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RICARDO AUGUSTO NARCISO GONÇALVES DOS SANTOS

O PROBLEMA DO ETNOCENTRISMO

Trabalho apresentado ao Centro de


Formação Missiológica como parte
dos requisitos do módulo “Missiologia
Fundamental”.
Professor: Rev. Carlos Del Pino
O PROBLEMA DO ETNOCENTRISMO

Ao estudar a disciplina de Missiologia Fundamental, deparei-me com um


problema que para muitos parece invisível, porém algo muito presente no dia-a-dia de
muitos missionários espalhados pelo mundo. Eu me refiro ao etnocentrismo. Nós seres
humanos temos uma facilidade muito grande de interpretarmos a realidade de acordo
com os nossos parâmetros ou de acordo com os parâmetros da nossa cultura. O pastor
Marcelo Carvalho em seu livro com o título “Antropologia para Missionários”, define
etnocentrismo como um julgamento de que o nosso povo é o melhor, o mais coerente
em suas ações, com os melhores costumes, as melhores práticas, leis, mores e normas e,
portanto, superior a qualquer outro povo.1 Essa definição me lembra uma discussão em
sala de aula sobre o comportamento de missionários brasileiros na Europa. Muitos
missionários brasileiros durante o processo de aculturamento, ao invés de observar a
cultura visando aprender e entender a melhor forma de apresentar o evangelho, já
chegam propondo “ideias mirabolantes”, pois acham que sabem de tudo e que possuem
solução para todos os problemas. Na minha opinião, isso acontece também por causa do
etnocentrismo.

Recentemente eu li um artigo com o título: “Notas para o etnocentrismo” de Egon


Schaden, e percebi com clareza um grave problema na afirmação que o autor destaca
logo no início do seu artigo: “todos nós temos a tendência de dividir os habitantes da
terra em dois grupos: nós e os outros”.2 Em muitos momentos colocamos o nosso grupo,
a nossa etnia, a nossa cultura como o centro de todas as coisas. Assim como numa
discussão entre torcedores de times de futebol que colocam as suas opiniões e razões
para justificar o fato de torcerem pelo time A ou pelo time B, nós também apresentamos
diversas justificativas para dizermos que a nossa cultura é melhor que a cultura do outro,
ou que os nossos valores e padrões morais são superiores em relação a uma nação menos
desenvolvida. Neste artigo, Egon Schaden apresenta diferentes formas de
etnocentrismo, mesmo reconhecendo não sendo fácil estabelecer uma classificação
satisfatória. O emprego daquilo que conhecemos como etnocentrismo pode ser aplicado

1
CARVALHO, Marcelo. Antropologia Missionária: brevíssima introdução. Brasília, DF: Ed. Monergismo, 2022.
p. 74.
2
SHADEN, Egon. Notas sobre o etnocentrismo, p. 270.
numa família, numa comunidade religiosa, numa cidade, numa classe social entre
outros. Schaden também fala sobre etnocentrismo tribal, e este, por exemplo, pode ser
observado entre os indígenas no Brasil. Temos como exemplo, os Kaduveo (tribo
indígena do sul do Mato Grosso) que acreditam terem sido criados para dominar outras
tribos, e durante muito tempo viveram de acordo com essa convicção. Quantas histórias
conhecemos de povos antigos que se consideravam superiores a outros povos por causa
da sua cultura? Temos exemplos bíblicos que nos mostram isso: Os judeus se
consideravam superiores aos gentios. Os gregos se gabavam por sua rica tradição
filosófica, e acreditavam ser uma raça especial. Imagino as perguntas feitas pelos
espanhóis e portugueses ao se depararem com os indígenas nas Américas: Será que eles
tem almas? Será que eles são humanos? Será que eles tem corpos? Será que são
espíritos? O preconceito racial também é uma forma de etnocentrismo. Shaden diz o
quanto é errôneo a frequente afirmação de que o preconceito de raça só existe nas
sociedades civilizadas. É muito comum a discriminação por causa das diferenças físicas
entre os povos primitivos. No relatório de uma viagem à África feito por Mungo Park
no século XVIII, disse que numa aldeia em que visitou, os aborígenes quiseram cegá-lo
porque ele tinha olhos de gato. Isso nos mostra que cada um enxerga, interpreta e
conceitua o “outro” a partir da sua própria realidade, da sua própria lente. O antropólogo
Peter Rivière disse que o etnocentrismo é a atitude que consiste em julgar as formas
morais, religiosas e sociais de outras comunidades de acordo com as nossas próprias
normas. Analisando esta definição apresentada por Rivière só podemos chegar há uma
única conclusão: o etnocentrismo precisa ser evitado a qualquer custo.

