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A imagem de

Ao longo dos séculos


J AROSLAV �LIKAN

A IMAGEM DE

.AO LONGO

DOS SÉCULOS

Cosac & Naify .


EDIÇÃO ORIGINAL: The Ilustrated Jesus Through the Centuries
Yale University Press e New Haven & London, 1997
©Yale University Press
23 Pond Street
London NW 3 2PN
United Kingdom

© Jaroslav Pelikan 1997


© Cosac & Naify Edições 2000

As ilustrações deste livro foram selecionadas por Judy Metro, com


a assistência de Larissa Heimert.

Não é permitida a reprodução total ou parcial desta obra, por quaisquer


meios, sem a prévia autorização por escrito da Editora.

PROJETO GRÁFICO: Richard Hendel


EDITORAÇÃO ELETRÔNICA: Simone Naify, Mauro Guiducci, Vanderlei Lopes
TRADUÇÃO: Luiz Antonio Araújo
PREPARAÇÃO: Nair Hitomi Kayo
REv1sÃo: Mara Valles, Ricardo J. Oliveira, Cilaine Alves Cunha
ÍNDICE REMISSIVO: Caren Midori Inoue

Catalogação na Fonte do Departamento Nacional do Livro


(Fundação Biblioteca Nacional)
Pelikan, Jaroslav
D22F
A imagem de Jesus ao longo dos séculos/Jaroslav Pelikan.
São Paulo: Cosac & Naify Edições, 2000. 254 p.

Tradução de The Illustrated Jesus Through the Centuries

ISBN 85-86374-66-0

l. História da religião. História do pensamento religioso.


2. Araújo, Luiz Antonio CDU 200.9

COSAC & NAIFY EDIÇÕES LTDA

Rua General Jardim, 770, 2º andar - Santa Cecília


01223-010 São Paulo - SP
Tel: 0_11 255-8808 Fax: 0_11 255-3364
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Aos beneditinos da Abadia de Saint John

Collegeville, Minnesota

nihil amori Christi praeponere


SUMÁRIO

Prefácio da edição brasileira, viii

Prefácio do autor, ix

Introdução, 1

1 O Rabi, 9

2 A Virada da História, 23

3 A Luz dos Gentios, 37

4 O Rei dos Reis, 47

5 O Cristo Cósmico, 59

6 O Filho do Homem, 73

7 A Imagem Verdadeira, 87

8 Cristo Crucificado, 103

9 O Monge que Governa o Mundo, 117

10 O Noivo da Alma, 131

11 O Modelo Divino e Humano, 143

12 O Homem Universal, 157

13 O Espelho do Eterno, 171

14 O Príncipe-da-paz, 183

15 O Mestre do Bom Senso, 195

16 O Poeta do Espírito, 207

17 O Libertador, 223

18 O Homem que Pertence ao Mundo, 235

Créditos das Ilustrações, 249

Índice Remissivo, 252


PREFÁCIO DA EDIÇÃO BRASILEIRA

Um feixe gracioso de mensagens e imagens, brotando da conjunção da fé, da


inteligência e da arte, é o que o leitor brasileiro poderá admirar nesta mag­
nífica história de amor e de cultura. A imagem de Jesus ao longo dos séculos
resplandece como um foco intel)so - mas suave - de verdade, convidando ao
gosto de viver e de conviver na harmonia.
Como não ceder ao encanto da mesma figura de Cristo, o homem
universal, que assume em seu rosto acolhedor os traços de todas as culturas,
solidarizando-se com as angústias, as esperanças, os sonhos e as aspirações de
todos os homens e mulheres, no decorrer das idades, na variedade multicor
das raças ou nos diferentes tipos de civilização. Quanta surpresa ao contem­
plá-lo na revelação da força e do poder divinos, o Senhor, O Rei dos Reis, o
Salvador, o Libertador, mas também na tocante fragilidade da criança ou no
terrível e incomp·reensível aniquilamento do pobre condenado sozinho na sua
cruz. A arte e a fé vão sempre recriando un: mundo de beleza, de confiança na
fecundidade do amor, irmanando no mesmo ateliê de Cristo: Giotto, Fra
Angélico, Michelangelo, Rafael, João da Cruz, Dalí, Rouault, Chagai! e toda
essa corrente anônima, genial e mística, de transmissores de ícones, suaves
mediadores da graça e da glória divinas.
Por que não acrescentar o Aleijadinho, Mestre Valentim, Mestre Ataíde,
Portinari, cedendo assim à sedução do barroco brasileiro, que transfigura, no
esplendor das cores, das luzes e do ouro, a fé sofrida e tenaz de nosso povo. A
imagem de Jesus ao longo dos séculos é o filme de uma maravilhosa caminhada.
Mas é antes de tudo um amável convite a ir mais longe na peregrinação.
Será sem dúvida acolhido com agrado este florilégio do que há de mais
valioso e atraente, brotando da fonte primeira de nossa civilização e jorrando
através dos séculos, qual torrente de fé, de inteligência e de beleza. De
Pentecostes a Vaticano II, de Agostinho a Mahatma Gandhi, a Luther King, é
bom ver a solidariedade fraterna que se abre para o diálogo ecumênico, inter­
religioso, intercultural, em constante apelo à transcendência dos valores, para
ampliar e aprofundar a compreensão entre as pessoas e os povos.

Frei Carlos Josaphat, 2000

*Frei Carlos Josaphat, OP, é teólogo dominicano, autor de Moral, Amor & Humor - Igreja, sexo e
sistema na roda viva da discussão e de Santas doutoras, espiritualidade e a emancipação da mulher, entre
outros. Atualmente leciona na Escola Do�cana de Teologia em São Paulo.
PREFÁCIO DO AUTOR

Creio que sempre quis escrever este livro. Depois de ter descrito em The
Christian Tradition a história do significado da pessoa e da obra de Jesus Cristo
para a fé e a doutrina da igreja cristã, volto-me aqui à outra metade da
história : seu lugar na história gera � da cultura.
Certa vez, Clemenceau observou que a guerra era um assunto importante
demais para ser deixado por conta dos militares. Do mesmo modo, Jesus é
uma figura por demais importante para ficar restrita à visão dos teólogos e da
Igreja. E o convite para ministrar o Curso William Clyde DeVane, na Yale,
ofereceu-me a oportunidade de que precisava para escrever o livro que sempre
quis escrever. O público das aulas era vário - todas as idades, diferentes
classes sociais, níveis de educação e convicções religiosas diversas. É esse
também o público ao qual se dirige este livro. Assim, procurei, ao citar minhas
fontes, utilizar, na medida do possível, edições geralmente d isponíveis,
adotando e adaptando traduções anteriores (inclusive minhas) sem insistir em
explicações eruditas; as citações bíblicas foram extraídas, em sua maioria, da
Revised Standard Version *.
Recebi uma grande ajuda dos ouvintes e dos estudantes, dos colegas e
dos críticos, aos quais tenho o prazer de expressar a minha gratidão. Devo um
agradecimento especial aos meus editores, John G. Ryden e Barbara Hofmaier,
que me emprestaram seu ouvido atento e sua sensibilidade, visando ao
aperfeiçoamento do manuscrito e salvando-me da deselegância.
A dedica lória é a expressão do meu fraternal afeto pelos fra tres da
Abadia de Saint John the Baptist de Collegeville, Minnesota, de cuja família
beneditina tenho o orgulho de ser filho adotivo.

Jaroslav Pelikan, 1985

* [N.E.] As citações bíblicas da presente edição foram extraídas de A Bz'blia de Jerusalém (Edições
Paulinas, São Paulo, 1985), exceto quando mencionadas de outro modo ao longo do texto.
Poderoso Filho de Deus, Amor imortal, .
A quem nós, que o Vosso rosto não vimos,
Pela fé e só pela fé, abraçamos,
Crendo no que não podemos provar . . .
Nossos míseros sistemas têm o seu momento;
Têm o seu momento e deixam de ser:
Não passam de fagu lhas da Vossa luz,
E Vós, ó Senhor, sois mais que eles .

- Alfred Lord Tennyson,


"ln Memoriam"

Introdução
Independentemente de nossas crenças ou do que cada um de nós possa pensar
dele, há pelo menos vinte séculos Jesus de Nazaré é a figura dominante na
história da cultura ocidental. Se fosse possível imantar, por uma espécie de
supermagnetismo, cada fragmento que contivesse pelo menos um vestígio de
seu nome, o que restaria? É a partir do nascimento de Cristo que a maior parte
dos diferentes povos estabelece o calendário, é com o seu nome que milhões
de pessoas amaldiçoam e é em seu nome que milhões oram.
"Jesus Cristo é o mesmo, ontem e hoje; ele o será para a eternidade! Não
vos deixeis enganar por doutrinas ecléticas e estranhas" (Hb 13:8-9). Com
essas palavras o Novo Testamento exorta os leitores a se conservarem leais ao
depositário da autêntica e autorizada tradição de Cristo, pois esta lhes foi
2 + Introdução

Para compreender por que a figura


de Jesus exerce tal fascínio e
também por que parece tão difícil
simplesmente seguir repetindo
o que as épocas anteriores da fé
diziam a respeito dele, poucas obras
literárias são tão instrutivas e
comoventes como "ln Memoriam",
de Alfred Lord Tennyson, poeta
laureado pela rainha Vitória.
Tennyson esforçou-se, "acreditando
no que não podemos provar", para
ser leal - a sua própria maneira -
a Jesus como "Poderoso Filho de
Deus, Amor imortal". Sua fé ficou
abalada e suas dúvidas se
reforçaram em 1833, quando faleceu
Arthur Henry Hallan, seu querido
amigo e cunhado.

legada pelos apóstolos da primeira geração cristã, alguns dos quais ainda estavam
vivos. "O mesmo, ontem e hoje" adquiriu o sentido metafísico e teológico de que Jesus
Cristo era, em seu ser eterno, "a ima gem d o Deus imutável e, por conseguinte,
igualmente imutável" . Contudo, para o propósito deste livro, é a importância histórica
dessa frase que nos prenderá a atenção em primeiro lugar, pois, como ficará evidente em
consideráveis detalhes - e antes mesmo que esta história das imagens de Jesus ao longo
dos séculos chegue ao fim -, sua mais notória característica não é a semelhança, mas a
variedade caleidoscópica. "Cada época sucessiva", disse certa vez Albert Schweitzer,
"fundamentou suas próprias idéias na figura de Jesus, o que realmente era a única
maneira de torná-lo vivo"; pois cada uma "o criou de acordo com suas próprias
características" .
Este livro explora, em palavras e imagens, o que cada época encontrou em Jesus e
como o retratou. Para cada uma delas, a vida e os ensinamentos de Jesus representaram
uma resposta (ou melhor, a resposta) para as perguntas mais fundamentais da existência
e do destino humanos, e era à figura de Jesus, tal qual a apresentam os Evangelhos, que
se endereçavam essas perguntas. Se quisermos compreender as respostas que os séculos
precedentes formularam, devemos nos esforçar para compreender também suas per­
guntas, que, na maioria dos casos, não serão as nossas e, em muitos, podem até nem ser
propriamente as de seu tempo. Nos últimos 2 mil anos, poucos problemas - ou talvez
nenhum - revelaram as convicções fundamentais de cada época com tanta persistência
As cruzes à beira das estradas
da região anglo-saxônica da
Nortúmbria serviam de constantes
lembretes da morte e ressurreição
de Jesus; numa delas, a Cruz de
Ruthwell, o lembrete tomou a forma
do antigo poema inglês "O sonho
da cruz", sobre Cristo, o jovem
herói, e que ficou inscrito em letras
do alfabeto rúnico.
Destinado ao uso devoto dos
viajantes nobres e da famaia real,
neste caso, da rainha Isabel de
Castela, os Livros de Horas, além
de orações e textos bfblicos para
meditação, costumavam conter
miniaturas, muitas delas bastante
rebuscadas, de personagens ou
eventos bfblicos, inclusive esta
crucificação de Cristo e a descida
de seu corpo da cruz.
6 + Introdução

como a tentativa de se ajustar ao significado da figura de Jesus de Nazaré. Inver­


samente, a história das imagens de Jesus ilustra ao mesmo tempo as continuidades e as
descontinuidades dos dois últimos milênios. Uma das conseqüências da desconti­
nuidade é a grande variedade e multiformidade de conceitos e termos usados para
descrevê-lo, dos mais ingênuos e desprovidos de sofisticação aos mais profundos e com­
plexos. Por mais que tal multiplicidade de retratos de Jesus possa perturbar a sua ima­
gem aos olhos de uma fé que quer afirmá-lo como "o mesmo, ontem e hoje", essa mes­
ma variedade é um tesouro inestimável para a história da cultura. Tampouco o retrato
de Jesus, em qualquer época, se confina à história da fé, por central que ele seja para essa
história. Nas palavras do Evangelho de João, "de sua plenitude [pleroma] todos nós re­
cebemos graça por graça" (Jo 1:16) uma plenitude que se mostrou inexaurível e tam­
-

bém irredutível a fórmulas, sejam elas dogmáticas ou antidogmáticas; nas palavras de


Tennyson, "nossos míseros sistemas têm o seu momento", ele porém é sempre "mais
que eles" .
Portanto, este livro não trata nem da vida de Jesus nem da história da cristandade
vista como movimento ou instituição. A criação da literatura biográfica sobre a Vida de
Jesus é, stricto sensu, um fenômeno do período moderno: os estudiosos passaram a
acreditar que, aplicando a metodologia da historiografia crítica na análise dos
Evangelhos, conseguiriam reconstruir a história de sua vida. Naturalmente, as recons­
truções da vida de Jesus em qualquer período, a começar pelos Evangelhos, servirão de
ferramenta indispensável dessa história de Jesus ao longo dos séculos. Contudo, aqui
nos preocuparemos com algo mais do que a história das idéias teológicas, não-teológicas
ou antiteológicas. Nesta edição ilustrada, é crucial para a história o esforço de retratar
com imagens a pessoa de Jesus. E isto será possível não apenas quando, como no
Império Bizantino dos séculos VIII e IX e na Reforma do século XVI, a legitimidade de
tais representações tornou-se objeto de intensa discussão, com implicações de longo
alcance para a história da arte e da estética, assim como para a história da política. Os
retratos de Cristo em obras de arte, como as cruzes de beira de estrada na região anglo­
saxônica conhecida por N ortúmbria, as miniaturas carolíngias ou as pinturas renas­
centistas, nos oferecerão também a matéria-prima de uma história cultural de Jesus.
Consideraremos ainda obras literárias, tais como o antigo poema inglês "The dream of
the rood" [O sonho da cruz], A divina comédia, de Dante, Os irmãos Karámazov, de
Dostoiévski, a fim de avaliar o impacto de Jesus na cultura.
O arcabouço intelectual mais abrangente para esta série de imagens é fornecido pela
tríade platônica o Belo, o Verdadeiro e o Bom, que desempenhou um papel significativo
na história do pensamento cristão. Em certos aspectos, corresponde a essa tríade clássica,
embora de modo algum a ela idêntica, a tríade bíblica de Jesus Cristo como o Caminho, a
Verdade e a Vida (Jo 14 :6), "a luz verdadeira que ilumina todo homem" (Jo 1:9) .
Numa série de conferências dadas na Universidade de Berlim no ano letivo de 1899-
1900, Adolf von Harnack, o mais célebre professor dessa universidade, se propôs a res-
Introdução + 7

ponder a pergunta "O que é cristandade?" . O livro que resultou dessas aulas se inicia
com palavras que também podem formular perfeitamente a conclusão desta introdução:
"O grande filósofo inglês John Stuart Mill observou certa vez que 'difici1mente será
demais lembrar à humanidade que existiu um homem chamado Sócrates' . É verdade;
ainda mais importante, porém, é lembrar à humanidade que um homem chamado Jesus
Cristo esteve aqui" . As palavras e as imagens deste livro representam uma série de tais
lembretes "ao longo dos séculos" .
Vinde, ó vinde, Eman uel
E redimi Israel cativo.

- "Veni, Veni, Immanue l ",


(antí fona medieval)

1 + O Rabi

O estudo do lugar de Jesus na história da cultura deve começar pelo Novo Tes­
tamento, no qual se basearam todas as representações subseqüentes. Mas a
própria apresentação de Jesus no Novo Testamento é uma representação, e
mais se assemelha a uma série de pinturas do que a uma fotografia.
Nas décadas que se estenderam entre a época do ministério de Jesus e a
composição dos vários Evangelhos, a memória do que ele disse e fez circulou
em forma de tradição oral. Escrevendo para a congregação dos coríntios, por
volta de 55 d.C. (cerca de vinte anos após a morte de Jesus), o apóstolo Paulo
recordou que alguns anos antes, por ocasião de sua visita anterior, no início da
década, entregara-lhes oralmente o que ele mesmo recebera, talvez nos anos
40, referindo-se à morte e à ressurreição de Jesus (1 Cor 15:1-7) e à instituição
10 + o Rabi

Ao que se sabe, o primeiro fato da


vida de Jesus a ser registrado foi a
instituição da Ceia do Senhor
(1 Cor 11:23-26) no âmbito da
Páscoa judaica. Na qualidade de
judeu praticante, Jesus teria
comemorado a Páscoa anualmente
durante toda a vida, primeiro com
sua famz1ia, a de Maria e José,
depois com a de seus discípulos.
Dante Gabriel Rossetti comentou
num soneto a sua pintura sobre a
Páscoa: "Que sombra da Morte a
fronte do Menino controla/ Que
contém o sangue com o qual o
pórtico está manchado/[ . ] E
. .

Maria colhe as ervas amargas da


predestinação" .

da eucaristia ( 1 Cor 11:23-26). Portanto, cronológica e até logicamente, já havia uma


tradição da Igreja antes do aparecimento de um Novo Testamento ou de qualquer livro
dele. Na época em que se fixou na forma escrita, o material da tradição oral passara pela
vida e pela experiência da Igreja, que afirmava a presença do Divino Espírito Santo. E à
ação do Espírito Santo os cristãos atribuiriam a composição dos livros do Novo Testa­
mento, como começaram a chamá-lo em face do Antigo Testamento, nome que se pas­
sou a dar à Bíblia hebraica.
O Rabi + 11

Jesus, é certo, era judeu - se bem que, a julgar pelas tragédias da história posterior, Os Evangelhos mencionam apenas
de passagem a infância de Jesus, a
essa certeza não seja tão óbvia assim -, de modo que as primeiras tentativas de com­
fim de satisfazer - ou instigar - a
preender sua mensagem ocorreram no contexto do judaísmo. O Novo Testamento foi nossa curiosidade. Em O encontro
escrito em grego, mas parece que o idioma usado por Jesus e seus discípulos foi o do Senhor no templo, de Holman
Hunt, o incidente narrado em
aramaico, língua semítica relacionada com o hebraico, mas não idêntica a ele. Há pa- Lucas 2:41-52 condensa a
1avras aramaicas espalhadas nos Evangelhos e em outros livros do cristianismo pri- ambivalência de sua relação com a
. tradição judaica. Seus pais o
. mitivo, o que reflete a língua em que várias máximas e fórmulas litúrgicas eram encontram entre os doutores da lei
repetidas antes que se houvesse concluído a transição para o grego. Entre elas, acham-se mosaica, confundindo-os com suas
palavras familiares como hosana e o pranto de desamparo de Jesus na cruz: Eloi, Eloi, perguntas e respostas; ele, porém,
repele gentilmente a repreensão dos
lemá sabachtháni? (Me 1 5:34) - "Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?" (Eli, Eli, pais, indagando: "Não sabíeis que
lama azavtani?, no hebraico do Salmo 22). Ao lado de Emanuel, Deus conosco - título devo estar na casa de meu Pai?"
- referindo-se ao templo judeu
hebreu dado à criança profetizada por Isaías (7: 14) e aplicado a Jesus por Mateus (1 :23), da Cidade Sagrada de Jerusalém.
mas não empregado para dirigir-se a ele, a não ser em apóstrofes como a antífona me­
dieval Veni, Veni, Immanuel que forma a epígrafe deste capítulo -, aparecem quatro pa­
lavras aramaicas referentes a Jesus: Rabi ou mestre, Amen ou profeta, Messias ou Cristo e
Mar ou Senhor.
12 + O Rabi

Embora as construções à esquerda A mais neutra e menos controvertida dessas palavras é talvez Rabi, ao lado de Ra­
sejam mais muçulmanas que
bouni, de mesma raiz. A não ser em duas passagens, os Evangelhos aplicam a palavra
judaicas, o uso da arquitetura do
Oriente Próximo na Pietà de aramaica somente a Jesus; e, se concluirmos que o título "professor" ou "mestre" (didas­
Avignon, do século XV, pode ser kalos em grego) pretendia ser a tradução do nome aramaico, pode-se dizer com bastante
tomado como exemplo da ascensão
do estudo hebraico como parte segurança que Jesus era conhecido como Rabi e assim chamado. Todavia, apesar de os
do interesse crescente da baixa Evangelhos terem acentuado as diferenças, não as semelhanças, entre Jesus e os outros
Idade Média e do Renascimento em
relacionar a figura histórica
rabis, com o progresso dos estudos acadêmicos do judaísmo de seu tempo, tanto as
de Jesus com suas raízes em Israel. semelhanças quanto as diferenças tornaram-se mais claras.
Lucas nos conta (4: 1 6-30) que, depois do batismo e da tentação pelo diabo, Jesus che­
gou "a Nazaré, onde fora criado, e, segundo seu costume, entrou em dia de sábado na
sinagoga e levantou-se para fazer a leitura" . Seguindo o padrão rabínico costumeiro,
pegou o livro da Bíblia hebraica, leu-o, provavelmente ofereceu em aramaico uma
tradução-paráfrase do texto e então o comentou. As palavras eram as de Isaías: "O
Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para evangelizar os pobres;
enviou-me para proclamar a remissão aos presos e aos cegos a recuperação da visão,
O Rabi + 13

para restituir a liberdade aos oprimidos e para proclamar um ano de graça do Senhor" A visão de ]ames Tissot sobre a
parábola do filho pródigo
(Is 61 :1-2). Mas, em vez de aplicar o texto aos ouvintes, como faria um rabi, comparando (Lc 15:11-32) dá ênfase à contrição
e contrastando interpretações anteriores, declarou: "Hoje se cumpriu aos vossos ouvidos do pródigo e ao perdão do pai.
essa passagem da Escritura" . Embora se diga que a reação inicial à audaciosa declaração Contudo, a parábola se aplica não
só aos indivíduos, mas também ao
foi de admiração ante "as palavras cheias de graça que saíam de sua boca", as explica­ "retorno dos gentios pródigos"
ções que se seguiram provocaram a reação oposta e todos "se enfureceram" . realizado por Cristo. De acordo com
esta leitura, o irmão mais velho
Por trás do confronto entre o rabi Jesus e os representantes da tradição rabínica, as representa o povo de Israel, a quem
afinidades são claramente discerníveis nas formas pelas quais seus ensinamentos o pai diz: "Filho, tu estás sempre
comigo, e tudo o que é meu é teu ",
aparecem nos Evangelhos. Uma das mais conhecidas é a "pergunta e resposta", sendo
reafirmando a eternidade da aliança
aquela geralmente feita como provocação. Uma mulher teve sete maridos (sucessiva, de Deus com Israel.
não concomitantemente) : de quem ela será esposa na ressurreição (Mt 22:23-33)? É lícito
um judeu devoto pagar tributo às autoridades romanas (Mt 22: 1 5-22)? Como merecer a
vida eterna (Me 10:17-22)? Quem é o maior no Reino dos Céus (Mt 18:1-6)? Aquele que
pergunta faz as vezes do ator que dá a deixa, proporcionando ao rabi Jesus a
oportunidade de esclarecer a questão, muitas vezes invertendo a pergunta.
Entretanto, para os escritores do Novo Testamento, a forma mais típica dos ensi­
namentos de Jesus era a parábola: "E sem parábolas nada lhes falava" (Mt 1 3:34) . Mas a
palavra grega parabole foi tirada da Septuaginta, a tradução da Bíblia judaica para o
grego. Portanto, também aqui a descrição que os evangelistas oferecem de Jesus como
14 + o Rabi

A reiterada afirmação dos contador de parábolas só faz sentido no quadro de seu background judeu. Interpretar as
Evangelhos de que as pessoas
parábolas nesse âmbito altera as explicações convencionais de suas comparações do
comuns ouviam Jesus com prazer
e ele lhes falava com autoridade reino de Deus com os incidentes da vida humana. Assim, o sentido da. parábola do filho
inspirou os pintores - assim como pródigo (Lc 15:11-32), melhor chamada "a parábola do irmão mais velho", está nas pa­
outros intérpretes do mais longo
relato contínuo de sua pregação lavras finais do pai para ele, que representa o povo de Israel: "Filho, tu estás sempre
pública, o Sermão da Montanha comigo, e tudo o que é meu é teu. Mas era preciso que festejássemos e nos ale­
(Mt 5-7) a mostrarem Jesus, o
-

grássemos, pois esse teu irmão estava morto e tornou a viver; ele estava perdido e foi
Rabi e Mestre, pela maneira como
seu discurso era recebido pelos reencontrado!". O pacto histórico entre Deus e Israel era permanente e, agora, dele
ouvintes, incluindo aqueles que passava a fazer parte também a introdução de outros povos.
obviamente pertenciam à classe
dos camponeses. A oscilação entre descrever Jesus como Rabi e investi-lo de uma autoridade nova e
única tornou necessários os títulos adicionais. Um deles foi o de Profeta, como na
aclamação do Domingo de Ramos ( Mt 21 : 1 1 ) : "Este é o profeta Jesus, o de Nazaré da Ga­
liléia". Talvez a versão mais intrigante seja, uma vez mais, a aramaica (Ap 3: 14): "Assim
fala o Amém, a Testemunha fiel e verdadeira". A palavra amém era a fórmula de afir­
mação no fim da prece, tal como as exortações de despedida de Moisés ao povo de Is­
rael, nas quais todo versículo termina assim: "E todo o povo dirá: Amém!" (Dt 27:14-26).
No Novo Testamento, torna-se evidente uma extensão do significado de amém no
Sermão da Montanha : Amen legõ hym in, "Em verdade eu vos digo" . Nos quatro
Evangelhos, amém introduz cerca de 75 vezes um pronunciamento autorizado de Jesus.
Parte da argumentação de Paulo
aos romanos, segundo a qual eles,
como gentios, tinham sido
"enxertados" na oliveira de Israel
(Rm 11:17), consistia no uso do
dramático fato que ia ser lembrado
em O sacrifício de Isaac, de Lovis
Corinth, segundo Rembrandt, como
uma antecipação tipológica da
salvação em Cristo. Tal qual o Pai,
Abraão, que em obediência à ordem
misteriosa de Deus não hesitou em
oferecer seu filho Isaac (Gn 2:1-14),
Deus "não poupou o seu próprio
Filho e o entregou por todos nós"
(Rm 8:32).
16 + O Rabi

É quase impossível acompanhar as


narrações do Evangelho sobre a
vida de Jesus sem um conhecimento
mínimo da geografia da Palestina e,
especialmente, de Jerusalém, aqui
apresentada tal qual é hoje em dia.
A fotografia revela outro motivo da
importância histórica da cidade.
Os três monoteísmos do Livro - o
judaísmo representado pelo Muro, o
cristianismo manifesto nas cúpulas
cepáceas da Igreja Ortodoxa Russa
e o islamismo expresso na Cúpula
do Rochedo -, tudo faz dela a
Cidade Sagrada, título que já
apresentava no tempo de Jesus.

Como pessoa dotada de autoridade para fazer tais pronunciamentos, Jesus era o Profeta.
Aqui a palavra profeta significa principalmente não aquele que prediz, embora as
palavras de Jesus contenham muitas predições, mas aquele que está autorizado a falar
em nome de Outro e a revelar. No Sermão da M�ntanha, Jesus é citado quando afirma:
"Não penseis que vim revogar a Lei e os Profetas. Não vim revogá-los, mas dar-lhes
pleno cumprimento, porque em verdade [amen] vos digo que, até que passem o céu e a
terra, não será omitido nem um só i, uma só vírgula da Lei, sem que tudo seja realizado"
(Mt 5:17-18). A essa afirmação da validade permanente da lei de Moisés segue-se uma
série de citações específicas dessa mesma lei, todas introduzidas pela fórmula "Ouvistes
que foi dito aos antigos"; cada uma delas é acompanhada de um comentário que se
inicia com a fórmula magisterial "Eu, porém, vos digo" (Mt 5:21-48). O comentário é
uma intensificação do mandamento, a fim de incluir não só a sua observância exterior
como também o espírito interior e a motivação do coração. Todos esses comentários são
uma elaboração da advertência de que a justiça dos seguidores de Jesus deve exceder a
dos que seguiam outros doutores da Lei (Mt 5:20).
A conclusão do Sermão da Montanha confirma o status especial de Jesus não só co­
·
mo Rabi, mas como Profeta: ''Aconteceu que ao terminar Jesus essas palavras, as mul­
tidões ficaram extasiadas com o seu ensinamento, porque as ensinava com autoridade e
não como os seus escribas. Ao descer da montanha, seguiram-no multidões numerosas"
(Mt 7:28-29, 8:1). Relatam-se, então, diversas histórias de milagres. O Novo Testamento
O Rabi + 17

não atribui o poder de fazer milagres unicamente a Jesus e a seus seguidores (Mt 1 2:27), "Eu sou um servo de Deus. Ele me
deu um Livro e fez de mim um
mas cita os milagres como a substantificação de sua posição como Rabi-Profeta. Essa profeta", diz Jesus no Alcorão, no
identificação de Jesus era um meio tanto de afirmar sua associação com os profetas de sura 19:30, "mariano", dedicado à
Israel quanto de assegurar, diante destes, sua superioridade como o Profeta, cuja vinda Virgem Maria. A começar pelos
primeiros apologistas
eles mesmos haviam predito e a cuja autoridade haviam se preparado para se submeter. antimuçulmanos, os cristãos
Em Deuteronômio 18:15-22, Deus diz a Moisés - e, por seu intermédio, ao povo - que surpreenderam-se repetidamente
com a linguagem exaltada com que
"suscitará um profeta como eu no meio de ti", a quem o povo ouvirá. Nesse contexto o Alcorão descreve Jesus e sua mãe.
bíblico, trata-se da legitimação de Josué como sucessor de Moisés, mas, no Novo Testa­ Privados da arte sacra convencional
pela proibição das imagens por Alá,
mento e nos escritores cristãos ulteriores, é a Jesus-Josué que se toma pelo profeta anun­
os artistas muçulmanos
ciado. Ele é retratado como o único Profeta em quem o ensinamento de Moisés se com­ aprimoraram sua criatividade
pletou e foi superado, o único Rabi que satisfez a lei de Moisés e a transcendeu; pois "a estética na caligrafia do Alcorão.

Lei foi dada por meio de Moisés; a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo" (Jo 1 :1 7) .
A s categorias Rabi e Profeta, embora necessárias, não eram suficientes para descrever tal
revelação da graça e da verdade. Por essa razão, os apologistas cristãos antimuçulmanos
posteriores consideravam inadequado e, por conseguinte, inexato identificar Jesus, co­
mo fazia o islã, como um grande profeta e precursor de Maomé. Também por essa razão,
jamais se realizou plenamente o potencial da figura de Jesus, o Profeta, como ponto de
convergência entre cristãos e muçulmanos.
Rabi e Profeta acabaram cedendo a duas outras categorias, ambas igualmente ex­
pressas em palavras aramaicas e, mais tarde, na versão grega: Messias, a forma aramaica
O Rabi + 19

de "Messiah", vertida para o grego como ho Christos, "Cristo", o Ungido (Jo 1 :41, 4:25); e A fim de visualizar a declaração do
apóstolo Paulo, segundo a qual
Marana, "nosso Senhor", na forma litúrgica Maranatha, "Nosso Senhor, vem!", vertida "Jesus Cristo, Nosso Senhor" era
para o grego como ho Kyrios (1 Cor 1 6:22). O futuro pertencia a esses títulos e à iden­ "nascido da estirpe de Davi
tificação de Jesus como Filho de Deus e segunda pessoa da Trindade. Contudo, à medida segundo a carne" (Rm 1:3),
combinada com a profecia de que
que se estabeleciam, Cristo e Senhor, do mesmo modo que Rabi e Profeta, foram perdendo " Um ramo sairá do tronco de fessé,
grande parte de seu conteúdo semítico. Para os discípulos cristãos do primeiro século, a um rebento brotará das suas raízes"
(Is 11:1), muitos manuscritos
concepção de Jesus como Rabi era evidente por si mesma, para os do segundo, passou a bfblicos e vitrais medievais
ser desconcertante e, para os do terceiro e subseqüentes, tornou-se obscura. traçavam sua genealogia na forma
da Á rvore de Jessé, desde o pai
O início da "desjudaização" da cristandade já é visível no Novo Testamento. Com a
de Davi até a Virgem Maria e
decisão de Paulo de "voltar-se para os gentios" (At 1 3:46) depois de haver começado a seu Filho.
pregar nas sinagogas e, posteriormente, com a destruição do templo em 70 d.C., o
movimento cristão passou a ser cada vez mais gentio e menos judeu, tanto na clientela
quanto nas perspectivas. Nesse contexto, os elementos judaicos da vida de Jesus tinham
de ser explicados a esses leitores (por exemplo, Jo 2:6). Os Atos dos Apóstolos podem
ser lidos como uma história narrada em duas cidades: o primeiro capítulo, em que
aparecem Jesus e seus discípulos após a ressurreição, passa-se em Jerusalém; o último
chega ao clímax com a informação do final da viagem do apóstolo Paulo em uma frase
simples, mas empolgante: "E assim foi que chegamos a Roma" .
Recentemente, os estudiosos não só restauraram a figura de Jesus no âmbito do
judaísmo do primeiro século como também redescobriram o caráter judaico do Novo
Testamento, em particular o de Paulo. A Epístola aos Romanos (9-11) é a descrição de
seus esforços quanto à relação entre a Igreja e a sinagoga, concluindo com a predição e a
promessa: "E assim todo Israel ser� salvo" - não convertido ao cristianismo, observe-se,
mas salvo, pois, nas palavras de Paulo: "quanto à Eleição, eles são amados por causa de
seus pais. Porque os dons e a vocação de Deus são sem arrependimento" (Rm 1 1 :26-29).
Essa leitura do pensamento de Paulo em Romanos dá um significado especial às muitas
referências que ali se fazem ao nome de Jesus Cristo: de "nascido da estirpe de Davi
segundo a carne [ . . . ] Jesus Cristo, nosso Senhor", no primeiro capítulo, à "mensagem de
Jesus Cristo", "agora manifesta e, pelos escritos proféticos e por disposição do Deus
eterno, dada a conhecer a todos os gentios", na sentença final. Aqui, Jesus Cristo é, como
diz Paulo de si mesmo em outra parte, "da raça de Israel [ . . . ] hebreu filho de hebreus"
(Fl 3:5). A própria questão da universalidade, supostamente a distinção entre Paulo e o
judaísmo, era, para Paulo, o que tornava necessário que Jesus fosse judeu. Pois somente
pelo judaísmo de Jesus o pacto de Deus com Israel, os graciosos dons de Deus, e sua
vocação sem arrependimento poderiam ser ·alcançados por todos os povos do mundo,
inclusive os gentios, que "foste enxertada entre eles, para te beneficiares com eles da
seiva da oliveira" - ou seja, o povo de Israel (Rm 1 1 : 1 7).
Não se pode considerar a tópica de Jesus como Rabi ignorando a história subse­
qüente da relação entre o povo a que Jesus pertencia e o povo que pertence a Jesus. Essa
relação se estende qual um marco ao longo de grande parte da história da cultura, e,
O Rabi + 21

considerando-se os eventos do século XX, temos a responsabilidade única de estar cons­ Jesus, o Rabi, viveu e morreu como
judeu. Mesmo quando agonizava na
cientes disso ao estudar a história das imagens de Jesus ao longo dos séculos. Trata-se de
cruz (Me 15:34), proferiu palavras
uma questão em que é mais fácil perguntar que responder, e mais fácil do que perguntar das Escrituras judaicas (SI 22:1). A
é evitá-la. Todavia é mister interrogar: teria havido tanto anti-semitismo, tantos pogroms, crucificação amarela, pintada por
Marc Chagai em 1943, num mundo
Auschwitz, se todas as igrejas cristãs e todo lar cristão houvessem focalizado a devoção prestes a conhecer o horror de
pelas imagens de Maria, não só na qualidade de Mãe de Deus e Rainha dos Céus, mas Auschwitz, enfatiza o judaísmo de
Jesus em vida e na morte. Na
também na de moça judia e Nova Míriam, e reverenciado os ícones de Cristo não só cabeça, Jesus usa os filactérios de
como o Cristo Cósmico, mas também como o Rabi Jesus de Nazaré, o Filho de Davi, que um judeu devoto, trazendo no braço
tiras de orações e, na mão direita, o
veio redimir um Israel cativo e uma humanidade cativa?
rolo de pergaminho do Torá.
Coroai-o Senhor dos anos,
O Potentado do tempo,
O Criador das esferas rolantes,
Inefavelmen te sublime.

