e constantes. A
reescrita do passado se dá através dessas marcas, únicos signos evidentes, como a cicatriz que
lhe permite lembrar do tombo na água. Fato este que mais uma vez nos remete ao mito de
Penélope que, a partir da cicatriz na perna de Ulisses, refaz o caminho de volta ao passado e,
dessa forma, torna possível todo o trabalho de sua reconstrução.
Pensar o trabalho da rememoração, tal como ele se apresenta na escrita autobiográfica,
como a impossibilidade de construção do real nos remete também ao que Edson Rosa da
Silva, em seu artigo sobre André Malraux intitulado “Autobiographie/Antibiographie”, chama
de imagem do “negativo da foto”. Segundo Silva, a imagem do negativo da foto ilustra bem a
relação entre o mundo real e a obra de arte, no caso, a narrativa autobiográfica:
21
Artigo também disponível no endereço
http://www.andremalraux.com/malraux/articles/rosadasilva.pdf
37
(1999 :134). Vale observar que, na narrativa de Nothomb, a idealização da infância é que leva
a narradora a considerá-la como uma época de suprema felicidade, ainda que a narrativa, às
vezes, demonstre o contrário, uma vez que os conflitos entre a criança e o outro são
constantes. Em seu artigo Proust: temps retrouvé, sens encore à venir sobre a obra proustiana,
Marcelo Jacques analisa a relação entre tempo, escrita e felicidade no texto memorialístico.
Segundo Jacques, o tempo perdido, seja na experiência vivida ou na escrita dessa experiência,
é também o tempo de busca de uma felicidade inalcançável:
22
Grifos do autor, ao utilizar palavras de Proust.
38
essa imagem idealizada de seu universo infantil, apresentando-o ora como paraíso, ora como
inferno.
É neste sentido que se inserem as narrativas de Nothomb, autobiografias anti-realistas,
se compreendermos que todo trabalho de rememoração é transformador da realidade que
propõe retratar. Por realismo deve-se compreender o que Antoine Compagnon, em O
Demônio da teoria (2003), declara como ilusão lingüística, ou seja, “pensar que a linguagem
pode copiar o real, que a literatura pode representá-lo fielmente, como um espelho ou uma
janela sobre o mundo, segundo as imagens convencionais do romance” (2003:107). A partir
da concepção realista clássica, a narrativa nothombiana se oporia a uma concepção da
literatura como possível reflexo do real. É por esse viés que o texto memorialístico de
Nothomb pode ser considerado como uma autobiografia anti-realista, no sentido de que não
há preocupação alguma da autora em mostrar uma narrativa verossímil e comprometida com a
realidade pragmática. Afinal, como se mostra claro, uma autobiografia compreendida entre
zero e três anos não se propõe a retratar a realidade.
Além disso, se o preenchimento das lacunas da memória é válido, como bem declara
Benjamin, então nada mais justo que o relato de infância de Nothomb, num período de pré-
consciência, seja também válido enquanto autobiografia, se considerarmos que toda
autobiografia agrega a si o poder da imaginação como preenchedor das lacunas. Deve-se,
sobretudo, considerar o fato de que é impossível, para quem quer que seja, rememorar com
exatidão qualquer evento ou sensação do passado. A lembrança será sempre “impura”, como
atesta Bergson, e o passado, essencialmente virtual. Dessa forma, qualquer tentativa de escrita
do passado será sempre uma construção. E, sendo um processo de construção, qualquer fato
lembrado será sempre uma imagem do presente:
Essencialmente virtual, o passado não pode ser apreendido por nós como
passado a menos que sigamos e adotemos o movimento pelo qual ele se
manifesta em imagem presente, emergindo das trevas para a luz do dia. Em
vão se buscaria seu vestígio em algo de atual e já realizado: seria o mesmo
que buscar a obscuridade sob a luz (BERGSON, 2001:158).
Neste sentido, toda autobiografia, enquanto espaço construído pela memória e pela
imaginação, será também invenção, o que nos leva de volta à autoficção: segundo a
perspectiva benjaminiana, pode-se compreender todo trabalho autobiográfico essencialmente
como uma autoficção, já que sua proposta realista se mostra ilusória.
De que modo se insere a escrita de Amélie Nothomb nesse contexto? Se pensarmos
sobretudo em Métaphysique, a narrativa que coloca sua infância mais em evidência, a
narradora/protagonista caminha no sentido de uma memória que contextualiza sua existência
39
e dá forma à sua identidade. Ao refletir sobre o papel da memória em guardar as sensações
apreendidas e perdidas no passado, a narradora observa: “Au moins mon souvenir lui
conserve-t-il l´existence” (2000 :47), afirma ela. Na página anterior, a narradora escreve algo
que faz lembrar a reflexão bergsoniana sobre sensação, passado e presente, ao declarar que :
“Il m´était arrivé une chose peu commune: j´avais vécu ça dans l´autre sens, à un âge où ma
mémoire pouvait sinon s´en souvenir, au moins en conserver une vague impression”
(2000 :46).
No capítulo seguinte, analisaremos o papel do narrador em Métaphysique des tubes, e
de que forma ele e outros procedimentos narrativos, tais como a ironia, a metalinguagem e a
intertextualidade, são utilizados pela autora como ferramentas discursivas a fim de fortalecer
o efeito do real depreendido de seu texto.
40
2. AMÉLIE NOTHOMB E A ILUSÃO REALISTA
“Une affirmation aussi énorme – je me souviens de tout – n´a aucune chance d´être
crue par quiconque. Cela n´a pas d´importance. S´agissant d´un énoncé aussi invérifiable, je
vois moins que jamais l´intérêt d´être crédible” (2000 :35).
Com esta afirmação, a narradora de Métaphysique des Tubes expõe, simultaneamente,
o grau de complexidade conceitual e as diferentes instâncias do discurso narrativo
característico da obra em questão. “Je me souviens de tout” , afirma ela com convicção, ao
mesmo tempo em que reconhece que a veracidade de sua afirmação não é aceita. Conclui,
com desdém, que isto não importa, a partir do momento em que não há meios de ter sua
credibilidade verificada. Esta é a principal ironia de toda a narrativa memorialística – e
fragmentada – de Amélie Nothomb, compondo um grande puzzle, um quebra-cabeças, onde o
discurso se assemelha a um jogo de pistas, deixadas para serem lidas e interpretadas pelo
leitor.
Por meio dessa ironia, o fragmento evidencia toda a problemática das relações
estabelecidas dentro de uma narrativa: a relação entre autor, narrador e objeto (discurso),
assim como as questões levantadas no que concerne à sua posição temporal, já que se trata de
uma narrativa que Gérard Genette chama, como veremos mais adiante, de “discurso ulterior”.
A utilização do pronome de primeira pessoa – Je – coloca outro problema, evidenciado pela
indagação: quem fala ? Quem diz “eu” ? A quem se refere a pessoa gramatical da narrativa ?
Como bem lembra Genette, em sua obra de referência sobre estudos narrativos (GENETTE,
1972:225), o “eu” somente é identificável a partir de um “outro”, ou “ele” ; assim como o
tempo passado da narrativa só pode ser identificado em oposição a outro tempo, o tempo da
narração. Ou seja, as questões “quem fala ?” e “quando fala ?” só podem ser delimitadas
através de sua confrontação com outros elementos.
Um narrador que, além de contar a história, interfere no discurso, comentando-o,
questionando seu próprio estatuto de discurso narrado do passado, é característico de toda a
obra de Nothomb. Em particular, pode-se citar a utilização da ironia da narradora ao
interrogar o próprio leitor quanto à “veracidade” de seu próprio discurso, confundindo-se, ao
mesmo tempo, com a personagem e a autora. A memória do discurso, sua referencialidade ou,
como ela a coloca, sua credibilidade enquanto narrativa realista ou “verídica”, é então
colocada em questão. Como, por exemplo, na passagem a seguir, em que a narradora afirma
41
se lembrar de ter sido Deus um dia e, com isto, provocando no leitor a suspeita de que seu
discurso não se baseia em lembranças “reais”:
J´avais le souvenir vague d´avoir été Dieu, il n´y avait pas si longtemps.
J´entendais parfois dans ma tête une grande voix qui me plongeait en
d´incalculables ténèbres et qui me disait: “Rappelle-toi! C´est moi qui vis en
toi! Rappelle-toi!” (2000 :40).
Ou, ainda, quando a narradora tece comentários irônicos sobre o papel da imaginação
na literatura:
Qu´une énorme part de jalousie et de mauvaise foi se melât à mon indignation
ne contredit pas le fond de l´affaire: j´étais dégoûtée que l´on portât aux nues
une histoire où les bons sentimens tenaient lieu d´imagination.
De ce jour, je décrétai que la littérature était un monde pourri. (1993 :117)
42
2.1. Instância narrativa: o tempo do discurso nothombiano
43
Principalmente no que diz respeito a estes textos autobiográficos que, interligados, formam a
trama memorial da autora/narradora.
Como narrativas memorialísticas, seus quatro textos se entrelaçam formando inclusive
uma seqüência narrativo-temporal: em primeiro lugar, há Métaphysique des Tubes, narrando o
período de 0 a 3 anos da narradora; em segundo, há Le Sabotage Amoureux, que abrange o
período de 5 a 8 anos; em seguida, há Stupeur et Tremblements, considerando a idade de 21
anos da narradora em seu período de (sobre)vivência no Japão, o qual durou um ano.
Permeando e interligando as três narrativas, há Biographie de la Faim, o último deles a ser
lançado, que inicia sua narrativa a partir dos 3 anos de idade da narradora, abrange a lacuna
deixada entre Métaphysique e Sabotage (3 a 5 anos) e segue narrando episódios que
perpassam os anos vividos no Japão (Métaphysique), China (Sabotage), Birmânia, Nova
York, Bangladesh até o retorno à Bélgica, quando a narradora já era adolescente.
Reproduzo, abaixo, com algumas modificações, o quadro apresentado por Hélène
Jaccomard em seu artigo crítico sobre o trabalho autobiográfico de Nothomb (JACCOMARD,
2003:23). Para completar, acrescento a última obra lançada (Biographie de la Faim), mesmo
que esta não considere um período específico e objetivo como as obras anteriores da autora:
45
fatos que, posteriormente, serão objeto de outras narrativas, num processo que tende a
estabelecer uma continuidade entre seus textos. A imagem da memória enquanto tecido fica
então mais clara do que nunca; um grande tecido formado de diversos retalhos, que compõem
a grande trama e recompõem sua infância recriada pela memória e pela imaginação.
Segundo Genette, a questão temporal numa obra deve ser considerada a partir da
relação estabelecida com todos os outros aspectos, pois, isoladamente, ela não se torna uma
questão relevante:
Para esse autor, é possível contar uma história sem precisar o lugar onde se passa,
enquanto que se torna quase impossível não situá-la no tempo em relação ao ato narrativo, já
que deve ser narrada em um tempo do presente, do passado ou do futuro. É por isso que, para
o teórico, as determinações temporais importam muito mais do que as circunstâncias espaciais
– explícitas ou não – numa narrativa. Como exemplo, ele cita o narrador/personagem Marcel,
em La recherche du temps perdu de Proust, ao dizer que, apesar de ignorar onde Marcel
produziu sua escritura – e de essa informação não ser relevante -, é importante saber quanto
tempo decorre entre a primeira cena da Recherche e o momento em que ela é evocada pela
seguinte frase: “Il y a bien des années de cela [...]”, pois é esta distância temporal entre um e
outro momento que forma um elemento capital de significação da narrativa.
A principal determinação temporal da instância narrativa é sua posição em relação à
história narrada. A narrativa considerada autobiográfica é sempre retrospectiva e
conseqüentemente posterior ao tempo da narração. Tanto Métaphysique, quanto as outras três
narrativas que compõem nosso corpus, são textos memorialísticos que possuem em comum o
fato de serem retrospectivos. Ao traçarem o intrincado tapete do passado e da memória da
narradora, as narrativas por vezes se entrelaçam, se associam, através de constantes
(inter)referências, como estas em Sabotage, em relação aos anos passados no Japão, narrados
mais tarde em Métaphysique:
Pour moi encore plus que pour les autres, ce fut la découverte de la liberté. Je
venais de passer de longues années au Japon (1993 :52).
46
E ainda estas outras, referentes ao período vivido em Nova York, que seria também
narrado mais tarde em Biographie:
Bientôt, mon père apprit son affectation à New York. Je rendis grâce à
Christophe Colomb (1993 :184).
Passer sans transition de Pékin à New York eut raison de mon équilibre
mental. [...]
Au Lycée français de New York, dix petites filles tombèrent folles
amoureuses de moi. Je les fit souffrir abominablement.
C´était merveilleux (1993 :186).
Avoir cinq ans se révéla désastreux. La menace confuse qui planait sur nos
têtes depuis plus de deux années se concrétisa brusquement : nous quittions le
Japon. Déménagement pour Pékin.
J´avais beau savoir depuis longtemps qu´un tel drame allait se produire, je n´y
étais pas préparée. Pouvait-on s’armer contre la fin du monde ? Quitter
Nishio-san, être arrachée à cet univers de perfection, partir pour l´inconnu :
c´était à vomir (2004 :69).
47
Ou ainda esta referência ao período em que trabalha como intérprete, em sua volta ao
país da infãncia: “Je lui dis que j´allais entrer quelques jours plus tard dans l´une des plus
grandes compagnies japonaises, où je travaillerais comme interprète. Nishio-san me félicita”
(2004 :239).
Afinal, como afirma Nothomb, “Tout devint fragment, puzzle dont il manquait de plus
en plus de pièces” (2004 :202). Se as peças que faltam são fornecidas não pela memória mas
pela imaginação que preenche as lacunas, os espaços vazios, cada fragmento intratextual
confirma o sentido de sua obra como uma grande colcha de retalhos.
Essas constantes referências que fazem a associação entre os textos, formando o puzzle
memorialístico, determinam um ir-e-vir na narrativa que marca o tempo da narração. Isto
pode ser explicado como um recurso que reforça o aspecto fragmentado que uma narrativa no
passado adquire, aproximando-se e/ou distanciando-se da história narrada: “Deve-se
considerar que a narração no passado pode se fragmentar para ser inserida em diferentes
momentos da história, como uma espécie de reportagem mais ou menos próxima. [...]”
(GENETTE, 1972:228).
Este ir-e-vir narrativo é também incorporado ao nível discursivo. Observemos,
primeiramente, a distinção feita por Genette entre os quatro tipos de narração:
O teórico completa, afirmando que o último tipo é o mais complexo, pois se trata de
uma narrativa de diversas instâncias, cuja história pode se entrelaçar à narração. A princípio, a
partir da definição de Genette de narrativas ulteriores, Métaphysique e as outras três narrativas
em retrospectiva se encaixam no modelo proposto:
Este tipo de narração é sem dúvida predominante nas narrativas em análise, sendo
utilizados, como tempos do passado, o passé simple (“Nous arrivâmes à la pièce d´eau.”
NOTHOMB, 2000:84), alternado com o imparfait (“J´étais Dieu.” NOTHOMB, 1999:82).
No entanto, apesar do uso predominante dos tempos no passado, há constantes intromissões
48
do narrador, marcando diversas instâncias temporais, tanto em relação ao presente (tempo da
escrita), quanto em relação ao futuro (mas ainda um tempo anterior ao tempo da escrita da
narrativa). Em Métaphysique e Sabotage são, portanto, três as instâncias narrativas: a do
narrador no presente (tempo da escrita, lugar de onde ele fala), a do narrador projetado no
passado (projeção 1), e a do narrador projetado num passado posterior ao passado da história
narrada (projeção 2):
J´avais déjà donné leur nom à quatre personnes; à chaque fois, cela les rendait
si heureuses que je ne doutais plus de l´importance de la parole: elle prouvait
aux individus qu´ils étaient là. J´en conclus qu´ils n´en étaient pas sûrs. Ils
avaient besoin de moi pour le savoir (2000: 42).
Vingt années plus tard, je lus ce poème d´Aragon, en frissonant [...] (2000 :
79).
Plus tard, bien plus tard, j´ai appris à aimer le nô, á l´adorer, comme l´auteur
de mes jours qui eut besoin d´apprendre à le chanter pour l´aimer à la
folie (2000 : 96).
Dix ans plus tard, en apprenant le latin, je tombai sur cette phrase : Carpe
diem (2000 : 137).
En 1985, dans son film Papa est en voyage d´affaires, Kusturica a tourné une
scène d´interrogatoire communiste qui mettait en présence trois personnes :
l´interrogateur, l´interrogé et un ventilateur (1993 :36).
49
E ainda há o tempo da escrita, lugar de onde fala o narrador e que configura seu
presente:
C´est une chose qui me paraît encore absconse aujourd´hui (1993 :65).
En ces conditions, je ne puis que conclure ceci : cette histoire s´est passée en
Chine autant qu´on le lui a permis – c´est- à-dire très peu.
C´est une histoire de ghetto. C´est donc le récit d´un double exil : exil par
rapport à nos pays d´origine (pour moi le Japon, car j´étais persuadée d´être
japonaise), et exil par rapport à la Chine qui nous entourait mais dont nous
étions coupés, en vertu de notre qualité d´hôtes profondément indésirables
(NOTHOMB, 1993 :127).
Essa voz autoral, que se insurge no texto e o comenta, configura um recurso utilizado
por Nothomb a fim de reforçar o estatuto da obra como autobiográfica, uma vez que dá lugar
e vida a um narrador que parece ter existência fora da história rememorada. O anacronismo do
texto acentua a presença da enunciação e garante certa veracidade à narradora.
A alusão ao texto enquanto narrativa, ou melhor, enquanto um processo de escrita que
se faz à medida que a história é contada fica ainda mais clara quando a narradora se refere
explicitamente ao texto propriamente dito. É aí que se coloca a narradora, falando de um lugar
23
ECO, Umberto. Sobre a literatur. Rio de Janeiro, Record :2003.
50
que se configura como o tempo da escrita, em relação ao tempo em que a história é narrada.
No fragmento a seguir, de Biographie de la Faim, esses dois lugares narrativos ficam bem
claros através da alusão simultânea ao texto e à idade em que a narradora tinha quando se
passam os episódios narrados: “Si ces pages en parlent à peine, c´est par souci d´authenticité
envers le délire d´une gosse de huit ans” (2004 :103). Da mesma forma, a narradora faz
também referência ao processo autobiográfico, numa relação direta entre experiência
vivida/história narrada, quando cita os eventos vividos durante seu retorno ao Japão, aos 22
anos, e sua decisão de não passá-los, integralmente, para o papel :
Ces pages pourraient donner à croire que je n´avais aucune vie au dehors de
Yumimoto. Ce n´est pas exact. J´avais, en dehors de la compagnie, une existence
qui était loin d´être vide ou insignifiante.
J´ai cependant décidé de n´en pas parler ici (1999 :159).
O efeito realista do tom autobiográfico criado pela própria autora se coloca de modo
ainda mais objetivo quando a narradora – que, nas quatro narrativas autobiográficas, sempre
se identifica apenas parcialmente, através de seu primeiro nome ou de um mero pronome
referencial – põe em cena seu processo de escrita enquanto ato formalmente identificado:
C´est en 1989 que je me mis à écrire à plein régime. Retrouver le sol japonais m´en
donna l´énergie. C´est là que j´adoptai ce qui est devenu mon rythme : consacrer un
minimum de quatre heures par jour à l´écriture.
Écrire n´avait plus rien à voir avec l´extraction hasardeuse des débuts ; c´était
désormais ce que c´est aujourd´hui – la grande poussée, la peur joussive, le désir
sans cesse ressourcé, la nécéssité voluptueuse (2004 :234).
A narradora faz referência ao seu próprio estatuto de escritora, quando comenta ser
autora de outros romances, ou mesmo cita nominalmente romances já publicados: “Quelques
jours plus tards, je retournai en Europe. Le 14 janvier 1991, je commençai á écrire un
manuscrit dont le titre était Hygiène de l´assassin. [...]” (1999 :186).
Interessante é também observar que, em relação a Métaphysique, forma-se uma
narrativa circular, tomando-se seu início, com a primeira frase “Au commencement il n´y
avait rien” (p.05), e a frase que fecha a narrativa “Ensuite, il ne s´est rien passé” (p.157). A
última frase marca um retorno ao começo do livro e da história: no início, a narradora abre a
descrição de sua vida como um “tubo” e, ao fim, questiona-se sobre o estatuto da memória em
seu relato de infância: “Parfois, je me demande si je n´ai pas rêvé, si cette aventure fondatrice
n´est pas un fantasme” (p.157). E é justamente nessa descontinuidade temporal que se insere o
sujeito do discurso, interferindo no texto e em suas lacunas.
51
2.2 Os múltiplos olhares em Métaphysique des tubes
52
de mon enfance et de ma petite enfance’. Acreditar na autenticidade das nossas memórias de
infância não basta para legitimá-las como verdadeiras” (JACCOMARD, 2003 :11).
A narrativa que se caracteriza como autobiográfica depende da relação estabelecida
entre autor/narrador/leitor, através do que Lejeune chama pacto autobiográfico. Ou seja, o
leitor se compromete a acreditar numa possível referencialidade entre o narrador (“je”) e o
autor, como pessoa biográfica. Um dos aspectos mais relevantes da obra de Amélie Nothomb
é que o leitor tem a tendência, corroborada por ela, a associar permanentemente o
narrador/protagonista à figura autoral. Nesse sentido, este narrador ambíguo, irônico, que se
mostra e se esconde, mas que nunca é totalmente explícito, constitui um dos mecanismos mais
importantes para produzir essa ilusão referencial.