Don Richardson no seu livro “O fator Melquisedeque” compartilhou uma


experiência vivida por ele e sua família entre os sawi – uma das quase mil tribos que
existem na ilha subcontinental de 2.400 km da Nova Guiné. Se tratava de uma tribo que
praticava o canibalismo e a caça a cabeças. Richardson conta que uma das maiores
dificuldades de transmitir o evangelho para essa tribo era por causa da admiração deles
pelos “mestres da traição”. Ao ouvirem as primeiras tentativas do missionário de
explicar o evangelho eles consideraram Judas Iscariotes, o traidor de Jesus como um
grande herói da história. Aos olhos dos sawis, Jesus não passava de um tolo traído,
objeto de riso! Richardson se viu diante de dois problemas graves: Primeiro, como tornar
claro o significado do evangelho para aquele povo, cujo sistema de valores pareciam tão
opostos ao Novo Testamento? Segundo, como ele poderia saber se os sawis não estavam
criando laços de amizades falsos objetivando uma matança inesperada? Acredito que
muitos homens e mulheres desistiriam de trabalhar com algum povo com por causa das
diferenças tão distantes em relação a sua cultura. Richardson continuou orando pedindo
a Deus que lhe concedesse uma maneira de apresentar Cristo para os sawis. Num certo
dia, Richardson tomou conhecimento de uma pratica cultural daquele povo, se tratava
de um método para fazer as pazes e evitar impulsos voltados à traição. Quando um pai
sawi oferecia seu filho para o outro grupo como uma “Criança da Paz”, não só as
diferenças antigas eram canceladas, como também eram prevenidas futuras ocasiões de
deslealdade. O missionário aproveitou esse método de reconciliação dos sawis e
apresentou Jesus Cristo como o derradeiro Filho da Paz, usando os textos de Isaías 9.6,
João 3.16, Romanos 5.10 e Hebreus 7.25 como referência à analogia da Criança da Paz.
Richardson conta em seu livro que por meio desta analogia os sawis foram alcançados.
Uma vez que eles compreenderam que Judas havia traído uma Criança da Paz, então ele
não poderia ser considerado um herói, pois para os sawis a traição de uma Criança da
Paz significava o mais hediondo dos crimes.3 Relatos como esse nos ensinam a termos
empatia e respeito por outras culturas e a esperarmos o momento certo para
apresentarmos o evangelho de Cristo.

David Bosch em sua obra “Missão Transformadora” apresenta a contribuição de


missionários americanos as raças não-ocidentais, destacando: A abolição da escravatura;
a difusão métodos mais adequados de agricultura; a criação de inúmeras escolas; o
oferecimento de assistência médicas a milhões de pessoas; a melhoria da condição das
mulheres entre outros. No entanto, ele aborda o aspecto negativo em relação ao orgulho
desmedido com que muitos alardeavam essas realizações, mostrando que esses
missionários americanos eram incapazes de serem críticos frente à própria cultura ou de
apreciar culturas de outros povos. O problema residia no fato dos advogados da missão
se mostrarem cegos a seu próprio etnocentrismo. Confundiram seus ideais e valores de
classe média com os princípios do cristianismo. Seus pontos de vista sobre moralidade,
respeitabilidade, ordem, eficiência, individualismo, profissionalismo, trabalho e
progresso tecnológico, tendo sido batizados muito antes, foram exportados, sem