- Matthew Brid ges e Godfrey Thring,


"A canção d os serafins"

2 + A Virada da História

Os contemporâneos de Jesus o conheciam como Rabi, mas um rabi cujo


ministério de ensinamentos e pregação tinha por conteúdo central "o Evan­
gelho de Deus: 'Cumpriu-se o tempo e o Reino de Deus está próximo. Arre­
pendei-vos e crede no Evangelho'" (Me 1 :1 4-15). Para muitos de seus primei­
ros seguidores era inevitável designá-lo como Profeta, mas a reflexão posterior
levou-os a especificar o que havia de particular em sua missão profética:
"Muitas vezes e de modos diversos falou Deus, outrora, aos Pais pelos profe­
tas; agora, nestes dias que são os últimos, falou-nos por meio do Filho, a quem
constituiu herdeiro de todas as coisas, e pelo qual fez os séculos. É ele o res­
plendor de sua glória e a expressão do seu ser; sustenta o universo com o po­
der de sua palavra" (Hb 1 :1 -3).
24 + A Virada da História

Jesus, "no meio de sete candelabros Essa e outras afirmações evidenciam que, à medida que realizavam a tarefa de
de ouro" (Ap 1:12,17), foi
identificado como "o primeiro e o
encontrar uma linguagem que não sucumbisse ao peso do que consideravam o
último" - ou seja, o Senhor e a significado da vinda de Jesus, às primeiras gerações de crentes cristãos pareceu
Virada da História - quando, no necessário inventar uma gramática do tempo e da história. Foi o que marcou o ponto
último livro do Novo Testamento
(Ap 11:15), o sétimo anjo tocou sua crucial do problema entre a Igreja e a sinagoga. Denominando-se o novo e verdadeiro
trombeta. "Houve então fortes Israel, a Igreja se apropriou do significado histórico da idéia da redenção de Israel pelo
vozes no céu, clamando: 'A realeza
do mundo passou agora para nosso êxodo do Egito, adaptando-o sob a forma de redenção da humanidade pela ressurreição
Senhor e seu Cristo, e ele reinará de J es:us Cristo entre os mortos.
pelos séculos dos séculos'." Esse
Na sugestiva linguagem de Ezequiel, Daniel e do posterior apocalipticismo judeu,
versículo ressoa no "Coro da
Aleluia" de Messias, de George um dos primeiros seguidores de Jesus ouviu-o chamar-se a si mesmo "o Primeiro e o
Frederic Handel. Último" - ou seja, o Senhor da História (Ap 1 :1 7) . A proclamação do próprio Jesus a
respeito do reino de Deus, assim como as proclamações· de seus seguidores sobre ele,
refletia em termos contemporâneos a fervorosa expectativa de que a vitória do Deus de
Israel sobre os inimigos de Israel, durante tanto tempo prometida e tantas vezes
·postergada, estivesse finalmente a ponto de realizar-se. O Livro dos Atos descreve os
discípulos de Jesus, mesmo após os acontecimentos da Sexta-feira Santa e da Páscoa,
inquirindo-o pouco antes que deles fosse retirada a sua presença visível: "Senhor, é
agora o tempo em que irás restaurar a realeza em Israel?". Ao que Jesus responde: "Não
compete a vós conhecer os tempos e os momentos que o Pai fixou com sua própria
autoridade" (At 1 :6-7) .
Entretanto, aceitar simplesmente essas palavras seria fugir facilmente de problemas
mais profundos. Nas mensagens de Jesus, as exortações ao arrependimento e o estímulo
à mudança ética tinham por base a promessa de um segundo advento: "Esta geração
não passará sem que tudo isso aconteça. Passarão o céu e a terra. Minhas palavras,
porém, não passarão" (Mt 24:34; Me 1 3:30; Lc 21 :32) . Mas essa geração não viveu para
v_er tudo isso: o Filho do Homem não veio, o céu e a terra não passaram. Que significado
tem para a promessa "Minhas palavras não passarão" essa desilusão na esperança
apocalíptica de um segundo advento? Como a pessoa de Jesus pôde conservar uma
autoridade cuja validez aparentemente dependia do anúncio do iminente fim da
história? Alguns estudiosos identificaram a crise provocada por essa decepção como o
maior trauma dos primeiros séculos cristãos e como a fonte do advento da Igreja
institucional e do dogma sobre a pessoa de Jesus. Não deixa de ser surpreendente que
tal hipótese encontre escassa corroboração nas fontes. Aliás, o que estas revelam é a
combinação, lado a lado nas mesmas mentes, entre um intenso sentimento apocalíptico
de que a história haveria de acabar e uma disposição para viver, aliada à perspectiva de
continuidade da história humana - sendo que esses dois pontos de vista encontram
expressão numa ênfase crescente na centralidade de Jesus.
O pensador norte-africano Tertuliano, o primeiro escritor cristão importante em
língua. latina, ilustra bem essa combinação no fim do segundo século. Concitando os
26 + A Virada da História

Muitas vezes deposto e exilado crentes a não assistir aos espetáculos degradantes da sociedade romana, exortava-os a
por sua lealdade à confissão do
Concz1io de Nicéia, em 325 -
aguardar o espetáculo do grande dia vindouro, quando Cristo, qual um conquistador
segundo a qual Jesus Cristo, romano, retornaria num desfile triunfal: "Nunca marchamos desarmados [ ... ] Esperemos
o Filho de Deus, era nada menos com orações a trombeta do anjo" . No entanto, ao defender-se contra a acusação de
que "Deus provindo de Deus, luz
oriunda da luz, o verdadeiro Deus traição ao Império Romano, ele foi capaz de declarar: "Nós também oramos pelos
procedente do verdadeiro Deus, imperadores, por seus ministros e por toda autoridade, pelo bem-estar do mundo, pela
originado, não feito, único no ser
[homoousios] com o Pai" -, prevalência da paz, pelo adiamento da consumação final" . Rogar para que o segundo
Atanásio, bispo de Alexandria, advento seja adiado representa nada menos que uma nova compreensão do significado
Egito, escreveu uma biografia
da história: Jesus não só não seria o fim da história em seu segundo advento como
altamente influente do
eremita Antônio do Egito, também já havia sido a Virada da História, que, mesmo prosseguindo, fora
apresentando-o como imitador de transformada e subvertida pelo primeiro advento. Como eixo sobre o qual a história ·
Cristo e, por intermédio dela,
familiarizou o Ocidente com tinha virado, Jesus era a base tanto de uma nova interpretação do processo histórico
o monasticismo cristão. quanto de uma nova historiografia.
A nova interpretação do processo histórico começou pela história de Israel, que
passou a ter como objetivo principal a vida, a morte e a ressurreição de Jesus. Isso se
tornou evidente na interpretação - e manipulação - da tradição profética das escrituras
judaicas. Descrevendo o êxodo de Israel do cativeiro, o profeta Oséias disse, falando em
nome de Deus (Os. 1 1 : 1 ) : "Quando Israel era um menino, eu o amei e do Egito chamei
meu filho"; porém, nas mãos do evangelista cristão, tais palavras se converteram numa
predição da fuga ao Egito pela Sagrada Família para escapar à fúria assassina do rei
Herodes (Mt 2: 1 5). Os chamados salmos régios identificavam Deus como o verdadeiro
rei de Israel, mesmo quando Israel tinha monarcas terrenos como Davi, e o Salmo 96:10
declarava: "Iahweh é Rei" . Todavia, os apologistas e poetas cristãos incluíram uma
referência explícita à cruz: "O Senhor reina da árvore ", acusando os judeus de haverem
omitido tais palavras. Os cristãos esquadrinharam a Bíblia hebraica em busca de
referências a Cristo, compilando-as em diversos comentários e coleções. Os profetas de
Israel passaram a ter seu alvo e seu fim em Jesus.
Portanto era igualmente sobre o reino de Israel, o qual agora os cristãos viam como o
autêntico reino de Deus, que "da árvore" reinava o Crucificado. Para Agostinho, no
século V, o rei Davi, que estabelecera a capital de seu reino em Jerusalém, era "um filho
da Jerusalém celestial" ainda que rei daquela "Jerusalém terrena" . Davi recebera a
promessa de que seus descendentes reinariam em Jerusalém em contínua sucessão e,
assim, vislumbrava, além de si e de seu reino, o reinado de Jesus Cristo. Uma revisão
cristã de toda a história dos reinos divididos de Judá e Israel, com base no que "a
providência de Deus ou orden'?u ou permitiu", veio mostrar que, embora os reis, a
começar por Roboão, filho de Salomão, não tivessem profetizado "por seus enigmáticos
atos ou palavras o que podia pertencer a Cristo e à Igreja", eles apontaram para Cristo.
Pois quando os reinos divididos finalmente se reunificassem sob um príncipe em Je­
rusalém, isso seria para antecipar Cristo como o único rei.
.
Também a história das mudanças e das sucessivas formas do sacerdócio de Israel
28 + A Virada da História

Reagindo à acusação de que somente tinha sentido, conforme a argumentação cristã, se encarada da perspectiva de
o advento de Cristo e a adoção do
Jesus como Ponto Crucial. O sacerdócio de Aarão e dos "filhos de Levi" foi temporário e
cristianismo haviam minado
o Império Romano, tornando-o sua substância aparecia agora no verdadeiro sumo sacerdote Jesus Cristo; pois ele
vulnerável às incursões bárbaras, "permanece para a eternidade, possui um sacerdócio imutável" (Hb 7:24). Embora no
Agostinho de Hipona (falecido em
430) afirmou em A cidade de Novo Testamento o termo sacerdote não se refira explicitamente aos ministros da Igreja
Deus elegantemente ilustrada
-
cristã nem aos apóstolos de Jesus em seu ministério, mas unicamente ao próprio Cristo
por Subiaco em sua primeira edição
impressa de 1467 que Cristo
-
como sacerdote, ou aos sacerdotes do Antigo Testamento, ou a todos os crentes como
era de fato a Virada, sem cuja sacerdotes, a Igreja não tardou a se apropriar do termo para com ele designar o seu clero
vinda a história humana
ordenado. Portanto, a história do sacerdócio e do sacrifício teria começado com a
não tinha sentido.
sombria figura de Melquisedec, rei e sacerdote, que, segundo a leitura cristã do Gênesis,
sacrificara "pão e vinho" (Gn 14: 1 8), e teria adquirido sua forma definitiva com Aarão.
Tudo isso, porém, conduzia a Jesus Cristo, que, por sua vez, conduziu ao sacerdócio da
Igreja e ao sacrifício da missa.
Assim, toda a história de Israel chegou ao seu ponto culminante em Jesus como
Profeta, Sacerdote e Rei. Do mesmo modo, Jesus foi identificado como o momento da
virada na história de todas as nações do mundo, resumida aqui na história da "ama das
A Virada da História + 29

A primeira pessoa designada


como "sacerdote" na Bfblia
foi "Melquisedec, rei de Salém",
que "trouxe [ou, na tradução latina,
'ofereceu', i. e., sacrificou] pão
e vinho; foi sacerdote do Deus
Altíssimo" (Gn 14:18). Cristo
"trouxe pão e vinho", instituindo
a Eucaristia, e, ao sacrificar-se,
foi supremamente o "sacerdote
do Deus Altíssimo", como, do
mesmo modo que Melquisedec,
tanto sacerdote quanto rei.

nações", o Império Romano. O monumento mais expressivo e influente dessa iden­


tificação foi a Cidade de Deus, escrita por Agostinho. "Não só antes que Cristo começasse
a pregar, mas até mesmo antes que tivesse nascido da Virgem", asseverava Agostinho, a
história de Roma se caracterizava pelos "males atrozes daquele tempo", que se tornaram
"intoleráveis e temíveis" não quando Roma sofria a derrota militar, mas quando obtinha
a vitória. "Uma vez destruída Cartago e vendo-se a república romana livre de seu gran-
30 + A Virada da História

Como Senhor da história, do céu e de motivo de aflição, um grande número de desastrosos males adveio imediatamente
da terra, acreditava-se que Jesus
Cristo havia unido o céu à terra, a
daquele próspero estado de coisas" . Isso acontecia principalmente por causa da con­
história divina à humana. Um centração da "volúpia do poder" nas mãos dos "poucos muito poderosos", enquanto o
mapa celestial traz o título "Os "resto, desgastado e exangue", ficava submetido ao seu jugo. A expansão do Império
Céus, a Esfera de Cristo", contudo
seu círculo encerra não só as Romano, que os acusadores culpavam Jesus de haver destruído, não foi um benefício
estrelas como também as figuras imediato para a raça humana, pois, "tendo sido abolida a justiça, que é o império senão
históricas dos santos e dos
apóstolos, assim como a travessia o nome falso do roubo?" .
do mar Vermelho por Israel. No entanto, indubitavelmente as grandes realizações de Roma podiam ser atri­
buídas, segundo Agostinho, ao que o historiador político Salústio havia identificado, no
século I a.C., como sua ambição e seu "desejo de glória" e prestígio, os quais restrin­
giram o vício e a imoralidade. Realizando os propósitos da história, o Deus que agira e
se fizera conhecer em Cristo abdicou de todas essas qualidades, que não eram resultado
da sorte, da fortuna ou do poder das estrelas, mas de uma "ordem das coisas e dos
tempos que está oculta para nós, mas que é plenamente conhecida [por Deus] que
governa como senhor e nomeia como governador" . Cristo era, nas palavras da epígrafe
deste capítulo, "o Senhor dos anos, o Potentado do tempo" . Esse conceito de ordem das
coisas e dos tempos, que a Bíblia chamava de "uma série de gerações", Agostinho o
defendeu vigorosamente contra a teoria da Grécia e da Roma clássicas segundo a qual a
história se repete e "o mesmo fato temporal é reencenado pelas mesmas revoluções" e
ciclos. Porque "Cristo morreu pelos nossos pecados uma vez e uma única vez e, tendo
ressuscitado dos mortos, não morrerá nunca mais", e era também verdade que Platão
fundara a Academia perto de Atenas e nela ensinara em um único momento da história,
não repetidamente "durante os incontáveis ciclos que ainda hão de existir" .
O tempo e a história eram, pois, decisivos para Agostinho. Mas os fatos da vida de
Jesus, vistos como a Virada da História, não se limitaram meramente a afetar as interpre­
tações dessa história; foram também responsáveis por um interesse revitalizado e trans­
formado de escrever a história. O próprio Agostinho jamais consultou a história narra­
tiva, mas dois autores cristãos gregos do século IV, Eusébio de Cesaréia e Atanásio de A­
lexandria, servem para documentar essa nova historiografia inspirada pela pessoa de
Jesus Cristo. Eusébio criticou seus predecessores nas apologias cristãs da concentração
porque se fixavam em "argumentos", não em "fatos" . Em sua História eclesiástica, pro­
põe-se a retificar esse desequilíbrio escrevendo a história à luz da vida de Jesus. A his­
tória de Jesus estendia-se ao início da experiência humana, pois todos aqueles a quem
Deus apareceu podiam ser chamados cristãos "de fato senão de nome" . Estendia-se tam­
bém ao próprio tempo de Eusébio, pois como os historiadores da Antigüidade clássica,
ele se concentrava nos eventos contemporâneos. De acordo com Eusébio, porém, o fato
decisivo da história que ele estava narrando não ocorrera no seu próprio tempo, mas no
de Jesus Cristo.
Atanásio, bispo de Alexandria, contemporâneo e até certo ponto adversário de
Eusébio, é recordado principalmente por suas obras sobre teologia dogmática e polê-
A Virada da História + 31

mica. Em muitos aspectos, porém, seu livro mais influente, A vida de Antônio, uma bio­
grafia do fundador do monasticismo cristão egípcio, trata apenas incidentalmente do
dogmatismo e da polêmica. É considerado um dos primeiros exemplos da nova histo­
riografia e da nova biografia inspiradas na vida de Jesus segundo os Evangelhos, muito
embora não faltem afinidades entre ele e as biografias pagãs anteriores. Embora o obje­
tivo do livro tenha sido apresentar Antônio como a incorporação de um ideal, nada im­
pediu Atanásio de descrever sua vida em termos concretos, como uma luta existencial.
Embora autor de A cidade de
Deus, o mais infl.uente livro antigo
e medieval sobre o significado da
história, Agostinho não escreveu
nenhuma história propriamente. No
entanto, seu pensamento inspirou
os historiadores cristãos posteriores,
como o Venerável Beda (falecido em
735), que escreveu a Vida de
Cuthbert e História da Igreja
e do povo ingleses, considerada
a primeira história da Inglaterra
e que foi copiada e ilustrada
em uma bela edição poucas décadas
depois de sua morte.

Embora mais antigo que o


cristinianismo, a tradição da
biografia recebeu um novo impulso
devido ao interesse pela vida de
Jesus e, por conseguinte, pela vida
dos santos, como, por exemplo, a
Vida de Cuthbert, do Venerável
Beda (página ao lado). Quando da
morte de Cuthbert, "a ida de sua
santa alma para o Senhor" foi
imediatamente notificada aos
irmãos monásticos de Beda, em
Lindisfarne, e depois - por
meio de obras como o manuscrito
ilustrado do século XII da
Vida - às gerações posteriores.

Do princípio ao fim, trata-se de um esforço para apresentar a vida de Antônio como "a
obra do Salvador em Antônio" . Uma biografia medieval como A vida de Cuthbert, do
historiador inglês Beda, é um exemplo notável da tradição estabelecida por A vida de
Antônio. A vida de Jesus nos Evangelhos foi um ponto decisivo tanto para a vida de
Cuthbert (a que ele viveu) quanto para A vida de Cuthbert (a que Beda escreveu).
Por fim, o próprio calendário da Europa, que depois se tornou o de grande parte do
mundo moderno, resultou do reconhecimento da figura de Jesus como a Virada da His­
tória: tanto como processo quanto como narrativa. Os historiadores cristãos, de Lucas a
A afirmação cristã da soberania
de Cristo sobre o tempo e o espaço
transformou os calendários e
mapas à medida que os cristãos
começaram não só a contar os anos
da história humana a partir de sua
encarnação - anos "antes
de Cristo" (a.C.) e "depois de
Cristo" (d.C.) - como também a
visualizar os continentes e as
nações com base em sua
adesão a ele, não na posição
geográfica que realmente
ocupavam. Assim, neste mapa
medieval, as nações da cristandade
ocidental estão mais próximas
da Cidade Sagrada de Jerusalém
que o Egito!
A Virada da História + 35

Eusébio e aos posteriores, conservaram o sistema romano de datar os fatos pelo reinado
dos imperadores. As datas dos reinados imperiais, por sua vez, eram citadas de acordo
com uma cronologia que se reportava à data lendária da fundação de Roma por Rômulo
e Remo, ou seja, A . u.c. - Ab Urbe Condita. As perseguições à Igreja durante o reinado do
imperador Diocleciano levaram alguns cristãos a datar seus calendários a partir da Era
dos Mártires. Em um sistema de datação ainda conservado pelos cristãos captas e da
Etiópia, o Índex das cartas festivas de Atanásio, do século IV, é organizado segundo o
calendário egípcio de meses e dias, em cada ano, mas identifica o ano da primeira Carta
festiva como "o quarto da Era Diocleciana", ou seja, 327 d.C..
No século VI, porém, Dionísio Exíguo, um monge cítico que morava em Roma,
propôs um novo sistema baseado não no mito pagão da fundação de Roma por Rômulo
e Remo, nem na perseguição diocleciana, mas na encarnação de Jesus Cristo, especi­
ficamente no dia da anunciação de seu nascimento à Virgem Maria pelo anjo Gabriel, 25
de março de 753 A . u.c. Dionísio Exíguo cometeu um erro de cálculo de quatro a sete
anos, produzindo a incorreção segundo a qual Jesus teria nascido no ano 4 a.C. Filigra­
nas à parte, a identificação de Dionísio da "era cristã" foi se estabelecendo gradual­
mente, ainda que o processo tenha durádo muitos séculos, e é hoje universal. Por essa
razão, as datas históricas e biográficas vêm acompanhadas de a.C. ou d.C., de acordo
com os "anos de Nosso Senhor" . Mesmo as biografias de seus inimigos tiveram de ser
escritas assim, de modo que dizemos que Nero morreu em 68 d .C. e Stalin, em 1953 d.C.
Nesse sentido - e não só nesse -, somos todos compelidos a reconhecer que, por causa
de Jesus de Nazaré, a história nunca mais será a mesma.
Eis que retorna a virgem . . .
Uma nova raça huma na a descer das alturas d o céu . . .
O nascimen to d e u ma criança, com a qual a idade d e ferro da humanidade
chega ao fim e u ma idade de ouro se inicia . . .
Sob a tua orien tação, por mais q u e restem vestígios d e nossa a ntiga podridão,
Uma vez livre dela, a terra estará liberta de seu medo incessan te . . .
Por ti, ó menino, a terra, sem ser arada,
Há de dar frutos infin itos . . .
O teu mesmo berço h á d e derramar por t i
Ternas flores . Também a serpente h á d e morrer. . .
Aceita a s tuas grandes hon ras, pois e m breve será chegado o tempo,
Doce filho dos deuses, grande herdeiro de Júpiter!
Vê como ele se abala - o poder abobadado do m undo.
A Terra e o vasto oceano e as profundezas do céu .
Tudo, vê, tomado de alegria pela era que nasce!

- Virgílio,
Quarta Écloga

3 + A Luz dos Gentios

"Nada é tão incrível", observou o teólogo americano Reinhold Niebuhr,


"quanto responder a uma pergunta não formulada". E prosseguindo, com
base nesse epigrama, dividiu as culturas humanas entre "as que esperam um
Cristo" e as "que não esperam um Cristo" . Mas os seguidores de Cristo leva­
ram adiante sua missão na suposição cada vez mais firme de que não existiam
culturas "que não esperam um Cristo", e, assim, em sua pessoa e em sua dou­
trina, em sua vida e em sua morte, Jesus representava a divina realização de
uma aspiração universal, a qual Inácio de Antioquia, no século 1 d .C., classi­
ficou como "a razão para esperar que [toda a humanidade] possa converter-se
e encontrar o caminho de Deus", por meio de Jesus Cristo, "o nosso nome co­
mum e a nossa esperança comum" .
38 + A Luz dos Gentios

Dirigindo-se ao mundo gentio, os pensadores cristãos procuravam descobrir na cultu­


ra greco-romana as perguntas para as quais o nome de Jesus Cristo era a resposta; como
se profetizara em sua infância, ele era "tua salvação, que preparaste em face de todos os
povos, luz para iluminar as nações, e glória de teu povo, Israel" (Lc 2:30-32). Por analogia
com as técnicas de interpretação da Bíblia hebraica para retratar Jesus como a glória do
povo de Israel, surgiram vários métodos de interpretá-lo também como a luz da revelação
aos gentios: as profecias não-judaicas de um Cristo; as antecipações gentias da doutrina
sobre Jesus; e os presságios pagãos ou "protótipos" de redenção obtidos por sua morte.
A esperança e a profecia messiânicas não eram propriedade exclusiva de Israel.
"Mesmo em outras nações", disse Agostinho, "houve aqueles a quem o seu mistério foi
revelado e que se sentiram compelidos a proclamá-lo" . Jó, Jetro - o sogro de Moisés - e
Balaão, o profeta, são três exemplos de "santos gentios" de que falava a Bíblia hebraica e
sobre cuja existência os rabinos e os patriarcas da Igreja eram obrigados a chegar a um
acordo. Munidos de semelhante sanção bíblica, os apologistas cristãos encontraram na
literatura pagã outra evidência de profecia messiânica sobre Jesus.
. A mais dramática e conhecida era a profecia de uma "nova ordem das eras", pre­
sente na Quarta Écloga do poeta romano Virgílio (que morreu em 19 a.C.), de onde se
extraiu a epígrafe deste capítulo. Essas palavras - que verti do latim para uma tradução
mais neutra, ou seja, o menos bíblica possível - pareciam ecoar diversos tons bíblicos.
Antecipavam "um novo céu e uma nova terra" (Is 66:22); previam uma nova raça
humana, cuja cidadania seria do céu, não da terra (Fl 3:20); vaticinavam a abolição da
praga hereditária da podridão que acompanhava a natureza humana neste mundo
corrompido (Is 53:5); prenunciavam até mesmo o esmagamento da serpente tal qual
prometia a consolação oferecida a Adão e Eva no Jardim do Éden (Gn 3:15) - tudo por
obra da vinda da Virgem milagrosa e do nascimento do Filho divino (Is 7: 14, 9:6). A
Quarta Écloga foi proclamada como uma profecia de Jesus pelo imperador Constantino na
Oração aos Santos de Sexta-feira Santa, talvez em 313. Embora Jerônimo não se mostrasse
disposto a aceitar a interpretação messiânica de Virgílio, Agostinho concordou com
Constantino que "é de [Cristo] que este famosíssimo poeta fala". A música da Missa de
são Paulo, cantada em Mântua até o fim da Idade Média, continha a lenda segundo a
qual o apóstolo visitara o túmulo de Virgílio, em Nápoles, e lá havia chorado por não ter
chegado a tempo de encontrá-lo vivo. Contudo, a aplicação mais inesquecível da Quarta
Écloga ao advento de Jesus acha-se no Purgatório de Dante, que cita os versos de Virgílio
em tradução italiana e acrescenta a seguinte saudação ao poeta: "Através de ti eu me
tomei poeta, através de ti fiz-me cristão" .
A posição da Quarta Écloga como profecia sobre Jesus fortaleceu-se com a referência
de Virgílio à autoridade da profetiza greco-romana Cuma, a Sibila de Cl!mas; Virgílio a
mencionou também na Eneida, a cantar "assustadores enigmas" . Há numerosas cole­
ções de visões e máximas dos diversos oráculos sibilinos, sendo que um dos mais im­
portantes foi destruído em um incêndio no Capitólio de Roma em 83 a.C. Nos séculos
A Luz dos Gentios + 39

Virgz1io foi o poeta da Antigüidade


clássica favorito na Idade Média
ocidental. Essa preferência se
reforçava pela crença de que, na
Quarta Écloga, sob a influência do
Antigo Testamento (Is 7:14, 9:6),
ele profetizara o nascimento de
Cristo. Por essa razão, Dante, em
A divina comédia, fez de Virgíl.io
o guia em sua peregrinação
às regiões subterrâneas. A gravura
de William Blake mostra o poeta
romano chamando com um
gesto o florentino.

seguintes, isso ofereceu uma oportunidade irresistível a vários grupos - pagãos, judeus
e cristãos - de manipular a nova coleção de oráculos, tendo sido neles interpolados li­
vros inteiros de provérbios cristãos (ou cristianizados). Os seguidores de Cristo citavam
os oráculos sibilinos, ainda que numa versão consideravelmente alterada, apresentando­
os como livros proféticos dotados de uma autoridade inspirada pelo Espírito Santo, os
quais mereciam igualar-se com a autoridade da própria Bíblia hebraica. A_ sibila era "ao
mesmo tempo profética e poética" . Na Oração aos Santos, Constantino também apelava
para a sibila, encontrando nela um poema cujas primeiras letras diziam "Jesus Cristo,
Filho de Deus, Salvador, cruz", que, por sua vez, eram um acróstico de ichthys, a palavra
grega para peixe, um símbolo de Cristo: tudo previsto, supunha-se, por uma profetiza
romana pagã (na verdade, por algum falsificador cristão anônimo).
40 + A Luz dos Gentios

A tradição sibilina era também especificamente útil como fonte de verificação do


retorno de Cristo para o juízo do fim do mundo. Pois, já na forma pagã inalterada, os
dizeres da sibila aparentemente continham ameaças e advertências sobre uma punição
divina iminente. Em mãos judias e, depois, especialmente em mãos cristãs, essas
ameaças acabaram se tornando mais extensivas e explícitas. Os apologistas do credo
cristão citavam a profecia sibilina segundo a qual tudo quanto fosse mutável e
corruptível seria destruído por Deus no Juízo Final e, desta maneira, a mencionavam
como prova de que Deus era a fonte das fomes, das pragas e de todos os demais
aterradores castigos. Como profecia do segundo advento de Cristo para julgar os vivos e
os mortos, os oráculos da sibila foram muito bem acolhidos na teologia e no folclore
A Luz dos Gentios + 41

medievais, assim como na arte, principalmente naquela praticada na Itália durante o fim O paralelismo entre os profetas
gentios e os hebreus que previram o
da Idade Média e do Renascimento. nascimento e a morte de Jesus
A cristianização da sibila alcançou sua máxima expressão artística nas paredes Cristo foi parte essencial do grande
direita e esquerda da Capela Sistina, onde os afrescos de Michelangelo descreviam cinco projeto de Michelangelo para a
Capela Sistina, que compreendia
sibilas e cinco profetas do Antigo Testamento em figuras alternadas. Tanto pelas dime!l­ toda a extensão da história humana,
sões quanto pela localização que lhes conferiu, pode-se inferir que o artista concordava da criação ao Juízo Final. Entre os
profetas gentios do advento de
substancialmente com a tradição que colocava a Sibila Délfica e o profeta Isaías na po­ Cristo, a profetiza Cuma, a Sibila
sição de testemunhas que previram o primeiro e o segundo adventos de Cristo. E, como de Cumas (página ao lado, à
esquerda), ocupava lugar de honra
vaticínio de Cristo, os dizeres da sibila ficaram permanentemente conservados e santi­
por haver inspirado Virgaio, o
ficados nas palavras do "Dies irae" cantadas em incontáveis missas de réquiem: autor da Quarta Écloga. Entre os
hebreus, o que tinha conexão mais
direta com Jesus era Isaías (ao lado,
No dia da ira, esse dia terrível à direita), que havendo profetizado
O mundo todo há de jazer em cinzas seu nascimento de uma virgem
(Is 7:14), anunciou-o nas
Como dizem Davi e a Sibila. conhecidas palavras "Porque um
menino nos nasceu " (Is 9:6) e
Um segundo método de retratar Jesus como a Luz dos Gentios consistia em buscar descreveu o martírio de Cristo, que
"foi trespassado por causa das
antecipações pagãs das doutrinas cristãs · sobre ele. A formulação mais completa desse nossas transgressões, esmagado em
método provém do teólogo cristão grego Clemente de Alexandria. Embora profundo virtude das nossas iniqüidades"
(Is 53:5).
conhecedor da literatura clássica grega, Clemente se considerava um discípulo fiel de
Jesus, o Preceptor divino que ele descreveu como "Deus em forma de homem, Na cena do livro 12 da Odisséia de
Homero - aqui representada num
imaculado, ministro da vontade do Pai, a Palavra [Logos] que é Deus, que está no Pai,
vaso encontrado em Vulci -,
que se acha à direita do Pai, e com a forma de Deus é Deus" . Contudo, o autor dessa Odisseu manda seus companheiros
atarem-no ao mastro a fim
de vencer as forças malignas das
sereias. Segundo Clemente de
Alexandria, tal evento antecipou
a cruz na qual foi pregado Jesus, o
Logos de Deus, "que será o teu
piloto e o Espírito Santo
te dará a âncora no porto do céu",
vencendo as forças malignas
do demônio.
42 + A Luz dos Gentios

Presos como estavam à tradição confissão ortodoxa era, ao mesmo tempo e sem ver nisso a menor contradição, um
clássica, os cristãos de língua grega
vincularam Jesus Cristo, o Mestre
defensor da filosofia platônica, à qual atribuía uma elevada e santa missão. "Talvez", ele
divino que viveu e morreu em gostava de sugerir, "a filosofia tenha sido dada aos gregos [por Deus] direta e
Jerusalém, ao maior dos mestres primordialmente", embora não permanentemente, "até que Deus chamasse os gregos" .
humanos, Sócrates, que viveu e
morreu em Atenas. Ambos Paulo tinha dito (Gl 3:24) que a lei de Moisés era uma espécie de preceptor ou "pedagogo
trouxeram uma mensagem que até Cristo" . Quase do mesmo modo, sustentava Clemente, a filosofia era "um tutor des­
era divina em sua origem e
autoridade. E ambos foram mortos tinado a conduzir a mente grega a Cristo" . "A verdadeira filosofia", como a haviam des­
pelos que se sentiam ameaçados coberto os gregos, levaria à "verdadeira teologia", tal qual a revelara Cristo.
por essa mensagem.
Uma terceira técnica de caracterização de Jesus como a Luz dos Gentios, não menos
que como a glória do povo de Israel, consistia em procurar na história e na literatura
clássica pessoas e fatos que pudessem ser interpretados como "protótipos" e prefi­
gurações de Jesus e da redenção por intermédio dele. "Um protótipo", conforme a defi­
nição do teólogo alexandrino Orígenes (discípulo de Clemente), "é uma figura que veio
antes de nós, nos patriarcas [do · Antigo Testamento], mas que em nós se realiza" . Por
exemplo, quando Josué conquista Jericó, esse feito do primeiro Josué, filho de Nun,
prefigura a redenção realizada pelo segundo Josué, Jesus, filho de Maria, pois em
A Luz dos Gentios + 43

aramaico e em grego os dois nomes são o mesmo. Assim "Como Moisés levantou a Já no século II, Jesus tornou-se a
realização não só da profecia
serpente [de bronze] no deserto, assim é necessário que seja levantado o Filho do Homem
hebraica como também da "filosofia
[na cruz], a fim de que todo aquele que crer tenha nele a vida eterna" (Jo 3:14-15). que foi dada aos gregos",
Em sua apresentação dos argumentos em favor da mensagem de Jesus a um rabino antecipando Cristo. Passando pela
Idade Média e pelos tempos
chamado Trifo, o apologista Justino Mártir, do século II, afirmou que todo e qualquer modernos, a adaptação mais
tronco ou árvore que aparecesse no Antigo Testamento poderia ser um protótipo ou uma popular da filosofia ao pensamento
cristão e deste à filosofia (traduzida
imagem da cruz. Contudo, ao tentar apresentar seus argumentos ao imperador romano para o inglês por Chaucer e, depois,
Antonino Pio, preferiu recorrer a fontes e exemplos não-judeus para afirmar a cruz como pela rainha Elisabeth I) foi a obra
A consolação da filosofia, uma
"o maior símbolo do poder e da lei" de Jesus. No Timeu, invocando o que Iris Murdoch
visão de Boécio da Senhora
considerou "as imagens mais memoráveis da filosofia européia", Platão ensinava que, Filosofia, "a coroa daquele cuja
na criação do universo, o Demiurgo "partira [a matéria do espírito] em duas metades e cabeça toca os céus" (ao lado,
à direita). Curiosamente,
[fizera] com que uma cruzasse a outra pelo centro na forma da letra chi ". Repetindo a porém, a obra não menciona
afirmação-padrão dos apologistas judeus e cristãos, de que Platão se abeberara na Bíblia o nome de Cristo.
hebraica, Justino insistiu em que este, não tendo compreendido Moisés "e sem perceber
que se tratava da figura da cruz" dissera, no entanto, que o Logos, "o poder próximo do
primeiro Deus, estava disposto em forma de cruz no universo" .
Entre os exemplos do catálogo de Justino, um dos mais intrigantes é o símbolo da
cruz como mastro. Na fonte primeira da literatura clássica, havia um "protótipo" da cruz=
que correspondia à vara com que Moisés levantara a serpente de bronze: a história de
Odisseu amarrado ao mastro na Odisséia. Ele diz aos companheiros: "Deveis atar-me
com laços fortes para que eu fique em posição ereta junto ao mastro". Clemente de
Alexandria fez o uso mais efetivo e profundo dessa imagem como uma prefiguração de
Jesus: "Atado à madeira [da cruz], ficarás liberto da destruição. O Logos de Deus será o
teu piloto e o Espírito Santo te dará a âncora no porto do céu" . Muitos comentadores
bizantinos de Homero se valeram dessa imagem e, assim, contribuíram para proteger
os clássicos antigos do excessivo zelo da intolerância religiosa.
Usando a Bíblia hebraica e a tradição judaica para explicar o significado de Jesus, os
cristãos aplicaram os três métodos em sua interpretação de Moisés. Quando endereça­
_
vam a mensagem de Jesus aos gentios, Sócrates adquiria uma função semelhante à de
Moisés. Ele mesmo era um precursor de Cristo. O Logos divino, destinado a aparecer em
Jesus, tinha sido ativo em Sócrates, que denunciou o politeísmo e a adoração dos gregos
ao diabo. Como pessoa que "viveu razoavelmente, isto é, de acordo com o Logos", ele era
"um cristão antes de Cristo" e, como Cristo, foi morto pelos inimigos da razão e do Logos.
Sócrates havia igualmente antecipado a doutrina cristã da vida eterna. Ainda que o Novo
Testamento asseverasse que Jesus "destruiu a morte, mas também fez brilhar a vida e a
imortalidade pelo Evangelho" (2 Tm. 1 :10), a maior parte dos primeiros pensadores
cristãos não considerava que isso significasse não ter havido nenhuma consciência da
imortalidade antes dele. Pelo contrário, ao falar do Juízo Final, citando o Livro dos
Salmos juntamente com A República de Platão, Clemente pôde concluir: "Disso se segue
que a alma é imortal", uma doutrina sobre a qual a Escritura e a filosofia concordavam.
Em nenhuma parte a designação Mas Sócrates e Platão também podiam servir até mesmo de fonte da profecia da
de Jesus Cristo como Luz dos morte de Jesus na cruz. Ao listar várias profecias pagãs sobre a criação, o Sabbath e ou­
Gentios e satisfação de suas
tros temas bíblicos, Clemente encontrou uma na República, onde, dizia ele: "Platão pre­
necessidades e aspirações foi mais
fortemente dramatizada do que no diz toda a história da salvação" . Glauco, o interlocutor de Sócrates, estabelece uma dis­
sermão de Paulo no Areópago tinção entre justiça e injustiça, postulando que, em vez de ser, ao mesmo tempo, justo e
("Monte de Marte"), em Atenas.
"O que adorais sem conhecer, isto injusto como muitos de nós na maior parte do tempo, surgiria um homem inteiramente
venho eu anunciar-vos", declarou injusto e outro completamente justo. Pergunta, então, o que aconteceria se este fosse
(At 17:23). Como mostra a aquarela
de Rafael, de 1516, muitos acusado de ser o pior dos homens e, apesar disso, "manter-se firme até a hora da morte,
atenienses ficaram fascinados, parecendo ser injusto, apesar de não ser" . A resposta não há de ser outra (na tradução
outros reagiram com indiferença.
de Gilbert Murray) senão esta: "Ele será açoitado, torturado, amarrado, terá os olhos
A Luz dos Gentios + 45

queimados e, por fim, depois de sofrer todos os males, será empalado ou crucificado" .
Do mesmo modo que Paulo, o discípulo de Jesus Cristo, falara aos gregos sobre "o
Deus Desconhecido", os sucessores de Paulo continuaram falando aos gregos e a todos
os gentios sobre "o Jesus Desconhecido" : "ora bem, o que adorais sem conhecer, isto
venho eu anunciar-vos" (At 1 7:23).
Vós conquistastes, ó pálido galileu;
o m undo tornou-se cinzento com o vosso sopro.