Em Métaphysique, a narradora revela dupla posição. No início da narrativa, seu olhar
é distanciado, o que se caracteriza através do uso da terceira pessoa. A partir da página 30, no
entanto, uma transformação ocorre e a voz da narradora se transforma. Deixando de limitar-se
a uma mera observadora, representado pelo pronome na terceira pessoa do singular, a
narradora irrompe no texto de maneira explícita, torna-se alguém, denominado pelo pronome
“eu”. De que maneira se dá esta transição? E por quê? Por que passar para a narrativa em
primeira pessoa, que Genette chama de “autodiegética”, diferenciando-a da que faz uso da
terceira pessoa, “heterodiegética”? O interessante em Métaphysique é observar que essa dupla
narração – auto e heterodiegética – acontece sem que haja mudança de personagem. Ou seja,
há mudança de perspectiva e de pessoa gramatical, mas ambas as vozes se referem ao mesmo
sujeito: a protagonista. O mecanismo de dupla narração cria um efeito ilusório sobre o
narrador, como se um escondesse o outro: quando o Deus-tubo sai de cena, torna possível a
entrada na narrativa da protagonista infantil, representada pela primeira pessoa. Com essa
transformação, Nothomb cria uma ligação entre dois extremos que parecem excludentes:
o “eu” e o “outro” . Representado por Deus, no princípio da narrativa, o outro compõe um ser
poderoso que procura conduzir o mundo e a narrativa. Porém, ao se ver impotente diante de
suas limitações, esse outro-Deus se torna um “eu” . Nesse sentido, os elementos divino e
humano se associam, apresentando-se como contrários que se completam. A partir desse
recurso narrativo utilizado pela autora, entende-se que as perspectivas da narrativa e da
realidade podem mudar de acordo com a posição que adotamos em relação ao objeto:
enquanto representamos Deus, somos poderosos e autocêntricos; quando nos percebemos
como humanos, nos damos conta da impotência, das limitações e da impossibilidade de
realização plena. Assim, Nothomb diminui e elimina a distância entre o homem e Deus,
criando um elo narrativo que os une através da mesma identidade.
53
Genette também diferencia a perspectiva narrativa, que decorre de um ponto de vista
escolhido em relação aos personagens e à história, da voz, que se caracteriza pela identidade
do narrador ou, simplesmente, pela resposta à indagação “quem fala?”. A perspectiva, ou
focalização, do texto pode ser interna, externa ou zero (sem focalização). Esta última,
denominada por Pouillon de “olhar por detrás”, representa, em geral, a narrativa clássica, em
que o narrador tem mais informações do que o personagem; na focalização interna, chamada
por Pouillon de “olhar com”, o narrador sabe tanto quanto o personagem. Nesse caso, leitor,
narrador e personagem estão juntos, ligados por uma igual posição hierárquica; quer dizer,
dividimos os pensamentos e sentimentos do personagem em questão e é através dele que
tomamos conhecimento dos outros componentes da narrativa. Já a focalização externa, que
segundo Genette caracteriza a narrativa “objetiva”, é denominada por Pouillon de “olhar de
fora”: o narrador sabe menos do que o personagem e este age sem que saibamos seu caráter,
pensamentos e emoções. É o caso, por exemplo, dos romances policiais, onde se prefere
manter o tom enigmático. No entanto, Genette também deixa claro que o tipo de focalização
não é necessariamente constante durante toda uma narrativa : “A fórmula de focalização nem
sempre pode ser aplicada a uma obra inteira, mas somente a um determinado segmento
narrativo” (GENETTE, 1972 :208). Uma narrativa pode ser multifocalizada, e é este
exatamente o caso de Métaphysique, como veremos a seguir.
Distinguem-se dois tipos de narradores em Métaphysique: o narrador em primeira
pessoa, que nos faz participar da narrativa de maneira cúmplice, e o narrador que se manifesta
através de um distanciamento, por vezes crítico, em terceira pessoa. É o que Genette
denomina focalização externa que comanda a narrativa na primeira parte do romance e no
qual a ironia crítica se faz evidente na referência do narrador como um “Deus” que se
assemelha à imagem de um tubo, através dos termos “rondeur” e “immobilité”: “Il [Dieu]
était plein et dense comme um oeuf dur, dont il avait aussi la rondeur et l´immobilité. Dieu
était l´absolue satisfaction” (2000 : 05).
Porém, mesmo na narrativa em terceira pessoa, Booth fala da presença de um
narrador: o narrador-implícito, que não tem nenhuma característica pessoal, não está presente
de maneira explícita, e no entanto surge como uma voz mediadora do discurso, como um
“contador” ; utilizando o termo de Booth, como uma força mediadora e tranformadora na
história. É o caso da narrativa em terceira pessoa na primeira parte de Métaphysique. Mesmo
distante, o narrador se faz presente, sobretudo através da ironia com a qual descreve o
personagem “Deus-tubo”. Tal personagem – não é preciso dizer – é o foco central da
perspectiva externa nessa parte inicial do livro. A ironia do narrador é evidente ao continuar
54
descrevendo “Deus” como um ser inerte (“Dieu était l´incarnation de la force d´inertie – la
plus forte des forces”. [2000 :12]) e incapaz de se comunicar, entre outras coisas: “Dieu
n´avait pas de langage et il n´avait donc pas de pensée. [...] Dieu n´avait pas de regard.”
(2000 :06). O narrador então se distancia, chamando o leitor para um jogo de ilusionismo que
se mostra através da descrição irônica do personagem e de sua dimensão de ser autocêntrico e,
ao mesmo tempo, impotente diante de suas limitações: “Deux ans et demi. Cris, rage, haine.
Le monde est inaccessible aux mains et à la voix de Dieu” (2000 :28).
Mas esse jogo de ilusão, questão já abordada anteriormente, também é exposto após a
metamorfose dupla : a narração, até então na terceira pessoa, passa a ser realizada na primeira.
Entra então em cena, explicitamente, o pronome “eu” ; e o leitor se dá conta retroativamente
de que Deus, na realidade, é uma das formas desse “eu” que surge posteriormente na
narrativa, mas que depois comanda a ação a maior parte do tempo. E a metamorfose é dupla
pois, juntamente com a pessoa gramatical, nasce a pessoa existencial : o Deus-tubo se
transforma num ser, pleno de sentidos, de vontades, capaz de sentir prazer e de se comunicar:
La volupté lui monte à la tête, lui déchire le cerveau et y fait retentir une voix
qui n´avait jamais entendue :
- C´est moi ! C´est moi qui vis ! C´est moi qui parle ! Je ne suis pas ‘il’ ni
‘lui’, je suis moi ! Tu ne devras plus dire ‘il’ pour parler de toi, tu devras dire
‘je’ (2000 :30).
Fica então claro para o leitor que Deus e “eu” formam a identidade do mesmo
indivíduo. É a postura narcísica levada ao extremo, remetendo mesmo ao estatuto da obra
autobiográfica como escrita autocêntrica, em torno do “eu-Deus”.
A perspectiva narrativa em Métaphysique é, em geral, a focalização interna sobre o
protagonista. É o ponto de vista da personagem central da trama, uma menina – sem
referência nominal explícita – que comanda a história. A partir dela tomamos conhecimento
de suas vontades, de suas preferências, da exploração de seus sentidos, já que o texto narra o
período em que ela se “descobre” como um ser humano pleno de sensações, desde sua
transição de um tubo estático e distante a um alguém – ainda que bebê – plenamente
consciente de suas vontades e de suas reações. São as “múltiplas máscaras”, expressão
utilizada por Ligia Chiappini em O foco narrativo (1991), que um autor/narrador pode
assumir. O leitor é, portanto, levado a “olhar com” a protagonista e a viver, junto com ela, as
mesmas (primeiras) experiências :
55
Quando o narrador afirma que “nasceu” através do contato prazeroso com um
chocolate branco oferecido pela avó, temos então aí o princípio do prazer, identificado por
Freud como uma das pulsões do ser humano. Isto fica claro com o nascimento de alguém que
passou a “ser” através desta primeira experiência de prazer: “Le plaisir profita de l´occasion
pour nommer son instrument: il appela moi – et c´est un nom que j´ai conservé”. (2000 :32).
É, a partir daí, que a narrativa toma forma sob a primeira pessoa: no lugar do pronome “il”,
surge o “moi” do protagonista, assim como os pronomes referentes a ele (“mes parents”, “ma
soeur”). Simbolicamente, através da mudança dos olhares narrativos, Nothomb faz uma
paródia do autocentrismo autobiográfico, um texto narcísico por essência levado por um
narrador que será sempre “não confiável”, segundo o conceito estabelecido por Booth 24 e
estudado por Gregory Currie em artigo intitulado L’interprétation du non-fiable:
narrateurs non-fiables et œuvres non-fiables 25 . De acordo com Currie, uma narrativa ou um
narrador são “não confiáveis” (do inglês unreliable) quando o autor constrói seu texto de
maneira a representar uma realidade que, em essência, só poderia ser imaginada. A esse
respeito, Booth comenta que :
É certo que, entre a maior parte dos narradores “dignos de confiança”, os mais
conhecidos também se rendem a alguns momentos de ironia.
Conseqüentemente, eles se tornam “indignos de confiança”, no sentido de que
podem enganar de alguma maneira (BOOTH, 1977:105).
24
BOOTH, Wayne. The Rhetoric of Fiction. Chicago, Chicago University Press: 1983.
25
Artigo disponível no endereço http://www.vox-poetica.org/t/currie.html
26
Paul Ricœur, La mémoire, l’histoire, l’oubli, Seuil, Points Essais, 2000, p.306.
56
de tudo sobre a relação estabelecida entre as duas extremidades – autor e leitor – que repousa
o reconhecimento do que é configurado como “escrita do eu” :
Em sua obra intitulada Ironia e o irônico (1982), D.C. Muecke não apenas trabalha o
conceito de ironia, como também mostra o desenvolvimento desse conceito ao longo das
épocas. Segundo ele, o primeiro registro de eironeia surge na República de Platão, e seu
significado era algo como uma forma mais lisonjeira de enganar as pessoas. Aristóteles, no
entanto, considerara a eironeia como uma espécie de dissimulação autodepreciativa, enquanto
Cícero a considerava uma figura de retórica, “um hábito pervasivo 28 do discurso” (1982:31).
Estes últimos se aproximam do conceito moderno de ironia, seja através do narrador irônico,
por vezes impessoal, trabalhado por Booth (Rhetoric of fiction, 1961) através das obras de
Austen, Flaubert e James; seja através de uma definição mais contemporânea, que
compreende a ironia sobretudo como uma figura de linguagem, com uma estratégia verbal e
discursiva. Definia-se o termo como “algo que diz uma coisa mas significa outra”, ou ainda
como sinônimo de dissimulação, mesmo que subentendida, paródia ou escárnio.
Posteriormente, tal conceito tomou rumos diferentes, Muecke afirma que este sofreu uma
grande revolução: se antes se encarava a ironia como algo essencialmente intencional, uma
maneira adotada de promover um discurso, tornou-se possível então generalizá-la e ver o
mundo todo como se fosse um grande palco irônico do qual os homens seriam os atores. Mas
para além das diversas mudanças e conceitos listados por Muecke em seu texto, a questão
mais significativa do desenvolvimento deste conceito foi a que resultou na mudança de foco:
27
Citação retirada de tese disponível no site http://www.unilim.fr/theses/2004/lettres/2004limo0004/html/index-
frames.html
28
O termo pervasivo não se encontra em nenhum dicionário de língua portuguesa. Ele é resultado de uma
tradução incorreta do termo pervasive em inglês, que significa “penetrante, difuso”.
57
a ironia é considerada não mais a partir de quem se faz irônico, mas da vítima da ironia; ou
seja, muda-se a atenção do ativo para o passivo.
Foi A.W. Schlegel quem fundamentou o uso da ironia nos preceitos românticos de que
a vida é irremediavelmente imperfeita e contraditória, estabelecendo uma visão irônica das
relações humanas que se compreende como a “forma do paradoxo”(1982:40). Segundo o
filósofo, o paradoxo é a condição sine qua non do princípio que move o irônico.
A ironia é uma das grandes marcas do texto nothombiano e, no caso de Métaphysique,
tem início no próprio título. O relato de infância é construído como o registro de um tubo,
alheio e vazio na sua falta de percepção do outro. A metafísica, termo que designa a
investigação filosófica das realidades que constituem e trascendem a experiência sensível, é
concebida como uma “metafísica dos tubos” . O filósofo espanhol Manuel García Morente
propõe uma definição de metafísica que nos permite ver a obra nothombiana como o relato da
gênese da própria autora:
58
O tubo é inicialmente autocêntrico e narcísico mas, ao entrar em contato com suas
próprias limitações – inabilidade para falar, por exemplo – e as limitações impostas pelo
mundo, começa a tomar consciência de sua falta de autonomia, de sua incompletude, de sua
humanidade. Não se pode deixar de lado também a aproximação que Nothomb faz entre tubo
e vida; a vida que é sempre movimentada e, ao mesmo tempo, vazia: “La vie est ce tuyau qui
avale et qui reste vide” (2000:146).
O tubo, ser/objeto essencialmente sem expressão ou qualquer desejo, tem sua suposta
plenitude construída justamente na solidão e na autonomia, ou seja, na exclusão do outro: “Il
[le tube] filtrait l´univers et ne retenait rien” (2000 :07). Nessa aparente autonomia – já que o
tubo-bebê precisa do outro para satisfazer suas necessidades – e distanciamento, a ironia de
Nothomb é extrema ao sugerir que a idéia de felicidade e completude só é possível a partir da
solidão. E, mais uma vez, seu relato de infância foge dos relatos tradicionais, ao fazer o
registro da infância como estado de satisfação plena e absoluta perfeição, mas que somente
pode ser alcançado se o outro não estiver presente.
Na obra de Nothomb, a ironia estrutura sua atenção em quem sofre seus efeitos, assim
como seu caráter contraditório e paradoxal põe em cena sempre algo da ordem de um duplo,
de uma dualidade – uma indistinção entre o que parece ser e o que é realmente. Observa-se
sobretudo uma narradora irônica que dirige seu discurso corrosivo não apenas às relações
humanas, ao mundo ou à infância e à adolescência como períodos essencialmente cruéis; o
foco de seu discurso é sobretudo ela mesma. A auto-ironia da narradora é constante, como nas
constantes auto-referências, de cunho depreciativo na maioria das vezes, como no início de
Stupeur, quando a narradora explica de que modo funciona a hierarquia na empresa japonesa
em que trabalha: “Monsieur Haneda était le supérieur de monsieur Omochi, qui était le
supérieur de monsieur Saito, qui était le supérieur de mademoiselle Mori, qui était ma
supérieure. Et moi, je n´étais la supérieure de personne” (2000:07). Ou como quando a
narradora de Biographie se refere às mudanças vividas pelo próprio corpo adolescente:
59
nível narrativo; por exemplo, quando a narradora de Métaphysique declara, após ouvir sua
irmã chamá-la de “mentirosa”:
Il fallait que je me fasse à cette idée : je n´étais pas crédible. Ce n´était pas
grave. Au fond, cela m´était égal, qu´on me croie ou non. Je continuerais à
inventer, pour mon plaisir.
Je me mis donc à me raconter des histoires. Moi au moins, je croyais à ce que
je me disais (2000 :112).
Mais tous les enfants se prennent pour Dieu. La seule différence, c'est que je
m'en souviens tellement bien. En essayant de remonter très loin dans ses
souvenirs, on se heurte à un rempart, et cependant, on garde une impression.
C'est pourquoi le livre commence à la troisième personne. Au deuxième tiers,
on passe au " je ", là commencent véritablement mes souvenirs. 29
29
Citação retirada de entrevista de Amélie Nothomb concedida a Laureline Lamanieux, transcrita no endereço
univers.mylene-farmer.com/nothomb/laureline.htm
60
Além disso, a ironia está intrinsecamente ligada à questão da paródia nas narrativas de
Nothomb e, portanto, a da intertextualidade, já que é só a partir dela que um texto paródico se
constrói, ou seja, a partir da referência a um texto ou a um paradigma textual já estabelecidos.
É também através dos efeitos discursivos do irônico que Nothomb estrutura não somente uma
paródia da autobiografia, mas as referências intra e intertextuais encontradas em sua obra. A
certa altura de seu capítulo sobre intertextualidade e paródia, Linda Hutcheon (1991) afirma
que o texto paródico não destrói o passado, mas o sacraliza e o questiona ao mesmo tempo, o
que nos leva à afirmação de Muecke sobre a ambivalência como base fundamental da ironia.
É a partir dessa perspectiva que trabalharemos a questão da paródia e da ironia na obra de
Nothomb.
Affonso Romano de Sant´Anna (1985) prefere definir o conceito de paródia a partir da
oposição binária realizada por Mikhail Bakhtin (e também por Iouri Tynianov) entre paródia e
estilização. Bakhtin afirma que, se a estilização e a paródia têm em comum o fato de o autor
empregar a voz de outro, elas se diferenciam quanto à intenção: a paródia busca se opor à
intenção do texto original, tornando-se, portanto, antagônica a este. A paródia, enquanto
característica das narrativas ditas pós-modernas, mantém o vínculo com um paradigma do
passado; ela requisita este passado com o objetivo de criticar as premissas estabelecidas que o
compõem. É o que Hutcheon atesta como paradoxo da paródia: a retomada do passado,
simultânea à sua revisão crítica:
Dieu se conduisait comme Louis XIV : il ne tolérait pas qu´on dorme s´il ne
dormait pas, qu´on mange s´il ne mangeait pas, qu´on marche s´il ne marchait
pas et qu´on parle s´il ne parlait pas. Ce dernier point, surtout, le rendait
fou (2000 :27).
61
Deus que conduz o mundo e a narrativa, Deus da matéria e da voz dos discursos:
Nothomb consegue, ao mesmo tempo, ironizar o duplo narcisismo, tanto o do narrador
autobiográfico, quanto o da criança em seus primeiros anos de vida. Na passagem do pronome
il ao moi, o leitor percebe o jogo que é feito com os personagens, ao descobrir que Deus e a
narradora adulta, que supostamente encena o ponto de vista da criança que ela foi, são a
mesma pessoa. Ao levar o jogo narcísico ao seu grau mais elevado (“Dieu”), Nothomb faz uso
de uma das mais importantes características da paródia, a caricaturização, o exagero :
A paródia não é um espelho. Ou, aliás, pode ser um espelho, mas um espelho
invertido. Mas é melhor usar outra imagem. E, ao invés do espelho, dizer que
a paródia é como a lente: exagera os detalhes de tal modo que pode converter
uma parte do elemento focado num elemento dominante, invertendo, portanto,
a parte pelo todo, como se faz na charge e na caricatura (SANT´ANNA,
1985:32).
Acrescente-se a isso o fato de que o início de Métaphysique faz uma dupla referência
ao texto bíblico: tanto ao Gênesis, que narra a formação do universo, do nada à matéria,
quanto à passagem que inicia o Evangelho de São João :
No princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus e o Verbo era Deus.
Ele estava no princípio junto de Deus.
Tudo foi feito por ele, e sem ele nada foi feito. Nele havia vida e a vida era a
luz dos homens (JO: 1,1).
62
commencé à exister. C´était comme s´il avait existé depuis toujours
(2000 :05).
Assim como o Deus bíblico, o Deus de Nothomb também sente em si o grande poder
divino da criação e do controle dos seres. Como no Evangelho, a Palavra (Verbo) é
identificada a Deus e se produz com ele. No entanto, ao contrário do texto bíblico, em que seu
poder se exercia através da linguagem como sinal de comando e controle, o personagem
divino de Nothomb é incapaz de falar e, por isso, sente-se traído por um poder que possui e
não pode exercer: “Dieu ne se trouvait absolument pas en retard. Qui dit retard dit
comparaison. Dieu ne se comparait pas. Il sentait en lui un pouvoir gigantesque et s´offusquait
de se découvrir incapable de l´exercer, la bouche le trahissait” (2000 :25). Em seguida, ele
descobre na prática não apenas o poder da linguagem, mas também que é capaz de exercê-lo
tanto quanto as pessoas ao seu redor. Em sua consciência narcísica, as pessoas e os objetos só
existem a partir do momento em que ele os nomeia : “[...] je ne doutais pas de l´importance de
la parole: elle prouvait aux individus qu´ils étaient là” (2000 :42). Outra dimensão a
considerar é a do Deus-escritor, enquanto criador e condutor do mundo narrativo, mentor
onisciente dos destinos dos personagens, representante máximo do poder criador dado ao
autor de uma obra.
As referências ao texto bíblico são constantes em Métaphysique. As referências têm
início pela evidente comparação entre o Deus bíblico e o Deus personagem infantil e
narcísico, através do uso de um campo semântico inteiramente ligado à religião e à vida
enquanto estado divino. “Culte”, “adoration”, “miracle”, “pêcheur”, “fidèles”, “Antéchrist”
são termos utilizados pelo protagonista ao se referir às suas relações com as pessoas e o
mundo. Há, ainda, referência irônica à descrição no texto bíblico das realizações divinas no
“sétimo dia”, quando a narradora relata sua experiência de mergulhar na praia e afirma que
“mar” foi a sétima palavra a ser aprendida. No texto nothombiano é opequeno deus narrador
que constrói e se manifesta ao mundo:
Majesteuse comme Saturne avec ma boueée pour anneau, je restai dans l´eau
des heures durant. Il fallut m´en retirer de force.
-Mer!
Ce fut le septième mot (2000:67).
Além disso, o aspecto divino de sua infância é simbolizado por seu espaço preferido,
escolhido entre todos os outros para brincar e reinar: o jardim japonês. Esse jardim, como o
jardim do Éden, representa a perfeição e a felicidade supremas:
63
Autour du Petit Lac Vert, les azalées explosèrent de fleurs. Comme si une
étincelle avait mis le feu aux poudres, toute la montagne en fut contaminée. Je
nageais désormais au milieu de rose vif.