3
RICHARDSON, Don. O fator Melquisedeque: O testemunho de Deus nas culturas por todo o mundo. Tradução:
Neide Siqueira, 3. Ed. São Paulo – SP: Vida Nova, 2008. pp. 123,124.
escrúpulos, aos confins da terra. Estavam, logo, predispostos a não apreciar as culturas
das pessoas com quem conviviam. Diz o autor, que tudo isso foi preterido por uma
mentalidade forjada pelo iluminismo que tendia a transformar pessoas em objetos,
remodelando o mundo todo à imagem do Ocidente, separando os seres humanos da
natureza e uns dos outros e “desenvolvendo-os” de acordo com os padrões e premissas
ocidentais.4

Justo González em seu livro “Cultura e Evangelho” argumenta sobre o papel dos
cristãos diante de outra cultura. González diz que devemos tratar a outra cultura com
respeito, como um lugar sagrado no qual a autoridade de Jesus já é exercida, embora
que as pessoas que estão ali não o saibam. González cita como exemplo os primeiros
cristãos que conseguiram abrir caminho no mundo greco-romano e deram origem a uma
igreja que, sendo semita em sua origem, logo se arraigou e se encarnou nessa outra
cultura. O autor também faz alusão a descoberta da nossa terra pelos cristãos europeus.
Dizendo que se eles tivessem visto os indígenas não como pessoas desencaminhadas
pelos demônios, mas como povos e culturas nas quais o verbo de Deus já estava
presente. Certamente, em vez de destruir os antigos códices, os teriam estudado para ver
o valor que havia neles. Poderiam ter apreendido por exemplo, remédios com os nossos
antepassados que teriam salvado muitas vidas em todo o mundo; teriam aprendido as
observações astronômicas que a Europa ainda não havia realizado; teriam aprendido
como cultivar a terra de modo a poder continuar sustentando a população. Talvez teriam
aprendido quanto à vida eclesiástica, que não é necessário adorar a Deus sempre em
latim. E assim teria surgido uma igreja verdadeiramente arraigada em nossas culturas e,
depois, nas novas culturas que iam nascendo com o passar do tempo e com os encontros
com outras culturas.5 Concordo com Ronaldo Lidório sobre a piedade na missão. No
livro com o título “Teologia, Piedade e Missão” diz que à medida em que
experimentamos uma vida verdadeiramente transformada pelo evangelho, nossas vidas
são usadas por Deus para atrair outras pessoas a Jesus Cristo. Estamos sendo observados
a todo o momento, principalmente quando estamos inseridos numa outra cultura. Nossas
ações, palavras, brincadeiras e até mesmo o silêncio são observados. Lidório diz que é

4
BOSCH, David J. Missão transformadora: mudanças de paradigma na teologia da missão; tradução de Geraldo
Komdõrfer; Luís M. Sander – São Leopoldo, RS; EST, Sinodal, 2002. p. 357, versão digital.
5
GONZÁLEZ, Justo L. Cultura e Evangelho: o lugar da cultura no plano de Deus; traduzido por Vera e. Jordan
Aguiar – São Paulo; Hagnos, 2011. pp. 124,125.
nessa observação que daremos testemunho de uma vida transformada por Cristo, ou não.
É nessa observação que olharão para o nosso procedimento e entenderão que algo
inumano aconteceu em nossas vidas. Um dos maiores desafios dos missionários não é
andar na contramão do mundo, mas andar na contramão do nosso coração. 6