- Algernon C harles Swinburne,


"Hino a Prosérpina"

4 + O Rei dos Reis

Mesmo antes do nascimento de Jesus, informam-nos os Evangelhos, o anjo


disse a sua mãe: "o Senhor Deus lhe dará o trono de Davi, seu pai; ele �einará
na casa de Jacó para sempre, e o seu reinado não terá fim" (Lc 1 :32-33). Após o
seu nascimento, vieram três magos do oriente, perguntando: "Onde está o re­
cém-nascido rei dos judeus?" (Mt 2:2). A entrada em Jerusalém no Domingo
de Ramos lembrou a seus seguidores as palavras do profeta: "eis que o teu rei
vem a ti, manso e montando um jumento" (Mt 21 :5). A cruz na qual ele mor­
reu tinha uma inscrição em três línguas: "Jesus Nazareu, o rei dos judeus" (Jo
19:19). O último livro do Novo Testamento, empregando um termo que tam­
bém fora reivindicado por monarcas terrenos, aclamava-o "Senhor dos senho­
res e Rei dos reis" (Ap 1 7: 14) .
O Rei dos �eis + 49

No entanto, Pôncio Pilatos perguntou-lhe: "Então, tu és rei?" (Jo 1 8:37). Só pelas dimensões, o enorme
painel Cristo perante Pilatos, de
A indagação de Pilatos foi respondida de muitas maneiras, pois o título "Rei" não Jacopo Tintoretto, de 1566-67,
ficou na cruz; deslocou-se para entrar no mundo das nações e dos impérios. E a própria com 390 cm de largura e 540 cm
cruz se deslocou para decorar as coroas, as bandeiras e os edifícios públicos dos im­ de altura, deixa claro que
a pergunta do governador da Judéia
périos e das nações - assim como os túmulos dos que morreram em suas guerras. Como - "Então, tu és rei? " - opunha
disse Agostinho: "A mesma cruz na qual dele escarneceram, ele imprimiu na cabeça dos a evidente grandeza de César
e de Roma à grandeza oculta do
reis" . A entronização de Jesus como Rei dos reis transformou a vida política de grande Prisioneiro, sobre o qual, como Ele
parte da humanidade. Como veremos reiteradamente nos últimos capítulos, muito do disse, Roma e Pilatos não teriam
"poder algum se não fosse dado do
"direito divino dos reis" e da teoria da "guerra santa" apoiava-se na pressuposição de
alto"(Jo 19:11), pelo Rei do céu.
que Jesus Cristo era Rei;. o mesmo se pode dizer da posterior rejeição tanto da guerra Uma afirmação que Pilatos e seu
quanto do direito divino dos monarcas. Acompanhar as variantes e permutações imperador, Tibério César, foram
incapazes de compreender e muito
históricas da realeza de Jesus em sua interação com outros temas e símbolos políticos é menos de interpretar.
entender boa parte do que é nobre e boa parte do que é demoníaco na história política
"Sê forte e mostra-te homem". Essa
do Ocidente: até a suástica nazista, embora mais antiga que o cristianismo em sua foi a admoestação que Policarpo de
forma, foi usada corno paródia obscena da cruz de Cristo, como evidencia seu próprio Esmirna (acima) ouviu de uma voz,
nome em alemão, Hakenkreuz, "a cruz em gancho" . vinda do céu, antes de ser
condenado à morte por se recusar a
Por vezes, a imagem de Jesus corno Rei dos reis veio acompanhada da expectativa dizer "César é Senhor" [Kyrios
de que ele estivesse prestes a estabelecer seu reino aqui na terra, no qual os santos com Kaisar] e a oferecer incenso ao
imperador. "Há 86 anos, eu sou
ele governariam durante mil anos. Substanciando essa esperança milenar no advento do servo [de Jesus Cristo], e Ele
reino, o escritor do Apocalipse ouviu vozes vindas do céu que clamavam: "A realeza do nunca me fez mal", respondeu.
"Como hei de blasfemar contra
mundo passou agora para nosso Senhor e seu Cristo, e ele reinará pefos séculos dos
meu rei que me salvou ? "
séculos" (Ap 11 :15). Entretanto, mesmo no segundo século essa expectativa lite�al de um
reino de Cristo não era de modo algum universal entre os cristãos. Tanto a interpretação
literal quanto a alegórica do reii;o de Cristo podiam ter respondido a interrogação de
Pilatos dizendo, com Justino Mártir, que "Cristo é verdadeiramente o Rei eterno" . Vinda
corno veio do representante de Tibério César, nos séculos subseqüentes a pergunta res-
50 + O Rei dos Reis

De acordo com a doutrina cristã, soaria muitas e muitas vezes na boca dos representantes de outros césares. Um deles
todo governante legítimo, mesmo
um imperador pagão, ocupava
quis saber do mártir cristão primitivo Policarpo de Esmirna: "Que mal há em dizer
o trono na qualidade de 'César é Senhor' [Kyrios Kaisar], em lhe oferecer incenso e, assim, salvar a tua vida?" .
representante do Deus verdadeiro. Respondeu Policarpo, que seria queimado vivo por sua fé: "Há oitenta e seis anos eu
As palavras do Novo Testamento
"Não há autoridade que sou servo [de Jesus Cristo] e ele nunca me fez mal. Como hei de blasfemar meu Rei que
não venha de Deus, e as que me salvou?" .
existem foram estabelecidas por
Deus" (Rm 13:1) foram escritas no Não obstante, ao lado dessas juras de lealdade a Jesus como o Rei celestial superior a
tempo de Nero, que perseguiu os todos os monarcas terrenos, ouviam-se as reiteradas garantias dos apologistas de que
cristãos. No entanto, quando
isso não tornava os seguidores de Jesus desleais aos governantes seculares. "Quando
o imperador Constantino se
converteu ao cristianismo, no ouvis que buscamos um reino", disseram ao próprio imperador de Roma, "supondes,
século IV, tal sanção divina sem qualquer outra inquirição, que estamos falando de um reino humano" . Na verdade,
adquiriu um novo significado,
como nesta medalha em que o insistiam, não se referiam a nenhum reino político, mas a um reino "que está com
imperador, representado em Deus" . Citavam como prova de lealdade as orações "pela segurança de nossos
dimensões exageradas,
recebe a coroa diretamente
príncipes" proferidas nos cultos cristãos "ao Deus eterno, verdadeiro e vivo, cujo favor,
da mão de Deus. acima de todos os outros, eles mesmos devem desejar [ . . ] Nós oramos pela segurança
.

do império, pela proteção da casa imperial" . O que eles se recusavam a fazer era tratar o
O Rei dos Reis + 51

imperador como divino, dizer "Kyrios Kaisar" e jurar por seu "gênio" . Os reinos dessa Embora só tenha sido batizado no
leito de morte e, portanto, não
época tinham sido estabelecidos por Deus, não pelo diabo, como sustentavam alguns
pudesse participar plenamente da
hereges, portanto eram dignos de obediência a Deus, mas de obediência sem idolatria: vida sacramental da Igreja,
"Devolvei, pois, o que é de César a César, e o que é de Deus, a Deus" (Mt 22:21) . No Constantino caracterizou a si
mesmo como "bispo aparente" e foi
entanto, como Jesus era Rei de todos os reis e Senhor de todos os senhores, não apenas até considerado "um igual
um entre vários senhores, nada havia que se devesse a César que não se devesse dos apóstolos". No exercício de tais
prerrogativas, ele .não só convocou
também, e em primeiro lugar, a Deus. o primeiro condlio ecumênico
Os cristãos não encaravam Jesus como líder de uma revolução política "de baixo", da Igreja em 325, em Nicéia, perto
que significaria o fim do império e sua substituição por outro sistema político. Todavia, de Constantinopla (representado
no afresco de Cesare Nebbia), como
apesar da sinceridade de seus protestos de que oravam pelo adiamento do fim do interferiu pessoalmente em suas
mundo e pela salvação do império, todos eles aguardavam o segundo advento de deliberações doutrinárias.
Cristo, que traria "de cima" o fim do mundo e, por conseguinte, do império. A
continuação do Império Romano era o derradeiro obstáculo ao fim, pois quando caísse
Roma, cairia o mundo . Um cristão dos primeiros tempos sintetizou essa posição
complexa com uma eloqüência simples:

Vós pensais que [Jesus] foi enviado [por Deus], como se pode supor, a fim de
estabelecer algum tipo de soberania política [tyrannís], a fim de inspirar medo e
terror? Não é assim. Mas, com bondade e mansidão, Ele o enviou tal qual um rei
enviaria um filho que também fosse rei. Enviou-o como [Deus] enviando um Deus
[ . . . ] . E Ele o reverá no juízo, e quem há de suportar a sua presença? [ . . . ] [Assim], os
cristãos não se distinguem do resto da humanidade nem pela moradia, nem pela
fala, nem pelos costumes. Porque não moram em cidades unicamente suas, nem
falam uma língua diferente, nem praticam um estilo de vida extraordinário [ . . . ] .
Porém, embora morem em cidades d e gregos e d e bárbaros segundo a sorte d e cada
52 + O Rei dos Reis

Jesus-foi condenado à morte pela lei um, [ . . . ] a constituição de sua cidadania é deveras admirável e, sem dúvida, para­
romana - discute-se ainda se legal doxal. Eles moram em seus próprios países, mas como forasteiros [ ... ]. Toda terra
ou ilegalmente. No entanto, acabou
tornando-se uma força estrangeira é uma pátria para eles, e toda pátria é uma terra estrangeira.
importantíssima na história do
direito romano através da legislação
dos imperadores cristãos, a começar Eis um dos motivos da curiosa circunstância que levou alguns dos "melhores" im­
por Constantino I, passando pela peradores, tanto moral quanto politicamente, como Marco Aurélio e Diocleciano -
reunião dessa legislação no Código
empora também alguns dos piores, como Nero -, a desencadear as mais terríveis per­
TeodosianQ de 438 eJ enfim,
mediante a codificação de todo o seguições aos cristãos. Porque Jesus era Rei, os cristãos podiam ser provisoriamente leais
direito romano pelo imperador ao césar; mas, pela mesmíssima razão, não podiam dar a medida de lealdade que o
Justiniano, em 529.
melhor césar exigia para que o Império Romano fosse, como disse Virgílio, "o império
que nunca terá fim" .
Uma possibilidade que eles mesmos não chegaram a imaginar era a de que o próprio
César viesse a reconhecer Cristo como o Rei dos reis. "Também os césares teriam acre­
ditado em Cristo", afirmou Tertuliano, o convertido norte-africano, "se os cristãos pu­
dessem ter sido césares", embora essa fosse uma contradição em termos. Tal contra­
dição, porém, tornou-se uma realidade política já no século IV, quando o imperador
Constantino se converteu ao cristianismo, declarando lealdade a Jesus Cristo e adotando
a cruz como emblema oficial diante de uma batalha decisiva. Nas mãos de Eusébio, o
primeiro l}istoriador da Igreja e biógrafo de Constantino, a conversão deste, assim como
sua vitória militar, tornou-se uma florescente teologia da história e uma apologia da
idéia de um Império Romano cristão. "O Deus de todos, o Governador Supremo do uni-
O Rei dos Reis + 53

verso, apontou por sua própria vontade Constantino [ . . . ] para ser príncipe e soberano", Exaltada por Gregório de
Nazianzus como "a cidade que
assim inicia Eusébio o seu relato. Muitos anos depois, o imperador, sob juramento,
muito amava a Cristo" e como
relatou ao historiador: em 27 de outubro de 312, quando estava rezando, "viu com seus "o olho do universo em seu
próprios olhos o troféu de uma cruz luminosa no céu acima do sol, com a inscrição excessivo poder em terra e mar [ ]
.. . ,

vínculo entre as praias orientais e


'Vencei por ela!"' . Ademais, dizia-se que todo o exército que o acompanhava tes­ ocidentais, nas quais as
temunhou a aparição celestial e "foi tomado de assombro" . Após a vitória, o imperador extremidades do mundo se
encontram", durante onze séculos
ordenou que "um troféu da paixão do Senhor, [ . ] o sinal da cruz do Senhor", fosse
. .
(330-1�3), Constantinopla, a
colocado na mão de sua própria estátua, que devia ser erigida em Roma, acompanhada Nova Roma, honrou Jesus, o Rei
dos reis, que também
da inscrição: "Por este sinal do Salvador, o verdadeiro teste de bravura, eu salvei e
governava o reino dos césares.
libertei a vossa cidade do jugo do tirano e restaurei o senado e o povo romanos,
libertei-os para a sua antiga fama e para o seu esplendor" . Roma estava agora sob a
proteção de Cristo.
"Num ato de agradecimento ao seu Salvador pelas vitórias que havia obtido sobre
todos os inimigos", Constantino convocou em 325 o primeiro concílio ecumênico da
Igreja, em Nicéia, chamada Nike (Vitória), com o propósito de restaurar a concórdia entre
a Igreja e o império. O Concílio de Nicéia declarou que Jesus, sendo o Filho de Deus, foi
engendrado, não criado, em um único ser [homoousios] com o Pai" . Segundo Eusébio,
Com a transferência da capital essa fórmula dogmática resultou de uma intervenção do próprio Constantino (muito
do império de Roma para embora ele não tivesse sido batizado e só viesse a sê-lo pouco antes de morrer, em 337),
Constantinopla, a Nova Roma,
muitas das prerrogativas do quando "o nosso imperador, amado de Deus, começou a refletir sobre a origem divina
imperador - até mesmo, após [de Cristo] e sobre Sua existência anterior a todas as eras: Ele estava virtualmente no Pai,
alguma hesitação, seu título de
Pontífice Máximo - passaram para sem geração, mesmo antes de ser finalmente engendrado, tendo o Pai sempre sido o Pai,
o papa, o bispo de Roma, o vigário assim como [o Filho] sempre foi um Rei e um Salvador" .
do Rei dos reis. Por conseguinte,
Uma vez aceitas pelo Concílio de Nicéia, essas fórmulas passaram a ser a lei não só
quando os hunos da Ásia Central
ameaçaram atacar Roma em 452 - da Igreja como também do império. Somente os que se submetessem à "disciplina
como o retratado na pintura apostólica", como a chamava o Código Teodosiano da lei romana, teria o direito de ocupar
A expulsão de Átila, de Rafael, e
na ópera Átila, de Giuseppe Verdi cargo público no império cristão. Como resultado dos eventos do século IV, nos mais de
-, foi o papa Leão I quem salvou a míl anos seguintes tornou-se necessário aceitar Cristo como o Rei eterno se quisesse ser
cidade dos invasores, indo ao
seu encontro em Mântua
um re( temporal. Durante seu breve reinado de 361 a 363, o esforço do imperador
e convencendo-os a recuar. Juliano (a quem os cristãos deram o epíteto de "o Apóstata") para reintroduzir um paga­
nismo reformado culminou com a sua morte em combate. A lenda cristã hostil descre­
via-o gritando ao tombar: "Enfim vencestes, ó galileu" . Esse grito, embutido nos versos
O Rei dos Reis + 55

A Europa do começo da Idade


Média, assim como a própria Roma,
era teoricamente uma província do
império "romano", governada por
Constantinopla mediante um
delegado ou "exarca" na cidade
italiana de Ravena. A chegada dos
povos germânicos tornou o
exercício dessa autoridade teórica
ainda mais precário do que já era, e
o futuro político ficou à disposição
da tribo germânica que conseguisse
aliar-se à Antiga Roma na pessoa
do papa. No Natal de 800, Karl, o
rei dos francos (mais conhecido por
Carlos Magno), a figura central
entre as estátuas de sua tumba em
Aachen, foi coroado imperador
romano pelo representante de
Cristo, o papa Leão III, que também
aparece no monumento fú.nebre.

de Algernon Charles Swinbµrne, que formam a epígrafe deste capítulo, pode não ser
histórico, mas o foi a vitória de Cristo Rei.
Não obstante, tal vitória em si não pôs em questão a soberania política, pois era
possível traçar os limites da conexão entre o reino eterno do "pálido galileu" e a
-.

temporalidade dos governantes terrenos em vários aspectos distintos. Teoricamente, foi


o que Constantino parece ter feito. Ao se dirigir aos bispos e ao clero, sua linguagem era
deferente, mas, por trás da deferência, estava a mão firme de quem sabia perfeitamente
onde residia o verdadeiro poder. Deus, o Pai e Rei do universo, conferira a Jesus "Toda a
autoridade sobre o céu e sobre a terra" (Mt 28: 1 8). Tal autoridade era transmitida dire­
tamente ao imperador, a começar por Constantino, pois Cristo Rei escolhera exercer sua
56 + O Rei dos Reis

Na inscrição que mandou colocar soberania sobre o mundo por intermédio do imperador, a quem aparecera em visões.
na cruz, em três línguas, Pôncio
Este era "coroado por Deus", sem mediação, mesmo que o patriarca de Constantinopla
Pilatos chamou Jesus ironicamente
de "rei". Desejando provar executasse o ritual de coroação. Todavia, o poder se deslocou na direção contrária, pois
o quanto ele tinha razão - e, na consagração do patriarca bizantino o imperador declarava: "Pela graça de Deus e
ao mesmo tempo, o quanto estava
errado - os artistas cristãos que pelo nosso poder imperial, que procede da graça de Deus, eu nomeio este homem
criaram este relicário montaram a patriarca de Constantinopla" . Dizia-se que o imperador Justiniano era Melquisedec, rei e
figura de Christus Rex numa cruz,
dando cumprimento ao Salmo
sacerdote ao mesmo tempo (Gn 14:18).
96:10 cristianizado, tal qual o A nomeação de Bizâncio reconstruída como Constantinopla ou Nova Roma, em 11
parafraseava um hino medieval: de março de 330, resultou, entre outras coisas, da decisão de Constantino de reunificar o
"O Senhor reina na árvore".
império e de seu desejo de estabelecer uma capital verdadeiramente cristã que substituísse
a velha Roma pagã. Mas, quando a capital passou de Roma a Constantinopla, grande
parte da aura da primeira não pôde ser exportada e se transferiu, como já vinha acon­
tecendo, para o bispo de Roma. Numa cena imortalizada por Rafael e depois por Verdi,
o papa Leão I, em 425, enfrentou Átila, o r�i dos hunos, em Mântua, e o dissuadiu de
O Rei do Reis + 57

sitiar Roma; ele também salvou a cidade de outros conquistadores bárbaros. Nesse
contexto, as implicações políticas da autoridade de Cristo Rei passaram a ter, na velha
Roma, um significado bastante diferente do que tinham na nova. A Pedro, o primeiro
papa, Cristo confiou a autoridade de "ligar e desligar" - ligar e desligar pecados, mas
também, como igualmente se interpretava, ligar e desligar a autoridade políti�a.
A coroação de Carlos Magno como imperador pelo papa Leão III, no Natal de 800,
na Basílica de São Pedro, em Roma, tornou-se o modelo de como se acreditava que se
transferia a soberania política no Ocidente: de Deus para Cristo, de Cristo para o apósto­
lo Pedro, deste para os seus sucessores no "trono de Pedro" e deles para os imperadores
e reis. Essa teoria do reino político de Cristo encontraria oposição, tanto em nome da
autonomia da ordem política quanto do reino eterno de Cristo, em vários pensadores do
fim da Idade Média, até mesmo Dante Alighieri.
"Então, és rei?", perguntou Pilatos a Jesus e, na inscrição na cruz, chamou-o de rei.
Mas, mesmo quando celebravam a realeza de Jesus no triunfalismo do imperador bizan­
tino ou do bispo romano, aqueles que professavam obediência a ele eram obrigados a
considerar todas as implicações do encontro de Jesus Rei com Pôncio Pilatos, o
representante do rei: "Pilatos lhe disse: 'Então, tu és rei?' Respondeu Jesus: 'Tu o dizes:
eu sou rei. Para isto nasci e para isso vim ao mundo: para dar testemunho da verdade.
Quem é da verdade escuta a minha voz' . Disse-lhe Pilatos: 'Que é a verdade?"' (Jo 1 8:37-
38) . Também essa pergunta suscitou uma enor�e variedade de respostas ao longo dos
séculos, todas sugeridas pela figura de Jesus.
A fan tasia foi-me a intenção vencida;
mas já a m inha ânsia, e a von tade, volvê-las
fazia, qual roda igualmen te movida,
o Amor que move o sol e as mais estrelas .

- Dante Alighieri,
Paraíso, Canto X:XXI II, versos 1 42-1 45.
(trad. Í talo Eugênio Mauro)

5 + O Cristo Cósmico

A moderna crença científica segundo a qual "toda ocorrência detalhada pode


ser correlacionada a seus antecedentes de modo perfeitamente definido,
exemplificando princípios gerais", como sugeriu certa vez Alfred North
Whitehead, "deve provir da insistência medieval na racionalidade de Deus,
concebida da energia pessoal de Jeová com a racionalidade de um filósofo
grego" . Essa combinação, celebrada por Dante nos últimos versos de A divina
comédia, foi sintetizada na doutrina do Logos encarnado.
No século IV tornara-se evidente que, entre os diverso� títulos de majes­
tade de Cristo nas primeiras gerações, nenhum teria conseqüências mais im­
portantes do que o de Logos, conseqüências tão decisivas pará a história do
pensamento quanto o título de Rei para a história da política. Um filósofo
60 + O Cristo Cósmico

Em A divina comédia,
a afirmação final de Dante sobre
11o Amor que move o sol e as mais

estrelas" situa a experiência


individual do peregrino e a fé
coletiva da Igreja numa visão
abrangente da extrema harmonia
do cosmos com seu Criador. Essa
interpretação veneziana das
palavras de alguns cantos
anteriores de A divina· comédia,
11a Divina Mente na qual se

acendem/ O Amor que a faz girar


e o poder que nela brota", torna o
Cristo Cósmico o centro de Tudo.

No alto, à esquerda desse ícone


composto (página ao lado),
encontra-se a figura de Basz1io, o
Grande, bispo de Cesaréia (falecido
em 379). Autor de um comentário
sobre o relato da criação em
Gênesis l , ele se esforçou para
harmonizar sua cosmologia
cristocêntrica com o melhor
conhecimento científico de seu
tempo. A credibilidade de tal
harmonização foi reforçada por seu
enorme prestígio, o que lhe valeu o
papel de expoente da doutrina
·
ortodoxa da Trindade e de
sistematizador do monasticismo
cristão oriental. Entre as artes
colocadas a serviço de Cristo pela
recém-adotada religião do império
romano cristão, nenhuma se
difundiu mais que a retórica, da
qual dois bispos de Constantinopla
eram particularmente adeptos: João
Crisóstomo (falecido em 407) e seu
predecessor, Gregório de Nazianzus cri � tão daquele século pôde falar sobre "os títulos do Logos, que são tantos, tão
(falecido em 389), que também sublimes e tão grandiosos", que todos os demais não passam de predicados deste. No
aparece neste ícone. Gregório
foi alcunhado 110 Teólogo" em início d� Fausto, de Goethe, o idoso filósofo reflete sobre João 1 : 1 e ensaia diversas
virtude de sua eloqüente defesa traduções: "No princípio era o verbo / a mente/ a força / o fato" . O termo Logos pode ter
da doutrina da Trindade.
cada um e todos esses significados, além de muitos outros, como "razão", "estrutura"
ou "finalidade" . A identificação de Jesus com o Logos fez a história intelectual, filosó­
fica e científica, pois, aplical)do a ele esse título, os filósofos cristãos dos séculos IV e V
conseguiram interpretá-lo como o Cristo Cósmico.
Essas palavras iniciqis do Evangelho de João eram evidentemente uma paráfrase
·
das do Livro do Gênesis: "No princípio, Deus criou o céu e a terra [ . . . ] Deus disse"
(Gn 1 : 1 -3). Porque o dizer de Deus (que é uma das maneiras de traduzir Logos) tornou o
mundo possível, e foi também esse dizer que fez o mundo inteligível: Jesus Cristo
62 + O Cristo Cósmico

"Tudo foi feito por meio dele",


declaram os primeiros versículos
do Evangelho de João, "e sem ele
nada foi feito" (Jo 1:3). Levando
muito a sério a palavra "tudo",
os artistas e pensadores cristãos
representaram as rochas, os animais
e as estrelas - assim como os
seres humanos - como obra
do Cristo Cósmico.

como Logos era a Palavra de Deus a revelar seu modo e sua vontade no mundo. Veículo
da revelação divina, ele era também o agente dessa revelação sobre o cosmo e sua
criação. Sua credibilidade era fundamental a toda compreensão humana . Desde o
começo, a doutrina cristã da criação, mesmo da criação por meio do Logos encarnado
em Jesus, serviu de base para a crença de que tanto a revelação divina quanto a razão
humana tinham algo válido a dizer. A interação dessas duas maneiras de saber, como
harmonia ou contradição, contribui para plasmar a história não só da teologia como
também da filosofia e da ciência - e ainda contribuiu . Para a maioria desses
pensadores do século IV, o que unia a cosmogonia religioso-teológica do Credo de
Nicéia ( "Cremos em um só Deus, Criador do céu e da terra e de tudo quanto existe -
·visível e invisível") à cosmogonia filosófico-científica de Platão e do platonismo
ulterior era a outra afirmação do conteúdo da doutrina do Logos (embora o próprio
termo Logos não aparecesse no Credo de Nicéia), que declarava que, "por meio do
único Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus, todas as coisas tinham sido feitas" . Tal
afirmação, contudo, também traçou a linha sobre a qual as duas maneiras de perceber
a realidade cósmica divergiam.
O Cristo Cósmico + 63

Com os santos Agostinho e Tomás


de Aquino, representados nas
extremidades laterais inferiores,
prontos para oferecer comentários
filosóficos e teológicos sobre a
racionalidade da criação, a
cosmologia de Pietro di Fucei nesse
mural do Campo Santo, em Pisa,
diagrama a fé em que o Cristo
Cósmico é "o Primogênito de toda
a criatura, porque nele foram
criadas todas as coisas, nos céus e
na terra, as visíveis e as invisíveis:
[ ] tudo foi criado por ele e para
...

ele" (Cl 1:16).

O teste fundamental da relação entre ambas foi a definição de criação como "cri­
ação a partir do nada" . Tal conceito se opunha à idéia de que a matéria era eterna,
portanto coeterna do Criador. Segundo Basílio de Cesaréia, embora "os filósofos da
Grécia tivessem feito muito barulho para explicar a natureza", o melhor que con­
seguiram foi "imaginar um pouco, mas sem compreender claramente" essa "doutrina
oculta" do Livro do Gênesis revelado pela Palavra de Deus a Moisés e por meio dele.
A confissão do Cristo Cósmico
era também um modo de afirmar
a continuidade da criação
e da salvação no Verbo, o Logos.
"Tudo foi feito por meio dele
e sem ele nada foi feito [ . ] E o
..

Verbo se fez carne e habitou entre


nós" (Jo 1:3, 14). Paradigma do
internacionalismo medieval, o
Salmo de Canterbury,
Bibliotheque Nationale de Paris,
baseado num salmo de Utrecht, usa
seus doze painéis para conduzir
o observador pela continuidade da
criação e da salvação em Cristo.
O Cristo Cósmico + 65

E a Palavra que Deus disse, assim como Aquele a quem disse "Façamos o homem à
nossa imagem" (Gn 1 :26), não era senão o "seu Cooperador, aquele com o qual [Ele]
criou todas as ordens da existência, aquele que sustenta o universo pela sua palavra de
poder", Jesus Cristo, o Logos, visto como a segunda pessoa da Trindade e o Cristo
Cósmico. Era necessário, porém, esclarecer se a Palavra que Deus falou na criação, o
Logos agora presente em Jesus, podia dizer "Iahweh me criou, primícias de sua obra" (Pr
8:22). Pois, nesse caso, o Logos, seria apenas uma criatura e parte da ordem da criação.
Os amargos debates sobre a doutrina da Trindade, no século IV, concluíram que · º Logos,
como a palavra de Deus· falada na criação, estivera com Deus antes da criação, desde a
eternidade, e era, portanfo, coeterna, "um só ser [homoousios] com o Pai".
Mas, quando aplicado a Jesus Cristo, "Logos de Deus" significava muito mais que
"Palavra de Deus't, mai_s até que revelação divina; havia muitos outros vocábulos
gregos capazes de expressar exatamente isso e nada mais. Empregar o nome específico
-
Logos implicava dizer que o que viera em Jesus Cristo era também a Razão e a Mente do
cosmo. "Nunca houve um tempo em que Deus tenha estado sem o Logos", insistia o
pensamento ortodoxo, "ou em que este não estivesse com o Pai" . À medida que os
filósofos cristãos meditavam sobre as conotações mais profundas dessa identificação
de Jesus com o Logos eterno, foi se tornando claro o significado cosmológico de Logos
como Razão no contexto da doutrina da criação.
Fazendo a pergunta retórica "Em que consiste então a grandeza do homem?",
Gregório de Nissa respondeu: "Em ele ser à imagem do Criador" . Posteriormente,
analisou as conotações dessa doutrina nas relações de Cristo com a criação: "Se
·
examinardes os outros pontos pelos quais se expressa a beleza divina, descobrireis que
também neles se preserva perfeitamente a semelhança com a imagem [de Deus] . A
Divindade é mente e verbo; pois 'no princípio era o Verbo', e os seguidores de Paulo
tinham 'a mente de Cristo' que neles 'fala' . Tampouco a humanidade está longe disso;
pois vedes em vós mesmos palavra e entendimento que são uma imitação das au­
tênticas Mente e Palavra [ou seja, Cristo como Logos]" . Havia, portanto, uma analogia
entre o Logos de Deus, que encarnou em Jesus, e o logos da humanidade, encarnado em
todas as pessoas e por todas perceptível interiormente. Como porém o Logos de Deus -
relacionado com o Pai do mesmo modo que o verbo se relacionava com a mente - era
-
o divino Demiurgo por meio do qual todo o cosmo viera a existir, seguia-se que "esse
nome [Logos] lhe foi dado porque ele existe em todas as coisas que são" .
A partir dessa descrição da relação entre o cosmo como a criação de Deus e o Logos·
como a Razão de Deus, seguiram-se duas implicações para a teoria do conhecimento.
De um lado, era a força compensadora contra a tendência a satisfazer-se com o
paradoxo da fé em Cristo e a glorificar o irracional. Embora Tertuliano nunca tenha
dito o que com freqüência se lhe atribui Credo quia absurdum, "Eu creio porque é
-

absurdo"-, ele chegou a dizer: "O Filho de Deus morreu; nisto há que acreditar por
todos os meios, porque não tem sentido [quia ineptum est] . E ele foi enterrado e ressus-
66 + O Cristo Cósmico

citou; este fato é certo, porque é impossível" . Em outra parte, disse: "Depois de pos­
suir Cristo Jesus, não queremos nenhuma disputa curiosa, nenhuma indagação depois
de desfrutar do Evangelho! Que relação há entre Atenas e Jerusalém?".
Tomados em sentido literal e investidos de autoridade, tais sentimentos teriam
levado ao fim do pensamento filosófico e abortariam toda investigação científica, ambas
dependentes da suposição de que havia uma ordem racional no cosmo. Mas, na
segunda metade do século IV, tornou-se possível, para os que ainda aceitavam o
paradoxo da fé em Cristo, afirmar a validez do processo racional e apelar para a
evidência de "nossos próprios olhos e da lei da natureza" . Pois uma criação que fora
empreendida por Deus Pai mediante seu Filho eterno, o Logos, não podia ser arbitrária
ou casual e muito menos ter sido "concebida por acaso e sem razão"; ela precisava ter
"uma finalidade" . A diferença fundamental existente entre as outras criaturas e a
humanidade estava em que esta fora criada à imagem de Deus e por uma ação especial
do Logos criador. Assim, o corpo humano devia ser logikos, o que significava "dotado de
fala" ou "adequado ao uso da razão" ou, em todo caso, "capaz de espelhar a presença
do Lqgos criador" .
Essa confiança, no entanto, ficava resguardada da presunção pelo outro pólo da
dialética: um senso profundo, baseado também na revelação em Cristo, dos limites
impostos à capacidade humana de compreender a realidade fundamental. Como
acontecia com freqüência, um cristão herege foi o catalisador de um insight básico
quando, segundo se supõe, afirmou que podia conhecer a essência de Deus assim como
o próprio Deus a conhecia. Seus adversários ortodoxos insistiam em declarar que havia
muita coisa impossível de saber sobre Deus. Para investigar as criaturas, bastava
conhecer-lhes "os nomes" para lhes compreender "a essência", mas "a natureza única e
incriada [de Deus], que reconhecemos no Pai, no Filho e no Espírito Santo, transcende
todo significado dos nomes". Pois "sua Divindade não pode ser expressa em palavras";
aliás, "nós a esboçamos a partir de seus atributos" e, assim, "dela obtemos uma idéia
pálida, frágil e parcial" . O resultado se expressou na máxima de Hilário de Poitiers,
teólogo latino do século IV: "Acredita-se em Deus à medida que ele fala de si mesmo" . E
Deus falou decididamente no Logos encarnado no corpo histórico de Jesus Cristo. Assim,
o cosmo eqi confiavelmente cognoscível e, ao mesmo tempo, permanecia misterioso,
ambas as coisas porque o Logos era a Mente e a Razão de Deus.
Porque o Logos encarnado em Jesus era a Razão de Deus, foi também possível vê-lo
como a própria Estru tura do un iverso. Combinando o relato da criação do Gênesis com
a doutrina platônica das Formas, Basílio de Cesaréia ofereceu uma descrição gráfica
de tal estrutura: "Antes que existissem todas essas coisas que agora atraem a nossa
atenção, Deus, havendo projetado na mente e decidido dar vida àquele que não tinha,
imaginou o mundo tal qual deveria ser e criou a matéria em harmonia com a forma
que lhe desejava dar [ . . . ] . Uniu todas as diferentes partes do cosmo com vínculos
indissolúveis e estabeleceu entre elas uma solidariedade e uma harmonia tão perfeitas
O Cristo Cósmico + 67

que os mais distantes, apesar da distância, aparecem unidos em uma simpatia uni­
versal" . Essa harmonia que liga o átomo à galáxia expressou-se num systema cósmico,
tudo isso realizado pela "magnificência do Criador-Logos" . O conceito de harmonia no
universo, expresso pela palavra grega systema, pairava também sobre uma das mais
fortes afirmações do Novo Testamento sobre o Cristo Cósmico, em quem "tudo nele
subsiste [ou é feito num sistema cósmico, synesteken ]" (Cl 1 : 1 7) .
A identificação d o Criador-Logos e m Jesus com o fundamento da própria estrutura
do universo tinha base na identificação ainda mais fundamental do Logos com o Agen te
da criação a partir do nada ou a partir do "não-ser" . Podia-se descrever o Criador como
"aquele que é [ho õn]", mas· as criaturas passaram a ser unicamente por sua participação
no Criador. Por conseguinte, no sentido mais pleno, só quanto ao Criador se podia falar
em "ser" . Pela mesma razão, chamar Deus de Pai não era uma figura de linguagem.
Somente porque Deus era o Pai do Logos-Filho e "o Pai, de quem toma o nome toda
família no céu e na terra" (Ef 3:14-15), o termo podia ser aplicado a todos os pais
humanos, e isso era uma figura de linguagem, pois todos os pais humanos eram filhos
de outros pais. Também por isto o Logos não podia ser uma criatura, nem mesmo a
criatura primordial; porque todas as criaturas tinham sido criadas a partir do não-ser, e,
na qualidade de agente que as criara do não-ser, o Criador-Logos tinha necessariamente
de "haver sido" no sentido pleno e não metafórico da palavra.
Criado do não-ser, o cosmo manifestava em sua "ordem e providência" a presença
ordenadora do "Logos de Deus, que está acima de tudo e tudo governa" . O universo
não era "absurdo", ou seja, "privado do Logos", mas tinha sentido por causa dele.
Inversamente, seu vínculo com a realidade derivava do vínculo com o Logos, sem o
qual ele retornaria ao não-ser: "Deus dirige [o universo] pelo Logos, de forma que pela
direção, providência e ordenação do Logos, a criação pode ser iluminada e habilitada
para continuar sempre existindo" . Como pecar era desviar os olhos de Deus e do Logos,
os pecadores estavam ameaçados de se precipitar novamente no abismo do não-ser, do
qual os retirara a ação criadora do Logos. Para superar essa ameaça, o Logos, na
qualidade de Redentor do cosmo, encarnou em Jesus Cristo, que ressuscitou de entre os
mortos vitorioso sobre o pecado, a morte e o inferno. Isso foi necessário porque o
mundo que o Logos plasmou era agora um mundo caído. Era sempre característica
desses filósofos gregos cristãos, em contraste com o individualismo por vezes mani­
festo principalmente na teologia ocidental, a visão de proximidade entre a humanidade
e o cosmo. Não só "todas as coisas subsistiam" em Cristo, o Logos, a Estrutura do cos­
mo, como também estava no Logos, visto como Redentor, que "o próprio universo fi­
casse liberto dos grilhões da mortalidade para entrar na liberdade e no esplendor dos
filhos de Deus" .
É útil, aqui, distinguir entre as teologias filosóficas que interpretavam a morte co­
mo resultado da culpa e as que tendiam a ver ha morte a conseqüência da transito­
riedade; nenhuma das duas ênfases existia sem ecoar a outra, mas a diferença é clara.
Na tradição cristã oriental,
a substantificação da descida
da Divindade na encarnação do
Logos, o Cristo Cósmico, teve
como principal objetivo e principal
resultado permitir aos homens
serem nada menos que
"participantes da natureza divina"
(2 Pd 1:4). Esse ícone antigo
e a pintura do século XX (ao lado)
da Transfiguração de Cristo
descrevem o fato (Mt 17:1-8) como
a antecipação dessa participação
na natureza divina e como
a "deificação" da humanidade
operadas pela encarnação.
70 + O Cristo Cósmico

Se o pecado era definido como uma recaída no nada do qual o Logos criador havia reti­
rado a humanidade, convinha descrever o esforço da alma humana tanto "imaginando
o mal em si" quanto, por conseqüência, supondo que se "está fazendo alguma coisa"
quando, ao cometer o pecado, que é o não-ser, "na verdade não se está fazendo nada" .
Esta reversão total da polaridade metafísica criada entre ser e não-ser era o significado
da queda. Mas tanto a queda da humanidade quanto a do mundo significavam a
perda do tênue vínculo com o verdadeiro ser e, por conseguinte, uma recaída no
abismo. No caso da humanidade, isso era tanto mais trágico porque, entre todas as
criaturas, apenas Adão e Eva tinham sido criados à imagem de Deus.
O corolário dessa visão era uma compreensão da atividade redentora de Jesus, o
Logos, não só como expiação da culpa, mas como reparação da fratura no ser causada
pela alienação de Deus, que era definido como "aquele que é" . Tornando-se encarnado
em Jesus, o Logos permitia aos seres humanos transcender-se a si mesmos e tornar-se
"participantes da natureza divina" (2 Pd 1 :4). "O Logos de Deus tornou-se humano",
diriam um após o outro os patriarcas da Igreja grega, "de modo que com um ser hu­
mano deves aprender como um ser humano pode se tornar divino" . A criação original
à imagem de Deus foi realizada por meio do Logos e, agora, alcançaria não só a
restauração como a consumação e a perfeição mediante o mesmo Logos: sua encar­
nação realizaria a nossa deificação. E todo o cosmo teria a sua devida parte nessa
consumação, pois "o estabelecimento da Igreja é uma recriação do mundo", no qual "o
Logos criou uma multidão de estrelas", um novo céu e uma nova terra.
Da atribuição da criação do universo a Jesus, o Logos, segue-se também que o Logos
era o Objetivo do cosmo, tanto Ômega quanto Alfa. A observação de que o tempo
avançava em seqüência levaria ao reconhecimento de que também o tempo tinha um
fim, assim como tivera um começo. Como Objetivo do cosmo, o Logos representava,
para alguns desses pensadores, a esperança de que até mesmo o demônio pudesse
enfim ser restaurado rumo à totalidade na "restituição de todas as coisas, e, com a
reforma do mundo, também a humanidade mudará do transitório e terreno para o
incorruptível e eterno" .
Todas essas construções metafísicas dos filósofos cristãos do século IV sobre o
mundo e o Logos preexistentes deviam encontrar o seu foco religioso, moral e até sua
justificação intelectual na figura histórica de Jesus nos Evangelhos, na "Palavra
humilde" e na "glória de sua paixão" na cruz. "No princípio era o Verbo" : isso foi
ensinado por muitos pensadores que nunca tinham ouvido falar de Jesus de Nazaré.
Contudo, o que retratava o Logos como o Cristo Cósmico especial era a declaração de
que a Palavra se havia tornado carne em Jesus e que, em Jesus, a Palavra encarnada
sofrera e morrera na cruz e ressuscitara da morte. Ora, sendo verdadeira tal afirmação,
em última instância não havia como evitar afirmar igualmente que o cosmo era nada
menos que o objeto do amor que por meio dele viera. "Pois Deus amou tanto o mun­
do, que entregou seu Filho único, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a
O Cristo Cósmico + 71

vida eterna" (Jo 3 : 1 6) . O "todo o que" podia de fato ser interpretado como cada indi­
víduo isoladamente; no entanto, nessa passagem, a palavra grega para "mundo" ainda
era kosmos .
Do homem a primeira desobediência, e o fruto
Da árvore proibida, cujo sabor mortal
Trouxe a morte ao m undo, e toda a n ossa miséria,
Com a perda do Éden, até que u m Homem maior
Nos redima, e recobre o assento abençoado . . .

- John Mi l ton,
Paraíso perdido

6 + O Filho do Homem

Os Evangelhos evidenciam que a designação predileta de Jesus para si


mesmo era "o Filho do Homem" . Na Bíblia hebraica, o termo era por vezes
empregado com referência à humanidade no sentido de "homem mortal"
(Sl 8:4). Todavia, no judaísmo posterior, assim como nas palavras de Jesus,
adquiriu conotações apocalípticas: "Pois assim como o relâmpago parte do
oriente e brilha até o poente, assim será a vinda do Filho do Homem [ . ]
..

todas as tribos da terra baterão no peito e verão o Filho do Homem vindo


sobre as nuvens do céu com poder e grande glória" (Mt 24:27, 30) . Com o
Novo Testamento, o título recobrou o significado original, referindo-se à
natureza humana de Jesus, paralelamente a "Filho de Deus", que designava
sua natureza divina.
"Jesus, então, saiu para fora,
trazendo a coroa de espinhos e o
manto de púrpura. E Pilatos lhes
disse: 'Eis o homem!"' (Jo 19:5).
Com estas palavras, Pôncio Pilatos
se referiu à figura de Jesus como
o Homem Sujeito à Dor, desprezado
e rejeitado (Is 53:3), que é como
os artistas (incluindo as cenas
da Paixão do Mestre de Bruges,
do começo do século XVI)
reproduziram a cena. As palavras
"Eis o homem!" também
se aplicam a Jesus na qualidade
de revelação do mistério da
natureza da humanidade,
o Homem Representativo.