La température diurne ne quittait pas les vingt degrés: l´Eden (2000 :81).
Quand Dieu a besoin d´un lieu pour symboliser le bonheur terrestre, il n´opte
ni pour l´île déserte, ni pour la plage de sable fin, ni pour le champ de blé
mûr, ni pour l´alpage verdoyant ; il élit le jardin.
Je partageais son opinion: il n´y a pas meilleur territoire pour
régner (2000 :59).
E, assim como Adão e Eva, ela um dia será expulsa do jardim, do seu Eden, símbolo
infantil de seu paraíso prestes a ser perdido, como o paraíso bíblico. É a partir desta ruptura
que se dará toda a sua formação e conseqüente fragmentação identitária, questão que será
abordada no terceiro capítulo do trabalho: com a perda do lugar-símbolo de sua felicidade
infantil, a narradora utiliza a memória para preencher a lacuna deixada. Lacuna esta que
sempre estará presente, apesar das lembranças e dos esforços de reconstrução pela escrita.
Mas é esta perda que a move e a leva sempre a buscar o que perdeu no país que considera
como seu país-natal, o Japão:
64
nomear os seres numa espécie de simbolismo que alude ao batismo católico, termo inclusive
utilizado pela pequena narradora: “Ma mère finit par rire à l´idée d´une carpe qui s´appelait
Joseph. Mon baptême fut accepté” (2000 :135).
A idéia de se utilizar do texto bíblico como referência também é comentada por
Hélène Jaccomard (JACCOMARD, 2003) e Andrea Oberhuber (OBERHUBER,2004), em
seus trabalhos sobre a autora. Oberhuber, que faz uma breve análise da reescrita na obra de
Nothomb, comenta que Nothomb faz um cruzamento dos dois textos fundadores da
civilização judaico-cristã: o Velho e o Novo Testamentos, já comentados aqui. Para ela,
comparar Deus a um objeto tão banal e trivial quanto um tubo – como no início da narrativa,
em que Deus é considerado um “tubo digestivo” – subverte a ordem do mundo e tira qualquer
envergadura teológica do discurso, configurando uma paródia do discurso teológico:
Ces activités végétatives passaient par le corps de Dieu sans qu´il s´aperçoive.
La nourriture, toujours la même, n´était pas assez excitante pour qu´il la
remarque [...].
Dieu avait la souplesse d´un tuyau mais demeurait rigide et inerte, confirmant
ainsi sa nature de tube. Il connaissait la sérénité absolue du cylindre
(2000 :07).
65
apenas sobre sua viagem a diversos países, mas principalmente sobre uma viagem interna e
íntima por diferentes épocas de sua infância.
Além das referências bíblicas, temos uma narradora que afirma ter encontrado, com
menos de três anos de idade, na leitura da Bíblia uma de suas atividades prediletas.
Escondida, sem que ninguém percebesse nem soubesse que ela era capaz de ler e de se
interessar pelo texto religioso, ela afirma ironicamente, como a provar seu conhecimento:
“L´Ancien Testament était incompréhensible mais, dans le Nouveau, il y avait des choses qui
me parlaient” (2000 :99). A descoberta infantil do texto bíblico remete a uma outra narrativa
de infância, de Julien Green, célebre autor francês. Em sua obra autobiográfica, o autor
bilingüe reflete sobre seu desenvolvimento e sua descoberta da linguagem, já que aprendeu
simultaneamente as línguas francesa e inglesa. Green comenta a importância da Bíblia, não
apenas em sua formação, mas em seu universo infantil de descoberta da leitura e da
linguagem, mesma experiência narrada por Nothomb. Todos os dias, sua mãe fazia
sistematicamente uma leitura em voz alta de uma passagem bíblica, e foi esta leitura que o
despertou para a língua inglesa, causando-lhe forte sensação:
Des années plus tard je fis de grands efforts pour me rappeler les premiers
mots anglais que je fus conscient de comprendre, mais ils avaient été
obscurcis par l´éblouissement de cette minute-là. Je suis heureux pourtant
qu´ils soient venus de la Bible et souvent je continue à me demander ce qu´ils
disaient (GREEN, 2003 :163).
Assim como a narradora de Nothomb, Sartre faz um retrato de infância que foge ao
habitual: por detrás do narrador infantil, sobrepõe-se uma voz autoral que não se assemelha
em nada à de uma criança. A voz do adulto que fala no momento da escrita está sempre
presente no discurso do narrador que faz ironias e tece comentários filosóficos a respeito das
relações empreendidas entre ele e o mundo, assim como das pessoas que o cercam; a ponto
66
até mesmo de admitir que está “au-dessus de son âge”. Além disso, tal qual a narrativa
memorialística nothombiana, Les Mots se caracteriza por ser um texto multifocalizado: o
início da narrativa se dá com um narrador distante e observador, característico da focalização
externa postulada por Genette, como já visto anteriormente no capítulo sobre narração. Como
na obra de Nothomb, é a focalização externa que comanda a narrativa na primeira parte da
autobiografia. É esse narrador observador, tão crítico quanto a narradora nothombiana, que se
insurge no texto e tece comentários ácidos ao descrever sua própria base familiar:
O narrador, que encena o ponto de vista da criança, também destila seu autocentrismo
e narcisismo ao extremo, a ponto de se questionar a certa altura: “Suis-je donc un Narcisse?
Pas même: trop soucieux de séduire, je m´oublie”. Assim como a narradora nothombiana, o
narrador sartriano possui voz crítica e irônica em relação ao outro e ao mundo que o rodeia.
Seu discurso, sua retórica e a consciência de seu poder de sedução produzem efeitos no leitor.
Da mesma forma, a narradora de Nothomb, representando o adulto que rememora, empresta
sua voz crítica e, por vezes, cínica à criança retratada.
67
Um dos grandes diálogos estabelecidos entre o relato de infãncia de Nothomb e o de
Sartre é a descoberta que ambos fazem do mundo das palavras, através dos livros. Neles, os
protagonistas descobrem um universo que, admitem, sempre fará parte de suas vidas.
Seduzidos, mergulham nos livros com toda sua paixão, mesmo que sua compreensão não
pareça estar de acordo com sua pouca idade e imaturidade. Em sua narrativa, o pequeno Sartre
declara: “J´ai commencé ma vie comme je la finirai sans doute: au milieu des livres. Dans le
bureau de mon grand-père, il y en avait partout; [...]” (SARTRE, 1964:29); assim como a
narradora de Nothomb também fala de sua igual dedicação à leitura:
Mon intérêt pour la lecture s´en trouva accru. Il ne fallait donc plus lire
uniquement Tintin, la Bible, l´atlas et le dictionnaire, il fallait aussi lire ces
miroirs à plaisir et à douleur qui étaient les romans.
J´en demandais. On me pointa du doigt les romans pour enfants. Dans la
bibliothèque vieillotte de mes parents, c´étaient les Jules Verne, les comtesses
de Ségur, Hector Malot, Frances Burnett. Je commençais avec parcimonie
(NOTHOMB, 2004:93).
E ambos confessam, sobretudo, o fascínio pelo dicionário: o mundo das palavras, das
letras, da obra máxima de referência à linguagem é o universo discursivo mais rico com que
podem ter contato: “Puisqu´il n´y avait pas de nourriture, je décidai de manger tous les mots :
je lus le dictionnaire en entier. L´idée était de ne sauter aucune entrée : comment décider par
avance que certaines n´en vaudraient pas la peine ?” (NOTHOMB, 2004 :212). Sartre
demonstra a mesma avidez pelas letras e a construção das palavras :
68
noms propres qui désignaient les secteurs du savoir universel [...]). Hommes
et bêtes étaient là, en personne [...] (SARTRE, 1964:38).
Com esta Elena italiana e infantil ela trava sua própria guerra, se não a de Tróia, pelo
menos sua própria guerra amorosa. Esta guerra adquire, para a narradora, proporções imensas,
à medida que as declarações de amor e humilhações se tornam constantes e inevitáveis. A
grande ironia de Elena é a destruição de seu projeto infantil e narcísico de ser no mundo, pois
como a própria autora admite a certa altura da narrativa: “J´étais le centre du monde: ils ne
pouvaient pas me mettre plus au centre” (1993:57). Mas, a partir do momento que Elena entra
em sua vida, o centro do mundo – e, temporariamente, da narrativa – é deslocado, causando
desconforto e inquietação porque “désormais, le centre du monde se situait em dehors de moi”
(1993:57). Como afirma o título, a pequena italiana é a sabotagem de todo o seu projeto, não
apenas amoroso e existencial, mas substancialmente narrativo e autobiográfico, e nisto reside
a grande ironia de Nothomb. A partir do deslocamente do foco de atenção da narrativa, há um
deslocamento igual de sujeito da narrativa, de sabotagem, como diz o título, ao caráter
narcísico e autocentrista de uma narrativa autobiográfica.
69
A ironia da narradora também é extrema ao narrar sua descoberta da obra de Homero e
fazer associações entre sua Elena e Helena de Tróia, assim como ao comparar o grande
conflito retratado em Ilíada à sua própria experiência conflitante:
Plus tard, j´ai lu une histoire obscure, où il était question d´une guerre entre
Troie et les Grecs. Tout avait commencé à cause d´une superbe créature qui
s´appelait Hélène. [...]
Bizarrement, L´Iliade m´a moins renseignée sur San Li Tun que San Li Tun
sur L´Iliade. D´abord, je suis sûre que je n´eusse pas été sensible à L´Iliade si
je n´avais pas pris part à la guerre du ghetto. Pour moi, ce ne fut pas le mythe
qui avait été fondateur, mais l´expérience (1993 :167).
No entanto, ela admite que a experiência vivida na infância foi um grande aprendizado
que a preparou para a posterior leitura da obra de Homero: “Ainsi, de toutes les luttes
auxquelles j´ai pris part à San Li Tun, celle qui m´a le mieux préparée à lire L´Iliade fut mon
amour pour Elena” (1993 :171). Se o conflito entre gregos e troianos se tornou célebre e
histórico, a guerra vivida no gueto e a vivida entre ela e Elena não tiveram importância
menor : “Mais moi, quand je faisais la guerre, j´ai rencontré la belle Hélène, et je suis tombée
amoureuse d´elle, et à cause de cela j´ai une autre vision de L´Iliade” (1993 :168). São três
círculos de conflitos, portanto, embatidos simultaneamente dentro da narrativa, expondo a
complexidade da relação estabelecida entre o eu x o outro: o conflito internacional, vivido
sobretudo pelos pais das crianças na China dos anos 1970, a guerra interna vivida com as
outras crianças estrangeiras, oriundas das famílias de outros diplomatas ocidentais; e a disputa
com a bela Elena, responsável pela aniquilação – temporária – de seu projeto narcísico.
As referências à grande obra oriental As Mil e uma noites também estão presentes,
porém de maneira mais sutil. Elas são explícitas e implícitas, tanto pelas citações de leitura da
narradora, quanto pela presença da babá Nishio-san, que se caracterizava como uma grande
contadora de histórias para a protagonista. A monumental obra sobre a arte de se contar
histórias é citada esporadicamente: em Sabotage ela é citada explicitamente como uma das
leituras – juntamente com a Bíblia – mais importantes e constantes de sua infância: “Je
n´avais lu que deux livres : la Bible et les contes des Mille et Une Nuits. Ces mauvaises
lectures m´avaient contaminée d´un sentimentalisme moyen-oriental dont j´avais déjà honte à
l´époque. Il faudrait censurer ces bouquins” (1993 :177).
Mas não é por acaso que a narradora cita As Mil e uma noites como uma das mais
importantes obras em sua formação. Mais do que uma simples leitura que permeia sua
experiência infantil, nos anos vividos no Japão a obra está presente de maneira subjetiva,
70
através da babá japonesa, Nishio-san, que conta e encanta a menina com belas e tristes
histórias:
Além dos contos fantásticos, a doce babá também narra à menina sua própria
experiência de vida e de guerra, que ganha tons fantásticos aos olhos da criança e a fascina.
Através não apenas das histórias de Nishio-san, mas também dos contos-de-fada narrados por
sua mãe e da posterior leitura de As Mil e uma noites, um novo universo é criado, um mundo
mágico que permeia a infância da narradora, e participa de sua formação identitária nos países
em que viveu:
Je préférais les contes, dont j´avais faim et soif. Au Japon, c´étaient ceux
racontés par Nishio-san (Yamamba la sorcière de la montagne, Momotaro
l´enfant des pêches, La Grue blanche, La Gratitude du renard) ou par ma
mère (Blanche-Neige, Cendrillon, Barbe-Bleue, Peau d´Âne, etc.). En Chine,
ce furent les contes de Mille et Une Nuits, que je lus dans leur traduction du
XVIIIe siècle et à qui je dois les plus violentes émotions littéraires de mes six
ans (2004 : 93).
“Se os mundos ficcionais são tão confortáveis, por que não tentar ler o mundo real
como se fosse uma obra de ficção?”, questiona Umberto Eco, na introdução de seu capítulo
intitulado Protocolos ficcionais (ECO, 2002:123). Eco explica que sua afirmativa parte de
obras que são tão ambíguas quanto a vida, ou seja: a partir da leitura de algumas obras,
percebe-se que a relação entre realidade e ficção é complexa e coloca em cena a problemática
da correspondência entre dois mundos cujos limites nem sempre são bem definidos.
71
No artigo sobre o realismo e a forma romanesca, Ian Watt (WATT, 1998) traça um
histórico do termo romance e mostra como o conceito se definiu e se desenvolveu ao longo
dos anos. Se, inicialmente, a literatura não possuía um firme compromisso em retratar a
realidade, o romance surge para colocar em questão o problema da correspondência entre a
obra literária e a realidade que ela supostamente representa, tendo em consideração que o
termo “realismo”, neste contexto, problematiza menos o que se representa, do que a maneira
como isso é feito. Portanto, a tradição literária passou a ser sistematicamente contestada a
partir do surgimento deste gênero literário, cuja principal característica era expor a realidade
através de uma experiência individual. O individualismo se apresenta como algo único e
original, e substituiu as imagens coletivas da humanidade feitas até então.
Por volta do século XIX, o gênero se afirma, pois há uma tendência cada vez mais
forte de pôr de lado a tradição coletiva: a verdade está na experiência individual, que é sempre
única. Neste sentido, a obra que se propõe autobiográfica coloca em cena de maneira ainda
mais objetiva não apenas a relação da correspondência entre vida e realidade, mas a questão
do sujeito enquanto personagem de sua própria narrativa; constituindo, assim, o que Watt
chama de afirmação da primazia da experiência individual.
Além disso, o surgimento do romance como gênero literário configura outros aspectos
que devem estar presentes em uma narrativa: a apresentação, bem definida, de um pano de
fundo (arrière-fond), de uma linha temporal e de um personagem. Este último, ao contrário da
tendência ficcional que até então prevalecera de batizar personagens com nomes fantásticos e
claramente irreais, ganha nome e sobrenome, numa tentativa de aproximá-lo dos indivíduos
comuns, cujos nomes cumprem a função social de distingui-los uns dos outros. Desta
maneira, ressaltava-se o fato de que o personagem deveria ser visto, pelo leitor, como uma
pessoa individual – e não como um tipo – possuidora de características e personalidade
próprias. A psicanalista Maria Rita Kehl, ao analisar a relação do sujeito com a escrita e a
importância do romance para a constituição do indivíduo como unidade autônoma, comenta
que:
72
No que se refere a nomes de personagens, Nothomb reafirma sua ambigüidade e
inconformidade com padrões e normas literárias que tendem a classificar autores e obras de
acordo com características bem definidas. Suas narrativas, tanto as supostamente
autobiográficas quanto as claramente ficcionais, expõem um repertório nominal que vai do
irreal fantástico (Plectrude, Robert des noms propres; Prétextat Tach, Hygiène de l´assssin;
Épiphane, Attentat; Angust, Cosmétique de l´ennemi), passando por referências históricas ou
mitológicas (Omer, como Homero, em francês, em Mercure 30 ; Palamède, Les Catilinaires;
Salvator, do conto L´Entrée du Christ à Bruxelles; e Christa, Biographie de la faim); até a
auto-referencialidade (Amélie, Stupeur et tremblements), declarada ou não. Ao mesmo tempo,
a questão referencial nas suas narrativas autobiográficas se mostra pouco clara, já que em
nenhuma delas sua identidade é explícita, sendo a protagonista denominada somente pelo
prenome (Amélie) ou simplesmente pelo pronome “je”.
Eco faz a distinção entre narrativa natural e artificial. Por narrativa natural entende-se
a descrição de fatos que ocorreram na realidade, como uma notícia de jornal ou um relato
histórico; enquanto que a narrativa artificial se caracteriza como ficcional, que “finge dizer a
verdade sobre o universo real ou afirma dizer a verdade sobre um universo ficcional” (ECO,
2002:126).
A questão, no entanto, não se mostra assim tão clara. O leitor, antes de abrir o livro, já
se depara com o que Eco chama de “paratexto”, sinais que indicam ou não se aquela narrativa
é uma ficção. Na literatura francesa, por exemplo, o subtítulo roman na capa atesta sua
ficcionalidade. E, a partir daí, tudo com o que o leitor se deparar será interpretado como
descrição de uma experiência ou de um mundo imaginários, o que remete ao gênero da
autoficção, já abordado neste trabalho. No que se refere a Amélie Nothomb, porém, os
protocolos ficcionais não são tão claros e definidos: apesar do subtítulo roman na capa de
todas as suas narrativas, o leitor que avança na leitura encontrará não somente personagens e
situações que parecem se referir à autora, como, a certa altura, vai se deparar com fragmentos
que reafirmarão sua dúvida sobre a (total) ficcionalidade da obra, como esta declaração da
narradora de Stupeur et tremblements, fazendo alusão ao seu estatuto de romancista: “Le
temps, conformément à sa vieille habitude, passa. En 1992, mon premier roman fut publié”
(1999 :187).
30
Para um estudo mais detalhado sobre as referências mitológicas na obra de Nothomb, ver Andrea Oberhuber,
em artigo intitulado Réécrire à l’ère du soupçon insidieux : Amélie Nothomb et le récit postmoderne
73
Para Eco, os sinais ficcionais que previnem o leitor de que o texto trata de uma ficção
nem sempre são claros, principalmente se o autor faz uso constante da ironia, como é o caso
de Nothomb:
J´ai eu beau lire Hô Chi Minh dans le texte, traduire Marx en hittite classique,
me livrer à une analyse stylistique des épanodiploses du Petit Livre rouge,
réaliser une transcription oulipienne de la pensée de Lénine, j´ai eu beau offrir
le communisme en pâture à ma réflexion, ou inversement, je n´ai pas pu
dépasser les conclusions de mes cinq ans (1993 :33).
74
3. ENTRE LUGARES E NÃO-LUGARES, A CONSTRUÇÃO DA INFÂNCIA E DA
IDENTIDADE
75
conta o sentido de busca postulado por Hall, é fácil compreender a escrita de Nothomb como
uma expressão da procura dessa unidade, da tentativa de trazer à tona a identidade deixada de
lado pela ruptura. Métaphysique, como relato de infância, é a narrativa que expressa o
nascimento dessa identidade cultural fragmentada, construída na dualidade de duas nações
não apenas diferentes mas, por vezes, antagônicas. É importante observar que, para o objetivo
deste trabalho, utilizei o trabalho teórico de Hall no que se refere aos efeitos existenciais e
psicológicos característicos de um ser que se sente deslocado e expatriado, e não no sentido
de caracterizar a narradora nothombiana como uma diáspora, já que sua trajetória está despida
do sentido político e de coletividade que o termo carrega em si de maneira forte.
Nessa narrativa, a infância no Japão é caracterizada – não sem ironia – como o período
mais feliz que um ser humano pode vivenciar. Não por acaso a narrativa tem início com o
Deus-bebê como protagonista: esse suposto estatuto de divindade conferido à criança é
imediatamente relacionado ao lugar em que ela cresce e desenvolve as primeiras percepções
do mundo que a cerca. A certa altura da narrativa, a narradora de Métaphysique afirma
categoricamente, como se fosse uma decisão tomada: “Je serais japonaise”. (2000 :56). Para
ela, ser japonesa significaria crescer em meio a jardins floridos, à beleza do lago que
freqüentava, aos cuidados de Nishio-san, a doce babá nipônica. A narradora de Métaphysique
cresce ouvindo as histórias contadas pela babá, que a fascinam e a inserem nesse espaço
simbólico japonês. Na narrativa, a escolha do Japão como terra natal é constantemente
reafirmada, até que qualquer dúvida fique totalmente fora de questão:
J´étais japonaise.
A deux ans et demi, dans la province du Kansai, être japonaise consistait à
vivre au coeur de la beauté et de l´adoration (2000 :57).
A dúvida e a divisão quanto à identidade cultural só ficam evidentes quando têm início
as aventuras lingüísticas da pequena narradora: escolher um idioma e, mais do que isso,
caracterizá-lo como língua materna implica uma tomada de posição ideológica que, em
algumas passagens, se mostra ambígua. A preferência recai, por seu contato e sua
identificação com o mundo oriental, no idioma nipônico como língua pátria, em detrimento do
francês, que é considerado simplesmente a língua de seus pais: “Ce n´était pas un hasard si
j´avais révélé plus tôt ma connaissance de la langue nippone que de la langue maternnelle : le
culte de ma personne avait ses exigences linguistiques” (2000 :58).
No entanto, em determinadas passagens essa pluralidade identitária se faz presente,
quando, por exemplo, a narradora aprende também a compreender a língua francesa, mas não
a utiliza, escondendo o fato de que pode se comunicar nos dois idiomas. Tal episódio expressa
76
talvez essa tendência da protagonista de pôr em segundo plano sua identidade francesa, como
de escondê-la e dar-lhe um significado menor do que o que ela realmente possui. Essa
identidade vem à tona em momentos nos quais a narradora se sente pressionada, deixando
claro que a escolha de uma identidade cultural nipônica não é completa. Isto ocorre na ocasião
de seu quase-afogamento, em que grita, primeiramente, por ajuda em japonês, sem que seja
compreendida. É preciso então recorrer ao idioma francês, para que seja ouvida e salva:
- Je criais:
- Tasukete!