Conclusão

Eu e minha família estamos nos preparando junto a APMT para atuar em Angola,
no continente africano. Mesmo num país de língua portuguesa e com tantas afinidades
com o Brasil, os desafios em relação as mudanças culturais são enormes. A minha maior
preocupação em relação a minha atuação no campo, não é a de ter que apresentar um
relatório de sucesso para a agência e para os meus mantenedores, mas, o cuidado que eu
preciso ter para não cair no “problema do etnocentrismo”. Ao ler o artigo do Schaden
fiquei muito surpreso com o que ele chamou de “etnocentrismo culinário”. Eu sempre
converso este assunto com a minha esposa, dizendo a ela que a nossa casa em Angola
não pode ser uma Embaixada do Brasil, quero dizer, não podemos transformar o nosso
lar naquele país num cantinho brasileiro que irá nos proteger das diferenças culturais
presentes ali. Não podemos ter nojo ou evitarmos os hábitos alimentares de Angola por
serem diferentes do nosso padrão alimentar brasileiro. Schaden diz que essa reação
fisiológica de nojo, por mais insistente que seja, é condicionada culturalmente e devida
aos laços afetivos que nos ligam a nossa “segunda natureza”, aos hábitos, enfim, que
integram a nossa personalidade.7 Esse artigo abriu a minha mente e me fez enxergar um
problema que certamente dificulta o trabalho de muitos missionários, o etnocentrismo.
Entendo o que René Padilla escreve em seu livro “Missão Integral”, quando diz que na
medida em que a Palavra de Deus se encarna na igreja, o evangelho toma forma na
cultura, e isto reflete o propósito de Deus: a intenção de Deus não é que o evangelho se
reduza a uma mensagem verbal, mas que se encarne na igreja e, através dela, na história.
Ele diz que Aquele que sempre falou aos homens a partir de dentro da situação histórica,
designou a igreja como o instrumento para a manifestação de Cristo aos homens.8
Padilla argumenta que o homem precisa ser liberto do cordão umbilical da sua cultura,

6
LIDÓRIO, Ronaldo. Teologia, piedade e missão: a influência de Gisbertus Voetius na missiologia e no plantio
de igrejas; São Paulo: Hebrom, 2021. p. 75.
7
SHADEN, Egon. Notas sobre o etnocentrismo, p. 277.
8
PADILLA, René. Missão Integral: ensaios sobre o Reino e a igreja. Temática Publicações, 1992. p. 93. Versão
Digital.
destacando que o morrer para Cristo implica em morrer para a nossa cultura, a fim de
aprendermos a apreciar os valores de culturas alheias a nossa. Com isso, chego à
conclusão que a única forma de combatermos esse problema chamado etnocentrismo
será através da análise da outra cultura ou “os outros” sendo compreendidos dentro dos
seus próprios moldes e padrões. Fazê-lo pelas nossas lentes nos apresentará uma
realidade deturpada em relação a sua imagem original e consequentemente teremos uma
grande dificuldade no processo de aculturamento em relação ao nosso trabalho numa
cultura que apresenta padrões tão diferentes em relação aos nossos padrões culturais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOSCH, David J. Missão transformadora: mudanças de paradigma na teologia da


missão; tradução de Geraldo Komdõrfer; Luís M. Sander – São Leopoldo, RS; EST,
Sinodal, 2002. p. 357, versão digital;

CARVALHO, Marcelo. Antropologia Missionária: brevíssima introdução. Brasília,


DF: Ed. Monergismo, 2022;

GONZÁLEZ, Justo L. Cultura e Evangelho: o lugar da cultura no plano de Deus;


traduzido por Vera e. Jordan Aguiar – São Paulo; Hagnos, 2011;

LIDÓRIO, Ronaldo. Teologia, piedade e missão: a influência de Gisbertus Voetius


na missiologia e no plantio de igrejas; São Paulo: Hebrom, 2021;

PADILLA, René. Missão Integral: ensaios sobre o Reino e a igreja. Temática


Publicações, 1992. Versão Digital;

RICHARDSON, Don. O fator Melquisedeque: O testemunho de Deus nas culturas


por todo o mundo. Tradução: Neide Siqueira, 3. Ed. São Paulo – SP: Vida Nova, 2008;

SHADEN, Egon. Notas sobre o etnocentrismo. Sociologia: Revista Didática e


Científica, v. VIII, n. 4, p. 270-81. São Paulo: Escola de Sociologia e Política.

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