O Filho do Homem + 75

Embora o tenham encarado desde o começo como a revelação do mistério da


natureza da divindade, os seguidores de Jesus acabaram por reconhecê-lo, à medida que
se aprofundava sua reflexão sobre ele, também como a revelação do mistério da
natureza da humanidade; na fórmula do Concílio do Vaticano II, "Só no mistério da
Palavra encarnada, o mistério do homem ganha luz" . Logicamente, pode parecer que
devia ter sido o inverso: o diagnóstico havia de preceder a prescrição, vindo em
primeiro lugar a doutrina da queda do homem, seguida pela da pessoa e da obra de
Cristo como resposta divina à condição humana. Historicamente, porém, não foi assim
que ocorreu, pois a posição de Jesus como Filho de Deus, o Logos, e o Cristo Cósmico
teve de ser esclarecida em primeiro lugar, antes que fosse possível uma compreensão
amadurecida da condiÇão humana. Em vez de fazer a punição se adequa ao crime, o
pensamento cristão foi obrigado a calcular a magnitude do pecado humano avaliando
primeiramente aquele sobre o qual se impôs o castigo divino da cruz; assim, o
diagnóstico foi feito de modo a ajustar-se à prescrição. Na nobre linguagem de John
Milton, somente a vinda de "um grande Homem [para que] nos redima e recobre o
assento abençoado" . Somente isso podia tornar dolorosamente óbvias todas as
implicações da "primeira desobediência do homem e do fruto da árvore proibida, cujo
sabor fatal trouxe a morte ao mundo e toda nossa miséria, com a perda do É den".
A definição de como o advento da luz veio a ser a revelação das trevas foi a rea­
lização histórica de Agostinho de Hipona, que morreu um século depois do Concílio de
Nicéia. Os motivos históricos de tal seqüência são complexos, mesmo porque entre eles
figura o próprio desenvolvimento intelectual e religioso de Agostinho. Dentro e por trás
deles, porém, há uma razão implícita na mesma condição humana, tal qual. a descreveu
doze séculos depois, com a precisão e a verve características, um discípulo de
Agostinho, o cientista e filósofo cristão Blaise Pascal, morto em 1662: "O conhecimento
de Deus sem o da miséria humana suscita o orgulho. O conhecimento da miséria hu­
mana sem o de Deus suscita o desespero. O conhecimento de Jesus Çristo constitui o
caminho intermediário, pois nele encontramos tanto Deus quanto a nossa miséria" .
Muito d o que disse Agostinho sobre a "miséria" humana deveu-se a um insight próprio
e especial; contudo, no uso da figura de Jesus a fim de definir a grandeza da hu­
manidade, ele recorreu ao pensamento dos séculos precedentes. No sentido mais pleno
da palavra, a verdadeira imagem de Deus era o homem Jesus. Embora às vezes falasse
como se a imagem do Criador tivesse sido totalmente obliterada pela queda, Agostinho
deixou claro em outras reflexões que a queda não devia ser interpretada "como se o
homem houvesse perdido tudo o que tinha da imagem de Deus", pois, se essa imagem
tivesse sido totalmente destruída, não haveria ponto de contato entre a natureza
humana como tal e a encarnação do Logos na natureza verdadeiramente humana de
Jesus. Esta era, portanto, não só a imagem da divindade, mas também a da humanidade
tal qual devia ter sido originalmente e tal qual podia tornar-se por meio dele: "Deus nos
ama como devemos ser, não como [agora] somos" . Os contornos dessa condição futura
76 + O Filho do Homem

O clímax da narrativa da criação no já eram visíveis, não em nossa humanidade empírica, mas na humanidade de Jesus, a
Livro do Génesis e, também, o
Palavra feita carne; e, à medida que contemplava tal perspectiva, a natureza humana
ponto culminante da monumental
representação da criação de empírica se en\hia da nostalgia e do anseio de forçar o avanço rumo àquele ideal. Desse
Michelangelo no teto da Capela modo, "Cristo Jesus é o Mediador entre Deus e o homem, não na proporção em que é
Sistina foi quando "Deus criou o
homem à sua imagem, à imagem de divino, mas na proporção em que é humano", não só como a fonte, mas também como o
Deus ele o criou, homem e mulher "objetivo de toda perfeição" .
ele os criou" (Gn 1:27). É claro que
Agostinho reconhecia que enfrentara dificuldades para fazer a transição da "imu­
não se trata de uma semelhança
física literal com um Deus que tabilidade do Logos, que eu tão bem conhecia e sobre a qual não tinha absolutamente
não pode ser visto. A "imagem de nenhuma dúvida" (e que não é preciso ser cristão para aceitar, como provavam os
Deus" tornou-se um meio
de identificar as qualidades que ensinamentos do neoplatonismo), para o sentido pleno das palavras do Evangelho de
tornaram os seres humanos João "O Logos se fez carne" -, que ele só veio a compreender "um pouco mais tarde" .
-

caracteristicamente humanos,
qualidades estas visíveis sobretudo Contudo, uma vez compreendidas essas palavras, o Logos feito carne, cuja humildade foi
na humanidade de Jesus Cristo. dada a conhecer nas narrativas dos Evangelhos, passou a dominar sua linguagem sobre
Cristo . Foi a partir da descrição do Logos no Evangelho de João que Agostinho
desenvolveu seu insight psicológico mais especulativo e mais sublime da imagem de Deus:
a imagem da Trindade. Ele investigou os diversos "traços da Trindade", a maneira pela
qual a mente humana pode se estruturar como única e, no entanto, capaz de se relacionar
tanto consigo mesma quanto com a Trindade, o que podia ser interpretado como reflexo da
relação entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Um desses "traços da Trindade" era a tríade
"ser, conhecimento e vontade", faculdades que, embora distintas no interior da mente,
O Filho do Homem + 77

continuavam sendo uma única mente: "pois eu sou, eu sei e eu quero" . Ou ainda: "Quando Tão poderosa foi a influência de
Agostinho de Hipona na história do
eu amo alguma coisa, há três realidades envolvidas: o meu eu, o ser amado e o próprio pensamento e da espiritualidade
amor". Talvez a analogia mais profunda seja a que ele traçou entre "a memória, a com­ cristãos, principalmente no
preensão e a vontade", as quais "não são três vidas, mas uma só, não são três mentes, mas Ocidente, que ele ficou conhecido
como "o segundo fundador da fé",
uma apenas", mas não são idênticas. Agostinho reconhecia prontamente a insuficiência e título para o qual tudo indica
percebia a artificialidade de tais construções, mesmo a da própria linguagem da doutrina que não tinha nenhum sério rival.
Este retábulo de Michael Pacher, de
eclesiástica da Trindade (necessária para que a fé não permanecesse totalmente branda, cerca de 1483, associa-o ao papa
mas que não podia ter a pretensão de fornecer uma descrição precisa do mistério da vida Gregório, o Grande (e, em outros
painéis, a Ambrósio de Milão
interior de Deus). Uma coisa, porém, era certa: para ele, Jesus Cristo era a chave do mis­
e a Jerônimo).
tério da Trindade e, desse modo, do mistério da mente humana.
Num grau raramen te igualado,
Agostinho foi, ao mesmo tempo,
o mestre da interpretação bíblica em
seus escritos, um metafisico cujas
especulações abrangiam as esferas
celestial e terrena e também um
bispo e pastor que pôs todo o seu
talento a serviço de Cristo e
da Igreja. Sandro Botticelli juntou
essas três facetas pintando-o com
seus livros, uma esfera armilar
e uma mitra.
O Filho do Homem + 79

Por profunda e instigante que possa ter sido tal exploração das analogias psi­
cológicas com a Trindade na mente humana, sua contribuição mais importante para a
história da psicologia humana foi a doutrina do pecado. Walter Lippmann se referiu
sobretudo a ela no decisivo ano de 1941, quando se viu compelido a refletir sobre a
presença, na natureza humana, do que ele denominou 110 mal glacial" . "O cético mundo
moderno", escreveu, "vem absorvendo há duzentos anos uma concepção da natureza
humana que descarta a realidade do mal, tão conhecida das eras da fé. Quase todos
fomos criados numa atmosfera de tão leviano otimismo que mal conseguimos imaginar
o que significa a vontade satânica, muito embora os nossos ancestrais o soubessem
muito bem. Teremos de resgatar essa verdade olvidada mas essencial - juntamente com
tantas outras que perdemos quando, julgando-nos esclarecidos e avançados, fomos
apenas cegos e vazios" .
Que papel teve a figura de Jesus na explicação agostiniana da natureza humana?
Deve-se procurar o componente mais fundamental de qualquer resposta a essa questão
na avaliação das Confissões, que, da primeira à última linha, é uma longa oração
"confessional" entendida como a acusação de si mesmo e o louvor a Deus. Agostinho foi
capaz de falar com a candura com que falou porque o pecado que confessava era o que
Deus em Cristo perdoara. Ele exprimia o "sacrifício de minhas confissões" na presença
de Deus, cujo olho podia penetrar o coração mais fechado, a quem, portanto, era
impossível mentir. Mas também expressava "a confissão de um coração partido e
contrito" na presença de um Deus cuja graça, "por meio de Jesus Cristo, Nosso Senhor",
garantia a libertação do poder do pecado e a quem, por conseguinte, era desnecessário
mentir. Numa série de apóstrofes a Cristo espalhadas ao longo das Confissões, Agostinho
deu expressão devota ao que ele afirmava e defendia em outra parte como dogma -
"esta é a minha fé porque é também a fé católica" : que Jesus Cristo era o Filho de Deus,
fonte de graça, motivo de esperança e objeto digno de oração, adoração e confissão.
Concentrou a atenção nos vários pecados de sua juventude, e pelo menos dois deles
obtiveram considerável notoriedade psicológica. O primeiro foi "estar apaixonado pelo
amor" sem conhecer a verdadeira natureza do amor. Como T. S. Eliot, parafraseando as
palavras de Agostinho:

Vim para Cartago


Ardendo ardendo ardendo ardendo
Ó Senhor Vós me colhestes
Ó Senhor Vós colhestes
ardendo.

Definindo-se a cupidez - segundo tanto a Bíblia hebraica quanto o Novo Testamento


- não como o desejo sexual natural, mas como a tendência a encarar a outra pessoa
principalmente como objeto sexual a ser usado, a investigação de Agostinho começa a
A odisséia intelectual e espiritual
de Agostinho levou-o do paganismo
ao cristianismo, da filosofia
neoplatônica à teologia católica,
da heresia à ortodoxia. Foi como
pensador e estudioso que
o veneziano Vittore Carpaccio
o interpretou nessa pintura
de cerca de 1500, em sua biblioteca,
com a pena suspensa no ar,
pronto para escrever mais um
livro, como Confissões e
A cidade de Deus, que moldaram
todas as gerações subseqüentes.
O Filho do Homem + 81

revelar que as chamas ocultas da sexualidade são bem menos extraordinárias do que
aparentam a princípio. A par dos inegáveis extremos a que freqüentemente chegou em
sua linguagem sobre o desejo sexual mesmo nos limites do matrimônio, ele rejeitava a
noção herética de que "o casamento e a fornicação são dois males, entre os quais o
segundo é o pior"; ao mesmo tempo a substituía pelo princípio católico ortodoxo que
considerava "o casamento e a abstinência dois bens, dentre os quais o segundo é o
melhor", e que encontrava apoio nos ensinamentos de Jesus (Mt 1 9 : 1 2), nos de Paulo
(1 Cor 7: 1 -5), assim como nos dos nobres pagãos. O argumento mais definitivo a favor
da santidade do casamento chegou a Agostinho pelas palavras de Paulo (Ef 5:25, 32): "E
vós, maridos, amai as vossas mulheres, como Cristo amou a Igreja e se entregou por ela
[ ... ] É grande este mistério [magnum sacramentum, na tradução latina] : refiro-me à relação
entre Cristo e a sua Igreja" . O casamento era um sacramento de Cristo e da Igreja.
O outro pecado da juventude mencionado nas Confissões que suscitou grande in­
teresse psicológico é o episódio do roubo dos frutos de uma pereira. As recordações que
Agostinho guardou do incidente deram-lhe oportunidade de pesqui�!lr as misteriosas
profundezas da motivação dos maus atos. As peras não lhe eram particularmente sedu­
toras, nem pela beleza nem pelo sabor; ele não precisava delas. Precisava, isto sim, rou­
bá-las e, tendo satisfeito essa necessidade, jogou as frutas aos porcos. Quando Agostinho
diz que, desse modo, tornou-se "para si mesmo uma terra estéril", está, em seu estilo
alegórico característico, ecoando a história do fruto da árvore do Jardim do É den.
Ele rejeitava com indignação qualquer sugestão de que estivesse meramente
extrapolando as visões e experiências pessoais e generalizando-as a ponto de elevá-las a
uma condição universal. Pelo contrário, estava procurando registrar uma condição
universal reconhecível. Pois, se todas as pessoas se achavam exatamente entre ó bem e o
mal - como, ao que tudo indica, afirmavam seus adversários -, de que modo se poderia
avaliar a regularidade estatística com que todas elas faziam a mesmíssima escolha de
Adão e Eva a favor do pecado e contra o bem? Não se tratava de negar que pudessem
existir "na terra homens justos, grandes homens: bravos, prudentes, castos, pacientes,
. devotos e misericordiosos"; mas nem mesmo eles podiam estar "sem pecado" . Quem
era mais santo que os santos e os apóstolos? "E, no entanto, o Senhor [Jesus] lhes
ensinou a dizer em suas orações: 'E perdoa-nos as nossas dívidas"' (Mt 6:12), o que
provava que também eles eram pecadores.
Havia uma única exceção absoluta à regra, Jesus Cristo, o Mediador entre um Deus
·
justo e uma humanidade pecadora. Seu status de Redentor sem pecado provava a
necessidade da salvação, e cada um que negasse a universalidade do pecado era
obrigado, a bem da coerência, a negar a universalidade da salvação e a mediação nele
realizada. Para todas as pessoas "ordinárias", a morte era não só universal como
também involuntária: podia haver certa margem de escolha entre morrer neste ou
naquele momento, mas não quanto a morrer ou não morrer. A exceção era Jesus Cristo,
que, sendo imortal por natureza, "morreu pelos mortais" e, portanto, era o único que
82 + O Filho do Homen

podia dizer: "Porque dou minha vida para retomá-la. Ninguém a tira de mim, mas eu a
dou livremente" (Jo 10:17-1 8). O insight mais influente de Agostinho sobre a natureza e a
psicologia humanas, a idéia do pecado original, era, pois, não só um meio de falar da
miséria da humanidade, mas de reconhecer e louvar a unicidade de Jesus.
Apesar da sensibilidade da introspecção das Confissões, Agostinho não teria tido esse
insight sem a iluminação de Cristo, raciocinando em sentido inverso, da cura para o
diagnóstico. Outra substantificação dessa hipótese provém do uso que ele faz da
Concepção da Virgem, pelo qual concluiu que, como Jesus "somente podia ser con­
cebido daquela maneira para não precisar renascer", todos os que foram normalmente
paridos, ou seja, como resultado da união sexual dos pais, tinham necessidade de
Ao contrário dos sacramentos do
batismo e da eucaristia, o
matrimônio não foi instituído por
Jesus quando ele estava neste
mundo, mas antes disso e pelo
Criador, no Jardim do Éden . No
entanto, é o único dos sete
sacramentos da Igreja a ser
designado como tal no Novo
Testamento latino (Ef 5:32). Em
Casamento em Caná, de Gerard
David, do começo do século XVI
(ao lado), a presença de Jesus
(Jo 2:1-11) consagra esse
matrimônio e, com ele, todos os
matrimônios, tornando-o
sacramento de Cristo e da Igreja.

Ao falar, nas primeiras linhas de


Paraíso perdido, no "fruto /
Daquela árvor proibida, cujo sabor
mortal / Trouxe a morte ao
mundo", John Milton sintetizou
muitos séculos de controvérsia
(como nas obras de Agostinho) e
arte (como no missal do arcebispo
de Salzburgo de 1481), tratando da
tipologia da árvore mortal do
Jardim do Éden e da árvore da vida
da cruz de Jesus.
Ao incluir todos os seres humanos
nascidos da união natural do
homem com a mulher na "massa
da perdição" manchada pelo
pecado original, a linguagem
abrangente de Agostinho parecia
colidir com a antiga linguagem
da devoção cristã e da teologia sobre
a Virgem Maria. Mas ele se
apressou a assegurar aos leitores:
"Devemos excetuar a santa Virgem
Maria, a respeito de quem não
desejo levantar nenhuma questão
relativa ao tema dos pecados,
em louvor ao Senhor". A pintura
de Murillo da Imaculada Conceição
celebra-a como tal exceção.
O Filho do Homem + 85

renascer em Cristo pelo batismo. A afirmação do salmista - "Eis que eu nasci na


iniqüidade, minha mãe concebeu-me no pecado" (Sl 51 :7) - foi proferida em plena
consciência do perdão pela "mesma fé" em Cristo, agora professada pela Igreja Católica.
Por essa razão, Agostinho intitulou Sobre a graça de Cristo e o pecado original o tratado que
acabamos de citar: o conhecimento da graça de Cristo era ininteligível sem o conhe­
cimento do pecado original, mas o conhecimento do pecado original tornava-se insu­
portável sem o conhecimento da graça de Cristo.
Não obstante, havia uma exceção adicional a ser considerada: a Virgem Maria, Mãe
de Jesus. Depois de rejeitar a afirmação de que vários outros santos, homens e mulheres,
tinham vivido totalmente sem pecado, Agostinho prosseguia: "Devemos excetuar a
Santa Virgem Maria, a respeito de quem não desejo levantar nenhuma questão relativa
ao tema dos pecados, em louvor ao Senhor; pois por ele nós sabemos que abundância de
graça para vencer todo e qualquer pecado foi conferida a quem teve o mérito de
conceber e parir aquele que, indubitavelmente, não tinha pecado" . O resultado dessa
exceção teria um efeito profundo não só sobre a devoção e a teologia como também
sobre a arte e a literatura dos quinze séculos subseqüentes. Entretanto, só em 1 854 o
papa Pio IX acolheu na doutrina que, "diante dos méritos de Cristo Jesus, o Salvador de
[toda a] raça humana", Maria passaria a ser uma exceção na universalidade do pecado
original.
"Conhece-te a ti mesmo" eram as palavras gravadas no templo do oráculo de Delfos.
Como sugere a conexão entre o oráculo délfico e o profeta Isaías, outros antes de Agos­
tinho aplicaram o axioma geralmente atribuído a Sócrates sobre a necessidade de uma
compreensão de si mesmo à luz de Cristo. O autoconhecimento de Agostinho nasceu de
suas necessidades existenciais, mas o levaram a Jesus, "o Verbo humilde", e à "glória de
sua paixão" . Só então ele foi capaz de enfrentar, entender e articular essas necessidades,
pois o Jesus de Agostinho significava a chave do que a humanidade era e do que, por
meio dele, podia vir a ser.
A corrupção da carne e o mortal refugo
Vão para o verme residual; do mundo o fogo fátuo deixa apenas cinzas:
Num lampejo, n u m toque de trombeta,
Eu sou de súbito o que Cristo é, pois ele foi o que sou, e
Esta Tocha, r.isível, pobre caco, remendo, lasca,
diamante imortal,
É diama n te imortal.

- Gerard Manley Hopkins,


"Esta natureza é um fogo de Heráclito"

7 + A Imagem Verdadeira

A vitória de Jesus Cristo sobre os deuses da Grécia e de Roma, no século IV,


não trouxe consigo a eliminação da arte religiosa como poderiam esperar seus
amigos e inimigos; pelo contrário, foi responsável, nos quinze séculos seguin­
tes, por um magnífico florescimento da criatividade, provavelmente sem pa­
ralelo em toda a história da arte. Como e por que isso aconteceu? Como pôde
Jesus, a própria antítese de toda representação de imagens divinas, haver se
tornado a sua mais importante inspiração concreta - e, por fim, a sua
principal justificação teórica?
Nos Dez Mandamentos, cuja validez permanente era aceita também pelos
cristãos, a proibição da arte religiosa era explícita e abrangente por ser consi­
derada idólatra: "Não farás para ti imagem esculpida de nada que se asseme-
88 + A Imagem Verdadeira

lhe ao que existe lá em cima, nos céus, ou embaixo na terra, ou nas águas que estão
debaixo da terra" (Ex 20:4). Citando tais proibições da Bíblia hebraica, assim como as
opiniões dos pensadores pagãos que, como Cícero, achavam que "as divindades que os
homens adoravam eram falsas", os seguidores de Jesus uniram-se ao judaísmo e ao
melhor do paganismo clássico em sua rejeição das imagens, mas censuravam os pagãos
esclarecidos por permitirem que "o vulgo e o ignorante" conservassem ídolos. E mais,
foram além do judaísmo denunciando até mesmo a própria noção de arquitetura
religiosa. "O Deus que fez o mundo e tudo o que nele existe, o Senhor do céu e da terra,
não habita em templos feitos por mãos humanas" (At 1 7:24) . Chegaram a aplicar a
proibição das imagens não só aos idólatras como também aos artistas que as faziam,
pois praticavam uma "arte enganosa" . Assim, em contraposição ao paganismo e até
certo ponto ao próprio judaísmo, afirmavam, em nome da revelação do divino que viera
em Jesus, estar proclamando um Deus que transcendia todos os esforços das mãos
humanas no sentido de criar imagens sagradas, pois a "imagem de Deus" era a alma
racional. Não existiam ídolos nem lugares sagrados; nem mesmo aqueles onde Jesus
nascera e fora sepultado gozavam de consagração especial.
Somente com o desafio do uso de imagens nos séculos VIII e IX, os intérpretes
ortodoxos bizantinos da pessoa e da mensagem de Jesus viram-se compelidos a articular
um estética filosófica e teológica abrangente baseada na pessoa de Cristo, uma estética
em que a legitimidade da representação de imagens do divino teria o seu devido lugar.
Fundamental para ela era a afirmação unânime do Novo Testamento e da Igreja dos
primeiros tempos num sentido especial e único, "a imagem de Deus é seu Logos" . Tal
suposição era aceita pelos preconizadores das duas correntes mais importantes na
controvérsia sobre as imagens; contudo, a partir dela, ambas tiraram conclusões
diametralmente opostas.
A aplicação mais precoce dessa suposição à questão da arte religiosa veio dos adver­
sários das imagens. Quando Constância, irmã do imperador Constantino, escreveu a
Eusébio de Cesaréia solicitando uma imagem de Cristo, este respondeu: "Eu não sei o
que vos impeliu a encomendar um desenho da imagem do nosso Salvador. Que imagem
de Cristo quereis? A verdadeira e imutável, que retrata verdadeiramente o seu sem­
blante, ou a que ele assumiu por amor de nós quando tomou a aparência da 'condição
de servo' ? (Fl 2:7) " . Para Eusébio, o semblante de Cristo na forma de servo era
transitória, não tinha relevância permanente - ainda que, presumivelmente, uma
testemunha ocular em Jerusalém, que tivesse visto Jesus em pessoa durante o século I,
podia ter desenhado tal retrato. Mas não seria uma "imagem verdadeira" daquele que
era, ele mesmo, a Imagem Verdadeira. Para Eusébio, uma imagem "verdadeira" da
Imagem teria de ser imutável, pois só assim seria a "que retrata verdadeiramente o seu
semblante" . E, por definição, tal imagem era impossível.
Aplicando o conceito de Cristo como Imagem, os iconoclastas dos séculos VIII e IX -
liderados pelos imperadores Leão III, Constantino V e Leão V - invocaram a autoridade
A Imagem Verdadeira + 89

A arte cristã ocidental, assim


como a oriental, teria sido
impossível se a campanha do século
VIII contra as imagens religiosas
tivesse tido êxito. Foi no Oriente
bizantino que se empreendeu a
defesa da arte cristã, e foi no culto e
na arte dos muitos centros
ortodoxos representados neste
capítulo que se mantiveram os
ícones. Como Cristo era Deus Todo­
Poderoso, Criador e Governador
de tudo (Pantocrator), "Redentor e
Fonte da Vida", agora em forma
humana e por isso a Verdadeira
Imagem, foi possível e até
obrigatório representá-lo em
imagem.

dos concílios dos séculos IV e V, em que esses conceitos tinham sido definitivamente
formulados. A única maneira de uma imagem de Cristo ser verdadeira era aquela pela
qual o próprio Cristo era a Imagem Verdadeira do Pai, "um único ser" com aquele que
ele figurou. Por conseguinte, um ícone de Cristo não podia ser a sua imagem verdadeira
a menos que também fosse com ele "um único ser" . Obviamente, nenhuma obra de arte
criada por mãos humanas - aliás, nem mesmo as imagens supostamente feitas sem
mãos, pelos anjos - podia ter a mais remota esperança de alcançar semelhante
qualificação. A única imagem de Cristo que podia ser considerada "um único ser" com
ele era a eucaristia. "Foi-nos ensinado", diziam os iconoclastas, "que Cristo será
retratado em uma imagem, mas somente como manda a doutrina sagrada transmitida
pela tradição divina: 'Fazei-o em memória de mim' . Portanto, é proibido retratá-lo em
90 + A Imagem Verdadeira

imagem ou conservar dele uma lembrança de qualquer outro modo, visto que esse
retrato [na eucaristia] é verdadeiro e essa maneira de retratar, sagrada." A Eucaristia
impedia qualquer outra pseudo-imagem de Cristo.
O Concílio de Calcedônia, em 451 , estabeleceu o dogma ortodoxo segundo o qual
Cristo consistia em duas naturezas, a divina e a humana, numa só pessoa. Com base
nisso, os adversários das imagens insistiam que Cristo, sendo a Imagem Verdadeira de
Deus, estava "além da descrição, além da compreensão, além da mudança e além da
medida", pois tal transcendência era característica de Deus. A regra se aplicava até aos
milagres e ao padecimento de Cristo, o que tornava "ilegítimo retratar em imagens" .
No entanto, fosse qual fosse o status de Cristo "antes da paixão e da ressurreição", os
artistas da época, em qualquer caso, careciam do direito de tentar retratá-lo, pois agora
"o corpo de Cristo é incorruptível, tendo herdado a imortalidade", o que estava além
da competência de qualquer representação artística. Em meados do século VIII, o
imperador Constantino V afirmou que "Aquele que fizer uma imagem de Cristo [ . . . ]
não terá penetrado verdadeiramente nas profundezas do dogma da união inseparável
das duas naturezas de Cristo", de acordo com o que havia sido estabelecido pelo
Concílio.
Sob tais increpações contra a retratação artística de Jesus Cristo parece ter havido
uma bem sedimentada aversão aos aspectos materiais e físicos de sua pessoa: " É de­
gradante e infamante descrever Cristo com representações materiais, pois devemos nos
Os ícones de Cristo podiam
assumir as mais variadas formas limitar à observação mental [dele] [ . . . ] mediante a santificação e a justiça". A retratação
e empregar os mais diversos meios. de Jesus em imagem desviava inevitavelmente a atenção do que nele era importante,
Em Ravena, Itália, sede do poder
e da administração bizantinos
suas qualidades transcendentes, não as imanentes. A exigência tanto da tradição
no Ocidente, Cristo foi talhado em platônica quanto do Evangelho de João (4:24) "Deus é espírito e aqueles que o adoram
-

marfim segurando o livro do


devem adorá-lo em espírito e verdade" - era transgredida toda vez que uma imagem
Evangelho, sentado entre os santos
Pedro e Paulo. O outro painel externa e física substituísse o espírito e toda vez que a ilusão de um ícone tomasse o
do díptico apresenta a Virgem lugar da verdade.
Maria em pose semelhante entre
os anjos Miguel e Gabriel. "Nós concordamos quando declarais que o Filho é a Imagem de Deus Pai", diziam
aos iconoclastas os defensores dos ícones. Mas Jesus Cristo, que era a Imagem Verda­
deira, era também aquele que tinha se tornado humano, portanto físico e material, por
meio da encarnação e do nascimento da Virgem Maria; desse modo, pois, um ícone
cristão não era um ídolo, mas uma imagem da Imagem: esse era essencialmente o caso
da arte cristã. A implicação lógica da visão de Cristo expressa pela tradição ortodoxa era
uma justificação da sua representação em retratos. Quem inventou as imagens? "O
próprio Deus foi o primeiro" a fazer assim, respondeu João de Damasco. Deus foi o
primeiro e original criador de imagens do universo.
No sentido mais fundamental, o Filho de Deus era a única Imagem viva de Deus
(Cl 1 : 1 5), "imagem em sua própria natureza, a imagem do Pai invisível, em nada di­
ferente dele", exceto por ser o Filho, não o Pai. Logo, o culto do Filho de Deus não era
idólatra, pois já na fórmula de Basílio de Cesaréia, no século IV, "a honra prestada à
Se, como provaram os defensores
das imagens, era legítimo pintar
ícones de Cristo como a Imagem
Verdadeira, por extensão, era
também legítimo pintar a Virgem
Maria como a Mãe de Deus, ou
Theotokos, por meio de quem ele
assumiu a natureza humana que o
tornou visível como a Imagem
Verdadeira. E a legitimação
dos ícones em Constantinopla -
se estendeu a outras igrejas
ortodoxas orientais.
92 + A Imagem Verdadeira

Não só o rosto de Jesus como


Imagem Verdadeira, mas também
os fatos individuais de sua vida,
como são narrados nos Evangelhos,
eram temas dignos para os artistas.
"Não hesiteis mais em pintar
retratos e exibi-los para que todos
vejam", pedia João de Damasco.
É o que observamos nesta cena
de "seu batismo no Jordão",
de um pintor de ícones grego
do século XVII.

imagem [o Filho] se transfere ao protótipo [o Pai]" . Muito à parte da história humana,


havia na própria vida da Divindade um fazer e um manifestar de imagens que
expressavam o mistério da eterna relação Pai, Filho e Espírito Santo.
Num sentido secundário e derivativo, a imagem podia ser tomada como referência
às "imagens e paradigmas em Deus das coisas que hão de ser produzidas por ele" . Por
ser absoluto e imutável, "no qual não há mudança" (Tg. 1 :1 7), Deus, como o Artista­
Criador do cosmo, não criou diretamente as particularidades do mundo empírico. Pelo
contrário, a criação consistia em conceber tais imagens e paradigmas. Tal como um
arquiteto humano, "antes de construir uma casa, já figura mentalmente o esboço e a
planta do que ela há de ser"; antes que qualquer realidade particular passasse a existir
como tal, foi predeterminada, como imagem, na "concepção" de Deus e, nesse sentido,
já possuía realidade. Deus criou o mundo que vemos por meio do Logos, sua Imagem
que, por sua vez, chamou à existência as Formas platônicas, as imagens a partir das
quais surgiria este mundo.
Embora, nesse sentido, todo o mundo criado fosse uma imagem de Deus, a criatura
humana gozava de um direito especial a �sse título honorífico, pois a história da cri­
ação, no Gênesis, contava que Deus criara o homem a sua própria imagem. A imagem
Como descreve o capítulo 20 do
Evangelho de João, o primeiro
encontro de Cristo ressuscitado não
foi com Pedro ou João nem com
nenhum outro apóstolo, mas com
Maria Madalena, a quem um
ministro da Igreja chamou de
"apóstolo dos apóstolos" . Como ela
não o reconhece, ele a chama pelo
nome. "Voltando-se, ela lhe diz em
hebraico: 'Rabbuni!', que quer dizer
'Mestre'. Jesus lhe diz: 'Não me
retenhas, pois ainda não subi ao
Pai; vai, porém, a meus irmãos"'.
O padecimento e a morte na cruz
estavam no extremo oposto ao
do batismo no ministério terreno de
Cristo, mas também eles foram
adequadamente descritos em ícones.
Trabalhando na ilha de Creta nos
anos imediatamente posteriores
à queda de Constantinopla em
1453, Nicholas Tzafuris deu
continuidade, mas também adaptou
e, até certo ponto, "ocidentalizou"
a tradição bizantina de apresentar
Cristo como o Homem Sujeito
à Dor (Is 53:3).
"Desceu aos infernos" é talvez
a frase mais intrigante do Credo
dos Apóstolos. Segundo o Novo
Testamento (1 Pd 3:1 8-20), Cristo,
"morto na carne, foi vivificado no
espírito, no qual foi também pregar
aos espíritos em prisão, a saber,
os que foram incrédulos outrora".
Isto se destinava a dar-lhes uma
segunda oportunidade ou foi nesta
ocasião que ele "despojou os
Principados e as Autoridades,
expondo-os em espetáculo em face
do mundo, levando-os em cortejo
triunfal" (Cl 2:15) ? A ênfase
oriental no Cristo Victor, presente
também neste ícone russo do século
XVI (ao lado), reforçou esta
última explicação.

Cristo, a Imagem Verdadeira, era


também Jesus, a Virada da História.
Por conseguinte, tanto no Oriente
quanto no Ocidente, a perspectiva
do Juízo Final era fonte de terror e
de fascínio. Conhecido na Rússia
como Strashnyj sud,
"o julgamento terrível", inspirou
artistas, como este pintor de ícones
da escola de Novgorod do século
XV, a glorificar aquele perante
quem toda a humanidade haveria de
estar no Dia ·d a Ira, conhecido
no Ocidente latino como Dies irae.
98 + A Imagem Verdadeira

Estimulados pelo uso da encarnação


de Cristo camo justificação das
imagens, os artistas orientais se
dispuseram a pintar até mesmo a
Santíssima Trindade - não nos
inacessíveis confins da vida divina,
mas em aparências terrenas, como
quando apareceu para Abraão:
"Iahweh lhe apareceu no Carvalho
de Mambré [ . .] Tendo levantado os
.

olhos, eis que viu três homens de pé,


perto dele" (Gn 18:1-2) . Andrey
Rublyov, atualmente um santo da
Igreja Ortodoxa Russa, visualizou a
cena em Trindade do Antigo
Testamento.

de Deus Criador na criatura homem era um exemplo de imagem "por imitação", a qual
refletia na estrutura da existência e do pensamento humanos a natureza de Deus como
produtor de imagens. Um Deus vivo não podia ter uma imagem adequada na madeira
e na pedra, mas somente ·na alma racional de sua criatura suprema. Conseqüentemente,
o mandamento contra as imagens baseava-se numa visão não degradada, e sim exal-
A Imagem Verdadeira + 99

tada, das imagens: porque uma imagem adequada de Deus só podia ser algo tão nobre
quanto a mente humana; tentar substituí-la por uma representação menos digna
significava aviltar tanto Deus, o fazedor de imagens, quando o homem, a imagem.
Além desse emprego metafísico da palavra imagem, havia usos históricos. A mente
humana não era capaz de perceber realidades espirituais tais como os anjos desprovidos
de imagens e linguagem físicas. A própria Bíblia acomodara o seu modo de falar a essa
característica do pensamento e da linguagem humanos, apresentando o seu sublime
conteúdo por intermédio de analogias simples e até corriqueiras e tornando "seu [de
Deus] eterno poder e sua divindade" inteligíveis "através das criaturas" (Rm 1 :20).
Como deixava igualmente claro o uso bíblico, as imagens históricas desse tipo podiam
deslocar-se em qualquer direção no tempo, descrevendo ou "as coisas que ainda estão
por ser no futuro", ou "as coisas que já ocorreram no passado" . De acordo com a
maneira cristã de lê-la, a Bíblia hebraica estava repleta de imagens e antecipações do que
se cumpriria com a vinda de Jesus. E elas eram reais em si e por si: o povo de Israel
atravessou deveras o mar Vermelho durante o êxodo do Egito. Mas constituíam também
imagens do que estava por vir: travessia do mar Vermelho "simbolizava" o batismo
cristão. No entanto, certas imagens eram "monumentos dos fatos passados, de alguma
realização ou virtude maravilhosa, para a glória, a honra e a memória" . Um livro de
história escrito como memorial dos eventos passados não deixava de ser uma tal
imagem; por outro lado, as imagens não literárias da memória não eram aberto
intrinsecamente diferentes dos livros; eram "livros para os iletrados", distintos da Bíblia
apenas na forma, não no conteúdo.
O abismo entre essas duas categorias de imagens, a metafísica e a histórica, foi
transposto quando o Logos se fez carne. A falácia da concretude mal aplicada, pela qual
a idolatria intuíra corretamente uma identidade de imagens em abstrato, mas a exe­
cutara erroneamente no concreto, foi substituída pelos fatos concretos da vida de Jesus
descritos nos Evangelhos, como relata João de Damasco, teólogo grego do século VIII e
"Doutor da Igreja", no que parece ser um catalogue raisonné dos ícones bizantinos:

Porque aquele que por excelência de natureza transcende toda quantidade, tamanho
e magnitude, que tem o seu ser na forma de Deus, mas, çiando a si mesmo a forma
de um servo, limitou-se numa quantidade e num tamanho e adquiriu uma
identidade física, não hesiteis mais em pintar retratos e exibi-los, para que todos
vejam aquele que escolheu deixar-se ver: sua inefável descida do céu para a terra;
seu nascimento da Virgem; seu batismo no Jordão; sua transfiguração no monte
Tabor; o padecimento que nos livrou do padecimento; os milagres que simbolizaram
sua natureza e sua atividade divinas quando eram realizadas pela atividade de sua
carne [humana]; o sepultamento, a ressurreição e a ascensão ao céu, pelo qual o
Salvador realizou a nossa salvação - descrevei todos estes fatos, tanto em palavras
quanto em cores, tanto em livros quanto em quadros.
100 + A Imagem Verdadeira

Contrariamente a uma impressão


muito difundida, a pintura de
ícones de Cristo, de sua Mãe e de
seus santos e apóstolos não é uma
arte que se vincula apenas aos
territórios históricos de tradição
cristã oriental. Também
contemporânea, sua manifestação
se observa nas comunidades do
Novo Mundo (como neste exemplo
do Canadá do século XX), onde
tal tradição continua viva.

Assim, o Deus que proibira a arte religiosa como um esforço idólatra de descrever o
divino em forma visível havia tomado agora a iniciativa de descrever-se em forma
visível, e o fizera não em metáfora ou num memorial, mas em pessoa e, literalmente, "na
carne" . O metafísico tinha se tornado histórico, e o Logos cósmico, que era a imagem ver­
dadeira do Pai desde a eternidade, tornara-se uma parte do tempo e podia ser retratado
numa imagem de sua pessoa divina-humana enquanto esta operava os eventos da his­
tória da salvação. Os ícones descreviam a humanidade de Jesus banhada da presença da
divindade: nesse sentido, o que se retratava era o corpo "deificado" de Cristo. A ma­
neira mais característica de a Igreja Ortodoxa oriental falar na salvação conferida em
Cristo foi chamá-la "deificação"; daí, pelas impressionantes metáforas de Gerard Manley
Hopkins, poeta e padre jesuíta do século XIX, esse "mortal refugo", tendo sido feito "o que
A Imagem Verdadeira + 101

Cristo é", tornou-se "diamante imortal" . A iconografia do ícone (recorrendo a uma


tautologia deliberada) descreve simultaneamente a especificidade e a deificação. Ao
descrever a indissolúvel união da natureza intemporal do Todo-Poderoso com a natureza
histórica de Jesus de Nazaré, os ícones bizantinos de Cristo retratavam aquele que
incorporava não só o Verdadeiro em seu ensinamento e o Bom em sua vida, mas também
o Belo em sua forma na qualidade de "o mais belo dos filhos dos homens" (SI 45:3).
Da tríade, o Belo levou muito mais tempo para se desenvolver na história cristã. Um
dos primeiros livros de Agostinho, perdido, intitulava-se Sobre o belo e o conveniente. E,
numa das passagens mais memoráveis das Confissões, ele exclamava: "Tarde eu Vos
amei, ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde eu Vos amei!". Como viam os iconoclastas
com muita clareza, o Belo é o elemento mais sutil e sedutor da tríade. Os perigos de
identificar o Sagrado com o Verdadeiro (intelectualismo) e com o Bom (moralismo) ma­
nifestaram-se reiteradamente na história do judaísmo e do cristianismo, mas é digno de
nota que a Bíblia haja isolado a identificação do Sagrado com o Belo como a tentação
especial ao pecado. A formulação de uma estética que se ajustasse à realidade dessa
tentação exigia sofisticação filosófica e teológica. Ademais, devia haver uma inspiração
para a arte sacra, uma inspiração de um tipo mais que meramente didático, antes que
pudesse existir qualquer justificação para tal estética; e era necessário um desafio
filosófico-teológico sofisticado à arte sacra para que fosse possível sua defesa. Tudo isso
- inspiração, desafio e justificação - foi finalmente oferecido pela pessoa de Jesus, que
veio para ser visto tanto como base da continuidade quanto como fonte de inovação na
arte e, assim, num sentido que Agostinho não podia ter dado a suas palavras, como uma
"beleza tão antiga e tão nova".
Portan to, amigos,
Ao distante sepulcro de Cristo,
Cujos soldados somos agora, e sob cuja bendita cruz
Nos comprometemos a combatef [ .] . .

Para expulsar os pagãos daqueles san tos lugares,


Que faz mil e quatrocentos anos
Percorreram os sagrados pés
Que, para a nossa salvação,
Foram pregados na dura cruz.