En vain.
Je me dis alors qu´il n´était plus temps de faire des pudeurs avec la langue
française et je traduisis le cri précedent en hurlant :
- Au secours!
C était peut-être cela, l´aveu que l´eau voulait obtenir de moi : que je parlais
la langue de mes parents (2000 :68).
Mon père me rassura un rien: notre départ du Japon n´était prévu que dans
deux ou trois ans. Deux ou trois années équivalaient pour moi à la durée d´une
vie: j´en avais encore pour une existence entière au pays de ma
naissance (2000 :126).
O francês, bem como o Ocidente, é sempre visto como “o outro”, o diferente, o idioma
de seus pais, e não o seu. No entanto, a narradora não se dá conta de que, como nipônica, é ela
que é “a outra”, a diferente, seja pelas marcas físicas ocidentais, seja porque sua identidade é
também determinada pela continuidade – de suas origens – e pela ruptura, qualquer que seja o
lado em que situe suas origens. Esse conflito fica evidente no diálogo estabelecido entra a
narradora e a mãe, na ocasião em que aquela recebe a notícia da partida do Japão:
77
- C´est une blague , ce que tu m´as dit. On ne va pas partir! [...]
Je ne peux pas partir! Je dois vivre ici! C´est mon pays! C´est ma maison!
- Ce n´est pas ton pays!
- C´est mon pays! Je meurs si je pars! (2000 :123).
Haverá sempre o conflito, num embate eterno entre duas identidades que, partidas,
nunca se completam. É justamente esse conflito identitário que marcará toda a obra
autobiográfica de Nothomb, seja através do relato de seus deslocamentos, seja através de uma
tentativa de dar coerência e unidade à sua existência, por meio da palavra e da memória.
Como atesta Hall, mais do que um simples trabalho de arqueologia que traz à luz as
referências de suas origens, trata-se de um “re-contar o passado” (Hall, 1996 :69) para
construir a essência de sua identidade cultural.
Neste capítulo, abordaremos a questão da formação cultural e do conflito identitário,
problemática presente de modo significativo na obra da autora. Infância, Japão, Ocidente,
cultura e linguagem são termos conectados de maneira inquestionável em suas narrativas, e
não devem ser abordados isoladamente. Nesse sentido, mostra-se pertinente uma breve
exposição sobre a formação da identidade e do sujeito pós-moderno, tendo por base a obra de
Stuart Hall, A identidade cultural na pós-modernidade (2004). Em seguida, uma análise do
modo como a infância e seus espaços se fazem presentes, levando-se em conta a importância
que as narrativas de Amélie Nothomb atribuem a essa fase de vida, ao apresentá-la de maneira
irônica e ambígua como constitutiva de sua formação cultural. Por fim, o estudo discorre
prioritariamente sobre a formação da identidade deslocada e os conflitos oriundos da relação
entre Oriente e Ocidente, tal como construídos pela protagonista.
32
Em sua obra crítica, Stuart Hall utiliza a categoria pós-moderna. Porém, não temos a intenção aqui de explorar
a discussão entre moderno e pós-moderno, apenas fazer uso do termo a partir do trabalho de Hall para estudar a
identidade cultural na obra de Nothomb. A complexidade da relação entre moderno e pós-moderno se observa
pela maneira como ele conduz a questão, buscando exemplos pós-modernos no século XIX.
78
autobiografia acaba por se misturar com a da formação da identidade fragmentada, também
presente em seu discurso. Dessa forma, a escrita mostra-se, provavelmente, como tentativa de
fornecer coerência e unidade a um percurso de vida bastante descentralizado e questionador
em relação às suas origens.
Para Stuart Hall, o sujeito, formado desde o Iluminismo como uma identidade
unificada e estável, passa a se ver fragmentado, composto não de uma única, mas de várias
identidades, inseridas nos sistemas de significação e representação cultural. Segundo Hall, as
velhas identidades que por tanto tempo estabilizaram o mundo social estão em declínio, e em
seu lugar está o novo sujeito e sua identidade fragmentada, em contraponto ao sujeito
centrado do Iluminismo. Acreditava-se que tal núcleo interior fosse responsável pela essência
e pelo desenvolvimento contínuo do indivíduo – ou seja, este permaneceria sempre o mesmo.
As sociedades modernas, por sua vez, enfrentam uma série de transformações de ordem
estrutural que põem em xeque a noção de sujeito integrado e sua relação com o mundo
circunstante, seja este social, cultural ou político.
Segundo Hall, identidade cultural não é uma essência fixa e imutável, uma origem
estabelecida a que possamos fazer um retorno real; é um espaço que produz efeitos materiais e
simbólicos, em constante diálogo com o presente e, desta maneira, construído através da
memória, da fantasia e da narrativa. Tal afirmação nos remete à escrita autobiográfica como
meio de nos conectar ao passado e às lembranças que temos do que foi vivido. A experiência
real se torna experiência escrita, numa tentativa de fazer uso da memória como afirmação de
nossa história, de nossa identidade:
Tal qual uma viajante presa a lugares impessoais como aeroportos e hotéis, a
narradora nothombiana quer voltar para casa, ou melhor, quer sentir-se em casa. Só através da
escrita ela vai conseguir essa tentativa de consolidação de uma identidade, pois até mesmo na
Bélgica, seu país de natureza, percebe-se estranha. Daí a afirmação da autora, numa
entrevista, de que seu verdadeiro lugar era o exílio: “Alors, j'ai fini par comprendre que ma
seule vraie nationalité, c'était l'exil”. 33 A sensação de não pertencer a lugar algum a impele a
buscar esse lugar no espaço da escrita:
33
Entrevista de Amélie Nothomb ao site Le Club, realizada em 05/09/2000, disponível em
http://www.grandlivredumois.com/static/actu/rencontres/nothomb.htm
79
De tous les pays où j´ai vécu, la Bélgique est celui que j´ai le moins compris.
C´est peut-être cela, être de quelque part : ne pas voir de quoi il s´agit.
Sans doute est-ce pour cette raison que j´y commençai à écrire. Ne pas
comprendre est un sacré ferment pour l´écriture. Mes romans mettaient en
forme une incompréhension qui croissait (2004 :226).
34
De acordo com o Dicionário Aurélio, temos as seguintes definições, dentre outras, do termo sujeito:
Sujeito (Do lat. subjectu, 'posto debaixo'.)
Adj.
1. Súdito (1).
2. Escravizado, cativo.
3. Obrigado, constrangido, adstrito.
4. Que se sujeita à vontade dos outros; obediente, dócil.
5. Dependente, submetido.
6. Exposto, passível.
[...]
12.Filos. O indivíduo real, que é portador de determinações e que é capaz de propor objetivos e praticar ações.
(Cf., nesta acepç., objeto.)
[...]
14.Filos. Agente, fonte de atividade
80
À medida que as sociedades modernas se tornavam maiores e mais complexas,
adquiriam uma dimensão coletiva e social, até então não levada em conta. O homem
individual teve que dar lugar a uma nova estrutura, ainda em formação, da sociedade
moderna; esta compreendia agora uma máquina burocrática e o surgimento de estados-nação.
Sociedade, massa, industrialização levaram a uma concepção mais social do indivíduo.
Concepção esta que já não considerava o sujeito como um ser individual e imutável, mas sim
formado subjetivamente a partir de suas relações sociais. A sociologia e a biologia
transformaram então esse individualismo racional em parte integrante de um grupo regido por
normas coletivas, num processo de formação sustentado pelos papéis por eles
desempenhados.
A partir da modernidade teve início um modelo sociológico interativo (HALL,
2004:32), que não mais considerava “indivíduo e sociedade” como duas entidades separadas,
mas estabelecia uma relação de complementaridade entre o “eu” e o sistema social. As
ciências sociais adquirem então um status de disciplina tal como se conhece agora e surge
então a concepção do sujeito moderno: isolado, perturbado, que se torna apenas um pano-de-
fundo para a sociedade anônima, impessoal e opressora:
81
A partir do século XIX, a identidade começa ser compreendida como algo descontínuo
e fragmentado, e o conceito de sujeito começa a ser ligado ao termo “deslocamento”. Para
Ernest Laclau (1990), citado por Hall, “uma estrutura deslocada é aquela cujo centro é
deslocado, não sendo substituído por outro, mas por uma pluralidade de centros de poder”
(HALL, 2004:16). Segundo o mesmo autor (HALL, 2004:34) são quatro os grandes avanços
científicos que contribuíram para a compreensão desse novo indivíduo que surgia,
descentrado e deslocado, no lugar do equilibrado homem cartesiano:
- O pensamento marxista, cuja leitura deslocava qualquer noção de essência
(singularidade) e individualismo, colocando as relações sociais no centro do sistema teórico;
- Freud e sua descoberta do inconsciente, colocando a formação de nossas identidades,
desejos a partir de processos simbólicos e psicológicos, e deslocando a noção de lógica do
homem racional. Para a psicanálise, apesar de o sujeito ser sempre partido e dividido, ele se
enxerga como uma imagem única e centralizada, resultado de uma fantasia sobre si mesmo. A
construção da identidade – por identificação – é um processo sempre em andamento e sujeito
a constantes mutações;
- Ferdinand de Saussure, no domínio da lingüística, afirmando que o ato de falar não é
um processo individualizado e independente, por meio do qual somente expressamos nossos
pensamentos interiores, mas é o reflexo de uma série de significados que já estão embutidos
em nossos sistemas culturais; chama a atenção ainda para a relação muito próxima existente
entre língua e identidade;
- Michel Foucault, em seu estudo sobre o que denomina “poder disciplinador”, mostra
o sujeito moderno (compreendidos aí o indivíduo e seu corpo) regido por uma máquina
reguladora e vigilante: as instituições, tais como escolas, quartéis, prisões e hospitais, apenas
para citar algumas.
Essas rupturas no discurso do pensamento moderno nos levam ao sujeito fragmentado
e a sua complexa relação com o que se pode chamar de identidades culturais ou, mais
especificamente, a formação de uma identidade nacional. Tais rupturas nos remetem à escrita
autobiográfica como instrumento que põe em cena a identidade e a descentralização do sujeito
que se encontra sempre entre lugares ou fora de lugar, expatriado pelos deslocamentos, cujas
coerência e unidade foram perdidas na vida e tentarão ser reencontradas no texto da vida,
através do discurso da memória: a autobiografia.
Apesar de o estudo crítico de Hall se basear fundamentalmente em torno de
deslocamentos impostos por questões sociais e econômicas, e este não ser o caso da narradora
de Nothomb, o que se mostra significativo, a meu ver, é a análise das conseqüências desses
82
deslocamentos. Os efeitos do descentramento cultural se apresentam, prioritariamente, como
objeto de estudo de Hall, e daí a importância, para nosso trabalho, de sua obra crítica.
A obra autobiográfica de Nothomb, ao narrar sua primeira infância em território
japonês, os constantes deslocamentos por diversos países, e o posterior retorno ao Japão, põe
em cena um processo de deslocamento (desterritorialização) de um indivíduo que se mostra
em eterno conflito em relação à dualidade e à fragmentação de sua identidade cultural,
dividida entre duas nações, dois universos. Para a narradora, a busca pela tentativa de
consolidação identitária se dará somente através da escrita.
São exatamente a dúvida e a incerteza quanto à constituição da própria identidade que
movem a narradora em busca do paraíso perdido (furusato: mito da terra natal), personificado
por um Japão infantil e idealizado, de jardins e histórias melancólicas. Nessa busca por uma
unidade, um centro – sua estabilidade enquanto indivíduo centralizado – ela se surpreende ao
verificar que a crise apenas se acentua nesse processo que evidencia suas diferenças físicas,
lingüísticas e sócio-culturais na sociedade na qual agora procura se integrar.
Em Métaphysique des tubes, a primeira infância vivida no Japão é tema central da
narrativa. A descoberta da nação oriental, assim como de todos os símbolos característicos da
cultura nipônica; a descoberta da linguagem, tanto japonesa quanto francesa; o conflito que se
estabelece perante a necessária escolha entre uma das duas culturas presentes na formação da
narradora; são essas algumas das experiências relatadas no livro. No decorrer da narrativa
Stupeur et tremblements, onde descreve seu retorno ao país da infância, vemos que seu
empreendimento fracassa aos poucos, ao mesmo tempo em que percebemos que uma
identidade totalmente centralizada e estável é uma ilusão. Segundo Hall, a identidade
plenamente segura e unificada é uma fantasia; o que há são identidades pluralmente formadas
a partir de contextos diversos e temporários.
Através da memória e da narrativa, Nothomb dialoga com seu passado e acaba com
qualquer ilusão de unidade. Em sua condição de expatriada, a narradora de Nothomb
personifica o sujeito deslocado e dividido, fruto de uma história de vida que o obriga a estar
sempre entre duas nações, como dois sentidos opostos: a cultura de onde veio, a cultura em
que está.
83
3.2. Os espaços da infância
Essa percepção da infância no retorno posterior ao Japão fica ainda mais explícita na
passagem a seguir, quando a narradora relata o trabalho da memória em relação à língua
japonesa:
Je n´avais plus parlé japonais depuis l´âge de cinq ans, j´étais sûre d´avoir
oublié. Pourtant, les mots nippons revenaient par wagons dans ma tête.
Je vivais une formidable aventure de la mémoire. J´avais vingt et un ans mais
j´avais cinq ans. Il me semblait être partie pendant cinquante ans et c´était
comme si je ne m´étais absentée qu´une saison (2004 :231).
84
suas origens, mas do que Michel de Certeau chama de experiência primordial da
diferenciação, de que trataremos mais adiante. É justamente na consideração da dimensão da
infância como espaço da alteridade que, ao comentar a obra de de Certeau, o antropólogo
Marc Augé afirma que todo relato volta à infância, e que a infância é, nesse sentido, uma
viagem simbólica de redescoberta de si como si mesmo e como outro:
A experiência da infância surge então como retorno temporal a uma época que não
pode ser repetida. Nothomb demonstra de maneira irônica, em sua obra, a infância como
espaço de realização e de supremacia de uma identidade narcísica e, por isso mesmo, feliz em
sua autoridade. O aspecto divino da criança e da infância é realçado em toda a narrativa
nothombiana, sobretudo através da condição de “criança-deus”: “Or j´étais le contraire d´un
esclave puisque j´étais Dieu. Je régnais sur l´univers et en particulier sur le plaisir, prérogative
des prérogatives, que je m´organisais à longueur de journée” (2004 :37). A ironia está
presente na construção dessa infância narcísica e idealizada, perfeita em sua exclusão de
qualquer outro que pudesse lhe impor algum limite. A criança como divindade expõe, em tom
paródico, o autocentrismo e a aparente autosuficiência de um ser feliz em sua completude,
para quem os limites não têm lugar (ver, a esse respeito, o capítulo anterior sobre ironia e
intertextualidade).
Tal condição de divindade é reforçada pela ação externa, sobretudo pelos cuidados e
dedicação extrema de Nishio-san, sua babá japonesa (Anexo 2), que assegura seu estatuto
supremo através de intensa devoção. Aliás, são suas histórias melancólicas que povoam e
compõem a imagem desse Japão doce e triste como a babá, conectando a narradora à memória
identitária da nação:
A deux ans et demie, être japonaise signifiait être l´élue de Nishio-san. [...]
Elle était toujours prête à me raconter ses histoires de corps coupés en
morceaux qui m´émerveillaient, ou alors la légende de telle ou telle sorcière
qui cuisait les gens dans un chaudron pour en faire de la soupe : ces contes
adorables me ravissaient, jusqu´à l´hébétude (2000:57).
85
n´importe qui” (2000 :129). Vale lembrar que a personagem retorna, depois de muitos anos,
em Biographie de la faim, já idosa, mas mostrando toda a sua importância no imaginário e na
vivência infantil da narradora:
A l´heure dite, je vis descendre du train une petite dame d´un mètre cinquante.
Elle me reconnut aussitôt :
- Tu es géante, mais tu as la même tête que quand tu avais cinq ans.
Nishio-san devait avoir une cinquintaine d´années. Elle paraissait plus âgée:
elle avait travaillé dur.
Je l´embrassais : c´était gênant (2004:238).
Outro aspecto a ser considerado nos textos autobiográficos, sobretudo nos que se
configuram como relatos de infância, refere-se ao que Augé e Certeau designam como
reconhecimento de si como si mesmo e como outro, ou seja, a escrita do “eu” infantil como
retrato de alguém que já não se é mais, uma espécie de duplo que é resgatado pela memória e
que fica evidenciado quando se põe lado a lado o “eu” infantil retratado e o “eu” adulto que
narra. Para Pierre Nora, no prefácio de sua obra Les lieux de mémoire 35 , o que buscamos na
acumulação de testemunhos, documentos, imagens, de registros do passado, enfim, são os
sinais visíveis daquilo que passou, da nossa diferença; quer dizer, de uma identidade que não
pode mais ser alcançada. O relato da experiência infantil põe em cena aquilo que já não somos
mais. Esse outro é marca profunda e presente do texto memorialístico de Nothomb, seja
através desse outro-criança, seja através do outro-autobiográfico, do qual falamos no primeiro
capítulo, seja através desse outro cuja identidade cultural é simultaneamente dupla e
fragmentada, assunto que estamos abordando neste capítulo. Importante é ressaltar que a
narrativa autobiográfica expõe a presença do outro em si mesmo, e em suas diversas
instâncias, considerando a diferença como marca própria e constituinte da identidade.
As noções de lugar e de espaço – considerando espaço sob a perspectiva antropológica
de Augé, que o define como um lugar movimentado por alguma prática concreta ou simbólica
(AUGÉ, 2004:75) 36 – perpassam a narrativa de Nothomb como um todo, seja através dos
locais simbólicos que compõem o retrato da infância da narradora, seja através da nação como
índice de pertencimento a uma coletividade, seja ainda através dos constantes deslocamentos
que fazem parte de sua vivência e a tornam uma viajante de si mesma. Neste sentido, as
imagens da infância são apreendidas como as paisagens vislumbradas pelo viajante que, em
movimento, passa e guarda instantâneos visuais e sensoriais em sua memória. Nesse contexto,
o conceito de lugar antropológico postulado por Augé pode ser bastante produtivo para um
35
NORA, Pierre. Les lieux de mémoire. Gallimard, Paris:1997
36
AUGÉ, Marc. Não-lugares – Introdução a uma antropologia da supermodernidade. Papirus, São Paulo: 2004
86
estudo da obra de Nothomb. Segundo o autor, lugar antropológico é toda construção concreta
e simbólica do espaço investida de sentido, confortando e confirmando uma relação sensorial
e emocional estabelecida entre alguém e este domínio (AUGÉ, 2004:51). Portanto, podemos
considerar na narrativa nothombiana, o Japão como lugar antropológico, composto, por sua
vez, por outros lugares antropológicos: os espaços que compõem as referências infantis da
narradora, como a casa japonesa, o jardim e o lago onde brinca.
Mais do que uma nação, o Japão é a grande marca territorial e emocional que
atravessa as narrativas de Nothomb; é signo de movimento e de pertencimento, representação
de um paraíso que foi perdido depois de abandonado, força que a impulsiona na tentativa de
retorno à nação e à cultura que considera originais em sua formação. É justamente essa
adoração por terras orientais que provocará o conflito em sua formação identitária, dividida
entre passado (oriente) e presente (ocidente). Internamente, a nação japonesa se reveste de
espaços significativos que ajudam a compor, na lembrança da narradora, a imagem de sua
infância. Representações de um mundo infantil habitado por cenários bucólicos e
encantadores, tipicamente japoneses, representações que vão também se fixando por meio das
histórias narradas pela babá japonesa; histórias tão sinistras quanto fascinantes. A percepção
do lugar é profundamente marcada pelo plano sensorial, alcançando todos os seus sentidos. O
cheiro adocicado das flores, a visão grandiosa das montanhas ao longe, a textura do jardim
úmido da chuva; toda a paisagem é absorvida plenamente pela personagem:
87
destinados a proporcionar sentimentos de tranquilidade e harmonia. 37 A água, a fonte, as
carpas; tudo isto está presente nos tradicionais jardins japoneses e na narrativa de Nothomb,
carregando também um significado especial. Por isso a inevitável e explícita comparação do
jardim oriental ao mitológico Jardim do Éden, pela perfeição e pela sensação de plenitude que
proporciona. O lago, as flores, as cores, a montanha; tudo pertence à imagem monumental da
infãncia, como a paisagem-instantâneo guardada pelo viajante:
Non loin de la maison, dans la montagne, il y avait un petit lac vert que je
baptisai Petit Lac Vert. C´étais le paradis liquide. [...]
Chaque matin, Nishio-san pris l´habitude de m´emmener au Petit Lac Vert.
Seule je découvris l´art de nager comme un poisson, toujours la tête sous
l´eau, les yeux ouverts sur les mystères engloutis dans la noyade m´avait
appris l´existence (1999:71).
[...] les parents hissèrent dans le jardin un mât au sommet duquel flottait, tel
un drapeau, un grand poisson de papier rouge qui claquait au vent.
37
Informações sobre jardim e símbolos japoneses retiradas do livro Tsuboniwa, the Japanese Courtyard Garden
e dos sites http://www.catep.com.br/dicas/JARDIM%20JAPONES.htm, www.paisagismobrasil.com.br e
http://www.nippobrasil.com.br/2.semanal.culturatradicional/307.shtml
38
A simbologia das carpas, enquanto peixes, remete também ao cristianismo, assunto que foi abordado no
capítulo sobre intertextualidade na narrativa de Nothomb.
88
Je demandais de quoi il s’agissait. On m’expliquat que c’était une carpe, en
l’honneur de mai, mois des garçons. Je dis que je ne voyais pas le rapport. On
me répondit que la carpe était le symbole des garçons et que l’on arborait ce
genre d’effigie poissoneuse dans les demeures des familles qui comptaient un
enfant du sexe masculin.
- Et quand tombe le mois des filles ? interrogeai-je.
- Il n’y en a pas.
Je restai sans voix. Quelle était cette injustice sidérante? (2000 :81).
J’avais certes déjà remarqué qu’il y avait une différence sexuelle, mais cela ne
m’avait jamais perturbée. [...]
Dans le jardin, je me postais sur le mât et me mis a observer la carpe. En quoi
évoquait-elle davantage mon frère que moi? Et en quoi la masculinité était-
elle si formidable qu’on lui consacrait un drapeau et un mois – a fortiori un
mois de douceur et d’azalées? Alors qu’à la féminité, on ne dédiait pas même
un fanion, pas même un jour! (2000 :82)
89
Le moment le plus beau était l´averse. [...] J´ouvrais la bouche pour avaler sa
cascade, je ne refusais pas une goutte de ce qu´il avait à m´offrir. L´univers
était largesse et j´avais assez de soif pour le boire jusqu´à la derniére gorgée.
L´eau en dessous de moi, l´eau au dessus de moi, l´eau en moi – l´eau, c´était
moi. Ce n´était pas pour rien que mon prénom, en japonais, comportait la
pluie (2000 :108).
Sua adoração quase religiosa leva-a à compulsão de beber água sem parar,
considerando sua ingestão um estado de graça e de purificação:
Le passage par la fontaine n´était pour eux qu´un rite de purification au terme
duquel ils iraient prier dans le temple shinto. Pour moi, le temple était la
fontaine, et boire était la prière, l´accès direct au sacré. Et pourquoi se
contenter d´une gorgée de sacré quand il y a tout ça à boire ? Parmi les
beautés, l´eau était la plus miraculeuse (2004 :60).
90
justamente a capacidade de se expressar que a faz estar presente no mundo que a cerca. Outra
passagem a ser comentada, em que a representação de renascimento e morte da água é
expressa de modo claro, ocorre quando a narradora, ao contemplar sua imagem na fonte do
jardim, deixa-se cair lentamente, ficando imóvel debaixo d´água, até o momento de sua
salvadora (Nishio-san) vir resgatá-la:
91
a transição do não-falar ao falar, relacionada a uma transformação, ao renascimento de um
novo sujeito, provocado sempre por um elemento sensorial: a imersão na água, o gosto do
chocolate. Dessa forma, tal qual a madeleine de Proust, os objetos sensoriais de Nothomb são
também provocadores de uma nova situação, intensa e imensa no seu despertar para uma nova
dimensão do espaço e da existência: para Proust, a imagem do quarto de sua tia e uma nova
Combray; para Nothomb, o jardim, o lago, o mar, e a descoberta da existência e da
linguagem. A singularidade dos espaços proustianos, que ligados a uma memória afetiva,
tornam-se únicos, pode também ser aplicada àqueles espaços presentes e constitutivos do
universo infantil de Nothomb. Tal qual a igreja de Combray, imortalizada na lembrança do
pequeno Marcel através de suas torres e do badalar de seus sinos, o jardim japonês, as flores,
o lago, a fonte configuram muito mais do que um mero cenário na narrativa de Nothomb. Tais
espaços, por sua caracterização e importância sentimental para a personagem, possuem uma
dimensão a mais; é por isso que se tornam autênticos e únicos, representativamente familiares
numa infância povoada de mitos, sonhos, natureza, rememorada com destreza e idealização ao
longo de toda a obra autobiográfica da escritora.
Podemos ainda citar a experiência da narradora de Sabotage Amoureux que, ao beber
um especial chá chinês que a faz sentir uma profusão de raios e luzes em sua cabeça, é tomada
por uma imensa sensação de euforia:
Assim como a madeleine proustiana serve como uma espécie de intermediário entre o
mundo real e o mundo imaginário, tanto o chocolate branco quanto o chá chinês são uma
porta de acesso, uma ponte, que leva a personagem, a partir da realidade sensível, à
descoberta de um novo universo. Se não um espaço tangível, como um quarto ou uma cama,
ao menos o espaço simbólico de um novo mundo que desperta sentimentos intensos: no caso
do chocolate, a existência; no caso do chá, a identidade cultural chinesa. Se a madeleine se
caracteriza por ser uma experiência em torno da memória, o que não acontece na ingestão do
chá em Sabotage, os episódios se aproximam por se tratar de experiências sensoriais que
possibilitam a abertura, o acesso, a novos espaços. E tal acesso é realizado, nos dois casos,
pelo contato com um elemento que serve de mediador, através da sensação (gosto), nos dois
92
casos, provocada. Em La Recherche du temps perdu, a madeleine desafia e perturba o
protagonista Marcel, com sua abertura para uma nova dimensão:
93
A condição de homem (sic) exige que o indivíduo, embora exista e aja como
ser autônomo, faça isso somente porque ele pode primeiramente identificar a
si mesmo como algo mais amplo – como um membro de uma sociedade,
grupo, classe, estado ou nação, de algum arranjo, ao qual ele pode até não dar
um nome, mas que ele reconhece instintivamente como seu lar (HALL,
2004:48).
94
village de Shukugawa, près du Mont Kabuto – l’évocation de ces lieux
mythologiques me mettait les larmes aux yeux (1999:26).
Furusato é um termo nipônico que vai além do sentido físico e restrito de cidade natal,
lugar de onde se vem: pode-se dizer que ele se agrega a essa idéia de nostalgia e de ruptura da
terra que é considerada como origem. Esse sentimento é sobretudo identificado à identidade
coletiva do povo japonês, pois “Rien n'est plus important, pour un Japonais, que son ‘
furusato’, son lieu de naissance” 40 . Mais uma vez, a narradora nothombiana se identifica à
nação japonesa, incorporando e se apropriando do sentimento da infância como lugar
mitológico, paraíso perdido repleto de sonhos e fantasias, cuja plenitude é relacionada
diretamente ao local, cujo sentido simbólico (exílio, felicidade) é transferido ao lugar, à
nação. Pode-se perceber isso quando a protagonista, num monólogo interior, se imagina
falando com sua superior, uma rígida executiva japonesa:
Tu as pour devoir d’avoir des enfants que tu traiteras comme divinités jusqu’à
leurs trois ans, âge où, d’un coup sec, tu les expulseras du paradis [...].Tu es
obligée de mettre au monde des êtres qui seront d’autant plus malheureux que
leurs trois premières années de vie leur auront inculqué la notion du
bonheur 41 (1999:97).
40
Citação retirada do site do Jipango – Le journal français sur le Japon. De acordo com o texto jornalístico, o
furusato explica a tendência do povo japonês expatriado a se reagrupar em associações regionais, os kenjinkai,
para evocar em conjunto o país.
Visível em http://www.jipango.com/jipango/no7/html/dossier_no07.html
41
Grifos meus, que evidenciam, na narrativa, a infância caracterizada como espaço idealizado.
95
conflito daquela que verdadeiramente crê em suas raízes orientais, ao mesmo tempo em que
procura seu espaço nessas raízes e nesse meio, por vezes tão hostil: “J’essayais de prendre
exemple sur lui (Monsieur Tenshi que, como a narradora, estava sendo repreendido): il
baissait la tête et courbait régulièrement les épaules. Son visage exprimait la soumission et la
honte. Je l’imitais” (1999:45).
A Bélgica surge então em segundo plano, apesar do longo período em que viveu lá e
de todo seu histórico familiar pertencer à Bélgica 42 . Em Stupeur et tremblements, há apenas
duas referências a este país, e isto ocorre somente quando a narradora é inquirida a respeito de
sua nacionalidade e país de origem:
O conflito quanto a uma identidade nacional unificada e centralizada fica ainda mais
explícito na continuação da resposta da narradora à pergunta acima, que evidencia seu
discurso ambíguo e contraditório no que se refere à sua origem e identidade: “Un sursaut
d’orgueil national me poussa à répondre la vérité: - Aucun Belge n’est semblable à moi”.
Apesar de estar sendo questionada quanto à sua competência profissional e, portanto,
sua resposta, a princípio, parecer uma simples “defesa” de seus “conterrâneos” – a
protagonista parece querer dizer que os outros belgas não são tão “incompetentes” quanto ela
–, o uso da palavra verdade (vérité) é um tanto ambíguo: tanto pode se referir a uma auto-
depreciação, quanto ao fato de que realmente nenhum outro belga poderia ser como ela, com
sua identidade nacional tão partida e fragmentada.
O apego e a familiaridade em relação à cultura oriental se mostram ainda mais claros
no momento mais traumático da primeira infância para a narradora: o abandono do Japão, aos
cinco anos, e a conseqüente ruptura, responsável por inevitáveis comparações entre outros
países e a idealização das terras nipônicas:
- Ton père ne sera éternellement en poste au Japon. Dans un an, ou deux ans,
ou trois ans, nous partirons. [...]
L´univers s´effondra sous mes pieds. Je venais d´apprendre tant
d´abominations à la fois que je ne pouvais pas même en assimiler une seule.
Ma mère n´avait pas l´air de se rendre compte qu´elle m´annonçait
l´Apocalypse (2000 :122).
42
Amélie Nothomb provém de uma tradicional e aristocrática família belga. Seu pai, Patrick Nothomb, como
embaixador da Bélgica, representou seu país em Kobe, Japão, de 1967 a 1972, período em que a autora e sua
família lá viveram. Atualmente, a autora reside em Bruxelas.
43
Grifo meu.
96
O texto é claro: se a infância possui tons místicos graças ao seu estado de permanente
plenitude e êxtase, sendo comparada constantemente a uma religião, e a criança a Deus, o
abandono deste espaço paradisíaco é comparado ao derradeiro fim da humanidade, o
Apocalipse. A ligação com o Japão e a crença de que ele é seu país de nascença, e não a
Bélgica, ficam ainda mais evidentes na passagem seguinte: “Mon père me rassura un rien:
notre départ du Japon n´était prévu que dans deux ou trois ans. Deux ou trois années
équivalaient pour moi à la durée d´une vie : j´en avais encore pour une existence entière au
pays de ma naissance” (2000 :126).
No diálogo a seguir, travado entre a narradora e a mãe, na ocasião em que esta
comunica à filha que deverão viver em outro país, o conflito surge de maneira explícita. No
âmbito familiar, a narradora segue em contramão aos seus próximos, adotando a nação
japonesa como sua, primordialmente :
Je lisais peu: j´avais beaucoup trop à faire. La lecture, c´était bon pour ces
désoeuvrés qu´étaient les adultes. Il fallait bien qu´ils s´occupent. [...]
Et puis, surtout, il y avait la guerre : la guerre épique et terrible du ghetto de
San Li Tun.
97
Prenez une ribambelle d´enfants de toutes les nationalités: enfermez-les
ensemble dans un espace exigu et bétonné. Laissez-les libres et sans
surveillance (1994 :20).
Il [Dieu] s´apercevait que ces objets existaient en dehors de lui, sans avoir
besoin de son règne. Cela lui déplaisait et il criait.
D´autre part, il avait observé que les parents et leurs satellites produisaient
avec leur bouche de sons articulés bien précis: ce procédé semblait leur
permettre de contrôler les choses, de se les annexer.
Il eût voulu faire le même (2000 :24).
98
segregação. Ironicamente, é esta mesma fluência que determinará seu distanciamento e seu
silêncio, como no episódio em que a narradora é proibida, pelo chefe, a falar a língua
japonesa:
- Vous ne connaissez plus le japonais. C´est clair?
- Enfin, c´est pour ma connaissance de votre langue que Yumimoto m´a
engagée!
- Cela m´est égal. Je vous donne l´ordre de ne plus comprendre le japonais.
- C´est impossible. Personne ne peut obéir à un ordre pareil.
- Il y a toujours moyen d´obéir. C´est ce que les cerveaux occidentaux
devraient comprendre (1999:21).
99
Pour moi, il n´y avait pas des langues, mais une seule et grande langue dont
on pouvait choisir les variantes japonaises ou françaises, au gré de sa
fantaisie. Je n´avais encore jamais entendue une langue que je ne comprenais
pas (2000 :49).
Assim como o silêncio, sua postura física, inclinando a cabeça e os ombros, é uma
representação do subalterno envergonhado e submisso por seu erro, a quem não cabe qualquer
tipo de questionamento. Daí a explicação que a narradora oferece sobre o título do livro, ao
afirmar:
44
Grifo meu.
100
ironicamente, de “gueixa branca” (1999:27). A figura da gueixa – cuja face pintada remete
também a uma máscara – é o símbolo nipônico mais célebre da feminilidade servil e,
principalmente, silenciosa. A narradora, para bem cumprir seu papel social, deve vestir a
máscara da docilidade e da aquiescência, simbolizada pela primeira palavra pronunciada
desde que havia chegado à firma: “- Oui, dis-je. Ce fut le premier mot que je prononçai dans
la compagnie” (1999:10).
O “sim” não apenas da submissão, do servilismo, mas também da vontade de fazer
parte de um meio que ainda a considerava diferente: para eles, ela é a “gueixa branca”,
ocidentalizada, que não é “pura” e autêntica como qualquer outra gueixa seria; por isso, leva
um adjetivo distintivo referente às suas origens ocidentais, ou melhor dizendo, não-japonesas.
Identidade híbrida e interação verbal também são temas tratados por Jean-Marc Moura
(MOURA, 1999), no capítulo “Pour une théorie postcoloniale francophone” de sua obra
Littératures francophones et théorie postcoloniale. Moura afirma que o termo hibridismo, no
que se refere à formação de identidades, foi consagrado por H.K. Bhabha, que o apresenta
como: “Uma situação de negociação política e construção do simbólico, a construção do
sentido que não só interfere nos termos da negociação, como também inaugura uma interação
ou um dialogismo dominante/dominado” (MOURA, 1999:156).
Bhabha é bastante claro ao tratar esse processo de interação social, onde a linguagem é
o instrumento mediador, como um sistema de negociação política. O uso da linguagem, no
romance de Amélie Nothomb, tem ligação estreita com as relações de poder, nas quais a
proporção dominante/dominado nem sempre é igualitária e justa. Segundo Moura, a interação
permite que os elementos presentes na interação se desloquem de sua posição inicial, dando-
lhes a possibilidade de uma nova negociação (MOURA, 1999:156). Essa negociação é um
evento constante no romance, principalmente se levarmos em conta a carga ideológica
(cultura oriental x cultura ocidental) que sustenta esse sistema. As posições iniciais, para
retomar as palavras de Moura, parecem ser muito mais estáveis e inflexíveis, no que tange às
relações hierárquicas dentro da firma Yumimoto: “Il eût été inconcevable, en amont, de sauter
même um seul échelon hiérarchique – a fortiori d’en sauter autant. Je n’avais le droit de
m’adresser qu’à mon supérieur direct, qui se trouvait être mademoiselle Mori” (1999:25).
Assim como o uso cerceado da linguagem, em sua interação/negociação subordinada a
um regulamento e a uma hierarquia implacáveis, a não possibilidade de fazer uso desta
linguagem também determina uma forma de censura política e ideológica, na qual o silêncio
do dominado/subordinado reflete seu apagamento do ambiente social. Essa situação é bem
representada no episódio em que a protagonista, ao servir o tradicional chá numa reunião com
101
dirigentes de diversas empresas japonesas, foi repreendida por falar um japonês impecável.
Para sua surpresa, ao questionar sua repreensão, a razão alegada por seu chefe era a seguinte:
- Taisez-vous! [...] Vous avez créé une ambiance exécrable dans la réunion de
ce matin: comment nos partenaires auraient-ils pu se sentir en confiance, avec
une Blanche qui comprenait leur [dos japoneses] langue? A partir de
maintenant, vous ne parlez plus japonais (1999 :20).
Ao falar a língua japonesa com perfeição, Amélie se torna uma “ameaça”, por desejar
fazer parte de um mundo/nação ao qual não pertence. Enquanto “Branca” (Blanche), ela é o
“outro”, com diferenças culturais bem marcadas; diferenças estas que não podem ser
derrubadas. A fluência no idioma japonês representaria uma semelhança e uma proximidade –
não permitida – com o mundo oriental: o “eu” e o “outro” são pólos distantes que não
deveriam se misturar. A tentativa de apagamento de sua identidade social se dá pela proibição
de falar sua segunda língua 45 , o que a leva, posteriormente, ao uso de diversos subterfúgios
lingüísticos. Segundo Bourdieu, a exclusão é um dos processos mais eficazes de censura
social:
45
É interessante ressaltar que, em determinado momento, a protagonista se refere ao idioma japonês como sendo
sua ‘segunda língua’ (NOTHOMB, 1999:43), o que coloca sua identidade oriental em posição subordinada a sua
identidade ocidental.
102
e discretamente na entrega da correspondência aos funcionários da empresa, o que lhe permite
treinar seus conhecimentos dos ideogramas japoneses ao identificar os nomes dos
destinatários:
Para que sua identidade nipônica possa estar presente, é preciso de alguma forma fazer
uso da dissimulação e esconder sua competência lingüística, a fim de não se tornar uma
“ameaça” ocidental e desrespeitar as ordens superiores.
A fluência e a plena compreensão do idioma japonês não garantem sua participação no
grupo social da empresa. Ao contrário, seus conhecimentos lingüísticos podem, às vezes, ser a
razão de sua exclusão, como vimos neste capítulo. Mas o interessante é perceber que o
sistema lingüístico funciona paralelamente a uma série de normas de conduta social, normas
estas que fazem parte de uma cultura nacional. E, apesar de sua fluência, a protagonista cria
problemas e comete gafes involuntariamente, exatamente por esse desconhecimento das
normas sociais que dizem respeito unicamente à cultura japonesa. Suas tentativas de fazer
parte do grupo são frustradas por seus constantes equívocos lingüísticos e/ou de comunicação,
que ferem o padrão de conduta japonês.
À primeira falha – já no primeiro dia de trabalho, quando não avisou a recepcionista
sobre sua chegada – seguem-se outras, tão ou mais graves, se considerarmos o rígido
conservadorismo da sociedade japonesa. Os exemplos vão de meras dúvidas sobre a melhor
maneira de redigir uma carta em nome do chefe (“Il fallait donc que je trouve par moi-même
quel langage tenir [...]” 1999:11) até questionamentos e comportamentos considerados
deveras efusivos. Outro exemplo a ser citado se dá quando lhe é delegada a tarefa “simples e
adequada à sua capacidade” (1999:68) de separar as faturas pelos nomes das empresas; e, ao
identificá-las todas pelo termo GMBH, que na verdade indica somente o tipo de corporação 46 ,
ela arquiva conjuntamente diversas empresas que nada têm a ver umas com as outras. Tal
falha lhe rende uma série de reprimendas e insultos à sua capacidade intelectual. Outro
episódio bastante significativo tem lugar quando sua superior direta sofre uma reprimenda em
público – situação máxima de desonra – e Amélie a procura, a fim de lhe oferecer consolo. Ao
oferecer consolo a outro, quando este se encontra em situação desonrosa, ela desafia
46
O nosso equivalente a LTDA.
103
simultaneamente os padrões de hierarquia e de comunicação, ato considerado falha grave,
apesar de suas boas intenções, pois fere gravemente o código japonês – e rende à protagonista
sua mais séria punição: o novo posto de guardiã dos banheiros da empresa (“dame pipi”):
Fubuki avait été humiliée de fond em comble sous les yeux de ses collègues.
La seule chose qu’elle avait pu nous cacher, le dernier bastion de son honneur
qu’elle avait pu préserver, c’étaient ses larmes. Elle ait eu la force de pas
pleurer devant nous.
Et moi, futée, j’étais allée la regarder sangloter dans sa retraite. C’était
comme si j’avais cherché à consommer sa honte jusqu’à la lie. Jamais elle
n’eût pu concevoir, croire, admettre que mon comportement relevât de la
bonté, même de la sotte bonté (1999:127).
Para concluir este capítulo sobre linguagem, poder e interação, retomo de maneira
simbólica e representativa os termos utilizados por um colega de trabalho da protagonista
Amélie na firma Yumimoto, ao querer desculpar e justificar sua inadequação lingüística – e,
conseqüentemente, social e ideológica, já que são partes de um mesmo sistema – perante seu
chefe: “- Je vous en supplie, [...] elle ne sait pas ce qu’elle dit, elle est occidentale [...]”
(1999:47).
104
3.5. “Onde a personagem está em casa?”: algumas considerações sobre memória,
tradição e alteridade
Em seu capítulo sobre “comunidades imaginadas” (HALL, 2004: 50), Hall afirma que
as culturas nacionais são formadas não só a partir das instituições culturais que as compõem,
mas também de símbolos e representações. Ele acrescenta que toda cultura nacional é um
discurso, no sentido de influenciar e construir uma nação, produzindo sentidos, sobre ela e
sobre nós mesmos, com os quais podemos nos identificar. São esses sentidos, contidos nas
estórias sobre a nação, e nas memórias, conectando presente e passado, que permitem a
construção da imagem e da identidade nacionais. Segundo Benedict Anderson (HALL, 2004:
51), a identidade nacional é uma “comunidade imaginada”.