- William Shakespeare,
Hen rique IV

8 + Cristo Crucificado

Os seguidores d e Jesus concluíram muito cedo que ele viveu para morrer, que a
morte foi não a interrupção de sua vida, mas o seu propósito fundamental. Os
eredos reconheciam isso, passando diretamente de seu · nascimento "da Virgem
Maria" par_a a crucificação "sob o poder de Pôncio Pilatos" . O que se disse do
barão de Cawdor em Macbeth era verdadeiro, principalmente em Jesus: "Nada
em sua vida pôde tanto honrá-lo como a maneira de abandoná-la" .
"Quanto a mim", disse Paulo, "não aconteça gloriar-me senão na cruz de
nosso Senhor Jesus Cristo, por quem o mundo está crucificado para mim e eu
para o mundo" (Gl 6:1 4). Mas o evangelho da cruz permeia o Novo Testa­
mento e a literatura cristã primitiva. Cristo era o "Cordeiro de Deus, que tira o
pecado do mundo" (Jo 1 :29). O uso do sinal-da-cruz aparece muito cedo na
104 + Cristo Crucificado

Tanto no Oriente quanto no história cristã e, quando passa a ser mencionado, já está consolidado. Tertuliano declara:
Ocidente, a visão cristã de Jesus
"a cada passo e movimento adiante, a cada entrar e sair [ ... ] em todas as ações ordinárias
Cristo deixou-se dominar pela
crença de que ele vivera para da vida cotidiana, marcamos o sinal em nossa testa" . O sinal-da-cruz de Jesus penetrou,
morrer. Contudo, foi na cristandade como nenhum outro símbolo, a cultura medieval: o folclore, a literatura, a música, a arte
ocidental que se deram a mais
brilhante especulação sobre essa e a arquitetura. Para emprestar coerência a essas impressões cruciformes, pode ser útil
crença (a de Anselmo de analisar a distinção de Paulo: "Cristo crucificado [ . . . ] poder de Deus e sabedoria de
Canterbury), as mais detalhadas e
Deus" (1 Cor 1 :23-24).
gráficas representações dela (na arte
dedicada à crucificação) e a sua Como poder de Deus, o sinal-da-cruz era um talismã contra o mal. As vidas dos
mais sublime celebração musical santos medievais estavam repletas de histórias de seus poderes milagrosos. Num dos
(na Paixão de são Mateus, de
Bach). No começo do século XX, Atos dos apóstolos apócrifos, fazer o sinal-da-cruz diante de uma porta trancada leva a
Gólgota, de Edward Munch, que ela se abra e, num dos Martírios, o sinal silencia os latidos de um cão. Agostinho
apresentava a centralidade da morte
a transfarmar não só a aparência do relata o caso de uma senhora, em Cartago, que, sofrendo de câncer no seio, "foi
próprio Crucificado, como também instruída em sonhos a esperar a primeira mulher que saísse do batistério depois de ser
a dos circunstantes ao pé da cruz,
batizada e pedir-lhe que fizesse [o sinal-da-cruz] em sua chaga. Ela obedeceu e curou-se
cujos rostos se mostram
tão esqueléticos e espectrais imediatamente" . Remaclus, um missionário, fez o sinal-da-cruz sobre uma fonte
quanto o dele. dedicada a deuses pagãos, expulsando-os e purificando instantaneamente a água. Certo
"ordálio da cruz" tornou-se, na prática legal medieval, um modo de solucionar os
litígios; assim, um código do século VIII prescreve: "Se uma mulher declara que [seu
casamento não foi consumado], mandai-a ir à cruz; e, se for verdade, que eles se
separem" . Há relatos de hemorragias, no campo de batalha, que nenhum torniquete
conseguia conter, mas que a cruz estancou. À s vezes, ela chegava até a ressuscitar os
Cristo Crucificado + 105

mortos, e o crucifixo tinha um poder especial contra os vampiros. Existia uma conexão A identificação de Cristo com o
íntima entre esses usos da cruz e a crença no poder dos demônios. O sinal-da-cruz servia "Cordeiro de Deus que tira o pecado
do mundo" (Jo 1:29) recebeu sua
de amuleto mágico e, devido a sua inseparável associação com a crucificação de Jesus, exposição mais comemorativa no
funcionava simultaneamente como lembrete de que o poder contra os demônios e as Livro do Apocalipse, em que o
Cordeiro sacrificado inicia o seu
doenças não provinha do amuleto ou do gesto, mas do poder de Deus, que veio na vida reinado e conduz os seguidores em
e na morte de Jesus para destruir o mal. procissões triunfais. No gigantesco
retábulo para a Igreja de São Bravo,
Um caso especial era o poder das relíquias da verdadeira cruz, que, segundo se
em Ghent, Hubert e Jan van Eyck
contava, santa Helena encontrara, em 326, num aposento sob a atual Igreja do Santo fizeram desta visão do triunfante
Sepulcro, em Jerusalém. Então, "a mãe do imperador erigiu uma igreja magnífica no Cordeiro de Deus não só o centro
do painel inferior como também
lugar do sepulcro [ . . . ] . Ali deixou uma parte da cruz, encerrada numa caixa de prata, o foco de toda a obra.
como lembrança para os que desejassem vê-la. A outra parte, enviou ao imperador, que,
convencido de que a cidade onde a relíquia fosse conservada ficaria perfeitamente
protegida, embutiu-a secretamente em sua própria estátua [ . . . ] em Constantinopla" . Mas
essas duas não eram as únicas partes. Menos de meio século depois, Cirilo de Jerusalém
observou: "o mundo inteiro se encheu de pedaços do lenho da cruz". Há referências a
tais fragmentos de madeira na Capadócia e em Antioquia, na segunda metade do século
IV, e na Gália, no começo do V; em meados desse mesmo século, o patriarca Juvenal de
Jerusalém enviou um deles ao papa Leão I, em Roma. O pontífice Gregório I deu um de
presente à rainha dos lombardos, Teodolinda, e outro a Recaredo I, rei dos visigodos,
que· se converteu ao catolicismo. A descoberta (ou, como era chamada em latim e de­
pois, com ironia não intencional, também em inglês, a "invenção") da cruz por parte de
106 + Cristo Crucificado

Helena foi comemorada em 3 de maio (até ser abolida do rito latino no Concílio
Vaticano II). A própria verdadeira cruz foi capturada pelos persas no século VII e re­
cuperada pelo imperador Heráclio; no século XII, porém, foi levada ao campo de
batalha pelo bispo de Belém e perdeu-se - com exceção, é claro, dos muitos fragmentos
espalhados pelo mundo.
Acreditava-se que a cruz era "o poder de Deus" , sobretudo nos combates. Após a
vitória na ponte Mílvian, Constantino ordenou que um estandarte da cruz fosse levado
ao campo de batalha à frente de cada um de seus exércitos. A "cruz que garantia a
vitória" converteu-se na insígnia militar em terra e mar e, no Ocidente, no fim do
século XI, passou a ser o símbolo central das Cruzadas à Terra Santa, como expressa
Shakespeare:

[ . . ] daqueles santos lugares,


.

Que faz mil e quatrocentos anos


Percorreram os sagrados pés
Que, para a nossa salvação,
_
Foram pregados na dura cruz.

Atribuíram-se à cruz todos esses poderes vitoriosos porque ela fora o instrumento da
maior de todas as vitórias, a vitória cósmica do poder de Deus sobre o poder do diabo
na morte e na ressurreição de Jesus. "A palavra da cruz é chamada o poder de Deus",
disse João de Damasco, "porque por meio dela nos foi revelado o poder de Deus, isto é,
sua vitória sobre a morte" . As versões mais antigas dessa idéia descreviam a vitória
como um ardil aplicado contra a aliança profana do diabo com a morte e o pecado.
Numa das imagens mais impressionantes - e problemáticas - desse estratagema, o diabo
e seus aliados eram apresentados como um peixe gigantesco que vinha devorando todos
os seres humanos desde Adão. Quando a humanidade de Cristo foi lançada no lago, o
diabo a tomou por mais uma vítima. Escondido na isca da natureza humana de Cristo,
porém, achava-se o anzol de sua natureza divina; assim, ao engolir o homem Jesus em
sua morte na cruz, o diabo ingeriu também a divindade. Foi obrigado a regurgitá-la e,
com ela, expeliu todos os que Jesus tomara como seus. Assim, a morte e o diabo, que
haviam capturado a raça humana, acabaram capturados. Por intermédio da cruz veio a
libertação e a vitória.
De forma mais sutil, essa teoria da cruz tornou-se a metáfora do Christus Victor. Aqui
a cruz se transformou no sinal da invasão de Deus em território inimigo, a "miraculosa
batalha" pela qual Jesus Cristo operou a redenção. Descartando a metáfora mais - gros­
seira do ardil, o tema Christus Victor conservou a idéia de que, na cruz, Cristo enfrentou
os inimigos de Deus e do homem. A morte na cruz foi sua capitulação àquele poder,
diante do qual ele se fez fraco. No entanto, levou os inimigos consigo à sepultura. Na
ressurreição, libertou-se de seu poder, porém deixou-os no túmulo. Ainda que essa in-
Embora originada no Oriente, em
Constantinopla e presumivelmente
em Jerusalém, a história da
descoberta da Verdadeira Cruz por
santa Helena, mãe do imperador
Constantino, não tardou a fascinar
a imaginação dos crentes, poetas e
artistas ocidentais, passando a
integrar a coleção popular A Lenda
de Ouro. Na década de 1560, a
pintura de Paolo Veronese, A visão
de santa Helena, fixou o momento
em que, conforme certas versões da
história, dois anjos apareceram
para a imperatriz carregando a cruz
que ela depois acharia.
108 + Cristo Crucificado

terpretação da cruz como poder de Deus fosse mais importante no Oriente grego que no
Ocidente latino, nunca se perdeu nem mesmo no Ocidente, e a Reforma o reviveu. Na
Paixão segundo são João, de J. S. Bach, as derradeiras palavras na cruz - "Está consu­
mado!" - oferecem ocasião para que a ária exclame:

Vede, o Leão de Judá vence com poder


E agora a luta termina vitoriosa:
"Está consumado!"

Na Idade Média, a Sexta-feira Santa era o único dia do calendário da Igreja em que
não se celebrava o sacrifício da missa porque, nessa data, os fiéis comemoravam o
sacrifício original da cruz no Calvário. A arte medieval situava a crucificação no lugar
onde estava enterrado o crânio de Adão, e as procissões e o drama litúrgico con­
servavam vivo o motivo do Christus Victor, muito embora a teologia latina não
consegµisse tratá-lo adequadamente em virtude de sua preocupação com a morte de
· cristo como satisfação vicária.
Um antigo poema em inglês, The dream of the rood [O sonho da cruz], apresenta a
árvore da cruz descrevendo o "jovem herói" que a ergue num combate com a morte e,
mesmo sucumbindo, triunfa. O poeta medieval Venâncio Fortunato, escrevendo no fim
do século VI, coloca a interpretação dramática da cruz em dois poemas latinos que se
tornariam uma passagem padronizada da música da Quaresma. Uma delas, "Vexilla
regis prodeunt", era o hino processional do fragmento da cruz sagrada enviada à rainha
franca pelo imperador bizantino:

Os estandartes reais avançam,


A cruz resplandece com místico fulgor.

A outra, "Pange, lingua", tornava ainda mais explícito o Christus Victor:

Canta, língua minha, a gloriosa batalha,


Canta o fim da refrega.
Agora, sobre a cruz, o troféu,
Soa alta a melodia triunfal;
Conta como Cristo, o redentor do mundo,
Sendo vítima, venceu um dia.

Outro antigo recurso literário adaptado ao sinal-da-cruz era o poema figurado, que
combinava as formas poéticas com as visuais mediante a variação da extensão dos
versos numa configuração prescrita. Em O Louvor da santa Cruz, do teólogo do século IX
Rabanus Maurus, o tema dominante era Christus Victor. A maior parte de seus versos
Cristo Crucificado + 109

dispunha-se na forma de engradamentos quadrados formados por um número de letras O hino "Vexílla regis prodeunt"
[Avante os estandartes reais], do
igual ao de linhas do texto desse verso, o que permitia formar cruzes com braços de
poeta latino Venâncio Fortunato,
comprimento igual superpostos ao texto. Outra elaboração consistia em arrumar os celebrava a procissão festiva na qual
símbolos dos evangelistas - um homem (Mateus), um leão (Marcos), um touro (Lucas) e uma relíquia da verdadeira cruz,
presente do imperador bizantino aos
uma águia (João) - em forma de cruz. francos e a sua princesa, era ·

Além de símbolo do poder de Deus, a cruz era um sinal da sua sabedoria, a qual, erguida diante de uma imensa
multidão de fiéis. Muitos séculos
como "loucura de Deus", era mais sábia que qualquer vã sabedoria humana (1 Cor 1 :25). depois, em 1496, Gentile Bellini
"Assim como a sabedoria do mundo é loucura para Deus", dizia Tertuliano, "também relembrou uma procissão
semelhante, de 1444, na qual a
a sabedoria de Deus é loucura na avaliação do mundo" . Buscando celeb�ar a cruz
relíquia da verdadeira cruz da
como sabedoria, escritores e artistas muitas vezes se esforçavam para revelá-la primei­ Escola de São João Evangelista foi
ramente em sua "loucura", tal qual no paradoxo da afirmação de Agostinho: "A exposta na praça diante da Basz1ica
de São Marcos, em Veneza.
deformidade de Cristo vos forma. Se ele não tivesse querido ser deformado, vós não
haveríeis recobrado a forma que perdestes. Portanto, ele foi deformado quando estava
na cruz. Sua deformidade, porém, é a nossa perfeição. Nesta vida, pois, apeguemo-nos
com firmeza ao Cristo deformado" . Acima de tudo, o mistério do grito de desamparo
na cruz - "Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?" - evocava medo . e
consternação. O começo da sabedoria era a aceitação desse mistério: aquele, que os
cristãos acreditavam ser "um só com o Pai", tinha sido - fosse qual fosse o sentido que
cada um podia dar a isso - abandonado pelo Pai na cruz.
Como o Novo Testamento
(Rm 5, 1 Cor 1 5) caracterizava
Jesus Cristo como o Segundo Adão,
que veio reparar o dano provocado
pelo Primeiro, a imaginação cristã
procurou paralelos entre os dois:
a tentação de Génesis 3 e a tentação
de Mateus 4; o Jardim do Éden e o
Jardim de Getsêmani; a árvore do
conhecimento e do mal e a da cruz.
Um exemplo particularmente
imaginativo desse paralelismo era
a crença, que se desenvolveu sem
nenhum aval bfblico explfcito,
de que a cruz de Cristo foi erguida,
no Monte Gólgota, exatamente
no lugar em que estava enterrado
o crânio de Adão, "para que
onde surgiu a morte pudesse a vida
surgir novamente". De
extremidades opostas da Europa
provêm duas versões desta crença,
a de São Marcos em Veneza e
A Grande Paixão de Albrecht
Dürer,·de 14�8.
1 12 + Cristo Crucificado

Em Os Louvores da Santa Cruz, Quando se falava na cruz como sabedoria, geralmente era para apresentar Jesus cru­
de Rabanus Maurus (abaixo),
poema latino figurado, feito no
cificado como um exemplo de paciência e caridade mesmo em meio ao padecimento:
século IX, a maior parte dos versos "Com efeito, para isto é que fostes chamados, pois que também Cristo sofreu por vós,
se dispõem na forma de grades, deixando-vos um exemplo, a fim de que sigais os seus passos. Ele não cometeu nenhum
compondo um conjunto curioso:
a série de letras é igual ao número pecado; mentira nenhuma foi achada em sua boca. Quando injuriado, não revidava; ao
de linhas do texto desses versos, sofrer, não ameaçava, antes, punha a sua causa nas mãos daquele que julga com justiça"
o que permitiu sobrepor a ele cruzes
de igual comprimento. (1 Pd 2:21-23). Uma das obras mais lidas na Idade Média foi Moralia, do fim do século
VI, de autoria do papa Gregório I, uma exibição imponente do Livro de Jó, que consi­
Uma das visões oferecidas ao
derava os sofrimentos do santo pré-cristão para, por meio deles, chamar a atenção para
observador do Livro da Revelação
era a de "quatro seres vivos" o padecimento exemplar de Jesus. Três séculos depois, no épico de Odo sobre o Paraíso
dispostos "ao redor do trono", perdido e recuperado, Cristo, que veio salvar o mundo do orgulho, "ensina isto princi­
a louvar incessantemente a Deus
(Ap 4:6-11). Na interpretação palmente por meio de todas as coisas que faz com extrema humildade, dizendo 'apren­
bfblica e nas ilustrações e capas dos dei de mim, porque sou manso e humilde de coração'" (Mt 1 1 :29).
Evangelhos, artistas, como os que
criaram os Evangelhos de Lindau
Todavia, a imitação do exemplo de Cristo jamais foi o significado completo da cruz.
(ao lado), tomaram essas criaturas Sua própria forma, dizia-se, justificava os caminhos de Deus rumo ao homem, sendo que
como símbolos dos evangelistas -
um homem (Mateus), um leão
(Marcos), um touro (Lucas)
e uma águia (João) - dispondo-os
em forma de cruz.
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S · Q, 1 " ' "' A e 1 1 l\ • I l l A
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114 + Cristo Crucificado

as barras vertical e horizontal representavam a unificação e a suprema harmonia de tudo


em Cristo crucificado. Pois a cruz era a prova mais evidente de todas do poder do mal
no mundo; Jesus disse a seus captores: "é a vossa hora, e o poder das Trevas" (Lc 22:53).
Mas era também a prova suprema de que a vontade e o caminho de Deus finalmente
prevaleceriam independentemente do que os planos humanos conspirassem fazer. A
verdadeira sabedoria, a da cruz, consistia na capacidade de manter-se firme, sem
ignorar a presença do poder do mal, como o otimismo superficial sentia-se tentado a
fazer, e sem permitir que a presença do poder do mal negasse a soberania do Deus
único, como tendia a fazer o dualismo fatalista. Assim, a providência divina - que
Boécio definia em relação ao destino como "o próprio protótipo de Deus, colocado no
Legislador Supremo que dispõe todas as coisas" - torna-se, nas mãos de Tomás de
Aquino, parte de seu exame da atividade divina com relação ao mundo, um exame cujo
fundamento último era o imerecido amor de Deus.
A sabedoria da cruz era, pois, a revelação não só da moralidade humana como tam­
bém do amor divino. O teólogo medieval francês Pedro Abelardo, num ensaio intitulado
"A Cruz", enfatizava que o amor de Deus em Cristo estava além "do nosso poder de
participar da paixão de Jesus com o nosso sofrimento e de segui-lo carregando a nossa
própria cruz" . O sentido fundamental da sabedoria da cruz estava contido nas palavras
de Jesus: "Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos" (Jo
Para explicar o inexplicável 1 5: 1 3) . O objetivo da cruz era aquecer os corações congelados dos pecadores com o calor
mistério da redenção por intermédio
de Cristo, uma das teorias dizia do amor divino. Cristo morreu crucificado não para mudar a mente de Deus (que, como
que sua morte na cruz expiou tudo nele, era imutável), mas "para revelar o amor [de Deus] por nós ou para
os pecados da raça humana,
satisfazendo a justiça convencer-nos de quanto devemos amar 'quem não poupou o seu próprio Filho' (Rm
(ou "retidão") violada de Deus e, 8:32) por nós" . Isso exibia a autêntica natureza do amor e a profundeza do amor divino,
assim, estabelecendo as condições da
t-0rnando assim possível o amor humano, até mesmo o que exigia sacrifício.
misericórdia divina para a
concessão do perdão. Tal qual a Os críticos de Abelardo achavam inadequada tal linguagem sobre a sabedoria. A
expôs o tratado de 1098, Por que questão era se uma consideração mais profunda da cruz levaria a outra maneira de
Deus se tornou homem, de
Anselmo - o monge beneditino e pensar e falar nela. Essa outra maneira encontrou sua formulação definitiva no tratado
arcebispo de Canterbury que Por que Deus se tornou homem, de Anselmo de Canterbury, considerado por muitos o
empresta seu nome à igreja de
Sant'Anselmo, em Roma -,
fundador da escolástica. Ele desenvolve sua argumentação, como diz, "como se Cristo
a teoria continuou a ser considerada não tivesse existido", procedendo exclusivamente pela razão. A pressuposição sub­
válida pelos reformadores do século
jacente era a consistência de Deus e do universo, sua "retidão [rectitudo ]" . A retidão con­
XVI e por grande parte do
protestantismo posterior. sistia em conferir a cada um a devida medida de honra. Embora criada para participar
da retidão, a raça humana se recusava a conferir a Deus a devida honra e caía no
pecado. Tratava-se de algo que Deus não podia simplesmente esquecer ou perdoar ar­
bitrariamente sem violar a "retidão", tal era a exigência da divina justiça. Contudo, tanto
a sabedoria humana quanto a revelação divina tornavam claro que Deus era um Deus
não só de justiça, mas também de misericórdia, que declarava: "certamente não tenho
prazer na morte do ímpio; mas antes, na sua conversão, em que ele se converta do seu
caminho e viva" (Ez. 33:1 1 ) .
Cristo Crucificado + 1 15

Tal era o dilema divino resolvido pela sabedoria ·da cruz. Para a justiça divina, pra­
ticar semelhante violação da ordem moral merecia a morte, colidia com a misericórdia
de Deus, que desejava a vida, não a morte. Aquele que era culpado de pecado, o ho­
mem, não podia ser castigado senão perdendo-se para sempre; aquele que queria
perdoar, Deus, não podia fazê-lo a não ser violando a ordem moral do universo.
Somente aquele que era capaz de expiar os pecados (sendo humano), mas de fazer uma
expiação que fosse de infinito valor (sendo divino) podia cumprir os imperativos da
misericórdia divina e, simultaneamente, satisfazer as exigências da justiça divina. A ex­
piação, ademais, tinha de ser voluntária e não podia ser feita pelo pecador em seu
próprio favor, pois isso não beneficiaria os demais. Por essa razão, Deus teve de se fazer
homem e morrer na cruz para realizar os fins da divina misericórdia e ainda satisfazer a
justiça divina e, assim, manter a "retidão" . Sua morte na cruz, pode-se dizer, tornou
moralmente possível a Deus perdoar.
A doutrina da satisfação de Anselmo incorporava temas da prática penitencial e do
direito canônico da Igreja: o pecador que estivesse verdadeiramente contrito e se
confessasse era absolvido, mas tinha de fazer a restituição do que o pecado tomara.
Portanto, isto se achava numa escala cósmica com o pecado de toda a raça humana, e a
morte de Jesus na cruz era um ato de restituição e reparação ao qual se vinculavam os
atos humanos de satisfação. Anselmo estabeleceu uma "sabedoria da cruz" que devia
ser compreendida tanto pela razão humana quanto pela revelação divina.
Em todos os níveis da cultura, a sociedade medieval, fosse Oriental ou Ocidental,
estava permeada do sinal-da-cruz literal e figurativamente. Assim, independentemente
da credibilidade histórica que se esteja disposto a outorgar à afirmação de Cirilo de
Jerusalém antes citada - "o mundo inteiro se encheu de pedaços do lenho da cruz" -
podemos ver na Idade Média a realização de outra afirmação, aparentemente mais
modesta, mas na verdade mais extravagante, no primeiro parágrafo do primeiro livro
escrito por Atanásio de Alexandria, um contemporâneo mais velho de Cirilo: "O poder
da cruz de Cristo encheu o mundo" .
Jesus, a minha cruz eu tomei,
Para tudo deixar e seguir-vos .
Despojado, desprezado, abandonado,
Doravante eu Todo hei de ser vosso.

- Henry Francis Lyte,


Poemas essencialmen te religiosos

9 + O Monge que Governa o Mundo

As palavras de Jesus que inspiraram a epígrafe acima (Mt 1 6:24) sempre foram
uma convocação à negação de si a todos os seus discípulos. Contudo, no
começo do século VI, tornaram-se o lema do monasticismo cristão ocidental,
que negava o mundo por Cristo - e em nome dele, o Monge que governava o
mundo, partiu rumo a sua conquista. Embora o estilo de vida de Jesus
contrastasse com o do bem mais ascético João Batista (Lc 7:31 -35), os impera­
tivos fundamentais da vida monástica não foram menos importantes para o
retrato de Jesus nos quatro Evangelhos. Os monges começaram por ajustar-se
aos moldes de Cristo e acabaram ajustando Cristo aos seus próprios moldes. O
motivo "Cristo, o Monge" povoou os manuscritos monásticos e as peças de
altar da Idade Média, assim como as adaptações modernas.
A Vida de Antônio, escrita em
grego por Atanásio em meados do
século IV, foi traduzida para o latim
quase imediatamente e, por isso,
pôde ser lida também no Ocidente,
por exemplo, por Agostinho.
Suplementada por outros escritores
ocidentais, incluindo Jerônimo,
que compôs A vida de são Paulo
Eremita, possibilitou que
"o velho que vivera vida de
eremita" e que recebera uma visita
de Antônio, como conta Atanásio,
fosse identificado com Paulo
Eremita. O sátiro representa o
hedonismo pagão sobre o
qual considerava-se que Cristo
havia triunfado por meio do
ascetismo desses santos.
O Monge que Governa o Mundo + 119

De certo modo, o monasticismo cristão é mais antigo que a cristandade, pois antes
dele existiram eremitas e comunidades monásticas judias e pagãs. No deserto egípcio
viviam os Therapeutae judeus, descritos por Filo de Alexandria, um contemporâneo de
Jesus, em Sobre a vida contemplativa. O ascetismo cristão no Egito teve a sua expressão
mais duradoura em santo Antônio e na influente Vida de santo Antônio, preparada por
Atanásio após a sua morte. Um de seus leitores ocidentais foi Agostinho, que fundou
uma comunidade monástica para a qual escreveu uma carta que se tornou a base da
Regra de santo Agostinho. Todavia, o documento mais influente do ascetismo ocidental é a
Regra de são Bento, feita um século depois. O objetivo central desta última era ensinar os
monges noviços a "renunciar a si mesmos a fim de seguir Cristo", a "avançar nos
caminhos [de Cristo] tendo os Evangelhos como guia" e, pela perseverança na vida
monástica, a "participar da paixão de Cristo mediante a paciência e, desse modo, a
merecer unir-se a ele em seu reino" - sua fórmula básica era: "nada colocar acima do
amor de Cristo" . Esse amor, ademais, modificava um dos impulsos básicos que levavam
ao monasticismo. "Entranhada na consciência monástica está a solidão", escreve um
historiador do ascetismo. Mas, prossegue ele, "descobris para vossa vexação que
entranhado na consciência cristã está o axioma de que deveis acolher os forasteiros
como se fossem Cristo, e eles realmente podem ser Cristo" . Conseqüentemente, citando
o Evangelho (Mt 25:35), especificou Bento em sua Regra: "Todo for�steiro que chegar ao
mosteiro será recebido como Cristo" . Ele definia a ':ida do monge como uma partici­
pação na de Cristo. As três virtudes por eles juramentadas - .ª pobreza, a castidade e a
obediência - baseavam-se em Cristo como padrão e expressão concreta.
Embora o impulso ascético, tal qual o articulou Paulo (1 Cor 7: 1 -7), estivesse pre­
sente no movimento cristão desde o começo, não foi por coincidência que ganhou
importância justamente quando a Igreja selava a paz com o Império Romano e o mundo.
Em parte, o preço dessa paz foi ajustar-se com os que se mostravam dispostos a acom­
panhar o cristianismo do mesmo modo que estiveram dispostos , a continuar sendo pa­
gãos desde que não lhes custasse muito. Agora que era mai� fácil ser um cristão que um
pagão nominal, as multidões que começaram a lotar as igrejas não pretendiam tornar-se
"atletas" de Cristo; mas era precisamente este o termo usado por Atanásio para
descrever Antônio, o asceta, com seu treinamento rigoroso para lutar e vencer na
competição de Cristo contra o diabo, o mundo e a carne. Esses atletas monásticos, como
formulou um estudioso, "não fugiam apenas do mundo em toda a acepção da palavra,
fugiam também da Igreja mundana" . O monasticismo dos séculos IV e V foi um protesto
em nome da autêntica doutrina de Jesus contra um subproduto quase inevitável do
acordo com Constantino, a secularização da Igreja.
Tal fato introduziu na vida e na doutrina da Igreja um padrão duplo de dis­
cipulado, dividindo as exigências de Jesus entre os "mandamentos", que implicavam
"necessidade" e deviam ser observados por todos, e os "conselhos de perfeição", que
"dependiam da escolha" e obrigavam somente os atletas monásticos. "Se queres ser
O mosteiro de Monte Cassino foi
construído por Bento em meados de
529, tornando-se a matriz dos
mosteiros beneditinos. Foi diversas
vezes destruído em guerras: pelos
lombardos em 585, pelos
muçulmanos em 884, pelos
normandos em 1046 e pelos
bombardeiros aliados em 1944
(fotografia acima). E também
diversas vezes foi restaurado, como
em 1950-54 (fotografia abaixo).
O Monge que Governa o Mundo + 121

perfeito, vai, vende os teus bens e dá aos pobres"; ao mesmo tempo, ele mencionara os
"que se fizeram eunucos por causa do Reino dos Céus" (Mt 1 9:21, 1 2). �stes não eram
mandamentos que estabeleciam o que era necessário à salvação, mas conselhos de
perfeição; a fim de deixar isso claro, Jesus havia acrescentado a cláusula: "Quem tiver
capacidade para compreender, compreenda". A Igreja medieval definia o matr�mônio
como um sacramento, porém jamais deu esse caráter ao celibato nem aos votos mo­
násticos - embora a ordenação ao sacerdócio, que no Ocidente passou a pressupor o ce­
libato, fosse um dos sete sacramentos. No entanto, o Sen�1ão da Montanha exigia
"perfeição" dos ouvintes (Mt 5:48); cada vez mais, o sentido da perfeição passou a ser
procurado não na vida familiar e na lida cotidiana dos crentes cristãos no interior da
sociedade, mas na existência do monge e da monja, aos quais a palavra religioso era
aplicada como um termo técnico.
Todavia, esse protesto contra a Igreja secularizada tornou-se um meio de conquistar
a Igreja e o mundo. A marca mais impressionante da conquista monástica da Igreja
bizantina foi a exigência de celibato para o bispo. O Oriente se opunha radicalmente aos
esforços do Ocidente para impor o celibato a todo o clero paroquial, mas a legislação das
províncias orientais da Igreja finalmente determinou que, embora o clero paroquial
pudesse permanecer casado, os bispos ficavam obrigados ao celibato. Esta combinação
de regras garantiu aos monges o monopólio virtual do episcopado. Como diria um
arcebispo grego do século XV, o monasticismo "goza de tal prestígio e posição que pra­
ticamente toda a Igreja parece ser governada por monges. Assim, se fizerdes. uma ave­
riguação diligente, dificilmente encontrareis alguém do mundo que tenha sido pro­
movido à sagrada hierarquia [inclusive o clero secular], pois ela ficou adjudicada aos
monges. E sabeis que, se alguns são indicados para os santos ofícios [de bispo ou
patriarca], a Igreja estipulou que devem primeiramente vestir o hábito monástico" .
Quando - como no caso notório do erudito Fócio, eleito patriarca de Constantinopla em
858 - a escolha recaiu sobre um leigo, o resultado foi que "todo o mundo monástico
recusou unanimemente obediência ao novo patriarca" . Durante os conflitos sobre os
ícones, no século que precedeu a eleição de Fócio, os monges bizantinos tiveram um
papel decisivo ao conclamar o povo a apoiar as imagens. Passada a controvérsia ico­
noclasta, tornou-se regra que o patriarca ou bispo eleito fosse monge ou monge se tor­
nasse. Os que fugiram do mundo que estava na Igreja obtiveram domínio sobre a Igreja
que estava no mundo. .
A posição dominante do monge na Igreja Ortodoxa oriental ficou visível nas obras
dos dois mais conhecidos descendentes literários dessa ortodoxia no século XIX, Fiodor
Dostoiévski e Leon Tolstoi. Em Os irmãos Karamázov, o stáriets Zósima é a encarnaçã Õ e o
advogado do ideal monástico: "Como ficariam surpresos os homens se eu dissesse que
é destes mansos monges, que não desejam senão orar na solidão, que talvez venha uma
vez mais a salvação da Rússia! Pois, na verdade, eles se prepararam na.paz e no silêncio
para o dia e a hora, para o mês e o ano. Entretanto, em sua solidão, conservaram fiel e
1 22 + O Monge que Governa o Mundo

Quando se compara a Regra de imaculada a imagem de Cristo, na pureza da verdade de Deus, por vezes tal qual os
são Bento com suas predecessoras
(principalmente com a conhecida
antigos pais, os apóstolos e os mártires" . Enquanto isso, Tolstoi, mesmo rejeitando com
Regra do Mestre) e com suas toda veemência a ortodoxia russa, emerge como o "autêntico monge grego" .
sucessoras, a qualidade mais No Ocidente latino, a carreira do monge Jesus no desenvolvimento do monasticismo
impressionante que dela emerge
é a combinação de rigor com é a história dos sucessivos movimentos reformistas da Idade Média. Todos visavam
humanismo, de fervor evangélico rejuvenescer o ideal monástico; alcançar, mediante esse rejuvenescimento, a renovação
com sabedoria pragmática. Não
surpreende que os que viveram pela da Igreja e do papado; e, por intermédio de tal renovação, redimir e . purificar a
Regra a tenham atribuído à sociedade medieval. A evolução intelectual e institucional desses movimentos refor­
inspiração angelical, como fez o
mistas, durante os mil anos entre Bento de Núrsia (que fundou o mosteiro de Monte
pintor anônimo desta miniatura do
século X, conservada na biblioteca
do Mosteiro de São Bento,
em Monte Cassino.
Cassino por volta de 529) e Martinho Lutero (que ingressou no mosteiro dos eremitas O monasticismo cristão oriental
não possui uma "matriz"
agostinianos de Erfurt em 1505), é um relato de inestimável importância histórica. Há
correspondente a Monte Cassino.
uma deprimente repetição de padrões, visto que cada reforma protesta contra a Em compensação, tem um
decadência e a estagnação nos mosteiros, estabelece novas estruturas disciplinares e aglomerado de cerca de vinte casas
monásticas autônomas no "Monte
administrativas a fim de reverter a tendência ao declínio, prevalece durante um ou dois Sagrado", o Monte Athos, no Mar
séculos e então mostra-se, por sua vez, vulnerável às mesmíssimas tendências. Em todos Egeu, como se vê no mapa da
página 1 25. Variaram seu número e
os exemplos, no entanto, nada torna a reforma novamente possível como a afirmação do sua qualidade ao longo dos séculos,
poder transformador da figura de Jesus, o Monge, e a idéia de que ele voltou e, uma vez mas todos mantiveram vínculos
mais, "entrou no Templo e expulsou todos os vendedores e compradores que lá com a igreja matriz no país de
origem. Na fotografia acima, vê-se
estavam" (Mt 21 : 1 2) pelo menos temporariamente.
-
o Mosteiro de Dionísio.
Por meio desses movimentos reformistas, a conquista monástica da Igreja procurou
tornar-se ainda mais cabal. No começo do século IV, os sínodos regionais da Espanha
Na tradição oriental, assim como na
ocidental, a pessoa de Jesus Cristo
está no centro da vida monástica
tanto para o indivíduo quanto para
o conjunto da comunidade. O que a
Regra de são Bento prescreve para
os monges católicos romanos, "nada
valorizar mais do que o amor de
Cristo", é também o que pregam e
praticam os monges ortodoxos
orientais quando se reúnem durante
as refeições, sob o olhar de Cristo
no afresco do refeitório do Mosteiro
de Dionísio, no Monte Athos.

No Oriente, "praticamente toda a


Igreja parece governada pelos
monges" . Tal afirmação significava
que os mosteiros lideraram
não só o empreendimento
missionário, fato que ocorreu
também no Ocidente, como a vida e
a administração das igrejas. E os
monges se tornaram bispos.
São Sava (página 125), membro
da famaia real sérvia e que vivia
como monge no Monte Athos,
retornou ao seu país em 1208
e obteve para ele um "autocéfalo",
ou seja, uma igreja ortodoxa
de administração independente.
O Monge que Governa o Mundo + 125

exigiam o celibato do clero paroquial e, no fim dele, uma série de papas e concílios
tornaram a exigência universal. Não obstante, foram necessárias várias centenas de anos
para que se pudesse impô-la. Tal imposição está associada à obra de Hildebrando, o
reformador do século XI que, tendo sido a eminência parda do papado durante um
quarto de século, tornou-se o papa Gregório VII em 1 073. Sua formação sob a influência
da ordem cluniacense, dedicada a erradicar a corrupção que infestava o monasticismo
beneditino, convenceu-o de que a maneira de adequar a Igreja e o papado à vontade de
Cristo consistia em restaurar os ideais originais da vida monástica e aplicá-los à Igreja
como um todo. Um componente básico dessa reforma foi a imposição do celibato clerical,
que pode ser definido, numa fórmula adotada pelo papa João Paulo II, como uma
imitação de Jesus Cristo pela qual "o padre é um homem que vive só para que os outros
possam não ficar sós" . No contexto do século XI, o celibato foi um meio de assegurar a
independência do sacerdote e do bispo em face das autoridades seculares. Entretanto,
Gregório VII via em sua reforma administrativa nada menos que uma renovação
espiritual da devoção da Igreja a Cristo.

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Kilometres
O Monge que Governa o Mundo + 127

Essa nova devoção tornou-se um meio de reconquistar o mundo para Cristo. No Poucos monges deixaram
tão forte impressão em seu tempo e
Evangelho de Mateus, a divisa do monasticismo cristão (Mt 1 6:24) aparece apenas na posteridade quanto Bernardo de
alguns versículos depois da do papado, ou seja, as palavras de Jesus a Pedro: "Também Clairvaux (falecido em 1 1 53). Foi
eu te digo que tu és Pedro [Petrus], e sobre esta pedra [petra] edificarei minha Igreja, e as um dos maiores pregadores da
história, como evidenciam seus
portas do Inferno nunca prevalecerão contra ela. Eu te darei as chaves do Reino dos Sermões sobre o Cântico dos
Céus e o que ligares na terra será ligado nos céus, e o que desligares na terra será Cânticos. Bernardo foi o principal
devoto medieval da Virgem Maria,
desligado nos céus" (Mt 16:18-19). Citando essas palavras, Gregório VII estabeleceu os que o visitou em aparições e que
termos da reconquista do mundo e do império por Cristo: "Agora, dizei-me, acaso são serve de tema dos louvores
que ele manifesta no fim de A
os reis uma exceção a esta regra? Acaso eles não pertencem ao rebanho que o Filho de
divina comédia de Dante.
Deus confiou ao bem-aventurado Pedro? Quem, pergunto eu, pode considerar-se ex­ Quando seu discípulo,
cluído do poder de Pedro, nesta outorga universal de autoridade de proibir e permitir, a o papa Eugênio III, foi eleito,
em 1 1 45, Bernardo Lhe dedicou
não ser aquele que declina o jugo do Senhor [Jesus], aquele que prefere sujeitar-se ao o tratado Sobre a consideração,
diabo e aquele que se recusa a figurar entre os cordeiros de Cristo?" . No confronto com que veio a ser o manual básico
da reforma da Igreja.
o imperador Henrique IV, em Canossa, em 1 077, Gregório IV, a quem o imperador se
dirigiu como "Hildebrando, não papa no presente, mas falso monge", reafirmou a
autoridade de Cristo de ligar e desligar os pecados oferecendo-lhe a absolvição. Em
nome de Jesus, o Monge, Hildebrando aparentemente conquistara não só a Igreja e o
papado, mas também o império e o mundo.
Outra conquista semelhante ocorreria meio século depois, quando um abade
cisterciense e discípulo de Bernardo de Clairvaux foi eleito papa, em 1 1 45, adotando o
nome de Eugênio III. Ao seu filho em Cristo, que agora era o seu pai em Cristo,
Bernardo endereçou o tratado Sobre a consideração. Instava o ex-discípulo a não
permitir que os detalhes administrativos do pontificado o distraíssem do que era
essencial para a Igreja: a pessoa de Jesus Cristo. O papa podia tornar-se o sucessor de
Pedro, não o de Constantino, pois, para o governo da Igreja, os ideais monásticos de
contemplação e estudo não eram irrelevantes, mas centrais. O subseqüente uso do
tratado de Bernardo por todo tipo de reformadores da Igreja, nos séculos XV e XVI,
documenta quanto o ideal monástico de negação do mundo por Cristo serviu para
conquistá-lo para Cristo.
Uma das mais duradouras dessas conquistas monásticas foi a obra das missões
medievais. Como disse alguém, a cristianização das tribos que chegavam ao continente
"foi realizada pelo sacrifício permanente e o labor heróico de centenas de monges em
todas as partes da Europa" . Os estudiosos protestantes, como Kenneth Scott Latourette,
importante historiador das missões, reconheceram igualmente que o nome de Jesus
Cristo teria permanecido desconhecido em grande parte da Europa e das Américas "se
não fossem os monges" . Assim, Cirilo e Metódio, os apóstolos dos eslavos, eram mon­
ges bizantinos; e, ao designá-los "santos padroeiros conjuntos da Europa", ao lado de
são Bento, o papa João Paulo II reconheceu uma vez mais a contribuição decisiva dos
monges ocidentais e orientais para a missão e a expansão do cristianismo. Inversamente,
a abolição das ordens monásticas pela Reforma do século XVI foi a principal causa da
1 28 + O Monge que Governa o Mundo

A Abadia Beneditina de são João perda do imperativo missionário pela maior parte do protestantismo durante mais de
Batista, em Collegeville,
Minnesota, possui uma estátua da
duzentos anos.
Pax Cristi ["Paz de Cristo], do Não há indício de que Bento tivesse em vista um papel missionário para os seus
século XX, na qual Jesus é monges quando fundou Monte Cassino. Do mesmo modo, nada havia na Regra que
representado com hábito beneditino,
segurando o livro do Evangelho na levasse inevitavelmente à outra grande conquista do monasticismo beneditino, o seu
mão esquerda e derramando a paz domínio da erudição européia, pois "na Regra de são Bento não se encontra nenhum
da bênção com a direita. Ao mesmo
tempo, ele convoca a todos (e não só julgamento favorável ou desfavorável ao valor do aprendizado e do estudo das letras" .
aos monges) a negar o mundo, Para se compreender o modo cabal como Cristo, o Monge, conquistou o mundo
pegar a cruz e segui-lo.
O Monge que Governa o Mundo + 1 29

intelectual da Idade Média, basta verificar, nas edições modernas, quantas obras da
Antigüidade, tanto cristãs quanto pagãs, existem hoje unicamente porque foram
compiladas pelos monges em algum scriptorium medieval. A devoção quase idólatra dos
monges medievais à erudição é sintetizada no final de O nome da rosa, de Umberto Eco,
na exclamação apocalíptica do protagonista, Guilherme de Baskerville, quando um
incêndio destrói os livros da abadia: "Era a maior biblioteca da cristandade. Agora o
Anticristo está realmente próximo porque já não há sabedoria que o detenha" .
Por mais dedicados missionários e estudiosos que fossem, os monges eram
lembrados com insistente freqüência de que o serviço a este Rei devia ser prestado
acima de tudo no culto do mistério de Cristo e na imitação do seu exemplo. Opus Dei, "a
obra de Deus", é o termo beneditino correspondente à oração no serviço litúrgico do
mosteiro, não a qualquer outra atividade da comunidade ou dos monges individuais.
Embora o próprio Bento fosse leigo e houvesse fundado uma ordem que não se
constituía de homens ordenados para o sacerdócio, a ordenação passou a ser o padrão,
.
com a "vida ativa" em missões, paróquias e salas de aula ameaçando sufocar a "vida
contemplativa" . Isso tornou necessário mostrar às comunidades monásticas que sua
"missão" principal era, na fórmula da Regra de são Bento, "nada colocar acima do amor
de Cristo" . Cumprindo tal missão, o monasticismo beneditino tornou-se na Idade Média
-· e voltaria a tornar-se, no século XX, em abadias como a de São João Batista, nos Esta­
dos Unidos, a de Solesmes, na França, e as de Beuron e Maria Laach, na Alemanha - o
principal agente de renovação da liturgia, da arte litúrgica e da música sacra, com
conseqüências evidentes, desde o Concílio Vaticano II, em todas as paróquias católicas
romanas do mundo.
fesu, Amante de minha alma,

Fazei-me subir para o teu seio


Enquanto correm as águas mais próximas.
Enquanto ainda é alta a tempestade.