Hall cita ainda Homi Bhabha, quando esta observa que “as nações, tais como as
narrativas, perdem suas origens nos mitos do tempo e efetivam plenamente seus horizontes
apenas nos olhos da mente” (HALL, 2004:51). Hall distingue cinco elementos que fazem
parte da construção de uma comunidade imaginada. Destes, apenas três nos interessam
particularmente no que diz respeito à obra de Amélie Nothomb. O primeiro consiste no que o
teórico chama de narrativa da nação: conjunto de estórias, imagens, panoramas, eventos
históricos, símbolos e rituais difundidos pela mídia, pela cultura popular e pelas literaturas
nacionais. Esse conjunto representa e simboliza a nação, quer dizer, o imaginário ideológico
de uma nação, e nos conecta a um grupo, fazendo-nos partilhar uma experiência coletiva.
Como membro desta “comunidade imaginada”, a narrativa da nação relaciona nossa
individualidade e nossa vida quotidiana a um destino nacional que preexiste a nós.
O segundo elemento seria a ênfase nas origens, na continuidade e na tradição: a
identidade nacional, como algo primordial e inquebrantável, faz parte da natureza humana.
Mesmo que às vezes pareça adormecida, ela existe em seu caráter atemporal. Como Hall
observa, “os elementos essenciais do caráter nacional permanecem imutáveis, apesar de todas
as vicissitudes da história” (HALL, 2004:53).
Como terceiro elemento, a idéia de povo ou folk puro: as culturas nacionais são muitas
vezes baseadas simbolicamente na idéia de um povo original, puro. Segundo Hall, raramente
esse povo (folk) persiste ou exercita o poder.
A construção de uma identidade nacional é equilibrada, de modo ambíguo, entre o
passado e o futuro; entre o coletivo e o individual. Se tomamos consciência de uma identidade
nacional a partir da identificação com os símbolos e estórias de uma nação, a memória e as
105
lembranças têm papel fundamental nessa formação. Para Augé, sãos os símbolos que
estabelecem a relação entre o indivíduo e a coletividade:
Portanto, é o reconhecimento dos símbolos que fazem parte de uma nação que
determina o pertencimento (ou sentimento de pertencer) a uma determinada cultura. É neste
sentido que se deve analisar o sentimento de estreita ligação da personagem Amélie em
relação ao mundo japonês: seu Japão é o Japão mitológico da infância, onde histórias, lendas
e rituais a conectam a esta comunidade imaginada, através das narrativas contadas pela babá
japonesa: “Nishio-san avait vraiment de belles histoires à raconter : les corps y finissaient
toujours en morceaux” (2000:52).
Parte de sua identidade nacional – já que se trata de uma identidade híbrida – é
formada a partir da memória, ou seja, através das lembranças que Amélie tem do passado e de
suas origens. São os horizontes nacionais efetivados nos olhos da mente, no imaginário
individual, como observou Anderson. Essa infância concebida como um paraíso perdido que
ela tenta reencontrar – e onde, simbolicamente, se auto-proclama Deus, numa referência à
amplitude de suas possibilidades enquanto criança e centro das atenções – é perseguida
ardorosamente, numa oscilação constante e ambígua entre passado e futuro:
Les attitudes les plus incompréhensibles d’une vie sont souvent dues à la
persistence d’un éblouissement de jeunesse: enfant, la beauté de mon univers
japonais m’avait tant frappée que je fonctionnais encore sur ce réservoir
affectif (1999:134).
Como bem admite a narradora, sua busca é movida em grande parte pelo que chama
de “reservatório afetivo”, numa alusão clara ao que se pode denominar um depósito de
lembranças e memórias que a levaram à imagem onírica dessa comunidade imaginada. É
exatamente por causa desse reservatório afetivo, e do choque sofrido ao se deparar com uma
realidade diversa da construída pelo imaginário infantil, que sua identidade será mais uma vez
fragmentada, desta vez – ou paralelamente – entre passado e futuro, como deixa bastante claro
depois: “J’avais à présent sous les yeux l’horreur méprisante d’un système qui niait ce que
j’avais aimé et cependant je restais fidèle à ces valeurs auxquelles je ne croyais plus”
(1999:134).
106
É importante salientar que a questão autobiográfica em Amélie Nothomb está ligada
ao trâmite entre culturas. Um paralelo entre autobiografia e identidade se traça: enquanto a
primeira se caracteriza por um confronto de sujeitos, a segunda potencializa um confronto de
culturas. O movimento constante de idas e vindas nas narrativas de Nothomb enfatizam esse
paralelo.
Não obstante, apesar de a protagonista admitir a decepção ao se deparar com um
mundo diferente do qual imaginou, com valores transfigurados se comparados aos de seu
imaginário infantil e idealizado, ela não consegue se desvencilhar totalmente deles, mesmo
que sua crença neles tenha se diluído. Isso nos remete então ao segundo elemento citado por
Hall: apesar de uma identidade nacional fragmentada e ainda em formação, de maneira
ambígua ela já existe de maneira natural em sua essência idealizada. Nem a identidade híbrida
foge de uma formação baseada em valores e normas arraigadas; o que, num círculo vicioso,
nos leva às origens e ao conjunto de normas que dão sentido a uma coletividade.
Retomando os dois últimos elementos citados por Hall na seção anterior, vemos que a
posse em comum de um rico legado de memórias, assim como o desejo de viver em conjunto
e perpetuar a herança que se recebeu constituem o princípio da unidade de uma nação. São as
memórias, as origens e o passado, agrupados no que se convencionou chamar de “conjunto de
tradições”, que determinam o sentimento de coletividade. A partir dessa herança coletiva,
cada indivíduo sente-se como membro de um grupo, de uma nação. Ou seja, uma cultura
nacional busca unificar seus membros numa identidade cultural: “As identidades nacionais
representam precisamente o resultado da reunião dessas duas metades da equação nacional –
oferecendo tanto a condição de membro do estado-nação político quanto uma identificação
com a cultura nacional” (HALL, 2004:58).
Esse pertencimento comum (ou o sentimento de pertencer) à “família-nação” é o que
busca incessantemente a narradora nothombiana, esbarrando sempre em conceitos bem
estabelecidos que distanciam tradição e alteridade. O que ela narra é justamente a
impossibilidade de pertencimento a qualquer parte. Observa-se com nitidez na narrativa de
Nothomb que a relação entre o “eu” x o “outro” é deveras intensa, na medida em que a
narradora é colocada sempre no papel do “outro”, da “estrangeira”, do “diferente”. Exposta a
esse olhar que a estranha, e freqüentemente a hostiliza, ela não é familiar em parte alguma,
seja pelo fato de ser a única não-japonesa na escola onde os pais a matricularam em
Shukugawa:
107
Ainsi, quand il fallut me scolariser, on ne me mit pas à l´école américaine que
fréquentaient mon frère et ma soeur ; on m´inscrivit au yôchien, le
Kindergarten japonais au bout de la rue. [...]
J´étais la seule non-Nippone du yôchien (2004 :40).
Ou seja pelo fato de ser estrangeira nas diversas escolas freqüentadas ao longo da
grande lista de países habitados:
Le Lycée français de New York, c´était autre chose que la Petite École
française de Pékin. [...]
J´ai remarqué ce curieux phénomène dans le monde entier: j´étais toujours la
seule Belge de la classe, ce qui me valait des flots de moqueries dont j´étais la
première à rire (2004 :111).
Car c´en était fini des maternelles japonaises. Ma première rentrée sérieuse
eut lieu à la Petite École française de Pékin. [...]
Révélation aussi de la complexité nationale : je rencontrai des Belges qui ne
parlaient pas français. Décidément, le monde était bien curieux. Et il y avait
des langues à n´en plus finir. Il n´allait pas être simple de s´y retrouver, sur
cette planète (2004 :81).
Si l´on cherchait bien dans les pages, on trouvait aussi le mal dont on
souffrait. Le mien s´appelait manque du Japon, qui est la véritable définition
du mot “nostalgie”.
Toute nostalgie est nippone. Il n´y a pas plus japonais que de languir sur son
passé et sur sa majesté révolue et que de vivre l´écoulement du temps comme
une défaite tragique et grandiose. [...]
Le Japon était mon pays, celui que j´avais choisi, mais lui ne m´avait pas élue
(2004 :84).
108
condição de mulher ocidental numa empresa japonesa. Como bem observa Hall, a questão de
gênero é intrínseca ao sistema de identidade nacional, com significados e valores distintivos
para os papéis femininos e masculinos na sociedade (HALL, 2004:61). O que as narrativas de
Nothomb expõem é que a cultura nacional define também uma estrutura de poder político e
cultural, bem encarnada, no livro, pela empresa-nação.
A concepção de uma empresa japonesa como uma pequena nação, com todos os
elementos políticos e ideológicos que essa definição traz, é expressa numa das frases ditas
pela protagonista: “Au Japon, l’existence, c’est l’entreprise” (1999:162). Para existir nesse
“lugar antropológico”, investido de sentido simbólico, é preciso se adaptar; e, num processo
de uniformização, tentar apagar as diferenças, ou qualquer característica que a distinga do
grupo homogêneo. Comoo bem observa Renato Ortiz em seu estudo antropológico sobre o
Japão, as firmas japonesas possuem um universo próprio: são como comunidades-nação em
miniatura. Nesse processo de construção de valores nacionais, trabalhar é estar em torno da
nação, e as relações de poder no trabalho determinam o respeito a uma hierarquia, como a que
faz a jovem funcionária Amélie não poder se reportar a qualquer outro chefe que não seja seu
superior direto, ou não poder questionar qualquer ordem ou julgamento a seu respeito.
O sistema que diferencia o outro do “eu” japonês transforma o mundo num dualismo
que é transportado para dentro da empresa: nós (orientais) x você (ocidental), o que nos
remete também ao conceito de “folk” puro e original, como garantia da tradição de um povo,
citado por Hall. Para melhor compreender como essa antinomia Japão/Ocidente é construída
na sociedade japonesa, vale citar Ortiz:
Mas, para se afirmar, o “nós” japonês necessita de um outro, e neste caso não
há dúvidas, a alteridade reside alhures. A língua japonesa é rica em exemplos
dessa natureza, a polaridade wa/yo sendo constitutiva da oposição entre Japão
e Ocidente. (ORTIZ, 2000:137)
109
atestam a capacidade de elaborar conceitos que aproximam as pessoas, afastando-as
evidentemente de outras” (ORTIZ, 2000:138).
Para o presente estudo, o aspecto que nos interessa não é como essas representações
são formadas, mas o seu resultado: a construção de uma dicotomia que divide um grupo entre
semelhantes e diferentes, nós e eles; ou, mais especificamente, a oposição yo/wa. Segundo
Ortiz, “a dicotomia yo/wa estabelece uma nítida percepção ‘daquilo que vem de fora’, dentro
de seu campo de definição o estrangeiro encontra-se explicitamente configurado” (ORTIZ,
2000:145). E, para a cultura japonesa, tal distanciamento deve estar bem marcado, como uma
maneira de reafirmação de sua identidade cultural.
Esse antagonismo yo/wa fica bastante claro na narrativa nothombiana, pois a narradora
é constantemente lembrada de sua diferença, de sua “ocidentalidade” como marca de
distinção e, no caso, de inferioridade. Esta concepção de inferioridade ocidental em relação ao
oriente fica bastante explícita numa passagem em que, ao ser questionada por sua chefe sobre
a razão por ter falhado numa tarefa, ela explica, ironicamente, que foi devido à “inferioridade
do cérebro ocidental”, no que é imediatamente apoiada por sua superior:
Elle [a chefe] n’allait pas s’arrêter en si bon chemin sur la route du plaisir.
Elle continua:
- [...] Quelle est, d’après vous, l’origine de cette incapacité?
La réponse coulait de source. Je m’amusais beaucoup:
- C’est l’infériorité du cerveau occidental par rapport au cerveau nippon.
Enchantée de ma docilité face à ses désirs, Fubuki trouvait une repartie
équitable:
- Il y a certainement de cela (1999:169).
110
A oposição social marcada pelas fronteiras Oriente x Ocidente passa à esfera
ideológica e cultural, onde, paradoxalmente, a protagonista tenta adotar os valores nipônicos
ao mesmo tempo em que adquire um senso crítico em relação a eles. O que se vê então é o
surgimento de um olhar crítico e, por vezes, mordaz: o olhar ocidental de uma imagem
representativa daquela nação japonesa. O “furusato”, o Japão mítico e lúdico da infância então
começa a dar lugar a um novo lugar antropológico, onde mulheres e homens têm papéis bem
definidos, assim como estrangeiros têm seus lugares pré-estabelecidos, sem outra escolha a
não ser se adaptarem aos costumes e valores impostos – sem que a recíproca seja verdadeira.
Isto fica explícito na breve reflexão que a protagonista faz sobre as relações estabelecidas
entre Japão/outros:
Seu olhar mordaz continua, ao tecer críticas sobre o sistema japonês e a condição
feminina:
A raça é uma categoria discursiva e não uma categoria biológica. Isto é, ela é
a categoria organizadora daquelas formas de falar, daqueles sistemas de
representação e práticas sociais (discursos) que utilizam um conjunto frouxo,
freqüentemente pouco específico, de diferenças em termos de características
físicas [...] como marcas simbólicas, a fim de diferenciar socialmente um
grupo de outro (HALL, 2004:63).
111
O olhar crítico da narradora também se volta para o papel da mulher na sociedade
japonesa, quando comenta, não sem ironia, que se deve admirar as japonesas principalmente
pelo fato de não se suicidarem, prática comum no Japão, por ser uma forma honrada de
morrer:
Nesse sentido, deve-se notar que a narradora utiliza termos representativos da cultura
japonesa (samurai, guerra, luta) para demonstrar valores como devoção e lealdade. Outras
vezes, tenta realmente pensar e agir como um japonês, cuja forma de agir é tão peculiar:
47
Expressão em francês que significa ser desonrado por alguma atitude. No caso, pedir demissão, segundo o
código japonês, é um motivo maior de vergonha do que executar uma tarefa medíocre.
112
Como maneira de se distinguir dos países “estrangeiros”, o Japonês contrapõe o forte
sentimento de coletividade ao “equivocado” individualismo ocidental. O indivíduo deve se
adaptar às regras do grupo – família, escola, firma – reprimindo o espírito desagregador,
individualista (aqui como sinônimo de “egoísta” e “imaturo”). Este conflito também está
presente em Stupeur et tremblements, nas diversas situações de confronto nas quais a
oposição individualismo/ocidente x coletividade/oriente se mostra explícita. No universo em
miniatura representado pela Yumimoto, ser considerado individualista é extremamente grave:
“Mon compagnon d’infortune et moi nous fîmes traiter de tous les noms: nous étions des
traîtres, des nullités, des serpents, des fourbes et – sommet de l’injure – des
individualistes”(1999:44).
Ao ousar tomar iniciativas dentro da empresa – mesmo que profissionais – ela é
repreendida por ter posto os interesses individuais acima dos do grupo. O dualismo entre
Oriente e Ocidente é então reforçado, pois ambos carregam características bem distintas,
sendo o individualismo ocidental bastante criticado, como se pode ler nesta passagem: “[...]
Vous vous conduisez aussi bassement que les autres Occidentaux: vous placez votre vanité
personnelle plus haut que les intérêts de la compagnie” (1999:67).
Para concluir este capítulo e completar a idéia de oposições que coexistem ao desejo
de interação e compreensão – o que a narradora chama oportunamente de “relações
paradoxais” –, cito suas palavras ao comentar, com a chefe, um filme de guerra que muito a
impressionara no passado. O filme narrava o confronto entre um soldado britânico
(interpretado por David Bowie) e um chefe japonês (interpretado por Ryuichi Sakamoto) num
campo de prisioneiros administrado por militares japoneses. No final, acrescenta ela, o
soldado inglês é condenado à morte pelo chefe nipônico: “Entre vous et moi, il y a la même
différence qu’entre Ryuichi Sakamoto et David Bowie. L’Orient et l’Occident. Derrière le
conflit apparent, la même curiosité réciproque, les mêmes malentendus cachant un réel désir
de s’entendre” (1999:156).
Ao utilizar este filme como exemplo, percebe-se nele a dicotomia wa/yo, a partir do
conflito entre duas culturas distintas, a ocidental e a japonesa. Essas duas culturas procuram
interagir, cada uma com sua autonomia e características específicas. A relação entre tradição e
alteridade, entre o que é considerado familiar e o que é diferente, evoca invariavelmente
sentimentos de não-pertencimento na protagonista de Nothomb, onde quer que ela esteja. O
embate entre eu e o outro se dá de maneira constante em sua trajetória, tendo em vista que ela
é sempre o “outro”, sem nação, sem lugar. Neste sentido, é como se ela pertencesse apenas ao
que Marc Augé chama de “não-lugar”, compreendendo o termo como o contrário de lugar
113
antropológico, ou seja, como um espaço que não estabelece uma relação social e emocional
com os indivíduos que nele se inserem, criando uma espécie de tensão solitária (AUGÉ,
2004:73). Segundo Augé, o não-lugar pode ser físico – como um aeroporto, um hotel, um
hospital – mas também simbólico; ou seja: pode ser um território geográfico ou um território
retórico. É como um “território retórico” que devemos compreender o não-lugar da narradora
Nothomb: como um vazio, um espaço sem vínculos, solitário, efeito do sentimento de
expatriação. Tudo isso nos leva a uma indagação: onde a personagem está em casa? Em parte
alguma, pois só restou a ela, identidade híbrida e fragmentada, o espaço do viajante, que Augé
define como o arquétipo do não-lugar. Para o antropólogo, “o lugar e o não-lugar são, antes,
polaridades fugidias: o primeiro nunca é completamente apagado e o segundo nunca se realiza
totalmente – palimpsestos em que se reinscreve, sem cessar, o jogo embaralhado da
identidade e da relação.” (AUGÉ, 2004:74) É importante igualmente sua afirmação de que “a
volta ao lugar é o recurso de quem freqüenta os não-lugares” (AUGÉ, 2004:98), para
compreendermos a busca incansável da personagem em relação às suas origens, à sua nação.
Na obra autobiográfica de Nothomb, haverá sempre a dualidade, num embate eterno
entre duas identidades que, partidas, nunca se completam. E, dessa forma, é justamente essa
duplicidade que estabelece, paradoxalmente, uma relação de ruptura e continuidade, a partir
de duas questões centrais “o que sou” e “o que me tornei”. É justamente esse conflito
identitário que marcará as narrativas de Nothomb, seja através do relato de seus
deslocamentos, seja através da tentativa de dar coerência e unidade à sua existência, através
da palavra e da memória. Como atesta Hall, essa tentativa de textualizar a própria história, o
próprio deslocamento, é uma maneira de propor uma coerência imaginária à experiência da
dispersão e da fragmentação. Assim, vimos que a obra autobiográfica de Nothomb põe em
cena a angústia gerada pela tentativa de constituir uma identidade que jamais cessou de
recomeçar e fracassar.
114
CONCLUSÃO
115
preenchiam as lacunas que pudessem classificá-las em um ou outro gênero textual. A
concepção tradicional de autobiografia remete à tripla identidade nominal entre autor,
protagonista e narrador, e também ao pacto autobiográfico formulado como atestado de
veracidade. A definição de autoficção compreende a tripla identidade nominal, porém um
discurso claramente ficcional. No entanto, em relação às narrativas de Nothomb, nenhuma
delas apresenta a tripla identidade nominal de maneira explícita e seu discurso narrativo
mostra-se consideravelmente ambíguo, impedindo uma delimitação clara das fronteiras entre
real e ficção.
Porém, ao considerar as idéias apresentadas por Walter Benjamin em seu estudo sobre
memória e escrita no texto proustiano, entendi que seu raciocínio se mostrava, dentre todos, o
mais coerente no que diz respeito às características ambíguas e limítrofes do texto
nothombiano. Segundo o filósofo, todo texto autobiográfico é também construído a partir das
lacunas do esquecimento, a serem preenchidas através da imaginação. Dessa forma, nenhum
discurso autobiográfico pode se comprometer com um puro relato do real, uma vez que
lembrar-se de tudo é mera ilusão. Assim, toda autobiografia na verdade revela-se como
autoficção, onde as fronteiras entre real e ficção devem ser consideradas em toda sua
complexidade de limites. As narrativas de Nothomb são, portanto, autobiografias que formam,
em conjunto, um projeto autobiográfico fragmentado como a própria concepção de identidade
que emerge na obra da autora.
Em relação ao discurso nothombiano, procurei apresentar e analisar, neste trabalho, as
ferramentas narrativas das quais a autora faz uso com o objetivo de fortalecer a ilusão realista
proposta por toda narrativa autobiográfica. Assim, a ironia, a intertextualidade e a
metanarrativa formam mecanismos característicos da habilidade da autora na construção de
um texto que remete, paradoxalmente, ao real e à ficção.
Como o texto autobiográfico de Nothomb põe em cena a formação identitária da
narradora/autora, através do relato dos diversos lugares em que viveu e cresceu, tracei um
paralelo entre a questão autobiográfica e construção da identidade cultural. Baseando-me
sobretudo nos estudos culturais de Stuart Hall, entendi que a obra de Nothomb põe em cena a
problematização de sua fragmentação identitária, caracterizada pela dualidade e pelo conflito
entre duas culturas. Dessa forma, estudar sua obra autobiográfica é também pensar de que
modo se constrói a relação entre escrita e autobiografia. A escrita, no caso de Nothomb,
servirá como tentativa de buscar a coerência e a unidade não encontradas na identidade
fragmentada da narradora de sua obra. A ambivalência presente em cada linha de seu texto
revela o confronto entre duas identidades que, partidas, nunca se completam, expondo a
116
relação tensa de continuidade e de ruptura entre “o que sou” e “o que me tornei”. A passagem
por diversos países, a visão idealizada da infância no Japão, o embate entre duas formações
culturais diversas fortalecem o sentimento de expatriação da narradora e sua condição de
exilada, onde quer que ela esteja. Sem aderir completamente a qualquer identidade cultural, a
narradora mostra um retrato nostálgico e irônico de sua primeira infância no Japão.
Métaphysique é, ao mesmo tempo, relato de um exílio territorial e existencial; um exílio, por
assim dizer, de si mesma. Dessa forma, pensar a vida através de uma linha narrativa e o ato de
se pôr em escrita é uma tentativa de fornecer sentido aos dias que transcorrem sem controle,
sem que se possa dominar o futuro. Ao se colocar em escrita, o homem torna-se atemporal; o
projeto autobiográfico de Nothomb se constrói, afinal, como forma de exercer esse controle,
mesmo que fictício, sobre o tempo. Memória e tempo, vida e escrita formam os quatro
vértices da escrita autobiográfica que remete, simultaneamente, aos discursos real e ficcional,
num embate no interior do próprio texto. Se há um embate interno à narradora, quanto à sua
construção identitária, há também um conflito externo, que se desenha entre leitor e
narradora, quanto ao pacto autobiográfico que não é assinado pela autora.
Identidade e alteridade configuram o conflito central da obra autobiográfica, seja
através da distância entre o “eu criança” e o “eu adulto”, seja através do embate entre culturas.
Assim, a relação entre memória e escrita mostra-se como uma tentativa de fornecer unidade
ao texto de sua vida, marcado pela duplicidade e pela fragmentação. O projeto autobiográfico,
como ato de pôr a escrita a serviço da memória, mostra-se revelador, na medida em que
configura uma tentativa de dar coerência à vida da própria Nothomb.
Espero, com este trabalho, ter contribuído para um maior conhecimento da obra de
uma autora contemporânea e, por isso, ainda sem bibliografia crítica. Uma das maiores
dificuldades enfrentadas referiu-se, sobretudo, ao estudo de uma autora sem obra crítica
suficiente na qual pudesse fundamentar-me. Porém, ao longo do trabalho de pesquisa e de
redação, verifiquei um interesse crescente da crítica literária, assim como da mídia e do
público-leitor em relação à obra de Amélie Nothomb. Minha intenção com este estudo é
acrescentar alguns elementos ao estudo crítico, ainda insuficiente, sobre a autora. Procurei
traçar um painel de algumas das principais linhas temáticas da obra de Nothomb, como a
questão autobiográfica e a identidade cultural. Porém, outros temas recorrentes em seus textos
não tiveram espaço, neste estudo, para serem trabalhados, tais como o corpo, a imagem, o
grotesco e a misoginia, tão presentes em seu discurso. Ficam, portanto, como indicações para
um trabalho futuro sobre o rico universo nothombiano.
117
BIBLIOGRAFIA
Narrativas:
Contos :
118
7) “Sans nom”, Elle, n.2900/2001.
8) “Aspirine” in : Aspirine, mots de tête. La passe du vent, 2001.
9) “Écrire en état d’ébriété”. Revista Senso, setembro/2003.
10) “L´Entrée du Christ à Bruxelles”, Elle, 2004.
1) AMANIEUX, Laureline. Amélie Nothomb, l éternelle affamée. Paris: Albin Michel, 2005.
2) HELM, Yolande. « Amélie Nothomb: une écriture alimentée à la source de l´orphisme.
Revue Religiologiques » , n.15, 1997. Disponível no endereço
http://www.unites.uqam.ca/religiologiques/
1) http://membres.lycos.fr/fenrir/nothomb.htm
2) http://www.amelienothomb.com/
3) http://www.antechrista.com/
119
Fórum de discussão sobre Amélie Nothomb:
120
Bibliografia geral:
3) BAL, Mieke. « Narration et focalisation: pour une théorie des instances du récit. » In :
Revue Poétique/n.29. Paris, Seuil : 1977.
10) BOURDIEU, Pierre. Ce que parler veut dire-l’économie des échanges linguistiques.
Éditions Fayard, Paris:1982.
11) BRANCO, Lucia Castello. A Traição de Penélope. São Paulo : Annablume, 1994.
12) BRAVO, Nicole Fernandez. « Duplo. » In : BRUNEL, Pierre (org.) Dicionário de
mitos literários. Rio de Janeiro: José Olympio, p.262-288, 1997.
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14) COMPAGNON, Antoine.O Demônio da Teoria. Belo Horizonte:UFMG, 2003.
15) COMSA, M. Dorin. Identité et alterité : perspectives sur la narration et les instances
narratives dans les romans de Hubert Aquin, Université de Limoges, 2004. Disponível
em http://www.unilim.fr/theses/2004/lettres/2004limo0004/html/index-frames.html
16) CHIAPPINI, Ligia. O foco narrativo. São Paulo: Atica, 2004.
121
19) ______. Pourquoi la nouvelle critique. Paris : Mercure de France, 1966
22) ______. “Protocolos ficcionais.” In: Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo:
Companhia das Letras, 2002.
23) FERRÉOL, Gilles. Rapport à autrui et personne citoyenne. Septentrion, Lille: 2002.
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UFSC, v. 2, n. 6, Florianópolis:1997.
30) KEHL, Maria Rita. Minha vida daria um romance. In: Psicanálise, literatura e estéticas
de subjetivação. Rio de Janeiro : Imago, 2001.
122
40) MORENTE, Manuel Garcia. Fundamentos de filosofia- Lições preliminares. São
Paulo, Edições Mestre Jou :1966.
45) ONFRAY, Michel. “Viver como um esqueleto em si.” In: Revista Cult, n.97/2005.
48) SANT´ANNA, Affonso Romano de. Paródia, paráfrase & cia. São Paulo : Ática,
1985.
Periódicos:
1) http//:autopacte.org
123
Artigos on line :
Outras obras
124
ANEXO 1
Prolifique et mystérieuse, Amélie Nothomb n'a plus besoin de faire la promotion de ses livres
pour battre des records de ventes. Découvrez le parcours de cette jeune femme secrète, qui
allie à son monde étrange perversité psychologique et humour noir.
Fille de l'ambassadeur et écrivain belge Patrick Nothomb, Amélie Nothomb est née au Japon,
dans la ville de Kobé, le 13 août 1967. Profondément imprégnée par la culture nippone, celle-
ci peut en effet se vanter d'être parfaitement bilingue dès l'âge de cinq ans. La jeune fille passe
son enfance à suivre son père, de la Chine à la Birmanie en passant par New York ; une
destinée d'expatriée et un sentiment de solitude qui l'incitent, petit à petit, à se replier sur elle-
même.
Le débarquement en Belgique à l'âge de 17 ans, dans la patrie familiale, amplifie encore son
mal-être. Se sentant rejetée dans sa nouvelle université où elle poursuit des études gréco-
latines, elle découvre une culture et un mode de vie occidentaux qui lui avaient alors
totalement échappés ; le choc est brutal.
C'est à partir de cette période qu'Amélie Nothomb commence à écrire, sans prétendre
toutefois encore pouvoir vivre de sa plume. Elle continue en effet à chercher sa voie
professionnelle, ce qui l'amène à retourner quelques temps au Japon. Auteur déjà de plus
d'une vingtaine de manuscrits personnels, Amélie Nothomb décide de se lancer et publie à 25
ans son premier roman, Hygiène de l'assassin (1992), qui marque également son premier
succès.
Véritable phénomène littéraire, la jeune femme enchaîne les publications à raison d'un livre
par an, qui connaissent tous une impressionnante carrière commerciale. Le public apprécie le
style romanesque et décalé de la jeune femme, toujours accompagné d'un humour subtil, mais
qui le place directement face à ses pulsions intérieures. Parfois autobiographiques
(Métaphysique des tubes) ou purement fictionnels (Les Catilinaires), ses romans sont nourris
d'expériences personnelles mais qui pourraient être partager par tous.
Pour ne rien gâcher, l'excentricité de l'écrivain en font une invitée privilégiée des médias, la
jeune femme n'hésitant pas à arborer des chapeaux extravagants ou un maquillage vif. Elle
accompagne parfois ses prestations de quelques phrases percutantes, comme lors de l'émission
Apostrophes où elle avait révélé à Bernard Pivot qu'elle se délectait de fruits pourris.
Stupeur et tremblements (1999) marque un tournant dans la carrière de la jeune femme. Déjà
en raison de son triomphe (plus de 500 000 exemplaires vendus, son plus gros succès actuel,
couronné par le Grand prix du roman de l'Académie Française), mais aussi vis-à-vis de la
perception de son métier d'écrivain. Plus sage, plus discrète, Amélie Nothomb se défend dès
lors d'une certaine extravagance passée et fuit les médias hors-période de promotion. Celle-ci
préfère désormais se concentrer sur son travail (au moins quatre heures par jour, et ce dès
quatre heures du matin) et partir sur les routes à la rencontre de ses lecteurs. Ses livres sont
parfois transposés au cinéma, comme Hygiène de l'assassin en 1998 et Stupeur et
tremblements en 2003, et pour lequel Sylvie Testud reçoit le César de la Meilleure actrice. Il
faudra patienter quelques mois encore pour connaître le successeur d'Antechrista, mais on
peut d'ores et déjà vous dire que le manuscrit est prêt. En effet, Amélie Nothomb écrit environ
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trois livres par an, mais décide à chaque fois de n'en publier qu'un seul. Et de disparaître à
nouveau ensuite...
2) Reprodução de artigo crítico sobre a narrativa Biographie de la Faim, publicado na revista
L’Express em 30.08.2004:
La boulimie d'Amélie
Sa réussite, Amélie Nothomb affirme qu'elle la doit à son insatiable appétit... de vie.
Autobiographie vorace
On n'en attendait pas moins d'elle. A 36 ans, forte d'une douzaine de romans publiés - et
célébrés - Amélie Nothomb, la plus excentrique des Belges, tombe le masque. A sa manière.
Enlevée, méticuleuse, ironique, intelligente. Fil rouge de cette autobiographie singulière, clef
du succès de la seule romancière francophone qui, bon an mal an, pulvérise les ventes: la
faim, la sur-faim, dont Amélie est habitée depuis sa prime enfance.
Faim de tout: des sucreries, du Japon, de l'amour familial, de l'alcool de prune, d'eau, de la
carte du monde, des livres, des mots... Jamais rassasiée, toujours en quête, la fille du consul
décline, avec subtilité, ses années de formation, éclairant, au détour d'une phrase, d'une
anecdote, de nombreux pans de son oeuvre. Le Sabotage amoureux, Stupeur et tremblements,
Métaphysique des tubes, Robert des noms propres prennent ainsi du relief, de la chair, pour le
plus grand plaisir de ses fidèles lecteurs.
Elle devint donc écrivain. A plein temps. Croquant les mots comme les barres de chocolat de
son enfance. Avec la même voracité, la même boulimie. Mais au grand jour, dorénavant. La
tête haute, sourire narquois aux lèvres.
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3) Reprodução de entrevista de Amélie Nothomb ao site Le Club, em 05/09/200, disponível
no endereço:http://www.grandlivredumois.com/static/actu/rencontres/nothomb.htm
Le Club : Ainsi dès votre naissance, vous vous prenez pour Dieu...
Amélie Nothomb: Mais tous les enfants se prennent pour Dieu. La seule différence, C'est que
je m'en souviens tellement bien. En essayant de remonter très loin dans ses souvenirs, on se
heurte à un rempart, et cependant, on garde une impression. C'est pourquoi le livre commence
à la troisième personne. Au deuxième tiers, on passe au "je", là commencent véritablement
mes souvenirs.
Le Club : Vous avez utilisé des techniques pour remonter si loin dans le passé : le rebirthing,
la psychanalyse?
Amélie Nothomb : Non, je fais ça toute seule. Depuis toujours je suis obsédée par la
mémoire. Dès que j'ai appris que j'allais quitter le Japon, dès que j'ai su que ce ne serait pas "
pour toujours ", alors c'est devenu un devoir: " Souviens-toi, tout va disparaître, souviens-toi,
parce que bientôt tu n'en conserveras que ce que tu as gardé là. "
Le Club : La part divine de l'humanité, c'est juste une figure de style ou vous y croyez
réellement?
Amélie Nothomb : Je ne vais pas me lancer dans des discours théologiques, mais qu'il y ait
une part métaphysique, divine en l'homme, c'est certain. C'est des choses qu'on sent. Quand
j'étais toute petite, j'entendais une voix qui disait: " c'est moi qui vit en toi. " Et je me disais, "
mais qui me parle? " Je ne vais pas jouer à Jeanne d'Arc, c'est un truc qu'on a tous eu, non ?
L'idée que quelqu'un vit en nous et qu'on ne sait pas ce que c'est, mais qu'on n'est pas tout seul
là-dedans. Dans son dernier livre, mon ami Eric-Emmanuel Schmitt dit, ou plutôt le Christ,
qu'il y a un puits en nous et qu'il y a moyen d'y descendre, c'est une chose que je fais souvent.
J'appelle ça " descendre dans mon sous-marin ". Ca n'exige pas nécessairement de l'isolement
et du silence, mais plutôt de la concentration. Je fais souvent ça à la gare, quand j'ai mon train
à prendre.
Amélie Nothomb : Que j'obtiens aussi grâce à une très grande énergie mentale que je cultive
en buvant du thé très fort. On ne le dira jamais assez : pour écrire il faut toute sorte de choses,
mais il faut d'abord une énergie phénoménale. Même en étant une personne énergétique, j'en
ai pas assez en moi, alors je bois un thé monstrueusement fort qui me donne assez d'énergie
pour descendre dans le sous-marin.
Amélie Nothomb : Ca peut être très tôt. Parfois trois heures du matin. Je dors très peu. En
moyenne, deux heures par nuit. Il m'arrive d'être très fatiguée, mais le thé arrange ça.
Aujourd'hui, j'ai très peu dormi, mais je pète le feu !
Le Club : Vous n'avez pas d'autre moyen de cultiver votre énergie, comme le yoga, par
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exemple?
Amélie Nothomb : Je devrais, parce que je vis des moments d'angoisse phénoménale, mais je
n'ai pour seul exutoire que l'écriture. C'est ma panacée. C'est plus qu'un métier, c'est ma raison
de vivre, et mon moyen de supporter la vie. C'est tout à la fois. Mon but et mon moyen. C'est
tout.
Amélie Nothomb : Tout à fait d'accord, comme Rilke le dit dans ses lettres à un jeune poète.
Amélie Nothomb : A la base, la famille Nothomb est une des familles les plus catholiques de
Belgique, mais si mes parents s'étaient exilés à l'autre bout du monde, c'est qu'ils se sentaient
un peu différents. Mais il y avait la Bible à la maison, et il était facile de comprendre que
c'était un livre important. A telle enseigne qu'il m'a très vite intéressée. Quand on est tout
petit, on est plus accessible au Nouveau Testament, on sent que c'est une histoire d'amour.
Dès onze, douze ans, je me suis jetée dans l'Ancien Testament, et j'ai appris des choses à n'en
plus finir. Mais les Protestants connaissent beaucoup mieux la Bible que moi.
Le Club : Votre amour du Japon n'est pas allé jusqu'à vous faire adopter le Shintoïsme ou le
Bouddhisme, tellement à la mode ?
Amélie Nothomb : Je fais partie de ceux qui croient qu'il y a une part commune à toutes les
religions. Le Bouddhisme est une superbe religion, mais moins romanesque que le
catholicisme, d'un strict point de vue de romancier. La Bible, c'est quand même une trouvaille.
Un scénario picaresque, avec des histoires dans les histoires. Et le Christ est un personnage de
roman magnifique. Et puis, j'étais bien placée pour connaître les limites du Bouddhisme. J'ai
vécu dans plus de pays bouddhistes que de pays catholiques. Le bouddhisme n'a pas empêché
le fascisme japonais, les folies chinoises et khmères. Le plus important, selon moi, est de
respecter un principe japonais qui n'est pas un principe religieux mais un principe de
civilisation que, malheureusement, eux mêmes n'ont pas toujours respecté : la recherche de
l'harmonie. Ça me paraît une très belle théorie pour vivre ensemble.
Le Club : Vous reprochez aux Japonais de ne pas respecter les principes qu'ils ont énoncés...
Amélie Nothomb : En effet, dans mon précédent roman, je racontais mon expérience dans
une entreprise japonaise. Je n'ai jamais vu d'endroit aussi peu harmonieux, aussi peu zen,
aussi peu bouddhistes, que l'entreprise japonaise.
Le Club : Votre livre pourrait aussi passer pour l'illustration de la célèbre Théorie : tout se
joue avant trois ans...
Amélie Nothomb : C'est étonnant de voir qu'en règle générale, les gens ne se souviennent pas
de ce qui a le plus compté, à savoir ces trois années fondatrices. La dernière phrase du livre,
c'est " ensuite, il ne s'est plus rien passé ", évidemment, il m'est arrivé deux ou trois trucs,
mais ce que j'avais envie de dire, c'est tout ce qui se passe après n'est que la conséquence de
ces deux ou trois premières années.
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Le Club : On vous présente souvent comme une enfant surdouée, j'ai l'impression qu'il
s'agirait plutôt d'une enfant plus consciente que les autres ?
Amélie Nothomb : Peut-être. C'est un autre épisode que je raconte dans le livre. L'annonce
que j'allais quitter le Japon a tué le temps de l'insouciance. J'ai perdu en insouciance ce que
j'ai gagné en extase et en conscience. L'extase venait du fait que je savais que tout ce que je
vivais était périssable. Je me répétais " profite bien de ça, parce que ça va pas revenir, et il
faut que tu te souviennes ", du coup l'extase était encore plus grande, mais elle comportait sa
propre tragédie, elle avait déjà le goût de la mort.
Amélie Nothomb : C'était l'enfance au Japon. Dans une maison merveilleuse, dans un village
de montagne, là aussi c'était comme dans l'Ancien Testament, un jardin. Mais dans la Bible on
pouvait rester dans le jardin, tant qu'il n'y avait pas eu une faute. C'est la que je sentais une
injustice : " Quelle est ma faute? Pourquoi vais-je être chassée? " La Bible est un livre assez
optimiste qui nous laisse croire que si on n'avait pas commis la faute, on serait encore au
jardin. C'est pire finalement. On n'a pas commis de faute et on est quand même dans la merde.
Amélie Nothomb : Ce que j'ai fait, mais je ne m'y sentais plus à ma place. Alors, j'ai fini par
comprendre que ma seule vraie nationalité, c'était l'exil. Cela n'a d'ailleurs pas que des
mauvais côtés, parce que ça veut dire que l'on peut vivre partout. Mais j'ai vécu dans tant de
pays au cours de ma vie qu'à présent, mon fantasme, c'est la sédentarité. C'est de m'enraciner
quelque part dans un petit coin banal ou personne ne viendra me retrouver. Un jardin bien
invisible avec peu de lumière, beaucoup d'arbres, une cachette. Avec l'âme sour.
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4) Reprodução de entrevista de Amélie Nothomb a Laureline Amanieux em 27/04/2001,
disponível no endereço: http://membres.lycos.fr/fenrir/nothomb/laureline.htm
LA- Vous me mettez l'eau à la bouche ! En même temps, elle s'inverse cette démolition en
élévation, ce qui est assez étonnant. Quand vous vous sabotez dans Le sabotage amoureux,
c'est aussi une façon de s'édifier, de s'élever, d'apprendre.
AN- Je ne voudrais surtout pas avoir l'air d'en tirer de leçons de morale, mais c'est vrai que j'ai
constaté que toutes ces destructions m'avaient toujours apporté quelque chose. Et qu'il valait
mieux se laisser détruire, d'abord parce qu'il n'y a pas moyen de faire autrement, et puis parce
que finalement, on y perdrait beaucoup à ne pas se laisser détruire. On y apprend toujours
tellement de choses et la forme de soi qu'on parvient à reconstruire est toujours quelqu'un de
plus riche et de plus fragile !
LA- Vous aviez fait le lien dans une interview avec les maisons japonaises.
AN- Oui, c'est exactement ça : les maisons japonaises, ce sont celles qu'on détruit le plus
facilement parce que ce sont des maisons en papier. Tiens ! Justement. Mon outil de travail.
On les détruit comme rien, mais, en même temps, il n'y a pas plus facile à reconstruire. Donc,
c'est vrai que je m'identifie tout à fait à une maison japonaise. Quand je reçois mon courrier,
une lettre peut me détruire, et je n'emploie pas ça à la légère. Bon, pas n'importe quelle lettre,
les lettres d'insultes me laissent totalement indifférente, mais quand la lettre vient de
quelqu'un de cher, c'est vrai que je me sens tout à fait détruite.
LA- En même temps, vous avez dit que cela durait 25 minutes.
AN- Ca dépend quoi. Non, ici, je parle pour les 25 minutes de mauvaises critiques, ce qui est
de loin le moins grave : les critiques ne sont pas des gens qu'on connaît, ou même si on les
connaît, c'est superficiel. C'est vrai que la démolition d'un critique fait mal pendant 25
minutes, autant dire rien. Les autres démolitions font mal malheureusement pendant plus de
temps.
LA- Comment faites-vous pour recevoir autant des lecteurs, même dans le négatif ? Je sais
qu'avec mes élèves, la relation passionnelle me dévorait complètement.
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AN- Ca me dévore et je suis en danger avec ça. Je ne suis pas sûre d'avoir raison, mais jusqu'à
présent, je trouve que c'est si beau que je n'ai pas envie d'y renoncer. En plus, même si je
voulais y renoncer, je n'en serais pas capable.
AN- C'est très difficile, et j'en prends souvent plein la gueule : il y a des jours où je rentre
chez moi dans un état de décomposition avancée et où je me dis : "Cette fois-ci, je ne m'en
remettrai jamais", et je suis toujours sidérée de voir que, tiens, non, au fond, je finis toujours
par me reconstruire. Alors, parfois, cela se fait au dépend d'une relation. Il y a des amitiés qui
sont brisées, c'est irrémédiable, mais il arrive aussi que cela se fasse au profit de cette amitié.