- Charles Wesley,

"Em tentação"

1 0 + O Noivo da Alrria

Ao que parece, Charles Wesley escreveu essas conhecidas palavras pouco


depois da conversão de seu irmão João, em 1 738. Desde então, como diz o
Dictionary of hymnology [Dici9nário de hinologia], "sua popul9-ridade só tem
aumentado e são raras as coleções que não o incluem" . Entretanto, o Dictionary
também anota, "a stanza de abertura deste hino deu margem a questões que
resultaram em mais de vinte leituras diferentes dos quatro versos iniciais. A
primeira dificuldade é o termo Amante aplicado a Nosso Senhor", que diversas
revisões amenizaram para "Refúgio" ou "Redentor" . Alguns anos antes, o
conde Nicolau von Zinzendorf, fundador da Igreja Herrnhut da Morávia,
escrevera um hino não menos popular, o "SeelenbrautigaJ}l., O du Gottes
Lamm!" [Noivo da alma, tu, ó Cordeiro de Deus!].
132 + O Noivo da Alma

Semelhantes títulos para- Jesus pertencem ao âmbito do discurso geralmente


rotulado de "misticismo cristão" . Se se pode definir o misticismo como "a experiência
imediata do eu com a Realidade Sublime", o misticismo cristão é o que emergiu quando
a figura de Jesus de Nazaré se tornou objeto da experiência, do pensamento e da lin­
guagem místicos. Colocada na sucessão dos profetas, a mensagem de Jesus foi às vezes
interpretada como a própria antítese do místico, pois, na distinção epigramática de
Abraham Heschel, teólogo judeu do século XX, "O importante nos atos místicos é que
acontece alguma coisa, o importante nos atos proféticos é que se diz alguma cais�" . Todavia,
a literatura profética da Bíblia hebraica está repleta do que parece muito mais
experiência, pensamento e linguagem proféticos. Ademais, no judaísmo pós-bíblico,
freqüentemente esses elementos assumiram um papel dominante.
A ascensão do misticismo cristão esteve intimamente associada não a essa tradição,
mas a "desjudaização" do cristianismo. Grande parte do seu vocabulário - a percepção
do caminho para uma relação com a Realidade Sublime como uma ascese, do mesmo
modo que a clássica enumeração dos três passos dessa ascese como a purificação, a
iluminação e a união -, provinha de fontes neoplatônicas. Conseqüentemente, não foi
surpresa quando, no século VI, apareceu uma combinação de elementos cristãos e
neoplatônicos supostamente escrita por Dionísio, o Areopagita, o único homem
mencionado entre os que "abraçaram a fé" em Atenas quando Paulo lá pregou (At 17:34)
e, conforme a tradição, o primeiro bispo da cidade. Investido de tão impressionantes
credenciais semi-apostólicas, esse corpo de escritos de "Dionísio" foi quase unanime­
mente aceito como autêntico· durante todo um milênio, só vindo a ser seriamente con­
testado a partir dos séculos XV e XVI. Que lugar ocupava a pessoa de Jesus nesse esque­
ma místico? A resposta não é fácil. Porque, embora, nas palavras do proeminente histori­
ador ortodoxo John Meyendorff, "sem dúvida, Dionísio [ . . ] menciona o nome de Jesus
.

Cristo e professa a sua fé na encarnação", é preciso reconhecer que "a estrutura de seu
sistema é perfeitamente independente de sua profissão de fé. 'Jesus' é para ele [ . ] 'o
. .

princípio, a essência de toda santidade e de toda operação divina"', mas não num
sentido central e decisivo o filho de Maria e do homem de Nazaré. A história subse­
qüente do misticismo cristão inspirado por sua fonte manifesta uma síntese complexa de
elementos neoplatônicos e bíblicos.
Uma importante inspiração do misticismo cristão foi o Cântico dos Cânticos.
Originalmente um poema que celebrava o amor entre o homem e a mulher, no curso de
sua história o Cântico passou a ser lido de forma alegórica e talvez haja até ingressado no
cânone judaico por essa via. A mais conhecida exposição alegórica do Cântico é
provavelmente a de Bernardo de Clairvaux, mas, como notou seu biógrafo e editor, Jean
Leclercq, foi "o livro mais lido e mais freqüentemente comentado no convento medieval",
mais até que os quatro Evangelhos. E, para usar a distinção de Leclercq, enquanto um
comentário escolástico do livro, "fala principalmente das relações de Deus com o
conjunto da Igreja, [. . ] o objeto do comentário monástico são as relações de Deus com
.
A partir de uma única referência
a Dionísio, o Areopagita, no
Livro dos Atos dos Apóstolos,
como o único homem que
converteu-se quando Paulo pregou
em Atenas (At 17:34), a tradição
concluiu que ele foi o primeiro
bispo da cidade. Mais tarde,
no século VI, descobriu-se uma
coleção de escritos com o seu nome,
combinando elementos cristãos com
neoplatônicos. Dionísio
foi homenageado por Emmanuel
Tzanes, neste ícone grego
do século XVII.
134 + O Noivo da Alma

Embora o tema de Cristo, o Noivo cada alma, a presen_ç a de Cristo' nelas, a união espiritual realizada mediante a caridade" .
da Alma, tenha se tornado central
nas interpretações alegóricas dos
Com 86 sermões, Bernardo ocupou os dois primeiros capítulos e o início do terceiro,
monges medievais do Cântico dos transformando o Cântico num relato de Jesus como noivo da alma. "Por inspiração do
Cânticos, os mais antigos exegetas al�o, [Salomão] cantou os louvores de Jesus e sua Igreja, a graça de seu santo amor e os
cristãos - cuja influência é evidente
nessa miniatura de "Cristo e a sacramentos do matrimônio eterno; e, ao mesmo tempo, deu expressão aos mais
Igreja" da Bfblia de Alardus profundos desejos da alma santa". O "beijo" do qual fala o Cântico é Jesus: " É ele, cuja
(anterior a 1097) -, tomaram-no
como um comentário ampliado das fala viva e poderosa é para mim um beijo [ ... ] a comunicação de alegrias, a revelação de
palavras de Paulo, "Maridos, amai segredos" . A alma atende ao chamado do Noivo e o segue aos aposentos do seu amor.
as vossas mulheres, como Cristo
Como diz um antigo comentário a esse verso, "Feito isto, os dois estão unidos: Deus vem
amou a Igreja" (Ef 5:25), sendo a
Igreja - não a alma individual - a para a alma e esta, por sua vez, une-se a Deus. Pois ela diz, 'Eu sou do meu amado, e
noiva de Cristo. meu amado é meu, o pastor das açucenas' . [Eu sou] aquele que transformou a natureza
humana etn reino das aparências sombrias para reino da verdade suprema" .
O conceito místico de "ascese" forneceu o arcabouço de uma das obras-primas do
misticismo cristão medieval, A jornada da alma para Deus, de Boaventura. A mente
principia entre as criaturas visíveis do mundo sensível, mas está repleta de temor e aspira
a elevar-se mais. A autocontemplação, em virtude do "espelho de nossa mente", enche-a
de anseios pela experiência mais elevada e mais rica de Deus. Passando, então, por
estágios sucessivos, a- mente se desloca da criatura para o Criador. Para tanto, o místico
deve reconhecer a primazia da vontade e do amor. Pois, conforme Boaventura, em cada
O Noivo da Alma + 135

A própria ambigüidade da palavra


"paixão", tanto em latim como em
inglês, permitiu que a piedade
de Bernardo de Clairvaux
traduzisse e sublimasse a
linguagem do cântico de Salomão
sobre o amor entre o homem e a
mulher, tornando-a uma celebração
do amor manifesto por Cristo na
paixão e na morte. São Bernardo
de Clairvaux carregando os
instrumentos da Paixão,
de Jerônimo Jacinto de Espinosa,
denota essa linguagem sublimada.

grau da ascese mística, é decisiva a característica "escalar" da natureza humana de Jesus à


medida que nos deslocamos de seus pés, alçand � a sua chaga e a sua cabeça. Desse modo,
os três estágios da ascese mística eram facilmente adaptáveis a essa imagem de Jesus como
Noivo da Alma. Antes que a alma pudesse atrever-se a esperar o objeto de seus anseios,
devia ser purgada da impureza e receber o perdão dos pecados. Mas precisava igualmente
purificar-se de suas preocupações com as coisas carnais. Por causa da carnalidade inata de
136 + O Noivo da Alma

todos os seres humanos, "Deus, o Verbo, tornou-se carne" - encarnado e, nesse sentido,
"carnal" . Só assim pôde "atrair para o amor redentor de sua carne sagrada todas as afei­
ções dos homens carnais, que eram incapazes de amar senão de maneira carnal, e, por eta­
pas, atraí-los a uma afeição pura e espiritual". Jesus passou da infância à maturidade a fim
de garantir essa purificação a todas as idades da vida humana.
O segundo passo da ascese mística era a iluminação. Isso encontra-se muito bem
exemplificado nas palavras de Juliana de Norwich, a visionária do século XIV, de quem
se disse: "em qualidades da mente e do coração, uma das mais notáveis - talvez a mais
notável - inglesas de seu tempo" . Par� ela, "a luz é Deus, o nosso Criador, Pai e Espírito
Santo em Cristo Jesus, nosso Redentor" . O sofrimento e a cruz de Jesus são um meio de
superar o que ela chama de "trevas do pecado" e "cegueira" da alma. Pois as trevas do
O Noivo da Alma + 137

O geral da Ordem Franciscana,


Boaventura (falecido em 1274),
representado num retábulo pelo
"Mestre da Glorificação de Maria",
em Colônia (página ao lado),
dedicou seu pequeno livro
A jornada da alma para a Deus
aos estágios pelos quais, subindo
a "escada" da natureza humana
de Jesus, de seus pés a suas
chagas e a sua cabeça, a
"ascensão" da alma podia
levá-la à presença de Deus.

Muitas aparições de Cristo foram


outorgadas a mulheres místicas
da Idade Média, por exemplo
a Juliana de Norwich, considerada
por um importante histeriador do
misticismo cristão, pelas
"qualidades da mente e do coração,
uma das mais notáveis - talvez a
mais notável - inglesas de seu
tempo". Na mística visão da luz,
segundo Juliana, "a luz é Deus,
nosso Criador, Pai e Espírito Santo
em Cristo Jesus, nosso redentor".

pecado, diz, "não têm nenhuma sorte de substância, nenhuma partícula de ser" e não
são uma realidade em si, mas a ausência de luz. Somente com a vinda da luz, que é
Jesus, e com a revelação de seu padecimento, o poder dessas trevas irreais torna-se
evidente e, desse modo, perde sua força. Como expressou outro místico inglês, o poeta e
clérigo do século XVII Robert Herrick,

E estes meus olhos verão


Todos os tempos, como perdidos
Estão no Mar
da vasta Eternidade
138 + O Noivo da Alma

Uma miniatura dos Cânticos de Após a purificação e a iluminação vem a união. Nesse estágio foi principalmente a
Rothschild cita e ilustra as
palavras do início do último livro de
linguagem do Evangelho de João que se prestou aos usos do misticismo cristão. "Perma­
Confissões de Agostinho: necei em mim, comÓ eu em vós", disse Jesus a seus discípulos (Jo 15:4); e na oração sa­
"Chamo-vos a minha alma, que cerdotàl da noite de sua traição, ele roga ao Pai por seus seguidores, "a fim de que todos
preparastes para Vos receber,
inspirando-lhe esse desejo" . sejam um. Como tu, Pai, estás em mim e eu em ti, que eles estejam em nós" (Jo 1 7:21 ). A
Trata-se do desejo da alma por seu combinação dessas palavras de Jesus com as do Cântico dos Cânticos - "Eu sou do meu
Noivo, que desce até ela, vindo
dos céus, e a quem ela reage com amado, e meu amado é meu" - transformou a união eterna entre Jesus e o Pai no misté­
êxtase, um êxtase que o próprio rio da sagrada e indivisível Trindade na base da "união mística" entre a noiva e o Noivo,
Noivo lhe "inspirou" .
entre Cristo e a alma.
A divina comédia, de Dante, pode ser lida como uma celebração desses três estágios -
não que Inferno, Purgatório e Paraíso correspondam a purificação, iluminação e união,
pois nada disso é possível no inferno; mas os três temas marcam os passos da ascensão
da alma e, assim, da do poeta. A recitação, no Purgatório, dos meios pelos quais cada
pecado capital é purgado pela penitência e pela graça de Cristo é uma análise quase
O Noivo da Alma + 139

clínica do que os místicos designavam como o "caminho da purgação" . A iluminação


buscada pelo misticismo cristão é proclamada nas linhas iniciais do Paraíso: "A glória do
Senhor, que tudo move, no universo defende-se e esplandece onde mais, onde menos se
comprove" . E, no canto final do Paraíso, Dante se volta - segundo místicos como Boa­
ventura diziam ser necessário - para a vontade e para o seu desejo, que o levam à har­
monia e à união com o Amor divino.
Os temas da purificação, da iluminação e da união mística com Cristo, o Noivo da
Alma, plasmaram também as descrições da vida dos santos tanto na literatura quanto na
arte. A franciscana do século XIII, santa Margarida de Cortona, "a nova Madalena", é
um exemplo particularmente impressionante, pois suas revelações e experiências
místicas resultaram da conversão a Cristo após a trágica morte do rapaz nobre com
quem ela vivia, havia nove anos, fora do sacramento do mahimônio. Os Atos dos santos
_
nos contam que "ela ouviu Jesus Cristo chamá-la de maneira doce" e que, "elevada aos
extremos do êxtase, perdeu toda a consciência e os movimentos" . Os místicos e
pensadores medievais procuraram controlar os perigos potenciais de semelhante
linguagem. O Cântico continua sendo um explícito poema de amor, e a alegoria pode
reverter facilmente ao próprio erotismo que pretende transcender. Em muitos poemas
dos trovadores medievais, como indicou seu editor Thomas Bergin, "o culto da dama
sugeria uma espécie de mariolatria literária; o amor celebrado, porém, po_r refinado que
fosse, era adúltero" . A lírica endereçada à Abençoada Virgem Maria e a q1:J.e se dirigia à
amante eram muitas vezes �I)tercambiáveis, sendo os versos devotos usados para
dissimular - e, assim, revelar · _ ,? verdadeiro desejo do poeta pela mulher amada. A
palavra alma é feminina na maioria -dos idiomas europeus, o que tornava ainda mais
fácil transpor as metáforas sobre o Noivo da Alma rumo a imagens com alta carga
sexual. A fronteira entre a emoção e o sentimentalismó era fácil de transpor, e também o
era o limite entre o amor sagrado a Cristo e o amor erótico por ele; sendo facílimo
ultrapassar ambas as demarcações ao mesmo tempo.
Fácil também de ultrapassar, principalmente no fim da Idade Média, era a linha que
separava o misticismo cristão do panteísmo. O anseio de união com o divino muitas
vezes tendia a transformar-se num anseio pela obliteração da distinção entre Criador e
criatura. O misticismo judeu tratou com freqüência desse problema, contudo, para o
misticismo cristão, a tentação parece ter sido ainda mais insidiosa. Vários místicos do
século XV foram acusados de nutrir uma escatologia na qual tudo, tendo vindo de Deus,
seria reabsorvido por Deus.
De modo semelhante, implícito em diversas correntes do misticismo cristão já na
Idade Média .e sobretudo no protestantismo ulterior, estava o individualismo. Nas pa­
lavras de um crítico extremado, "Em meio a sua luta pelo amor altruísta, o misticismo
revela-se a mais requintada forma, o acme da devoção egocêntrica" . "Eu sou do meu
amado, e meu amado é meu" tornou-se uma maneira de descrever a relação particular
de uma pessoa com Jesus e a de Jesus com essa pessoa, excluindo, ou pelo menos dimi-
Margarida de Cortona,
representada por Guercino num ato
de adoração perante o Crucificado,
converteu-se depois de uma vida de
luxúria com um amante ilícito,
inaugurando uma existência de
amor genuíno pelo Noivo da Alma;
pois, de acordo com os Atos dos
Santos, "ela ouviu Jesus Cristo
chamá-la de maneira doce" e,
"elevada aos extremos do êxtase,
perdeu toda a consciência e os
movimentos ".
O Noivo da Alma + 141

nuindo, as demais. Uma conhecida canção religios'a sentimental expressava este


individualismo de forma bastante descarada: -

E Ele anda comigo e comigo fala,


E me diz que eu Dele sou.
E as alegrias que juntos compartilhamos,
Ninguém jamais as experimentou . .

Respondendo aos mais profundos anseios do espírito humano pelo transcendente e


pela realização autêntica, a experiência da purificação, da iluminação e da união com o
"Formoso Redentor" enobreceu toda a sensibilidade natural, elevando-a a um meio de
obter a graça: nada precisa ser profano, tudo pode ser sacramental. No entanto, isso
trazia consigo o perigo real de dissolver a história de Jesus Cristo numa espiritualidade
generalizada. Desprendendo-se do sentido rigorosamente gramatical do texto bíblico, a
exegese mística fica particularmente vulnerável nesse aspecto. Contudo, quando o
problema surgiu no misticismo cristão da alta Idade Média, também apareceu uma nova
interpretação que reverteu a polaridade de toda a questão. Pois Francisco de Assis, além
do ápice do desenvolvimento do misticismo cristão, foi também a fonte de uma nova
apreciação do Jesus de Nazaré Histórico como o Modelo Divino e Humano.
O que eu tenho é nada,
E nada me tem.

- Ira Gershwin,
Porgy e Bess

1 1 + O Modelo Divino e Humano 1

"Que vulto histórico melhor incorporou a vida e os ensinamentos de Jesus


Cristo?" Se um pesquisador fizesse essa pergunta a um grupo representativo
de pessoas informadas, certamente Francisco de Assis seria mencionado com
mais freqüência. Nele, a imitação e a obediência a Jesus Cristo, em princípio
obrigatória a todo crente, atingiu tal nível de fidelidade que lhe valeu a
designação, confirmada pelo papa Pio XI, de "o segundo Cristo" .
Pouca coisa no começo de sua vida sugeria que Giovanni de Bernardone
estava destinado a ocupar tal lugar na história. Nascido em uma família de
mercadores de Assis, aspirava à carreira de cavaleiro . Em vez disso,
converteu-se no cavaleiro da cruz de Cristo. Sua transformação não foi em
momento algum de ofuscante incandescência, e sim um afastamento gradual
O Modelo Divino e Humano + 145

do antigo estilo de vida rumo a uma nova compreensão de si e de sua missão. Certo dia, Embora a cruz seja um dos
símbolos cristãos mais antigos,
quando estava orando, apareceu-lhe o Cristo crucificado, visão esta que o acom­ muitas vezes com Cristo Rei nela
panharia pelo resto da vida. Ele a interpretou como uma convocação pessoal do Senhor retratado, sua representação com a
a "um espírito de pobreza, com um senso profundo de humildade e uma atitude de figura do Crucificado só se tornou
uma forma tipicamente ocidental a
profunda compaixão" . A convocação incluía esta instrução específica: "vai e repara a partir do século XIII, época de
minha casa que está em total desordem" . Tomando tais palavras em sentido literal, Francisco de Assis. Na opinião
de alguns historiadores da arte
Francisco primeiramente empreendeu a reforma de diversas igrejas próximas. Contudo, e da espiritualidade, a cruz,
ocorreu-lhe que fora chamado a reconstruir não os templos, mas a própria Igreja de assim como o presépio, deve sua
popularidade à devoção de
Cristo na terra. O conteúdo central dessa missão foi revelado no dia 24 de fevereiro de
Francisco. Cuido Reni expressou
1209, quando Francisco percebeu que as palavras de Jesus (Mt 1 0:7, 1) tinham sido ditas essa devoção franciscana
também para ele: "Dirigindo-vos a elas, proclamai que o Reino dos Céus está próximo. ao crucifixo pintando a figura
do santo muito maior em
[ ... ] Não leveis ouro, nem prata, nem cobre nos vossos cintos" . Quase imediatamente, dimensão, porém infinitamente
começou a atrair seguidores que chegaram a pelo menos três mil em 1 221 . A pequena menor em importância; o olhar
adorador de são Francisco nos
igreja de santa Maria degli Angeli, popularmente conhecida como a Portiuncula, perto convida a contemplar o Modelo
de Assis, foi um dos prédios que ele restaurou e que se tornou, nas palavras de Divino e Humano.
Boaventura, "o lugar onde, por inspiração divina, são Francisco fundou a Ordem dos
Frades Menores" . (Foi também o local em que ele morreu em 3 de outubro de 1 226.)
Francisco preparou uma regra monástica que foi aprovada pelo papa Inocêncio III
em 1 209 ou 1 21 0. Nem a aprovação papal nem a primeira Regra sobreviveram em
forma escrita. A julgar pelos relatos, parece que seu fundador evitçm longas prescrições
de estrutura ou de conduta para a ordem, preferindo "usar a maior parte das palavras
do sagrado Evangelho" . Contudo, a explicação omite o f�tor decisivo: sua per­
sonalidade. As fontes remanescentes impõem a conclusão de que os seguidores foram
atraídos pelo magnetismo pessoal de Francisco e pela autoridade do Evangelho de
Jesus, e que esses dois elementos eram um só aos olhos deles. Pois o santo devotou-se
ao que seu primeiro biógrafo, Tomás de Celano, chamaria de "a humildade da encar­
nação" de Cristo.
Sem dúvida, a mais dramática evidência dessa identificação apareceu já perto do fim
de sua vida, em setembro de 1 224. Como de hábito, Francisco fora fazer retiro em Al­
vérnia, uma montanha na região da Toscana, onde havia sido construída a capela de
santa Maria degli Angeli para os franciscanos. Seguindo o exemplo de Cristo no deserto
antes da tentação (Mt 4:2), o qual, por sua vez, seguira o de Moisés (Ex 34:28), lá passou
quarenta dias. No fim desse período, apareceu-lhe um serafim com seis asas (Is 6:1-1 3) e,
entre elas, um Cristo crucificado. Francisco ficou assoberbado pelo milagre e, depois,
nas palavras de Boaventura, "quando a vis.ã o desapareceu, deixou-lhe o coração inun­
dado de fervor e imprimiu em seu corpo uma miraculosa semelhança. Começaram a
aparecer as marcas dos cravos em suas mãos e em seus pés, exatamente · como ele as
tinha visto na aparição do Homem pregado na cruz. O centro de suas mãos e de seus "
pés pareciam ter sido trespassados por cravos [ . . ] Seu lado direito parecia perfurado por
.

uma lança e tinha uma lívida cicatriz que sangrava com freqüência" . A partir .d a afir-
146 + O Modelo Divino e Humano

Os devotos de Francisco de Assis mação de Paulo - "Pois eu trago em meu corpo as marcas [stigmata] de Jesus" (Gl 6:17)
acreditavam na sua semelhança
com Jesus e nunca duvidaram de
- essas marcas foram chamadas "estigma" .
sua obediência a ele, em princípio Tudo indica que Francisco foi a primeira pessoa a apresentar estigmas, bem que
obrigatórias a todo crente. posteriormente há relatos semelhantes. A maioria das pessoas concordaria que essas
Tal nível de fidelidade lhe valeu
a designação confirmada pelo papa marcas eram únicas por causa da singularidade do próprio Francisco, o "segundo
Pio IX de "o segundo Cristo". Cristo" : se alguém tivesse de portar as cicatrizes do sofrimento de Cristo no corpo, não
era a outro que isso devia haver acontecido. Está claro que ele mesmo não viu nos
estigmas uma reafirmação de auto-estima; na verdade, até imitou Cristo '(Mt 1 6:20) ao
fazer segredo da sua identidade especial. Tampouco os encarou como uma forma
primária de sua imitação de Cristo. Aquele era o lugar de honra, ou da falta de honra,
que fazia parte da pobreza.
A pobreza sempre foi uma característica importante do reino de Deus tal qual Jesus
a viveu e proclamou. "As raposas têm tocas e as aves do céu, ninhos", diz ele no
Evangelho de Mateus (8:20); "mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça" .
O voto de pobreza era uma exigência da Regra de qualquer ordem monástica - exigência
que atingia o indivíduo, mas não necessariamente a ordem como um todo. Ao longo da
Sempre se exigiu que os monges
individualmente abraçassem a
pobreza, assim como a castidade
e a obediência; contudo, o voto
de pobreza não se estendia aos
mosteiros nem às ordens
monásticas, do ponto de vista
institucional. Francisco rompeu
radicalmente com tais
ambigüidades. Tendo identificado
a pobreza como "a rainha das
virtudes", chegou a submeter-se
a uma cerimônia de ''matrimônio
místico" retratada por Sassetta.
O Modelo Divino e Humano + 149

Idade Média, tal diferença deu origem à corrupção. Quando os mosteiros adquiriam Um efeito posterior e duradouro
da ênfase franciscana sobre a
vastas propriedades que os tornavam rivais das grandes casas nobres da Europa, os humanidade de Jesus foi a nova
satíricos e moralistas gostavam de contrastar essa opulência com o que diziam os apreciação da natividade. Nas
discípulos no Evangelho, "Eis que nós deixamos tudo e te seguimos" (Me 1 0:28) . palavras do mais importante
biógrafo de Francisco, Tomás de
Francisco rompeu radicalmente com tais ambigüidades. A segunda versão escrita da Celano, ele "observava o aniversário
Regra descrevia seus seguidores como "estrangeiros e peregrinos neste mundo", livres do Menino Jesus com inefável
fervor e acima de todas as outras
do domínio tirânico das posses materiais. Como o personagem da mais famosa ópera - festas, dizendo que aquela
popular americana, Francisco poderia ter dito, "O que eu tenho é nada, / E nada me era a festa das festas". Na basz1ica
de Assis (ao lado), Cimabue
tem" . A pobreza não era simplesmente a ausência de propriedade, mas um bem
representou a figura de Francisco,
positivo, "a rainha das virtudes", por causa de sua identificação com Cristo e com Maria. complementando-a com os
No entanto, seria um grave erro interpretar o desprendimento franciscano das estigmas, na própria cena,
ao lado do Menino Jesus com
riquezas materiais como expressão da aversão ao mundo material e natural. Muito pelo sua mãe e os anjos.
contrário: era, disse G. K. Chesterton, como se pela primeira vez a Europa tivesse sido
Como fez Cristo num sentido
obrigada a passar pelo túnel da purgação, no qual se purificou do culto à natureza, de preeminen te, também Francisco de
modo que, em Francisco, pôde sair do túnel para a luz do bom sol de Deus, Assis, o "segundo Cristo", moldou
desvencilhando-se dos últimos fragmentos da idolatria da natureza a fim de se voltar a história subseqüente por
intermédio de seus seguidores
para a própria natureza. Em seu conhecido "Cântico do irmão Sol", Francisco cantou o imediatos. Um deles foi
Boaventura, o "segundo fundador
dos Frades Menores", apresentado
no capítulo anterior. Outro foi
Antônio de Pádua, descrito por
Andrea della Robbia em postura
franciscana, com o livro e a chama,
como se vê na Loggia di San Paolo,
em Florença.
150 + O Modelo Divino e Humano

As palavras de Jesus a Pôncio "irmão Sol" : a lua era sua irmã, o vento, seu irmão; e, numa estrofe supostamente a­
Pilatos, "Meu reino não é deste
crescentada na última hora, também a "irmã Morte" era uma dádiva de Deus. Essa
mundo" (Jo 18:36), serviram
a William de Ockham, um visão do mundo criado é também evidente na maneira como ele pensava e falava do
franciscano (objeto deste gracioso corpo humano. Sua hostilidade ao lado físico da natureza humana era por vezes ex­
esboço feito por um estudante) e a
Dante Alighieri, que mesmo sem cessiva: Francisco punha cinza na comida para que não ficasse demasiado saborosa e
ser franciscano foi sepultado com "jogava-se num canal cheio de gelo" quando se sentia sexualmente tentado. Todavia, o
hábito da ordem, como prova de que
a Igreja seria mais fiel a Jesus propósito dessa mortificação era · disciplinar o corpo em benefício de um objetivo mais
Cristo se recusasse a usurpar a elevado. Não são . meramente superficiais as semelhanças entre os ascetas como
autoridade política dos reis,
Francisco e os atletas competitivos dos dias de hoje, que distendem cruelmente cada
contentando-se, como ele,
com um reino espiritual músculo, dobram cada nervo e castigam o corpo: tudo para vencer. "Eles, para ganhar
"não deste mundo" . uma coroa perecível", Francisco poderia dizer juntamente com Paulo, "nós, porém,
para ganhar uma coroa imperecível [. .. ]. Trato duramente o meu corpo e reduzo-o à
servidão" (1 Cor 9:25, 27) .
Um corolário direto da identificação do sofrimento de seu corpo com o de Cristo foi
uma nova e mais profunda consciência da humanidade do Redentor tal qual a revela­
ram sua natividade e seu martírio. Foi, acreditavam os seguidores do santo, como se "o
Menino Jesus estivesse esquecido em muitos corações", porém, "seu servo são Francisco
o trouxe de volta à vida" . A comemoração do Natal foi tardia no desenvolvimento do
calendário cristão. Mas, segundo Tomás de Celano, Francisco "observava o aniversário
O Modelo Divino e Humano + 151

do Menino Jesus com inefável fervor e acima de todas as outras festas, dizendo que "Que nosso estudo principal se
debruce sobre a vida de Jesus
aquela era a festa das festas" . Como contribuição para a observância desse dia - e,
Cristo". Este tema de abertura de A
como uma dádiva, para a história da arte - ele montou um presépio, em 1 223, na imitação de Cristo, de Thomas à
aldeia úmbria de Greccio. Contudo, a impressão mais duradoura que deixou na história Kempis, aqui apresentado numa
tradução alemã publicada em 1539,
da arte e da devoção proveio de sua concentração em Jesus crucificado. Tomando para si repete-se numa infinidade de
a determinação de "não [ . . ] saber outra coisa entre vós a não ser Jesus Cristo, e Jesus
.
variantes ao longo da obra. Cada
estágio da "vida de Jesus Cristo"
Cristo crucificado" (1 Cor 2:2), Francisco esforçou-se muito para imitar Cristo perfeita­ correspondia a um estágio da vida
mente na vida e na morte. Sua experiência na qualidade de segundo Cristo e espe­ de seu seguidor, do nascimento
à morte e à ressurreição, da
cialmente de sua conformidade com o Cristo da cruz dotou a pintura e a poesia de um
humildade à glória.
novo realismo à medida que os artistas e os escritores passaram a lutar para dar forma à
convicção fundamental de que, no sofrimento e na morte de Jesus na cruz, tornou-se
manifesto o mistério tanto da vida divina quanto da humana.
Todavia, não foi a conformidade com Cristo na crucificação, mas a conformidade
com Cristo na pobreza que se tornou o item mais controverso da agenda de Francisco.
Após a sua morte, alguns "espirituais" franciscanos, combinando a insistência do santo
numa construção rigorosa da pobreza com a denúncia dos compromissos da Igreja,
passaram a ver-se a si mesmos como os precursores de uma nova "Igreja espiritual", em
que se restauraria a pureza dos Evangelhos e prevaleceria a pobreza absoluta tal qual
anunciou Francisco, o "anjo com um Evangelho eterno" (Ap 14:6). Os "conventuais",

·�a� I.�avttd.
mais moderados, abstiveram-se de colocar uma antítese tão radical entre a Igreja
institucional e a "espiritual" . Encontraram o seu intérprete mais equilibrado em
Boaventura, cuja interpretação normativa da Regra e cuja autorizada Vida de Francisco
tornaram o movimento franciscano aceitável para a Igreja e fizeram de Boaventura,
como dele se diz com freqüência, o "segundo fundador da Ordem dos Frades Menores" .
A controvérsia sobre o voto de pobreza suscitou conseqüências políticas imprevis­
tas. Nada podia parecer mais apolítico e espiritual - na verdade absolutamente idealista
- que a doutrina segundo a qual a Igreja, seguindo o exemplo de Cristo, Maria e os
apóstolos, devia abster-se de toda e qualquer propriedade. Ironicamente, essa posição
tão voltada para o sobrenatural acabou funcionando como uma aliada da autoridade do
O Modelo Divino e Humano + 153

Estado contra a Igreja. O franciscano Guilherme de Ockham atacou o papa João XXII por Os movimentos religiosos, mesmo
os que ostentavam o nome de
haver alterado as exigências da Regra e do Testamento de Francisco sobre a pobreza. Em
Cristo, foram muitas vezes vítimas
1328, em meio ao conflito que se seguiu, o frade pediu asilo político na corte do santo de seu próprio sucesso. Ainda em
imperador romano Luís IV, "o bávaro", que estava em luta contra o papado por causa vida, Francisco adquiriu tal
notoriedade que ameaçou envolvê-lo
das prerrogativas da Igreja e do Estado. Manipulando ao bel-prazer alguns argumentos e ao seu ideal de pobreza num mar
de Ockham, o monarca e seus aliados se apresentaram como os libertadores da·­ de popularidade. Para os seus
milhões de seguidores, a Basflica de
verdadeira Igreja livre dos grilhões da propriedade e do poder. No processo, essa São Francisco, em Assis, que
imagem de Jesus contribuiu para a formulação dos princípios fundamentais e -dos lembra uma fortaleza, encarna tal
paradoxo em madeira e pedra; no
"valores seculares" da filosofia política moderna. Nada mais distante do Francisco dos
_ entanto, esses seguidores
estigmas e da busca da simplicidade da vida empreendida pelos Evangelhos. conseguiram de algum modo
Mesmo diante da turbulência política do fim da Idade Média, -essa busca da aprender e até a seguir os ideais de
simplicidade de Francisco, mesmo
autenticidade dos Evangelhos continuou exercendo o seu poder sobre o coração e a vida quando peregrinavam em Assis.
dos homens. No começo do século XV, foi publicada a obra anônima A imitação de Cristo,
que, como muitas vezes se disse, teve circulação maior que qualquer outro livro n�
história, excetuando-se a Bíblia. Sua autoria é geralmente atribuída ao místico renano
Thomas à Kempis. "Colocai sempre diante de vós", exortava ele (numa tr_adução inglesa
do século XVI), "a imagem do crucifixo"; e exclamava bem no espírito de Francisco:
"Oxalá não tivéssemos· abs ?lutamente nada que fazer, senão louvar Nosso Senhor Jesus
Cristo de todo o coração.! '\ No 'primefro capítulo, anunciava: "O nosso estudo principal ·

há de ser sobre a vida de Jesus C�isto" . Tal estudo era o fundamento tanto de um preciso
conhecimento de si própdo . quanto de um reconhecimento verdadeiro da realidade de
Deus. Não bastava conhecer ; a:§ doutrinas da Igreja e os dizeres da Bíblia, "pois quem
l j • ,

quiser entender cabalmente:: e· em seu pleno sabor as pala �as de Cristo deve estudar a
fim de ajustar toda a sua vida à Dele" . A glorificação franciscana de Jesus como Modelo
Divino e Humano afirma�á-sê uma vez mais como alternativa à presunção da religião
· ' • '

convencional.
· ' ·

; t,

E assim continua sénd'?-. purafite o ano de 1 926, o do setingentésimo aniversário da


.
morte de Francisco, doi� �ilhpes de peregrinos visitaram Assis . A maioria era de
católicos devotos que actediúwam, .como Boaventura e Francisco, que a lealdade à Igreja
institucional e imitaç,ã 9. de <?risto, longe de serem incompatíveis, podiam apoiar-se
a
1
mutuamente e, em úlQ.rha instância, eram idênticas. No entanto, Francisco também
:
passou a ser o $anto padroeifo do crescente número de fiéis que se tornavam mais
. .
,

devotos de· Jes�s � 'Iri�d ida que se afastavam da Igreja. Seu intérprete mais influente
_
entre os leigos mo�f�rnos �ão · foi Boa:ventura, mas Paul Sabatier, teólogo protestante
francês que acred1tava."que "a mensagem original de Francisco tinha sido expurgada
. '
.

pelos discípufos posterior�s fim .de torná-la aceitável às autoridades eclesiásticas.


à
.
Essa ambigüidade · percorre toda a história do santo e do espírito franciscano. É o
tema da mais antiga· das inumeráveis lendas de são Francisco. Quando ele esteve em
Roma a fim de obter a sanção papal da nova ordem religiosa, o pontífice Inocêncio III
ficou profundamente comovido com a sua santidade e com o poder de seu compromisso
O Modelo Divino e Humano + 155

evangélico, mas absteve-se de tomar uma decisão sem antes consultar os cardeais. A visão de Inocêncio III
incorpora graficamente
Alguns deles mostraram-se apreensivos com o santo, particularmente com os paralelos as interpretações alternativas
de sua pregação com a de vários movimentos heréticos correntes no campo e com sua das palavras do Evangelho
mensagem de pobreza radical em obediência a Cristo, o Modelo Divino e Humano. (Mt 16:18), nas quais, falando
com Pedro ("o homem da pedra"),
Outros tiveram reação mais positiva. Naturalmente, a decisão final cabia ao papa. Na Cristo prometeu construir
noite seguinte, Inocêncio III sonhou com um homem ainda jovem e muito mal vestido, sua Igreja "sobre esta pedra".
Acaso "pedra" aqui se referia
que com a mão direita sustentava a Basílica de são João Lateranense, que estava prestes a Pedro e a seus sucessores
a desabar antes de o rapaz vir em seu socorro. Com base nessa visão em sonhos, o papa (por conseguinte, a Inocêncio III
como papa) ou à fé em Cristo,
atendeu à solicitação e confirmou a primeira Regra.
"o Filho do Deus vivo", que Pedro
O contraste não podia ter sido mais impressionante. Aquele era o homem mais acabava de professar
poderoso a ocupar o Trono de são Pedro em todos os tempos. Dono de um caráter (por conseguinte, a Francisco,
"o segundo Cristo")?
íntegro e de uma grande eloqüência, Inocêncio III estava convencido de que o papa era
"menos que Deus, porém mais que o homem", um mediador entre os dois. Por ocasião
do maior concílio da Idade Média, realizado em Latrão em 1215, ele foi aclamado o
"senhor do mundo" . A continuidade da Igreja, sem a qual, falando historicamente, não
existiria nenhum Evangelho - e nenhum Francisco de Assis - e a presença do poder de
Cristo tornaram-se visíveis, quase tangíveis, no pontificado de Inocêncio III. E houve a
figura modesta de um rapaz de Assis, que tomou no ombro todo o peso de Latrão - e
do mundo.
E a pergunta que devemos fazer, ainda que não possamos responder a ela, é: qual
dos dois foi o verdadeiro "Vigário de Cristo" ?
Conhece-te, pois, a ti mesmo, não pretendas investigar a Deus,
O estudo mais adequado da espécie humana é o do homem .

- A lexander Pope,
"Um ensaio sobre o homem"

1 2 + O Homem Universal

De acordo com Jacob Burckhardt, o fundador dos estudos modernos da Re­


nascença, "a descoberta do mundo pelo homem" e "o desenvolvimento do
indivíduo" foram os dois temas mais importantes do movimento renascentista.
Mas o próprio conceito e o nome Renascença, quaisquer que tenham sido as
origens da idéia, entraram no vocabulário da civilização européia
principalmente por intermédio dos ensinamentos de Jesus. "Quem não nascer
do alto [renatus]", declarou ele, "não pode ver o Reino de Deus" (Jo 3:3). E no
-
Apocalipse (21 :5), disse: "Eis que - eu faço novas todas as coisas" . Embora
contrastassem o "novo nascimento" do período com a decadência "gótica" da
Idade Média, os humanistas da Renascença se assemelhavam aos teólogos
medievais em sua admiração e devoção a Jesus. "Que outra coisa é a filosofia
158 + O Homem Universal

de Cristo", perguntava Erasmo no prefácio ao seu Novo Testamento Grego, em 1516,


"que Ele Mesmo chama de 'renascimento [renascentia]', senão a restauração da natureza
[humana] na bondade original de sua criação?" Assim, a Renascença foi o renascer não
só da arte e da literatura como também da fé religiosa. O título "homem universal", que
passou a ser a palavra de ordem da Renascença e que os humanistas não só
empregaram, mas esforçaram-se por incorporar, pode muito bem sintetizar o lugar que o
pensamento e a arte renascentistas reservaram a Jesus como o único que podia ser e
sempre foi assim chamado no sentido rigoroso e pleno.
O esforço do século XIX para encarar a Renascença como uma revolta naturalista
contra as idéias tradicionais a respeito de Cristo parece provir de Goethe, que ca­
racterizou o retrato de Jesus feito por Leonardo da Vinci como "a mais ousada tentativa
de aderir à natureza, ao passo que o objeto é sobrenatural", o que resultou na idéia de
que não ficaram expressos "a majestade, a vontade incontrolada, o poder e a força da
Divindade" . Do mesmo modo, Walter Pater concluiu que "embora lide constantemente
com objetos sagrados, [Leonardo] é o mais profano dos pintores", tanto que a Santa Ceia
é um esforço estético naturalista "de enxergar a Eucaristia não como a pálida hóstia do
O Homem Universal + 1 59

altar, mas como uma despedida dos amigos" . Embora a interpretação


Mais recentemente, porém, historiadores da Renascença, como Charles Trinkaus, e secularizada dos pintores do
Renascimento professasse buscar
da arte renascentista, como Leo Steinberg, passaram a interpretar esse suposto na representação pictórica da Santa
naturalismo com mais sutileza e profundidade. Steinberg relacionou a sexualidade de Ceia uma ruptura com a visão
cristã tradicional e também um
Jesus, na arte da Renascença, com a doutrina da- encarnação como "o centro da esforço "para ver na Eucaristia, não
ortodoxia cristã". Ao contrário de muitas de suas predecessoras na história cristã, "a a alva hóstia do altar, mas uma
despedida dos amigos", um exame
cultura renascentista não só apresentou uma teologia da encarnação (coisa que também
mais atento documenta a
fez a Igreja grega), como desenvolveu formas de representação adequadas a sua permanente reverência por Jesus
expressão" . Portanto, conclui, "podemos considerar a arte renascentista a primeira e Cristo, como na pintura de
Ghirlandaio (página ao lado). O
última fase da arte cristã a que se pode arrogar total ortodoxia" . tratamento de Leonardo (acima)
Um porta-voz representativo dessa visão renascentista do homem universal foi o colhe a reação dos discípulos à
sublime pessoa do Senhor quando,
humanista e homem de Estado Donato Acciaiuoli, que afastou sua exposiçãq da "enquanto comiam, [Ele] disse-lhes,
Eucaristia das "muitas investigações sutis que os doutores [escolásticos] fizeram de sua 'Em verdade vos digo que um de
vós me entregará"' (Mt 26:21).
matéria, de sua forma, de sua causa eficiente, de sua causa final e de como a substância
do pão e do vinho se transformava no mais verdadeiro corpo de Cristo" . Mas seria um
sério anacronismo entender tal polêmica como a rejeição da doutrina ortodoxa, que
160 + O Homem Universal

Acciaiuoli reafirmou mesmo ao romper com a versão escolástica. Para ele, como
observa Trinkaus, a Eucaristia "é o modo mais importante pelo qual Cristo reforça a fé
em sua doutrina, pois é uma comemoração da divina encarnação, pela qual e por meio
da qual ele se tomou o grande mestre da humanidade" . Jesus foi "mestre e exemplo", uma
imagem dele pela qual Donato Acciaiuoli aderiu à revivescência franciscana do retrato do
Evangelho e ao Jesus celebrado antes, no mesmo século, pela Imitação de Cristo de Thomas
à Kempis. É , pois, "difícil e essencialmente arbitrário separar a visão que os humanistas
tinham da natureza de seu enfoque particular da religião [sobretudo do retrato de Jesus]
ou, por outro lado, fazer o inverso". Com seu discípulo mais tardio, Alexander Pope, os
humanistas acreditavam que "o estudo mais adequado da espécie humana é o do ho­
mem", todavia, descobriram que esse estudo se realizava no Homem Universal.
Dante Alighieri ocupa um lugar de relevo na história da imagem renascentista de
Jesus, assim como em todos os outros aspectos da Renascença, razão pela qual, nas
palavras de Burckhardt, "em todos os pontos essenciais [ . . . ] a primeira testemunha a ser
intimada é Dante", talvez a mais eloqüente afirmação de Burckhardt sobre a própria
idéia de l'uomo universale, o Homem Universal. Entretanto, num grau que ele não
avaliou adequadamente, a inspiração de Dante, tanto na poesia quanto na política, era
inseparável da pessoa de Jesus, como no título de seu primeiro livro, Vita nuova. Nessa
obra, contam-lhe que o apelido de Joana, a amada de seu "melhor amigo", Cuido
Cq_valcanti, é Primavera, porque, na qualidade de precursora de Beatriz, "prima verrà
[virá primeiro]", e se chama Joana em homenagem a João Batista, que também veio
primeiro, enviado para anunciar o advento de Cristo. Logo, a própria Beatriz, a
encarnação do amor, é, na frase de Charles Singleton, tradutor de A divina comédia para o
inglês, "uma analogia e uma metáfora de Cristo" .
Se é assim "já em Vita nuova", Beatriz se torna, na Comédia, como observa Thomas
Bergin, "um símbolo da teologia, o aprendizado iluminado pela graça, e até da fé
cristã" . No fim do Purgatório, ela promete a Dante que ele será, para sempre e com ela,
"um cidadão da Roma em que Cristo é 'romano"', ou seja, do Paraíso. Como "doce e
querida guia" do poeta, ela tem a função de conduzi-lo - e ao leitor - a Cristo e à Mãe
de Cristo que sempre são inseparáveis e, às vezes (mas de modo algum sempre), quase
indistinguíveis. Nas palavras seguintes de Beatriz a Dante, Maria é "a rosa na qual o
Verbo divino se fez carne"; mas, como todas as outras flores do "jardim" divino, ela
também "desabrocha sob os raios de Cristo", e não por poderes próprios. Pois, mesmo
quando é transportado pelo êxtase a Maria, ele descreve o semblante dela como "o
rosto que mais se parece com Cristo" . É em meio aos acordes de um hino à Rainha dos
Céus, o Regina coeli, que Pedro e a Igreja triunfante recebem seu "tesouro" de "vitória
sob o exaltado Filho de Deus e de Maria" . Com os olhos, esta dirige a atenção do poeta
para "a Luz suprema", pela qual também ela é iluminada, e para o Amor eterno, pelo
qual também ela é salva e sustentada, a Luz e o Amor que vieram unicamente por meio
de Jesus, o Homem Universal, Filho de Deus e Filho de Maria.
O Homem Universal + 161

A atenção dedicada aos detalhes


anatômicos da sexualidade do
Menino Jesus (e de João Batista) na
Madona dos Prados, de Rafael,
não deve ser compreendida como
uma tentativa de torná-lo menos
sagrado. Pelo contrário, como
argumentou um estudioso,
"A cultura renascentista não só
apresentou uma teologia da
encarnação (coisa que também fez a
Igreja grega), como desenvolveu
modos de representação adequados a
sua expressão", incluindo a
sexualidade de Jesus. "Podemos
considerar a arte renascentista a
primeira e última fase da arte cristã
a que se pode arrogar total
ortodoxia".

Dante também retirou da figura de Jesus a sua teoria política. Ele era gibelino,
partidário dos direitos do império contra as pretensões temporais do papado. A jus­
tificação teológica do poder secular dos papas era a entrega das chaves do Reino dos
Céus por Cristo a Pedro; assim "o que [quodcunque]" ele ligasse ou desligasse na terra,
fosse na Igreja, fosse no Estado, seria ligado ou desligado ' nos céus (Mt 1 6: 1 8-19).
Contudo, Dante insistia que Cristo não pretendia que esse "quodcunqué" fosse tomado
"em termos absolutos", mas que "devia estar relacionado com uma classe particular de
coisas" - isto é, a autoridade de conferir absolvição e perdão. Embora a doutrina bíblica
O paralelo e o contraste entre a .
pintura "sacra" e a "profana" no
Renascimento alcança expressão
máxima em duas obras de Sandro
Botticelli, A natividade mística e
O nascimento de Vênus.
A primeira é tão devota e íntima
que os intérpretes de Botticelli
ainda se questionam sobre o que ele
estava tentando ao descrever
o nascimento de Cristo.
O nascimento de Vênus,
ao contrário, é "a primeira imagem
monumental, desde os tempos
romanos, da deusa n ua em pose
semelhante às estátuas clássicas de
Vênus". Cada uma delas é fiel a seu
objeto, mas também ao complexo
espírito artístico de Botticelli.
O Homem Universal + 163

da criação de uma humanidade única à imagem de Deus implicasse que seria melhor
um governo único do mundo, isso não significava que o papado devia ter auto�idade
espiritual e temporal nem que devia funcionar como um governo do mundo. O homem
fora criado com dois objetivos, "a bem-aventurança desta vida [ . . ] e a bem-aventurança
.

da vida eterna" . Esta era a dádiva e a realização de Cristo e de seu martírio, mas, em
meio a esse mesmo martírio, o mesmo Cristo declarou a Pôncio Pilatos: "Meu reino não
é deste mundo" (Jo 18:36).
Para Dante, isso não devia ser tomado - o que um "secularismo'� posterior haveria
de fazer - "como se Cristo, que é Deus, não fosse o senhor deste mundo"; mas, "como
exemplo para a Igreja", ele não exerceria domínio sobre os reinos deste mundo. Era,
pois, coerente com a posição de Dante em De monarchia dizer que o que estava em
discussão para ele era a relação entre dois autorizados conjuntos de dizeres de Jesus e o
conhecido problema hermenêutico de decidir qual deveria ser interpretado à luz do
quê. E argumentava que era mais fiel à vontade de Deus e mais articulado com a vida e
164 + O Homem Universal

Tanto o mito da origem da Via


Láctea no leite do seio de Juno
quanto a narração do Evangelho do
sepultamento de Cristo após a
crucificação chamaram a atenção de
Tintoretto no fim da vida. Em todo
caso, as semelhanças entre o
tratamento dado a ambos os temas -
membros nus atravessando
diagonalmente o centro do quadro,
a vestimenta arranjada em dobras
para defini-los - não obscurecem as
diferenças tanto de propósito
quanto de estado de espírito: a
figura barbada de José de Arimatéia
no Sepultamento é um auto-retrato
do artista, que não pintou a si
mesmo no quadro mitológico.

os ensinamentos de Jesus deixar que a Igreja fosse a Igreja e que o império fosse o
império, sem subordinar o caráter essencial de um ao outro. Ademais, como Ernst
Kantorowicz teve o cuidado de observar, "Uma dualidade de objetivos não implica ne­
cessariamente um conflito de lealdade nem uma antítese. Não existe a antítese humano
versus cristão na obra de Dante, que escreve como cristão e se dirige a uma sociedade
cristã e que, na última passagem de Monarquia, diz claramente que 'de certo modo
[quodam modo] essa bem-aventurança mortal se ordena rumo à bem-aventurança
imortal"' . Também para esse ensinamento a autoridade mais elevada é a revelação em
Jesus Cristo.
No entanto, a maior parte dos estudiosos da Renascen $ a concordaria com o
julgamento de Paul Oskar Kristeller, segundo o qual "se vamos abordar as contribuições
positivas da erudição humanista para a teologia renascentista, devemos enfatizar so­
bretudo as suas realizações no que se pode chamar de filologia sacra': . Nesse sentido, a
"filologia sacra" participou da "revivescência da Antigüidade" em geral, como a deno­
mina Burckhardt, pela qual tanto se obstinaram os humanistas da Renascença. "Não fos-
166 + O Homem Universal

se pelo entusiasmo de alguns colecionadores dessa época", sugere Burckhardt, "que não
se abstiveram de nenhum esforço ou privação em suas pesquisas, decerto só possui­
ríamos uma pequena parte da literatura, principalmente grega, que hoje se encontra em
nosso poder" . O zelo pela literatura da Antigüidade clássica era mais que nostalgia ou
· fúria aquisitiva, embora ambas as coisas estivessem presentes. Baseava-se na convicção
de que uma causa importante da superficialidade e da superstição do presente era a
_
ignorância do passado clássico e de que, por conseguinte, o antídoto seria resgatar esse
passado. "Ad fontes!" era a palavra de ordem. Embora essas "fontes" clássicas estives­
sem tanto em latim quanto em grego, sendo Cícero talvez o mais importante dos auto­
res, a grande inovação introduzida pelo humanismo renascentista foi o interesse pelo es­
tudo da língua grega.
Os métodos eruditos da filologia sacra foram aplicados não só aos filósofos, poetas e
dramaturgos clássicos, mas também aos patriarcas da Igreja e principalmente ao texto
antigo que todos ansiavam por aprender a ler : o Novo Testamento grego. Sua re­
cuperação pelos estudiosos ocidentais na Renascença dos séculos XV e XVI deu origem
a uma revisão filológica sistemática. Pioneiro nessa campanha foi o erudito italiano
Lorenzo Valla, cujas Anotações sobre o Novo Testamento consistiam em comentários gra­
maticais e filológicos sobre os diversos textos. Ele concluiu que a instância com que
começava a pregação de Jesus não dizia, como supunha a leitura equivocada da Idade
Média, "Penitenciai-vos [Poenitentiam agite]", e sim "mudai de sentimento [metanoia]",
ou seja, "Arrependei-vos" (Mt 3:2); e a saudação do anjo à Virgem Maria, kecharitõmene
em grego, não significava "cheia de graça" [gratia plena], como dizia a Ave Maria da
Vulgata (Lc 1 :28), e sim, "agraciada" ou "favorecida" .
Erasmo de Roterdã elevou o resgate da mensagem original de Jesus, com base nas
fontes gregas, a um programa abrangente de reforma da Igreja e da Renascença
teológica. Assim fez em 1 505, ao publicar as Anotações sobre o Novo Testamento, de
Valla, com um prefácio seu que ficou conhecido como "Aula inaugural de Erasmo
como livre-docente da cristandade" . A teologia, insistia ele, devia alicerçar-se na
gramática. O Novo Testamento grego original tinha de se libertar das traduções
errôneas da Vulgata, das interpretações equivocadas a elá impostas pelos teólogos
posteriores e das corruptelas do texto introduzidas pelos copistas. Para esse fim,
encarregou-se em 1 5 1 6 da primeira edição impressa do Novo Testamento grego a ser
publicada, revolucionando definitivamente a imagem de Jesus na cultura ocidental.
Serviu-se da filologia sacra para descobrir e recuperar a philosophia Christi, que expôs
com grande eloqüência em seu Manual de 1 503. O tema central era: "Faze de Cristo o
único objetivo de tua vida. Dedica a Ele todo o teu entusiasmo, todo o teu esforço, o
teu lazer e o teu trabalho. E não encares Cristo como uma simples palavra, como uma
expressão vazia, e sim como a caridade, a simplicidade, a paciência e a pureza - em
resumo, em termos de tudo quanto nos ensinaram" . Pois Jesus foi "o único arquétipo
da santidade" .
Retratado por artistas importantes,
incluindo Hans Holbein, o Moço
(c. 1523), e corretamente aclamado
por seus contemporâneos o maior
sábio da época pela produção das
primeiras edições dos antigos
clássicos, assim como dos patriarcas
dos primeiros tempos da Igreja,
Erasmo de Roterdã foi também
autor de diversos best-sellers,
como o Manual do soldado
cristão, de 1503, que conclamava:
"Fazei de Cristo o único objetivo na
vida" . Em 1536, ele orou:
"O fesu misericordia [Oh, Jesus,
tende misericórdia)".
168 + O Homem Universal

O livro mais significativo


produzido pelo Renascimento não
foi, como se poderia supor,
O príncipe de Maquiavel, mas sim
a primeira edição publicada do
Novo Testamento grego, o Novum
Instrumentum produzido por
Erasmo em 1516, que, pela primeira
vez, tornou o texto original
acessível a muitos. Essa edição e as
sucessoras tornaram-se a principal
referência de milhares de novas
traduções dos Evangelhos e,
contrariamente à intenção de
Erasmo, também contribuíram
para o advento da Reforma.

C V .M. P .R- l.V .tl � � G .1 .0.,


JJ.1A X I M J L'I A N I C AB S A R U A V G V S T: t.
.
N 8 Q.V I S ' A L I V S IN S A C R Ji ' in).)'.\'.( �
N f U \ P B R t i DI.T I ON E. I N 'T R A' <lV· A·T v
·
o 1t A N N o s E x e v o A T . Ã v T A L 1 8 1- ·

EX C V S VM J M.P O R T S T.

O Jesus autêntico era, portanto, o Jesus dos Evangelhos, cuja vida e cujos ensi­
namentos deviam ser estudados com base nas fontes originais do Novo Testamento
grego. Na conclusão do Manual, Erasmo defendia a combinação da philosophia Christi
com o humanismo cristão contra "certos detratores que pensam que a verdadeira
religião não se relacionava com as humanidades [bonae literae] ", nem com "um
conhecimento do grego e do latim" . Pelo contrário, era precisamente pelo estudo
humanístico dos Evangelhos - usando os mesmos métodos literários e a erudição
filológica que os companheiros humanistas de Erasmo aplicavam a outros textos da
Antigüidade clássica - que o leitor poderia descobrir o significado dos Evangelhos e,
assim, aprender as "palavras da vida" ditas por Jesus, que "fluíram de uma alma que
O Homem Universal + 169

nunca, em nenhum momento, separou-se da divindade e a única que nos restaura para
a vida eterna" .
Nesse esforço para desvencilhar a pessoa e a mensagem de Jesus das complicações
impostas pelos teólogos escolásticos, Erasmo retornou ao que Etienne Gilson chamara
de "socratismo cristão" dos escritores do cristianismo primeiro. Pois, como "o autor da
sabedoria e sendo Ele mesmo a Sabedoria em pessoa, a verdadeira Luz, única a dispersar
as trevas da insensatez terrena", Jesus Cristo ensinou que "a maior glória do conheci­
mento é conhecer-se a si mesmo", como ensinara Sócrates (e, séculos depois, Alexander
Pope). Sua mensagem, portanto, era uma revelação do próprio Deus. Todavia, Erasmo
também pôde fazer o apelo: "O caminho de Cristo é o mais sensível e lógico a seguir.
Quando abandonas o mundo por Cristo, a nada renuncias. Ao contrário, tu o trocas por
algo muito melhor. Trocas prata por ouro e pedras por preciosas gemas" . Conservando o
socratismo cristão, ele pôde "recomendar os platônicos acima" de todos os clássicos, por­
que "não só suas idéias como também seu próprio modo de expressão aproximam-se dos
do Evangelho" .
Essa aparente associação da philosophia Christi com a filosofia pagã persuadiu
Martinho Lutero de que Erasmo não fora sério ao abraçar a mensagem bíblica, mas es­
sencialmente um "Epicuro" . Os historiadores que acompanharam Lutero neste julga­
mento não só leram mal Erasmo como também prestaram falso testemunho contra ele:
"o papel de tolo, tomado por frivolidade pagã em tempos sérios, traiu Erasmo" . Quando
morreu, em 12 de julho de 1 536, Erasmo, fiel à philosophia Christi e à Igreja fundada por
Jesus, o Homem Universal - não como o era a Igreja, mas como Jesus tivera a intenção
de ser -, recebeu os sacramentos dessa Igreja, a crisma e o alimento para a sua der­
radeira viagem no viático, e morreu com uma oração a Jesus nos lábios, a qual ele re­
petiu muitas e muitas vezes: "O fesu misericordia; Domine libera me [Ó Jesus, tende
misericórdia; Senhor, libertai-me]" .
Nós, confian tes em nossa força, o Nosso esforço perdíamos;
Não estivesse o Homem certo do nosso lado,
O Homem da própria escolha de Deus .
Perguntastes quem é? Cristo. Jesus é ele;
Senhor dos Exércitos é o seu Nome, de era a era o mesmo,
E ele há de vencer a batalha .

- Martinho Lutero,
"Poderosa fortaleza é o nosso Deus"

1 3 + O Espelho do Eterno

. · ..

A Reforma se iniciou com um apelo à autoridade da Igreja institucional em


favor do Jesus Histórico. No dia 31 de outubro de 1 5 1 7, Martinho Lutero
enviou suas 95 teses, na primeira das quais se lia: "Em Nome do Nosso Se­
nhor Jesus Cristo. Amém. Ao dizer 'Arrependei-vos [Poenitentiam agite]' (Mt
4: 1 7), o nosso Senhor e Mestre Jesus Cristo queria que toda a vida dos crentes
fosse de arrependimento" . Tratava-se de uma aplicação direta da filologia
sacra do humanismo cristão à vida sacramental da Igreja. Lutero nos conta
que se tornou reformador quando estava refletindo sobre o significado das
palavras de Paulo (Rm 1 : 1 7) - "Porque nele [no Evangelho] a justiça de Deus
se revela da fé para a fé, conforme está escrito: O justo viv_erá da fé" . Como
era possível que, pelo conteúdo do Evangelho de Cristo, a "boa nova", Deus
172 + O Espelho do Eterno

fosse um juiz justo, recompensando o bem e castigando o mal? Ele concluiu então que,
aqui, a "justiça de Deus" não era aquela pela qual Deus era justo em si (justiça passiva),
mas que, pelo amor de Cristo, tornava justos os pecadores (justiça ativa) por meio da
justificação. Ter feito essa descoberta, disse Lutero, foi como ver abrirem-se os portões
do Paraíso.
O que ele e os demais reformadores aprenderam com Paulo foi, sobretudo, a "não
[ ... ] saber outra coisa [ ... ] exceto Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado" (1 Cor 2:2) . Jesus
era o espelho do coração paterno [de Deus], do qual apartados não vemos senão um juiz
colérico e terrível. Igualmente para Calvino, "Cristo é o Espelho no qual devemos e, sem
decepção, podemos contemplar a nossa própria escolha" . "Que Cristo seja o Espelho",
dizia uma confissão oficial reformada, "no qual contemplamos a nossa predestinação" .
O "Espelho" era, portanto, uma metáfora-chave no pensamento da Reforma, central
tanto em suas realizações religiosas quanto em suas contribuições culturais. Todos os
reformadores teriam concordado em princípio com o consenso universal de que Jesus,
sendo o Espelho do Eterno, era a revelaçã0 do Verdadeiro, do Belo e do Bom (embora
talvez nem todos aprovassem semelhante terminologia). Contudo, somente em seu
significado como Espelho do Verdadeiro os "reformadores magisteriais" encontraram
algo próximo de uma unanimidade substancial. Nas palavras do mais conhecido hino
de Lutero, Cristo, "o Homem da própria escolha de Deus", era ao mesmo tempo "o
Senhor dos Exércitos", a verdadeira revelação do "Deus oculto" e a fonte da divina
Verdade tal como diziam as Escrituras. Citando as palavras do Novo Testamento, a luz
do "conhecimento da glória de Deus que resplandece na face de Cristo" (2 Cor 4:6),
Calvino explicou que "quando [Deus] nisto apareceu, sua imagem, ele, tal qual era, fez­
se visível; porquanto sua aparência era antes indistinta e umbrosa" .
Todavia, como disse Karl Holl, "a Reforma enriqueceu deveras todos os ramos da
cultura" . Os principais foram, por um lado, a literatura, a arte e a música, inspiradas em
Jesus como Espelho do Belo e, por outro, a ordem política e social, iluminada por Jesus
como Espelho do Bom. Mas Calvino e seus seguidores desconfiavam das possibilidades
idólatras do Belo, ao passo que Lutero e seus adeptos eram extremamente hesitantes
quanto às implicações políticas do Bom. A relevância cultural e social dessas diferenças
do significado preciso de Jesus como Espelho - que decerto se relacionavam com
diferenças teológicas - teve um efeito de muito longo alcance na história dos últimos
quatro séculos.
A mais notável realização literária de Lutero foi a tradução do Novo Testamento para
o alemão, publicada em setembro de 1 522. Ela passaria por cerca de cem edições durante
a vida dele e por inumeráveis outras depois. Heinrich Bornkamm, que empreendeu um
estudo especial sobre o Lutero tradutor, fala na "diferença entre o vôo de águia de sua
linguagem e a dicção de seus predecessores medievais" , acrescentando que "uma
providência maravilhosa colocou Lutero, o maior escultor da língua alemã", no lugar e no
tempo certos para que desse a sua contribuição histórica à criação do alemão moderno.
O Espelho do Eterno + 173

A primeira das 95 Teses de Lutero


de 1517 foi um ataque à prática
da venda de indulgências (como a
do pergaminho da página ao lado),
as quais prometiam remir os
castigos do purgatório. "Quando
nosso Senhor e Mestre Jesus Cristo
disse 'Arrependei-vos'
[Poenitentiarn agite] (Mt 4:17)",
declarava a tese, "queria que toda
a vida dos crentes fosse
de arrependimento" - mas
não estabeleceu o sistema
penitencial medieval de mérito,
recompensa e barganha.

Baseada no texto original grego tal


qual o publicou Erasmo, a tradução
de Lutero do Novo Testamento para
o alemão, em 1522, tornou a vida
e os ensinamentos de Jesus
disponíveis na Linguagem do povo
com inigualável vigor e vitalidade.
Fato é que as pessoas comuns
obedeciam ao mandamento
ilustrado nessa tradução
(Ap 10:8-11): "devorar o livrinho"
da palavra de Deus. Além de
estabelecer o padrão de outras
bfblias vernáculas em outros países,
tornou-se a base do alemão
falado e escrito quando o idioma
chegou à maturidade.
As várias traduções da Bíblia para o vernáculo feitas pela Reforma tornaram-se
momentos de transformação nos idiomas, um processo que, a partir desse momento,
prosseguiu em outras línguas.
Lutero aplicou-se na reconstrução da história do Jesus dos Evangelhos, procurando
torná-lo vivo para o seu público. O comentário do poeta alemão Heinrich Heine, se­
gundo o qual Lutero "era capaz de vituperar feito uma peixeira, mas também de ser
delicado qual uma sensível donzela", aplica-se perfeitamente à sua tradução e a suas
paráfrases dos Evangelhos. Longe de transpor a linguagem dos Evangelhos para a
chave das epístolas paulinas, como pretendem alguns estudiosos, ele se empenhou em
fazer com que cada evangelista, ou melhor, Jesus conforme cada evangelista, falasse
com um acento diferente. O resultado foi um frescor de linguagem que tornou Jesus um
contemporâneo do século XVI. Aos ouvintes sentimentais que lamentavam a pobreza
do Menino Jesus - "Ah, se eu estivesse lá! Rapidamente me prontificaria a ajudar o
bebê!" -, Lutero retorquia: "Por que não fazer isto agora? Jesus Cristo está aqui" . A
admoestação para que se olhassem os lírios do campo e as aves do céu (Mt 6:26-28)
tornou-se, em suas mãos, um discurso sobre como Jesus "está fazendo das aves os
nossos mestres-escolas e catedráticos. É uma grande e continuada desgraça para nós
174 + O Espelho do Eterno

Buscando desesperadamente o
significado e a mensagem
autênticos de Jesus Cristo, o
pensamento e a experiência de
Martinho Lutero (cujo retrato
Lucas Cranach, o Ancião, pintou
em 1526) convergiram para as
necessidades e as aspirações mais
profundas de uma época. O
resultado explosivo dessa
convergência foi a Reforma
Protestante, com sua insistência
apaixonada em Cristo como o
Espelho do Eterno, a quem a
tradição, a Igreja e até as Escrituras
deviam subordinar-se.

que, no Evangelho, um pardal desamparado tenha se tornado um teólogo e um


pregador para os homens mais sábios" . Também na exegese de Calvino, as cenas da
história do Evangelho adquiriram urna força direta e desafiadora, corno em sua vívida
exposição do encontro de Jesus com a mulher junto ao poço, narrada no quarto capítulo
de Evangelho de João.
Lutero esforçou-se muito para infundir na arte sacra do fim da Idade Média a sua
compreensão da verdadeira mensagem do Evangelho: tratava-se especificamente da hu­
manidade de Jesus, o Espelho do Eterno. Albrecht Dürer partilhava dessas idéias e as
refletiu em sua arte;- sua biografia fala em "urna conversão - tanto no terna quanto no
estilo" - operada na fé e na vida do artista mediante a aceitação dos ensinamentos de
Lutero, e, em conseqüência disso, diz o historiador da arte Erwin Panofsky, "o homem
que havia feito mais que qualquer outro para familiarizar o mundo nórdico com o ver-
O Espelho do Eterno + 1 75

<ladeiro espírito da Antigüidade pagã praticamente abandonou o tema secular, a não A espiritualidade da Reforma
ser em ilustrações científicas, registros de viagens e retratos" . centrada em Cristo expressou-se
de diversas maneiras, mas em
Como observou o filósofo da cultura Wilhelm Dilthey, "não se pode apreciar o ver­ nenhuma foi tão profundamente
dadeiro significado de Lutero e da Reforma com base nas obras dos dogmáticos. Seus expressa quanto na Paixão
segundo são Mateus, de Johann
documentos são os escritos de Lutero, o coral de igreja, a música sacra de Bach e Handel Sebastian Bach. À objetividade da
e a estrutura da vida comunitária na igreja" . Alguns reformadores se opuseram à criação morte de Cristo, na abertura do
coro infantil, na qualidade de
de hinos vernáculos, optando pelas paráfrases do "Hinário de Deus", ao Saltério, e à
"Cordeiro de Deus" que tira o
produção de obras-primas como o Saltério de Genebra e o Salmo de Bay. Lutero, porém, pecado de toda a raça humana
não compartilhava "da opinião de que o Evangelho devesse destruir e frustrar todas (Jo 1 :29) une-se a delicada
subjetividade da alma individual
as artes, particularmente a música usada no culto À quele que as criou" . _Tomando e quando ora a Cristo (nas palavras
desenvolvendo o estilo dos hinos e corais surgidos no fim da Idade Média, deu-lhes da partitura original): "Estai junto a
mim quando eu estiver morrendo!"
vida nova, sendo que o coral, que atingiu seu ponto culminante na obra de poetas e
176 + O Espelho do E terno

No século XVI, a renovada noção compositores como Paul Gerhardt, tornou-se um dos principais monumentos culturais
de Jesus como Espelho do Eterno
não se limitou ao protestantismo,
da Reforma. Coube ao gênio de Bach unir nas cantatas e, depois, em escala mais ampla,
mas foi igualmente importante para nas Paixões, esses dois elementos da Reforma : o texto do Evangelho na tradução
a reforma católica. Na obra-prima inigualável de Lutero e o coral. Agora os ouvintes podiam experimentar o significado da
de espiritualidade intitulada
Os nomes de Cristo, o reformista vida e da morte de Jesus, o Espelho do Eterno, com frescor e poder sem iguais. Nas
católico espanhol Luís de León palavras do arcebispo Nathan Soderblom, da Suécia, /1 A música da Paixão [. .. ] constitui o
exaltou "o espírito de Jesus" como
aquele que "penetra e modifica" assim acréscimo mais importante que se fez às fontes da revelação do Antigo e do Novo
tudo quanto toca. "Em Jesus Cristo, Testamentos. Se me pedires um quinto evangelho, eu não hesitarei em mencionar a in­
como num poço profundo, como
terpretação da história da salvação em seu acme na música de Johann Sebastian Bach" .
num vasto oceano, nós encontramos
um tesouro do Ser". A contemporaneidade de Cristo foi também o tema central de uma das obras-primas
da Reforma católica espanhola, Os nomes de Cristo, de Luís de León. 11N umerosos são os
nomes que as Escrituras dão a Cristo", diz ele, /1 como numerosas são suas virtudes e
seus atributos" . 110 espírito de Jesus", escreve, "penetra e modifica" a alma e a
personalidade humanas, pois "em Jesus Cristo, como num poço fundo, como num vasto
oceano, nós encontramos um tesouro do Ser" . Esse tesouro trouxe "beleza" e "virtude"
por meio "das novas leis a nós legadas por Jesus" . Era o objetivo e a realização da vida
humana encontrar esse tesouro e viver em obediência às "novas leis" .
Tal misticismo cristão teve maiores conseqüências tanto em termos de espirituali­
dade quanto de poder literário nos poemas do século XVI do místico espanhol são João
da Cruz, poeta � filó?ofo formado no pensamento de Tomás de Aquino e empenhado
em resolver as tensões entre intelecto e vontade, entre conhecimento de Deus e amor de
O Espelho do E terno + 177

O tema de Alegoria do Antigo e


do Novo Testamentos, de Hans
Holbein, é o contraste expresso do
Evangelho de João (1 :1 7): "Porque
a lei foi dada a Moisés; a graça e a
verdade vieram de Jesus Cristo" -
o primeiro pintado no canto
esquerdo, no alto, o segundo,
abaixo, à direita. Não é casual,
já que Lutero criticava o catolicismo
romano por confundir o evangelho
com a lei, que essa Alegoria
também se destinasse a justificar
a doutrina da Reforma.

Deus. A solução veio em Jesus como Espelho do Eterno. Em Canções da alma, ele explo­
rou "o caminho da negação espiritual", que fora mapeado pelos neoplatônicos cristãos.
Contudo, não bastava o conhecimento de Cristo em si, mesmo por intermédio da ne�
gação: era preciso que o acompanhasse o amor de Cristo. No madrigal "De Cristo e da
alma", ele descrevia o destino do jovem amante, "com amor no coração tal uma chaga
maligna", como uma metáfora do amor místico entre a alma e Cristo. Os dois temas, co­
nhecimento e amor, convergiram em sua balada "Sobre a encarnação" . Nela encontrava­
se uma conversa entre Jesus e o Pai Celestial sobre a mística noiva terrena que este
encontrou para ele. Assim "amor perfeito" realizar-se-ia na união entre a noiva e Jesus,
o Espelho do Eterno.
Diversamente, quando se tratou de definir Jesus como o Espelho do Bom na ordem . .
política, Lutero estabeleceu um limite, opondo-se à tentativa de tornar a pessoa e a
mensagem de Jesus diretamente contemporâneas ou relevantes. Ao expor todo o Sermão
da Montanha em seus sermões de 1 530-32, ele atacou os "que não têm conseguido dis­
tinguir adequadamente o secular do espiritual, o reino de Cristo do reino do mundo" .
178 + O Espelho do Eterno

"De Cristo e da alma" era o título


de um madrigal no qual são .João da
Cruz cantou o amor místico entre a
alma e Cristo. Na "Noite escura
da alma", ele reinterpretou
os passos da ascensão mística
da alma a Cristo . Salvador Dalí
imitou com ousadia o poeta
místico em sua pintura
O Cristo de são João da Cruz.

Em 1 555, nove anos após


a morte de Lutero, foi inaugurado
em Weimar um retábulo de Lucas
Cranach, o Moço (página ao lado).
Nessa cidade, assim como em
incontáveis artistas anteriores,
acreditava-se que ele havia pintado
uma Crucificação de Cristo.
Um exame mais atento
da pintura revela, porém, que
o mais proeminente dos
personagens reunidos ao pé
da cruz é, inconfundivelmente,
Martinho Lutero.

Aqui� Jesus "não compõe com a responsabilidade nem com a autoridade do gover�o,
mas ensina cada cristão a viver pessoalmente, separado de sua posição e de sua
autoridade oficiais", pois, "não há como evitá-lo, todo cristão tem de ser algum tipo de
pessoa secular" . Como tal, não devia tentar usar os ensinamentos de Jesus nem as leis da
Bíblia para governar o Estado. Era melhor que o fizesse com base na razão, não na re­
velação, pela legislação do "espelho dos saxões [Sachsenspiegel]", não pelos decretos de
Jesus, o Espelho do Eterno. Este proibia os juramentos, o governo os exigia; e ambos
tinham razão, cada qual em sua devida esfera. Os Evangelhos não ofereciam nenhum
insight especial quanto ao que era governar com justiça. Assim, por inegável que fosse o
seu envolvimento político e o da Reforma, Lutero não desenvolveu uma "política
cristã", pois não foi para isso que Cristo veio ao mundo.
A articulação de uma política cristã na época da Reforma, a qual redefiniria funda­
mentalmente a natureza do governo, especialmente no mundo anglófono, deve ser pro­
curada não na Wittenberg de Lutero, mas na Genebra de Calvino. Este reconhecia que
180 + O Espelho do Eterno

Calvino pertenceu à segunda


geração de refarmadores
protestantes, cuja missão histórica
foi sistematizar e consolidar as
conquistas da primeira - o que ele
fez sobre.tudo na cidade e no ca'Y!tão
suíços de Genebra, onde foi
presença dominante de 1541 a
1564. Em reconhecimento e em
comemoração do quarto centenário
de seu nascimento; Genebra erigiu,
em 1909-17, as estátuas dos
reformadores - Calvino, Guillaume
Farei, Théodore de Beze e John
Knox. A Calvino, porém,
foi dado maior destaque.