J'ai souvent remarqué que des relations très fortes pouvaient ressortir renforcées d'une
destruction totale : c'est à double tranchant. C'est pour ça qu'il y a toujours avantage à être
sincère, parce que cette sincérité soit détruit la relation et c'est toujours triste, soit au contraire
va la renforcer.
LA- Avez-vous l'impression avec la présence de vos lecteurs de moins manquer d'amour ?
AN- J'en manque beaucoup moins, c'est certain. Honnêtement, quand j'ai commencé à écrire,
je n'ai pas pensé un quart de seconde que ça me ferait rencontrer des gens un jour, même
quand j'ai pensé à publier, c'est-à-dire bien plus tard, mais c'est quand même ce qui s'est passé.
C'est formidable, ça a changé ma vie à fond. Si on voit ce que j'étais à dix-huit ans et ce que je
suis maintenant, il y a un tel changement ! A l'époque, je me sentais tellement comme une
pestiférée qui ne s'en sortirait jamais pour mille raisons, aussi bien intérieures qu'extérieures !
De voir que maintenant, il y a tellement d'amour dans ma vie, et j'en ai tellement à donner et
je suis tellement là pour ça !.. Je n'avais jamais pensé que l'écriture me mènerait à ça, je ne
savais pas que c'était possible.
LA- Quand vous racontez des passages de votre vie dans les romans plus autobiographiques,
ce sont surtout des passages d'échec. C'est pour les comprendre, mais est-ce que c'est par
l'écriture pour les rendre fertile, pour transformer un échec en une création ?
AN- Oui, je crois. Le mal, on en guérit jamais, on le garde toujours, mais on peut
éventuellement en faire un livre. Il ne guérira certainement pas ; autant le transformer.
AN- C'est bizarre, parce que moi, je la trouve géniale, fantastique et fascinante. J'éprouvais
beaucoup de l'admiration pour une déesse. Je trouve que c'est un très beau personnage. Vous
savez que mes parents vivent à Rome et ma mère l'a rencontrée récemment. Elle lui a
demandé :
"- Pourquoi tu es fâchée de ce livre ?
- Parce qu'Amélie n'a rien compris. Ce n'est pas du tout ça qui nous est arrivé. Quand on était
petites, moi je voulais tout le temps être avec elle, mais elle ne voulait pas."
Alors, je me dis : "C'est le comble !"
Pourtant je me souviens parfaitement de cette histoire et je ne l'ai pas inventée, mais moi, je
crois qu'elle n'a rien compris du tout. Ce qui est certain, c'est que maintenant elle veut me
rencontrer, et moi je ne le veux plus. Donc, peut-être que finalement j'ai gagné, oui.
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LA- L'eau est très présente dans vos récits : elle est à la fois source de vie et de mort, elle
préserve l'enfance, mais c'est aussi l'eau où l'on se noie.
AN- L'eau a longtemps été pour moi le bienfait absolu, et puis à un moment de ma vie, c'est
devenu exactement le contraire. C'est devenu la corruption absolue, ce qui explique que
jusqu'à un certain âge on m'a toujours vue dans l'eau, et que, depuis un certain âge, on ne me
voit plus jamais dans l'eau !
AN- Non, c'est plus tardif que cela, mais l'épisode de Métaphysique des tubes ne m'a
absolument pas brouillée avec l'eau. D'ailleurs, c'était volontaire, ce n'est pas un mauvais
souvenir. Franchement, jusqu'à environ 12 ans, on me voyait tout le temps dans l'eau. Dès
qu'il y avait de l'eau, il fallait que j'y aille. C'était plus fort que moi : une flaque, une piscine,
la mer, un lac, toute eau était pour moi. Et puis, brusquement, la brouille totale, la découverte
que l'eau était sale, que c'était aussi le contraire. Donc, c'est vraiment l'élément ambivalent par
excellence, la pureté et en même temps la corruption totale.
AN- Oui, parce que là, c'est la mort par l'eau : ce n'est pas si mal.
AN- Oui, c'est très cohérent ; commencer par l'eau, finir par l'eau. Quand je fais allusion à
l'eau négative, ce n'est pas à cette eau-là que je fais allusion. Tout est combat : d'abord moi
contre l'ennemi, c'est le premier combat.
AN- Tout est une question de mise en forme. D'où l'importance cruciale du style. Le style,
c'est la seule chose qui permet d'affronter l'ennemi. Si vous avez un ennemi en face de vous,
et que vous n'avez pas appris les techniques de l'escrime, alors le combat sera tellement
ridicule et moche, qu'il ne sera vraiment pas créateur. Mais, si vous avez trouvé le style, si
vous avez appris seule ou avec d'autres -qu'est-ce que ça change- alors, au contraire, le
combat va être formidablement créateur. Vous avez un beau duel d'escrime, c'est exactement
ça. Quand je dis que le matin, je me lève avec un violent besoin d'écrire, c'est vrai, mais en
même temps, déjà à ce moment-là, il y a le double. Je dors très peu, je suis très fatiguée, donc
au moment où je me réveille, il y a cette partie, quand même, humaine, animale, enfin je ne
sais pas ce que je dois dire, normale de moi qui dit : "Je resterai bien à dormir au fond, je suis
tellement crevée". Et à ce moment-là, il y a tout de suite l'ennemi qui commence à me botter
le cul : "Non, il n'est pas question que tu dormes, tu ne dormiras plus, tu vas tout de suite aller
écrire et tu sais très bien que si tu ne m'obéis pas, les choses iront très mal." A ce moment-là,
on voit que ce combat peut être fertile, puisque si il n'y avait pas l'autre, peut-être que je
resterais dans mon lit et que je n'écrirais pas, mais comme la dualité commence tout de suite
et que cette personne me dit : " Je ne te laisserai pas tranquille et tu es priée de… "… Parce
qu'elle me tutoie. C'est à la fois un ennemi qui me veut du mal et du bien. A ce moment là, il
fait apparaître du bénéfique mais à d'autres moments où je me dis : "Bon, maintenant ça va.
Tu as fait vraiment ce que tu avais à faire. Tous tes devoirs sont accomplis", parce que vous
n'avez pas idée du nombre de devoirs que je me donne, j'ai un complexe de culpabilité gros
132
comme une maison. Ca vient surtout de ce qui m'est arrivé à l'âge de douze ans cette
culpabilité extraordinaire. Là, il vient : " Ah, tu crois que tu as tout bien fait ? Regarde tout ce
que tu n'as pas fait ! Regarde les énormes bévues que tu as commises ! Regarde ce que tu es
nulle et comme tu nuis à tout le monde : finalement il vaudrait encore mieux que tu ne vives
pas." Tour à tour, il me pousse à agir, ou il m'achève.
AN- Oui, mais parce que ça, c'est le moment du style. Ce moment-là me sauve.
LA- Contrairement à Maupassant, l'écriture vous permet d'échapper à la mort, à la folie. C'est
un véritable antidote.
AN- Oui, c'est certain et Nietzsche y est pour beaucoup : ce n'est pas un hasard que j'ai
découvert Nietzsche à 17 ans, juste au moment de ma solitude. Tout s'est lié en même temps.
LA - Et la première fois que vous avez écrit, ça s'est passé comme aujourd'hui, ça a été une
possession ?
AN - Non, honnêtement, ça n'a pas tout de suite commencé par de la possession. Je ne savais
pas ce que je faisais : je suis vraiment la championne absolue de l'inconscient. Tout à coup, je
me suis dit : "Il faut que j'écrive".
Vous m'auriez demandé à l'époque pourquoi, je n'aurais rien pu vous dire.
LA- Vous ne savez ce qui a déclenché cela, pourquoi vous avez pris la plume, en inversant
avec votre sœur ?
AN- Non, d'autant plus que ça n'a pas été immédiat. Notre anorexie commune a commencé
quand j'avais 13 ans et demi et ma sœur 16, en même temps, et ma sœur a totalement cessé
d'écrire à ce moment-là, mais je n'ai pas commencé à écrire à 13 ans et demi. J'ai commencé à
écrire à 17 ans, quand j'ai guéri en fait. On ne peut pas être anorexique et écrire en même
temps : du moins ce que j'écris pour l'instant, en temps qu'anorexique, je n'aurais jamais pu
l'écrire. C'était inconscient. Jamais je ne me suis dis : " Tiens, ma sœur a cessé d'écrire, donc
je dois m'y mettre." C'est par la suite que je l'ai remarqué. Je me souviens, en tous cas, que
petite, donc avant toutes ces choses-là, j'admirais follement ma sœur. Je me disais : " Ce
qu'elle écrit est fantastique et jamais je n'écrirai parce que je ne veux pas empiéter sur ses
plates-bandes, et puis c'est un génie, je serais tout à fait ridicule de me comparer à ça.
Laissons-la dans son domaine." De toutes façons, moi, je me destinais à être martyr, donc ma
voie était toute tracée. Je ne savais pas encore que c'était conciliable avec l'écriture.
AN- Non, pas du tout, au début c'était assez rarement. C'était du roman, puisque c'était
comme vous le savez "l'omelette spatiale". Je ne sais pas du tout pourquoi cette histoire-là.
Mais, je sais qu'un facteur a concouru : à 17 ans, que je suis arrivée en Belgique, je n'avais pas
d'amis. A l'université, j'ai eu le coup de foudre pour une fille qui s'appelait Claire. J'étais folle
d'elle et je voulais qu'elle soit ma meilleure amie. Elle ne me remarquait absolument pas.
C'était une fille charmante, mais, de toutes façons, à cet âge-là, je n'existais pas. J'étais
invisible et j'essayais de la séduire par tous les moyens, parce qu'en amitié aussi on cherche à
séduire. Je me souviens qu'un jour, je lui ai dis : " Tu sais, j'écris", et ce jour-là, elle m'a
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regardée avec intérêt. Je me suis dit : "Tiens, c'est donc que c'est bien". Bon, je ne dis pas que
c'est pour ça que j'écris, mais en tous cas, c'est par l'écriture que je l'ai séduite. A ce moment-
là, mon père était ambassadeur en Thaïlande et l'été j'allais le rejoindre. En vacances, je me
suis dis :" Là, je suis à l'autre bout du monde, mais je peux peut-être l'avoir." Je lui ai écrit une
lettre de 25 pages : vraiment, j'ai tout mis dans cette lettre. Ce n'était même pas une lettre
d'amour ; je voulais lui écrire de belles choses. Je la lui ai envoyée de Thaïlande en Belgique,
puis, quand je suis revenue en Belgique, je lui ai téléphoné et au son de sa voix, j'ai tout de
suite su que je l'avais conquise et qu'elle m'aimait follement. Bien sûr, ce n'est pas pour ça que
je suis écrivain, mais ce genre de choses a pu me signaler qu'il y avait quand même un
pouvoir dans l'écriture, d'autant que c'était vraiment le seul que je pouvais avoir, parce qu'en
dehors de l'écriture, il n'y avait rien, vraiment rien : mes histoires d'amour étaient pathétiques,
inexistantes, misérables, alors que vraiment j'aurais voulu tellement plus que ça. En amitié,
c'était pas mieux. J'ai commencé les quatre heures par jour quand je suis retournée au japon, à
21 ans. Il y a eu deux années japonaises, l'année formidable où j'étais étudiante et fiancée :
c'était une année géniale et le deuxième année, l'année misérable mais très intéressante que je
raconte dans stupeurs et tremblements, et c'est le seul moment, l'année formidable, autant en
Belgique, je n'étais rien, j'étais pire que rien, j'étais pestiférée, je me sentais pestiférée. Je suis
arrivée au Japon et tout de suite, j'ai eu l'impression d'exister. J'avais quitté le Japon à l'âge de
5 ans, j'y retourne à 21 ans sans y avoir remis un pied entre-temps et tout de suite l'impression
que je renais. Presque tout de suite, je rencontre un garçon beau comme tout, qui tombe
éperdument amoureux de moi alors qu'en Belgique, fallait voir, c'était lamentable. Je me suis
dit : " mais tout va très bien pour moi ici." Et presque tout de suite j'ai commencé à écrire
follement, follement, follement.
LA-Croyez-vous que, dans d'autres circonstances que celles de stupeurs, vous seriez
demeurée au Japon ? Vous auriez pu réussir si il n'y avait pas eu ce bourreau, vous aviez fait
un rapport brillant.
AN- Oui, peut-être, mais est-ce que j'y serais vraiment restée ? ... Je ne sais pas, mais vous
avez tout à fait raison, heureusement qu'il y a eu ce bourreau. Avec elle, il n'y avait pas le
choix : il fallait vraiment que je parte ; il fallait vraiment que je devienne écrivain. de même
que le sabotage se termine par : "Merci à Elena", stupeurs pourrait se terminer par : "Merci à
Fubuki". C'est vrai, elle a toute ma tendresse, de même qu'Elena a toujours toute ma
tendresse.
LA- Et comment vos parents réagissent-ils à vos livres ? Savaient-ils tout cela de vous avant
de le lire ?
AN- Non, pas du tout. Avec Elena, ils s'étaient bien rendu compte que j'avais une amie de
cœur. Ma mère m'a effectivement donné ce conseil dans le roman ; elle s'en souvenait. Et
puis, c'était une très belle petite fille, ils l'avaient remarquée. Ils étaient amis avec ses parents :
tous ces diplomates se voyaient sans cesse entre eux. A Pékin, ils étaient emprisonnés
carrément. Mais, il y avait des tas de choses qu'ils ne savaient pas, que ça avait été une telle
passion pour moi ! La guerre des enfants, ils ne se rendaient pas du tout compte de son
ampleur. Pour stupeurs et tremblements, ils savaient que c'était très dur dans l'entreprise
japonaise, car à un moment je me suis plainte à mon père en lui disant : " Je vais quitter cette
entreprise parce que ce n'est pas possible autrement" et lui qui, à l'époque, était ambassadeur
au Japon m'a dit : "Ecoute, ça me mettrait vraiment dans une situation délicate. Pour moi,
reste-y ". Donc, pour lui, je suis restée. Finalement, je ne l'ai pas regretté. Je me souviens du
moment où j'ai le plus voulu partir : c'est quand j'ai reçu l'ordre de ne plus parler japonais.
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Alors là, j'étais pratiquement sûre de donner ma démission le lendemain. J'en ai parlé à mon
père au téléphone qui m'a dit : "Ecoute, tu as signé pour un an. Pour moi, reste. Dis-toi bien
aussi qu'à leurs yeux, tu perdrais la face. " Je trouvais cela absurde, mais je suis restée. C'est
vrai que c'est la chose qui m'ait le plus restée en travers de la gorge. On m'avait engagée pour
ma compétence en japonais et on m'interdisais de parler la langue ! Mais, mes parents sont
très contents de ce qui m'arrive : au départ, ils ont réagi comme de bons parents. Ce sont les
meilleurs parents que j'aurais pu avoir, sur toute la ligne.
LA- Vous parlez énormément de Juliette dans vos romans, mais votre frère a peu de lignes !
AN- Je suis désolée ! C'est vrai que je l'aime beaucoup, mais mes rapports avec lui sont
beaucoup plus distants. Il n'y a jamais rien eu de fusionnel entre lui et moi, et même jusqu'à
mes 10 ans environ, pour moi, il était l'ennemi public numéro 1. Quand il était petit, excusez-
moi, c'était un emmerdeur. Tout son plaisir, c'était de me faire enrager par tous les moyens !
Mais c'est un très bon garçon.
LA- J'ai trouvé qu'il y avait beaucoup d'influence racinienne dans vos romans souvent
construits comme des tragédies antiques dans les dialogues, la violence, le huis clos, mais
aussi la conception de l'amour toujours liée pour Racine à la transgression, à l'interdit.
AN- Tiens, tiens, tiens ! C'est drôle ce que vous dîtes, puisque la première fois que j'ai aimé
un garçon, j'avais quatorze ans. J'étais en Birmanie à l'époque. C'était un jeune anglais de
quinze ans. Je faisais tout ce que je pouvais pour être visible : j'étais invisible. J'étais
anorexique ; ça ne facilitait pas les choses. Presque en même temps, j'ai découvert Racine :
Phèdre. Je me souviens, je lisais Phèdre et je me disais : " Ah ! Mais c'est moi, c'est moi !
Mon amour malheureux, c'est la même chose, c'est ce que je vis... J'ai tellement fort vécu cette
lecture que ça m'a peut-être imprégnée. Je crois donc que l'idéal, c'est de commencer Racine à
14 ans quand on est très amoureuse, et que personne ne nous remarque : à mon avis, c'est le
moment où ça marche le mieux. Racine, et Corneille, est-ce qu'on a déjà écrit en français une
si belle langue que celle-là ? Pour moi, c'est le plus grand idéal, purement de langue, de belle
langue.
AN- Oh, oui ! Paradoxalement grâce à l'extrême-orient. J'ai été mise dans la même situation
que l'Islande. Vous savez, quand les suédois et les norvégiens sont arrivés en Islande, il n'y a
pas longtemps en fait puisque l'Islande a longtemps été très isolée, ils se sont rendus compte
que les islandais parlaient l'état primitif de la langue : c'est comme s'il y avait une île dans la
Méditerranée où les gens parlaient latin. Et moi, je me trouvais dans la situation de l'Islande
puisqu' étant extrêmement isolée dans mon sud est asiatique. Jusqu'à 10-11 ans, je n'étais pas
tellement isolée que ça puisque j'étais dans de grands pays où il y avait l'école, mais à partir
de 11 ans, Laos, Birmanie, Bengladesh, c'était l'isolement : plus d'écoles, plus rien de
moderne. C'était très pauvre et on vivait vraiment en vase clos, donc les livres, c'étaient la
bibliothèque de mon père, point. Aucune nouveauté. On suivait les cours par correspondance.
Autant dire que si on ne veut rien faire du tout, il y a moyen. D'ailleurs, c'est ce que j'ai fait
pour les mathématiques, contrairement aux matières que j'avais choisies. A l'époque, j'avais
une passion anormale pour le latin et le grec : à seize ans, je parlais latin , ce qui n'était pas un
état normal. Jusqu'à l'âge de onze ans, j'étais vraiment très intelligente, ce qu'on appelle une
surdouée : ça m'est complètement passé par la suite. J'ai sauté une classe, donc j'ai gagné du
temps. Après, mon cerveau n'a cessé de s'abrutir donc je ne suis plus du tout surdouée. Si vous
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saviez le nombre de choses auxquelles je ne comprends rien, le nombre de blocages ! En plus
je l'ai senti, j'ai vraiment senti, toujours vers l'âge de douze ans, mon cerveau se vider comme
un évier : j'avais un tel don dans les chiffres ! Je pouvais tout calculer de tête, même des
choses invraisemblables : en une semaine, j'ai senti mon cerveau se vider. Les chiffres sont
partis, je ne les ai jamais retrouvés. On peut dire que j'ai vraiment perdu les choses à ce
moment-là. Il y a eu quand même de longues années où je me suis sentie détruite, sans aucune
possibilité de reconstruction : même l'anorexie a été une tentative de reconstruction
paradoxalement jusqu'à la destruction finale, parce que c'est quand même suivi d'une très
grande destruction. Pendant tout un temps, on a une impression de reconquête.
LA- Je pense que lorsqu'on se fait du mal à soi-même, on a le sentiment de vivre quelque
chose d'intense, de supérieur, de se dépasser, de toucher un secret que ceux qui ne se
détruisent pas ne comprennent pas.
LA- Les dates sont importantes pour vos personnages : pour Prétextat, pour Emile aussi.
AN- Je suis devenue très précisément anorexique le 5 janvier 81 : à l'époque c'était encore la
sainte Amélie, depuis c'est devenu la saint Edouard, je ne sais pas pourquoi. Ma sœur et moi,
on a commencé ce jour-là. Le projet était tellement surhumain que je voulais maîtriser tout,
notamment le temps, et toutes les nuits à partir du 5 janvier 81, je faisais défiler dans ma tête
toute ma vie : 5 janvier, 6 janvier, 7 janvier… Je devais me rappeler absolument de tout, tout
ce qui m'était arrivé, surtout les choses les plus insignifiantes. C'est très vite devenu une
maladie parce que ça a beaucoup trop bien marché, à tel point que la nuit, ça s'enclenchait tout
seul. Et encore maintenant, je dois lutter contre ça. Or, je me suis rendue compte que c'était
très douloureux, que c'était de la folie ! Il y a des choses qu'on n'a pas envie de revivre : donc
je devais lutter contre cette hypermnésie que j'avais moi-même installée.
AN- Et la deuxième fois était plus vraie. On a des projets de fou à l'adolescence !
LA- Il y a d'ailleurs beaucoup d'adolescents dans vos lecteurs : c'est l'âge des extrêmes, d'une
quête absolue, où l'on éprouve beaucoup d'agressivité contre les autres et contre soi.
AN- C'est très vrai. C'est là aussi que Nietzsche m'a sauvée : il y avait tellement d'agressivité
en moi. Nietzsche m'a montré que cette énergie, on pouvait en faire autre chose. J'avais un
excès d'énergie : c'est bien, mais en même temps, ça peut être très destructeur. Donc, j'ai
appris que cette énergie, il fallait la sublimer, et la sortir. Nietzsche m'a vraiment sauvée parce
que je suis sûre que si je n'avais pas commencé à écrire, j'aurais vraiment fini par mourir.
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5) Reprodução de artigo na revista Le Point, n.668/2004, p.87.
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ANEXO 2
Reprodução de foto de Amélie Nothomb com sua babá japonesa. (Extraída de sua biografia
Amélie Nothomb de A à Z, Portrait d´un monstre littéraire, lançada por Michel Zumkir, em
2003).
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ANEXO 3
Reprodução de foto de um jardim japonês, com seus elementos tradicionais como o lago, as
carpas e as azaleas. (Extraído do livro Tsuboniwa, the Japanese Courtyard Garden, Kyoto
Shoin, 1991:54)
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