"o Reino Espiritual de Cristo e a jurisdição civil são coisas totalmente distintas" . Con­
tudo prosseguia: "O governo civil tem como fim definido, tanto quanto vivemos entre
os homens, o cuidado e a proteção do culto exterior de Deus, a defesa da posição da
igreja e da sã doutrina da piedade, a adequação de nossa vida à sociedade dos homens,
a formaçãÓ do nosso comportamento social na justiça civil, a reconciliação de uns com
os outros e a promoção da paz e da tranqüilidade gerais ." Por conseguinte, os
magistrados deviam "submeter a Cristo o poder de que foram investidos, pois só Ele
[Jesus Cristo] pode estar acima de tudo" .
Entretanto, uma vez que o governo devia realizar a fidelidade a Cristo, o Espelho do
Bom, era essencial que a palavra de Deus fosse pregada e ensinada em toda a sua
verdade e pureza e aplicada concretamente à totalidade da vida do indivíduo e da
sociedade. Em princípio, a idéia da Reforma do sacerdócio universal de todos os crentes
significava que não só o clero, mas também os leigos tinham capacidade de ler,
compreender e aplicar a doutrina da Bíblia. No entanto, a filologia sacra quase sempre
contradizia o sacerdócio universal: a Bíblia devia ser entendida com base no texto
original autêntico, em hebraico e grego, o qual, em geral, só clérigos e teólogos tinham
condições de compreender adequadamente. Assim, a autoridade da erudição do clero
da Reforma vinha substituir a autoridade sacerdotal do clero medieval. Em termos fun­
cionais, portanto, a busca de uma forma de governo que incorporasse a vontade que
O Espelho do Eterno + 181

Deus revelara à sociedade em Jesus Cristo, o Espelho, conduzia a um sistema muitas Já se disse que a liberdade de
religião foi um produto da Reforma,
vezes designado pelo ambígüo termo teocracia.
mas não dos reformadores. Cada
Quando os adeptos de Calvino finalmente estabeleceram uma sociedade que podia um deles, de uma maneira ou de
ser moldada conforme a lei de Cristo, a concepção subjacente a essa sociedade era a de outra, considerava que era um
mandamento de Cristo reprimir os
que a lei de Cristo continha uma mensagem tanto para os governantes quanto para os que tinham outra crença. Contudo,
governados. A eleição dos sermões dos religiosos puritanos da Nova Inglaterra colonial os conflitos religiosos provocados
pela Reforma muito contribuíram
se baseava nessa concepçãà. " É melho(' , declarou John Cotton de Massachusetts,
para o surgimento da noção -
"modelar o Estado na expressão da casa de Deus, que é a Igreja, que acomodar a Igreja à qual Roger Williams deu forma
ao Estado civil" . E, como disse um estudioso ao comentar a afirmação de Cotton, "todo legal concreta em Rhode Island -
de que existia uma obrigação moral
puritano deve ter concordado" . Um dos poucos que não concordaram foi o fundador de de respeitar a consciência
Rhode Island, Roger Williams, que negou a continuidade entre o "governo" bíblico, individual (em nome da qual
os reformadores falavam e agiam),
tanto no reino de Israel quanto no reino de Deus proclamado por Jesus, e o "governo mesmo quando ela discordava
dos santos" reivindicado pelos puritanos. Em vários aspectos, foi Abraham Lincoln da dos próprios reformadores.
quem, em meio· ao conflito a propósito da escravidão, descobriu a falácia da concepção
tradicional. E a autoridade decisiva dessa descoberta, ainda de acordo com Lincoln, era
a pessoa de Jesus como Espelho do Eterno, que desse modo fornecia, em duas tradições
que remontavam à Reforma, tanto a justificação da "teocracia" quanto a sua mais ex­
pressiva refutação.
Avan te, soldados cristãos,
Marchando como para a guerra,
A cruz de Jesus
À fren te.

- Sabine Baring-Gould,
"Processional"

14 + O Príncipe-da-paz

Um dos Nomes de Cristo a que Luís de León dedicou seu tratado foi o título
"Príncipe-da-paz", retirado de Isaías 9:5: "Porque um menino nos nasceu, um
filho nos foi dado; [ . . ] e a ele foi dado este nome: [ . ] Príncipe-da-paz" . Na
. . .

época da Reforma, que foi também a dos conflitos religiosos, havia motivos de_
sobra para enfatizar que Jesus, o Príncipe-da-paz, conclamava seus seguidores
a procurar os caminhos da paz, não os da guerra. Um dos últimos líderes da
Reforma, Jan Amos Comenius, que, com sua Igreja e sua nação morávias,
sofreu na Guerra dos Trinta Anos, denunciou aqueles que "juntaram lanças, es­
padas, carros, forcas, cruzes, chamas e verdugos, tornando-os temíveis em vez
de amados. Acaso foi isso que ensinou o melhor dos Mestres? Acaso isso pro­
cede dos ensinamentos Daquele que só ensinou aos Seus seguidores o amor, a
184 + O Príncipe-da-paz

Em agosto de 1941, Franklin


Delano Roosevelt, presidente
dos Estados Unidos, e Winston
Churchill, primeiro-ministro da
Grã-Bretanha, encontraram-se em
pleno mar formulando o que viria
a se chamar a Carta Atlântica.
Em 24 de agosto, ao retornar a
Londres, Churchill relatou:
"no culto a bordo, nós cantamos
'Avante soldados cristãos'. E, de
fato, senti que esta não era uma
presunção vã, mas que tínhamos o
direito de sentir que estávamos a
serviço de uma causa pela qual a
trombeta soou nas alturas".

afeição e o auxílio mútuo?" . A Reforma respondeu à pergunta de Comenius sobre o que


a pessoa e a doutrina de Jesus significavam para o problema da guerra com um leque de
teorias que se pode organizar na tipologia da tríade-padrão de ensinamentos sobre
"Jesus e a guerra": a doutrina da guerra justa, a teoria da cruzada e a ideologia do pa­
cifismo cristão.
A defesa de Lutero da guerra justa, como a que ensinou o melhor dos Mestres,
endereçava-se a esta pergunta: "se a fé cristã, segundo a qual nós devemos ser justos
perante Deus, é compatível com ser soldado, com ir à guerra, ferindo e matando,
pilhando e incendiando, como a lei militar requer que façamos com o inimigo em tempo
de guerra? Isso deve deixar-nos com a consciência pesada perante Deus? O cristão deve
praticar unicamente o bem e o amor e não matar ninguém, não fazer mal a ninguém?" .
A diferença entre o reino espiritual de Cristo e o reino terreno deste mundo forneceu a
Lutero o arcabouço para solucionar a contradição entre a ética do amor absoluto de
Jesus e os deveres concretos da vida política e do serviço militar. O amor absoluto
obrigava o seguidor de Jesus como pessoa, mas não devia servir de norma para os
deveres do ofício público de tal seguidor.
O Príncipe-da-paz + 185

Segundo Lutero, a natureza de ambos os reinos ficara definida nas palavras de Jesus Quando Pedro sacou
a espada para defender Jesus
a Pôncio Pilatos: "Meu reino não é deste mundo. Se meu reino fosse deste mundo, meus
de seus captores, este lhe ordenou:
súditos teriam combatido" (Jo 1 8:36). Por um lado, Cristo não quis interferir nos reinos "Guarda a tua espada no seu
deste mundo e em suas estruturas, pois o seu reino pertencia a outra ordem; logo, a ação lugar" (Mt 26:52). Em
conseqüência, a autoridade
militar não era a maneira apropriada de defender o reino de Cristo. Mas ele também deu de Jesus foi invocada não só para
a entender "que a guerra não era errada" em si e por si, pois disse que nos reinos que justificar o uso da espada a fim
de preservar a ordem pública,
pertenciam a es�e mundo era adequado que os "súditos" combatessem como.. cidadãos. como também em seu nome
Do mesmo modo, como argumentavam tanto Calvino quanto Lutero, João Batista não os exércitos da Europa partiram
em cruzada para defender
disse aos soldados que perguntaram "E nós, que precisamos fazer?" que era seu dever,
a fé e arrebatar a Terra Santa
em nome do amor, renunciar ao pecaminoso ofício de combater e matar. "Limitou-se a ao controle dos "infiéis"
dizer-lhes, 'A ninguém molesteis com extorsões; não denuncieis falsamente e contentai­ muçulmanos. Entre seus
generais achavam-se Frederico
vos com o vosso soldo."' (Lc 3:14). Assi?1, "ele prezava a profissão militar, mas ao Barba-roxa e Ricardo Coração
mesmo tempo proibia-lhe os abusos. Ora, o abuso nã-0 afeta o ofício'' . A vinda de Cristo de Leão, que acreditavam
que o próprio Cristo era o seu
significou, por conseguinte, a introdução de um imperativo radicalmente novo do amor comandante militar supremo.
sofrido; mas este imperativo não se endereçava a Pilatos, nem aos outros oficiais
romanos, nem aos soldados pagãos ou cristãos, os quais deviam continuar obedecendo
aos imperativos do ofício público que exerciam.
Uma exegese ainda mais sagaz permitiu a Lutero atacar outra frase de Jesus que
parecia aplicar-se à ética radical do amor, proibindo aos seus discípulos o emprego da
força. Quando Pedro tentou protegê-lo, agredindo com a espada um de seus captores,
Jesus o censurou: "Guarda a tua espada no seu lugar, pois todos os que pegam a espada
186 + O Príncipe-da-paz

Embora Jesus tenha pregado à pela espada perecerão" (Mt 26:52). Essas palavras pareciam proibir o uso da espada,
beira-mar e pelo menos em uma
acrescentando ainda a ameaça de que tal uso sujeitaria o perpetrador à idêntica
ocasião se haja mostrado mais afeito
ao mar que os experientes violência. Assim, o mandamento de Jesus era uma extensão das palavras, como se lê em
marinheiros e pescadores que Romanos 12:19: "Não façais justiça por vossa conta, caríssimos, mas dai lugar à ira, pois
figuravam entre os seus discípulos,
coube a gerações posteriores está escrito: 'A mim pertence a vingança, eu é que retribuirei, diz o Senhor' (Dt 32:35)" .
representá-lo como patrono dos Mas, segundo Lutero, a advertência d e Jesus significava realmente que " a espada" era
navios de guerra e dos guerreiros,
como neste galeão elisabetano
"uma propriedade divina" por intermédio da qual seria executada a vingança, prer­
decorado com "a cruz de Jesus rogativa exclusiva de Deus: "Todo aquele que pega a espada [como pessoa particular,
seguindo adiante". não no leal exercício de um ofício público] pela espada perecerá", uma espada a ser
usada pelos investidos de um ofício público - sejam eles carrascos ou soldados, pagãos
ou cristãos.
Quanto à proibição de Jesus, "Não julgueis", também ela devia ser tomada à luz da
declaração "A mim pertence a vingança" (Mt 7: 1 ). Em vez de proibir a guerra e o uso da
força, o imperativo de Jesus obrigava seus seguidores a terem respeito pela ordem
política estabelecida, mesmo que os governantes fossem injustos e opressores: "se este
rei não observa a lei de Deus nem a lei do país, vós haveis de atacá-lo, julgá-lo e vingar­
vos dele?". Era precisamente isso que Jesus proibia. Por conseguinte, Lutero lia a ética
de Jesus como uma condenação da revolução, não da guerra; pois, por definição, a
revolução era um ato de injustiça, ao passo que a guerra podia ser um instrumento da
justiça. Assim, a corrente principal da Reforma aderiu à tradição da guerra justa de
Agostinho e Tomás de Aquino.
Agostinho denunciara o militarismo romano, com a sua glorificação da violência
armada, e tinha visto na guerra a prova de que os seres humanos podiam ser mais san­
guinários que os animais selvagens. Não obstante, reconhecera, ainda que com certa re-
O Príncipe-da-paz + 187

lutância, que os erros humanos haviam tornado necessárias as "guerras justas"; Poucas figuras históricas
representam tão perfeitamente a
contudo, era preciso "lamentar a necessidade das guerras justas", não glorificá-la. Ele combinação paradoxal do coração
advertiu o governador cristão da província da África de que "A paz devia ser o objeto do guerreiro com a devoção mística
do vosso desejo" e, por essa razão, "a guerra há de ser empreendida unicamente éomo a Cristo e a sua Mãe do que Joana
D'Arc, "a donzela de Orleans"
necessidade e para que, por meio dela, Deus possa livrar os homens da emergência e que, em 1429, reuniu os exércitos
preservá-los na paz". Seguia-se daí que, "mesmo ao empreender a guerra", o fiel cristão da França sob o estandarte com a
inscrição "Jesus, Maria " .
devia "cultivar o espírito dos que promovem a paz", como disse Jesus (Mt 5:9). Citando O paradoxo persistiu n o fato d e ela
muitas dessas mesmas afirmações, Tomás de Aquino partiu da diferença entre a pessoa ter sido queimada viva por heresia
em 1431 e canonizada apenas em
privada e o ofício público. Três eram as condições necessárias para tornar justa uma
1920 ! A poderosa estátua de Anna
guerra: que quem a empreendesse tivesse autoridade para tanto; que houvesse uma Hyatt Huntington capta ambos os
"causa justa"; e que a guerra fosse empreendida com a "intenção correta" de fazer o bem motivos.

e alcançar a paz. Frases de Jesus como "Não resistais ao homem mau" (Mt 5:39) eram de
fato a autoridade máxima do cristão como pessoa privada; "no entanto, às vezes é
necessário ao bem comum que o homem aja de outra maneira" no exercício de um ofício

I
/
188 + O príncipe-da-paz

No século XVI, a ala radical público. Os tomistas ·posteriores acrescentariam uma quarta condição (que se tornou
da Reforma protestante incluía
importante na discussão sobre a guerra nuclear) : que a guerra fosse empreendida debito
cristãos pacifistas e militantes.
Entre esses últimos, Thomas modo, com meios adequados [e, portanto, adequadamente limitados] .
Münzer, q!fe encontrou nas Havia, contudo, u m aspecto d o tratamento dado à guerra pela teologia medieval que
palavras do "gentil Filho de Deus"
não só "Guarda a tua espada no seu fez com que Lutero rompesse radicalmente com seus predecessores: a Cruzada, a
lugar" (Mt 26:52), como também tradição dos "soldados cristãos" que, nessa condição, estavam "marchando como para a
"Não vim trazer paz, mas espada"
guerra" . À guisa de solução para a ambigüidade moral da guerra que ia além da trágica
(Mt 10:34). Levando a cabo o que
acreditava ser os mandamentos de necessidade implícita na idéia agostiniana de guerra justa, a Cruzada imprimiu o
Cristo, Münzer liderou uma símbolo sagrado da cruz de Jesus na causa da "Santa Paz e da Guerra Santa" . "Levar a
revolução cristã na Guerra
Camponesa e morreu pela causa cruz" significava ir combater o islã na Palestina, usando a cruz de pano vermelho no
em 1525, na Batalha de ombro da vestimenta. Parece que o papa Urbano II descreveu a morte dos cruzados no
Mühlhausen, aqui representada.
campo de batalha como uma espécie de participação no martírio e na morte de Cristo.
Na verdade, porém, como expôs o historiador Steven Runciman, esse "fervor dos
cruzados" em nome de Jesus "sempre ofereceu uma desculpa para matar os inimigos de
Deus" e conduziu a pogroms contra os judeus e à pilhagem da Constantinopla cristã -
tudo numa flagrante negação dos _ensinamentos Daquele cuja cruz eles levavam.
O Príncipe-da-paz + 189

No período da Reforma, a Cruzada para libertar a Terra Santa dos infiéis caiu O retrato de Jesus mais amplamente
virtualmente no esquecimento, pois os turcos se haviam constituído num perigo claro e divulgado, em centenas de milhares
de exemplares, foi a Cabeça de
presente para a própria Europa cristã exatamente no momento em que a Reforma parecia Cristo, de Warner Sallman.
dividir as forças cristãs. A coincidência das duas ameaças forneceu ocasião para convocar­ Durante a Segunda Guerra
Mundial, não só essa imagem, como
se a dieta do santo Império Romano, em Augsburgo, em 1530, na qual a Confissão de também o marcial Conto de Natal,
Augsburgo apresentou o caso da Reforma Luterana, tornando-a a posição oficial do partido de 1942, fizeram de Cristo o consolo
e a inspiração dos soldados
da Reforma e solicitando a Carlos V, "Sua Majestade Imperial, que de maneira salutar e
norte-americanos, muito embora,
divina, imitasse o exemplo de Davi fazendo a guerra contra o turco" . O motivo oferecido como anteriormente observara
para aprovar tal campanha não foi o ideal cruzado de uma guerra santa, mas o prinópio Abraham Lincoln sobre uma guerra
passada, ambos os lados "liam a
segundo o qual o "investido do ofício real" tinha o direito e até a obrigação de "defender e mesma Bzôlia e oravam ao mesmo
proteger os súditos" . A corrente principal da Reforma rejeitava o ideal da Cruzada, mas Deus, e cada um deles invocava Sua
ajuda contra o outro".
insistia na teoria da guerra justa: esta se legitimava no Jesus que reconhecera que a
autoridade de Pôncio Pilatos tinha sido dada por Deus (Jo 19:11), não no Jesus cuja
crucificação, sob o poder de Pôncio Pilatos, conferira autoridade a sua Igreja (Mt 19-20)�
O análogo mais próximo do ideal da Cruzada, na Reforma, proveio de um líder da
Reforma Radical, Thomas Münzer, que estava convencido de que "Cristo, o Filho de
190 + O Príncipe-da-paz

Juntamente com seus companheiros Deus, e seus apóstolos" haviam estabelecido uma f é pura, mas esta s e corrompera ime­
de fé, o último bispo da Unidade dos .
Irmãos Boêmios, Jan Amos
diatamente a seguir. Esta Pedra preciosa, Jesus Cristo, estava "prestes a tombar e atingir
Comenius (Komensk[j) - cuja aqueles planos [ . ] arrasando-os" . Porque Jesus advertira: "Não penseis que vim trazer
..

estátua, presenteada pelo povo paz à terra. N�o vim trazer paz, mas espada" (Mt 1 0:34). Ademais, ele havia "ordenado
tcheco, domina o .campus da
Universidade da Morávia, em com profunda gravidade, dizendo: 'Quanto a esses meus inimigos [ . . . ] trazei-os aqui e
Bethlehem, Pensilvânia - foi trucidai-os em minha prese�ça"' (Lc 19:27) . Por que o Príncipe-da-paz, a quem o próprio
expulso de sua terra natal na
Batalha da Montanha Branca em Münzer chamava de "o gentil Filho de Deus", deu uma ordem de tal modo sangüinária?
1620. Personificando a destruição "Ah, porque eles arruínam o governo de Cristo [ . . ] . Ora, se vós quereis ser verdadeiros
.

da Europa cristã na Guerra dos


governadores, deveis começar a governar pela raiz, e, como Cristo ordenou, apartar seus
Trinta Anos, justificada em nome
de Cristo, ele perguntou: "Acaso foi inimigos do eleito" . As exortações de Jesus eram uma convocação à revolução cristã, um
isto que ensinou o melhor dos novo tipo de guerra santa. Münzer foi capturado e decapitado no ano seguinte; seu
Mestres? "
espírito, porém, seguiria vivo na radical política apocalíptica dos Homens da Quinta
Monàrquia, que emergiram do puritanismo inglês no século XVII e, depois, na "teologia
da libertação" de certos cristãos do século XX.
A teologia da guerra santa de Münzer acabou na derrocada da Guerra Camponesa;
a teoria de Lutero da guerra justa termino_u na catástrofe da Guerra dos Trinta Anos.
Além disso, nem a guerra santa nem a guerra justa chegaram a constituir uma resposta
nova. ao dilema de Jesus e a guerra, tal qual o formulou Comenius: "Acaso foi isso que
ensinou o melhor dos Mestres?" . A única- resposta verdadeiramente nova (que, aliás,
eles insistiam, era antiqüíssima) proveio primeiramente de Erasmo, depois de certos
anabatistas, dos quacres e de outros grupos da Reforma Radical. Embora, em seus ata-
O Príncipe-da-paz + 191

Tal qual a articularam os


pensadores quacres como William
Penn e artistas como Edward
Hicks, a visão de Jesus Cristo como
Príncipe da Paz concebia-o como o
pacificador de todas as antigas
inimizades - entre uma nação e
outra, entre as raças e até entre a
humanidade e as demais criaturas
da terra, porque a própria criação
será "libertada da escravidão da ·

corrupção para entrar na libertade


da glória dos filhos de Deus"
(Rm 8:21).

ques à guerra, invocassem com muita freqüência argumentos da razão e da moralidade


humana universal, era a cristologia - uma cristologia de vida, e não uma doutrinária -
que constituía o cerne de sua argumentação. O fundamento dessa argumentação era a
definição da essência do cristianismo como um discipulado. "No nono capítulo de
Mateus", declaravam os anabatistas, "Cristo foi a Mateus, o coletor de impostos, e lhe
disse: 'Segue-me"' (Mt 9:9) . Revivendo a convocação do Novo Testamento a uma rup­
tura radical com o passado como condição do discipulado autêntico, eles anunciavam o
"caminho da cruz", em que o discípulo seguia Jesus à morte e, pela morte, à vida.
Alguns dos mais impressionantes documentos provenientes da Reforma são os relatos
do martírio dos anabatistas, que "subiam ao cadafalso como se estivessem indo dan­
çar", porque o encaravam como uma oportunidade de participar da morte e da ressur­
reição de Jesus.
Os anabatistas evangélicos acreditavam que haviam sido convocados a uma
existência de submissão e total dependência a Deus, o tipo de vida que o próprio Cristo
vivera. Não deviam tentar dar ao mundo exterior e à ordem civil a forma de uma
sociedade cristã de acordo com a vontade de Jesus, mas tornar-se o seu "pequenino re-
192 + O Príncipe-da-paz

Ainda que a vida e os banho" (Lc 1 2:32). Intitulavam-se os verdadeiros discípulos do Príncipe-da-paz a fim de
ensinamentos de Jesus possam
separar-se drasticamente do mundo. Foi no contexto dessa imagem de Jesus que os
ter implicado reações diversas nos
grupos pacifistas ou dos cruzados anabatistas pacifistas criaram a sua interpretação da guerra e do uso da força, a qual
cristãos a respeito das questões de figura sucintamente na Confissão de Schleitheim de 1 527: "Nós concordamos com o
paz e de guerra, as implicações de
sua morte foram mais claras para seguinte, no que concerne à espada : é ordenada por Deus, fora da perfeição de Cristo.
ambos os lados. "Nos campos de Ela pune e dá morte ao corrompido, guarda e protege o bom [ . . . ]. Entretanto, na
Flandres", escreveu o poeta John
McCrae sobre a Primeira Guerra perfeição de Cristo, só o banimento é usado como advertência e como excomunhão
Mundial, "as fileiras e fileiras de àquele que pecou, sem dar morte à carne" . Ecoando as palavras do Novo Testamento, os
cruzes" identificavam as vítimas
com Cristo, a Vítima Eterna. anabatistas reconheciam que Deus instituíra o governo, a autoridade, e que "não é à toa
O mesmo comentário que ela traz a espada" (Rm 1 3: 1 -4). Eles não deviam depor as autoridades governamen­
se estende a incontáveis
tais, e sim apoiá-las. Opunham-se unicamente a que os próprios seguidores de Cristo
outros cemitérios pontilhados
de cruzes a perder de vista. fossem magistrados e brandissem a espada.
O Príncipe-da-paz + 193

Um conceito semelhante da "perfeição de Cristo" possibilitou o estágio seguinte da


história do pacifismo cristão. Por intermédio do quacre escocês Robert Barclay, a
Sociedade dos Amigos elaborou uma formulação teológica do caso contra a participação
dos cristãos na guerra. Para /1 os atuais magistrados do mundo cristão", a guerra não era
"totalmente ilegal", pois eles ainda se achavam "longe da perfeição da religião cristã" .
Mas aqueles que atingiram tal perfeição foram guiados pelo Espírito de Cristo para
enxergar a inconsistência fundamental entre a prática da guerra e "a lei de Cristo" . A
verdadeira obediência à lei de Cristo exigia que os quacres não empreendessem a guerra:
"soframos a exploração, o seqüestro, a prisão, o banimento, o espancamento e os maus­
tratos sem nenhuma resistência, depositando a nossa confiança unicamente em DEUS, que
pode defender-nos e levar-nos, pelo caminho da cruz, ao seu reino" .
É digno de nota que muitos dos que atacavam o uso tradicional dos ensinamentos
de Jesus para justificar a guerra promoviam, ao mesmo tempo, uma campanha vig9rosa
contra os dogmas tradicionais sobre a pessoa de Jesus Cristo. Todavia, os exemplares
dos Evangelhos lidos por ambos os lados continham uma parábola de Jesus que
contrastava o dizer a coisa certa com o fazer a coisa certa: "Que vos parece? Um homem
tinha dois filhos. Dirigindo-se ao primeiro, disse: 'Filho, vai trabalhar hoje na vinha' . Ele
respondeu: 'Não quero'; mas depois, reconsiderando a sua atitude, foi. Dirigindo-se ao
segundo, disse a mesma coisa. Este respondeu: 'Eu irei, senhor'; mas não foi. Qual dos
dois realizou a vontade do pai?" (Mt 21 :28-31).
E se o homem resolver segui-lo aonde ele conduz,
Cansado de murmurar credos de Atanásio?

- Roden N oel,
"A bandeira vermelha" ·

15 + O Mestre do Bom Senso

Durante a Era da Razão, a imagem cristã ortodoxa de Jesus Cristo sofreu se­
veros ataques e drásticas revisões. A mais conhecida destas últimas foi a que
Albert Schweitzer chamou de "a busca do Jesus Histórico", mas tal busca se
tornou possível - e necessária - mediante o destronamento do Cristo Cósmico
por parte do Iluminismo.
Em 1 730, apareceu em Londres o primeiro volume de Cristianismo tão velho
quanto a criação ou O Evangelho, uma reediçao da religião da natureza, de Matthew
Tindal, um esforço de defender o Evangelho equacionando sua essência com a
razão e a religião natural e identificando Jesus como o Mestre do Bom Senso.
Tornara-se necessária uma nova compreensão de Jesus, Tindal argumentava,
porque haviam desaparecido os milagres como prova da unicidade da sua
O Mestre do Bom Senso + 197

A regularidade e a previsibilidade
dos relógios - como este (ao lado),
de Samuel Watson, que também
construiu relógios para Sir Isaac
Newton - eram elogiadàs como
modelos do universo. Newton podia
muito bem estar se referindo tanto a
sua interpretação bfblica quanto a
sua investigação cientffica quando,
-
pouco antes de morrer, declarou:
"Para mim, eu fui apenas um
garoto que brincava e se distrafa na
praia, achando de vez em quando
um seixo mais liso ou uma concha
mais bonita que de costume,
enquanto todo um oceano de
verdade continuava desconhecido
diante de mim".

Ainda menino, Jesus já era o


Mestre, como mostrou ao visitar o
templo de Jerusalém (Lc 2:41-52).
Porém, em vez de usar esse
incidente como demonstração dos
conhecimen tos sobrenaturais do
Filho de Deus encarnado na pessoa
de Jesus de Nazaré, tal qual o
interpretava a tradição ortodoxa,
Max Liebermann pintou-o apenas
como uma criança precoce. Em
conseqüência, a pintura suscitou
intensa controvérsia por sua
"blasfêmia " .

pessoa e da validez da sua mensagem. Durante a maior parte da história do cristianismo,


a credibilidade histórica dos relatos dos milagres fundamentou-se na doutrina teológica
da natureza divina de Jesus, a qual, por sua vez, validava-se na presumida possibilidade
científica e filosófica dos milagres. Esse argumento foi se rompendo em diverso� pontos
- científico-filosófico, histórico e teológico -, mas não em todos ao mesmo tempo.
Devemos examiná-los separadamente, assim como as implicações de cada um sobre a
imagem de Jesus.
Embora se haja creditado à percepção de Jesus como Logos e Cristo Cósmico o papel
de uma das fontes filosóficas do pensamento científico moderno, o pensamento cientí-
198 + O Mestre do Bom Senso

Sem pretender de modo algum fico dos séculos XVII e XVIII a erodiram gradualmente. Isaac Newton declarou sua con­
diminuir a unicidade de Cristo ou
vicção, em um artigo de pura filosofia natural, de que "este belíssimo sistema do Sol, dos
negar sua doutrina católica,
Caravaggio deu-lhe a aparência de planetas e dos cometas" não devia ser atribuído a alguma "necessidade metafísica cega";
um homem comum entre homens ele "só podia proceder do aviso e do domínio de um Ser inteligente e poderoso" que go­
comuns, mesmo numa das mais
luminosas de suas aparições após a vernava todas as coisas, "não como a alma do mundo, mas como o Senhor de tudo" e,
ressurreição, a ceia de Emaús; seus nesse sentido, transcendente. Não havia "nenhuma contradição" em reconhecer que,
discípulos 11o reconheceram "
quando ele "tomou o pão,
como Causa Primeira, Deus podia "alterar as leis da Natureza" (permitindo assim, apa­
abençoou-o, depois partiu-o e rentemente, o miraculoso), mas, ao mesmo tempo, decidir que o mundo "uma vez for­
distribuiu-o a eles " mado [ . . ] continuasse sob essas leis durante muitas eras" (impedindo assim, aparente­
.

(Lc 24:30-31) .
mente, o miraculoso). Newton aceitava e considerava fidedignas as histórias dos mila­
gres, mas rejeitava a doutrina tradicional de que a pessoa de Cristo era incompatível tan­
to com a razão quanto com a Escritura.
O Mestre do Bom Senso + 1 99

Não restava senão excluir os próprios milagres do tribunal, inac�itáveis que eram
como prova. "Não se pode encontrar em toda a história", afirmou o filósofo escocês
David Hume, "um só milagre testemunhado por um número suficiente de homens de
inquestionável bom senso, educação e cultura, que nos possa deixar livres de toda e
qualquer desilusão." Afirmando que a fé, não a razão, era o fundamento de "nossa
sacratíssima religião", concluiu, talvez de modo pouco feliz, com o argumento de que a
própria fé era o maior - aliás o único - milagre. Pois, como Goethe pôs na boca de
Fausto, "O milagre é o filho mais dileto da fé", e não o inverso. Em semelhante contexto,
os milagres de Jesus perderam todo poder de provar quem ele era.
O milagre foi tema não só da ciência mas também da história. Em seu exame das
cinco causas históricas do triunfo do cristianismo no Império Romano, o historiador
inglês Edward Gibbon serviu-se do tema dos milagres para descrever quão cabalmente
a "credulidade" e o "fanatismo" prevaleceram no movimento cristão dos primeiros três
séculos. "O dever do historiador", observou de maneira um tanto jocosa, "não o manda
interpor seu julgamento particular nesta bela e importante controvérsia" sobre se os
milagres prosseguiram depois da era apostólica. E, ainda mais irônico, encerrava o
capítulo com uma consideração também sobre os milagres da era apostólica, sobretudo
os realizados pelo próprio Jesus. "Como se há de perdoar a estulta desatenção do
mundo pagão e filosófico para com as evidências apresentadas pela mão da Onipo­
tência, não a sua razão, mas aos seus sentidos?" perguntava. "Durante a época de Cristo,
de seus apóstolos e de seus primeiros discípulos, a doutrina que eles pregavam era con­
firmada por inúmeros prodígios. [ . . . ] As leis da natureza se anulavam co� muita fre­
qüência em benefício da Igreja." Então, concentrando-se no milagre mais espetacular de
todos, Gibbon acusava zombeteiramente os escritores clássicos de haverem "omitido
·
toda e qualquer menção ao mais grandioso fenômeno que o olho mortal presenciou des­
de a criação do globo [ . . . ], a escuridão preternatural da Paixão", quando na Sexta-feira
Santa em que Jesus estava na cruz, o Sol passou três horas encoberto.
No mesmo espírito, Gibbon esforçou-se em listar a imperiosa autoridade moral e
religiosa da figura de Jesus Cristo como uma das cinco "causas secundárias do rápido
crescimento da Igreja cristã" . Citou, porém, como "uma resposta óbvia mas satisfatória"
a toda a questão, o triunfo do cristianismo (ou, como passou a chamá-lo mais tarde, o
"triunfo da barbárie e da religião" ), que "se deveu à convincente evidência da própria
doutrina e à providência governante como seu grande Autor" . Para ele, qualquer
consideração sobre essa resposta estava além "do dever do historiador" . Em compen­
sação, submeteu o cristianismo dos primeiros tempos a uma análise histórica penetrante
e por vezes devastadora. Mas somente em relação às controvérsias teológicas sobre a
pessoa e as naturezas de Cristo, Gibbon disse algo significativo sobre a vida de Jesus e,
mesmo assim, em não mais que um parágrafo: "Os companheiros mais próximos de
Jesus de Nazaré conviviam com o amigo e conterrâneo que, em todos os atos da vida ra­
cional e animal, parecia ser da mesma espécie deles. Seu progresso da infância à juven-
200 + O Mestre do Bom Senso

Originalmente invocado pelos


apologistas gregos do cristianismo
dos séculos II e III, o paralelo entre
Jesus e Sócrates foi acolhido pelo
racionalismo do Iluminismo por
diferentes motivos.
A Morte de Sócrates (1787),
de Charles-Alphonse Dufresnoy,
leva o paralelo ao extremo,
chegando a apresentar os amigos do
filósofo grego em atitude mais
adequada a uma pintura dos doze
discípulos na última ceia com Jesus
na véspera da sua morte.

tude e à idade adulta foi marcado por um aumento regular da estatura e da sabedoria; e,
após uma dolorosa agonia da mente e do corpo, ele expirou na cruz. Viveu e morreu a
serviço da humanidade; [ . . . ] as lágrimas que derramou sobre seu amigo e seu povo
podem ser avaliadas como a mais pura prova de sua humanidade" .
Em 1 778, o literato alemão Gotthold Ephraim Lessing fez editar um tratado anônimo
intitulado Sobre a in tenção de Jesus e sua doutrina, desencadeando um debate sobre a
mensagem e o propósito autênticos de Jesus, que prossegue há mais de dois séculos e
não dá sinal de arrefecimento. O autor desse tratado, Hermann Samuel Reimarus,
insistia em que não era aos milagres, aliás "indignos de nota", nem à revelação dos
chamados mistérios que se devia atribuir o sucesso de Jesus e de sua mensagem, mas
simplesmente a causas naturais, "um motivo que opera e operou em todos os tempos
tão naturalmente que não temos necessidade de nenhum milagre para que tudo se torne
compreensível e claro. Foi esse o verdadeiro vendaval impetuoso (At 2:2) que juntou
rapidamente todas as pessoas. Essa é a verdadeira linguagem que faz os milagres" . Um
século depois, a Vida de Jesus, do radical crítico bíblico David Friedrich Strauss, tornou a
concentrar a atenção em Reimarus em defesa do conceito de "mito" como um meio de
encontrar a figura esquiva por trás dos relatos do Evangelho. Foi traduzido (anoni­
mamente) para o inglês pela jovem estudiosa Mary Ann Evans, mais conhecida pelo
Thomas Jefferson, o terceiro
presidente dos Estados Unidos,
parece ter se interessado por tudo,
da paleontologia à culinária. Mas
interessou-se muito
particularmente por fazer de um
"cristianismo purificado" a base da
vida e da moralidade da nova
República. Para obter tal
purificação, encarregou-se duas
vezes de editar os Evangelhos a fim
de separar "o diamante da ganga".
Primeiro em A filosofia de Jesus
de Nazaré, em 1804 (quando ainda
estava na Casa Branca), depois
em A vida e a moral de Jesus
de Nazaré, aproximadamente
em 1828.

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202 + O Mestre do Bom Senso

Ezra Stiles, reitor da Universidade pseudônimo que adotou posteriormente, George Eliot. A respeito da tradução que fez
de Yale de 1778 a 1795, foi
de Strauss, observa seu biógrafo: "Poucos livros do século XIX tiveram influência tão
pregador e filósofo famoso. Nesta
qualidade, escreveu a Benjamin profunda sobre o pensamento religioso na Inglaterra" .
Franklin (página ao lado), o A partir desse momento, a busca do Jesus Histórico tornou-se a vocação de outros
cientista e estudioso mais célebre
dos Estados Unidos, intelectuais, não somente os teólogos. Na procura de novas formas de compreender a
perguntando-lhe o que pensava de realidade, de validar os aspectos morais e de organizar a sociedade, agora que a antiga
Jesus de Nazaré. Franklin
respondeu com certa reserva:
ortodoxia se achava desacreditada, esses intelectuais propuseram-se a reinterpretar os
"Quanto a Jesus de Nazaré, sobre o clássicos importantes da cultura ocidental, a fim de pôr sua mensagem duradoura à
qual o senhor pede a minha opinião, disposição da nova era. Se a unidade metafísica com Deus na Trindade e a revelação
eu considero o sistema de moral e
religião, tal qual ele nos deixou, milagrosa do céu já não constituíam credenciais para a mensagem de Jesus, a harmonia
o melhor que o mundo já viu e entre sua mensagem e o melhor da sabedoria humana poderia ser capaz disso.
talvez verá; mas tenho certas
dúvidas quanto a sua divindade, Eram particularmente intrigantes os paralelos entre Sócrates e Jesus. Tanto um quan­
muito embora essa seja uma questão to outro foram mestres extraordinários; ambos pregaram e praticaram uma grande sim­
que eu não dogmatizo, visto que
plicidade na vida; ambos foram considerados traidores da religião de sua comunidade;
nunca a estudei".
nenhum deles escreveu; os dois foram executados; e os dois tornaram-se objeto de
tradições difíceis ou impossíveis de harmonizar. No entanto, o estudo do paralelo foi
ainda além dessas impressionantes semelhanças. Os pensadores do Iluminismo toma­
vam Sócrates como prova da presença, além dos limites da alegada revelação bíblica, de
uma sabedoria e de um poder moral que só podiam provir do mesmo Deus a quem Je­
sus chamava de Pai. Se o Logos era "a luz verdadeira que ilumina todo homem" (Jo 1 :9),
seja judeu ou grego, cristão ou gentio, Sócrates tornava extremamente difícil restringir a
O Mestre do Bom Senso + 203

atividade reveladora de Deus - talvez até mesmo a atividade redentora de Deus - à


história de Israel e da Igreja. E, se o verdadeiro Deus falara e agira por intermédio de
Sócrates, a verdade divina era universal. E, sendo ela universal, tanto Sócrates quanto
Jesus deviam tê-la considerado assim. Joseph Priestley, cientista e estudioso, esforçou-se
para destrinçar o Jesus Histórico em Corrupções do cristianismo e em Harmonia dos
Evangelhos. Em Sócrates e Jesus comparados, esforçou-se para fazer justiça à grandeza
filosófica e à estatura moral do filósofo grego, embora tenha inclinado para o lado da
superioridade essencial de Jesus. Este já não era o Cristo Cósmico nem a Segunda
Pessoa da Trindade, e sim um mestre divinamente inspirado de um modo que nem
Sócrates tinha sido.
A erudição bíblica de Priestley influenciou profundamente um homem que decerto
foi o mais eminente dos muitos participantes da busca do Jesus Histórico: Thomas
Jefferson, o terceiro presidente dos Estados Unidos, que estava convencido, como
observou o historiador Daniel Boorstin, de que um "cristianismo purificado poderia
promover a saúde moral no contexto da América do século XVIII" . No entender de
Jefferson, doutrinas como a da Trindade eram desnecessárias para valorizar Jesus de
Nazaré, que foi "um homem de nascimento ilegítimo, de coração benevolente e mente
entusiasta, que se apresentou sem pretensões de divindade, acabou acreditando nelas e
foi condenado à pena capital por sedição, escarrecido em público conforme a lei
romana" . Tampouco bastava simplesmente rejeitar a tradição dogmática e litúrgica do
cristianismo ortodoxo ou restaurar a mensagem da Bíblia. Para Jefferson, não se devia
204 + O Mestre do Bom Senso

equiparar a autêntica mensagem de Jesus ao conteúdo total dos Evangelhos; era


necessário, pois, extrair essa mensagem dos textos. De tal convicção procederam duas
tentativas de, conforme suas palavras, "abstrair o que é realmente dele do entulho em
que está enterrado, facilmente distinguível por seu brilho, da escória de seus biógrafos e
dela separável como da ganga o diamante" .
Em fevereiro de 1 804, trabalhando na Casa Branca, Jefferson concluiu essa tarefa -
"por demais precipitadamente", como admitiu mais tarde - em "apenas duas ou três
noites, em Washington, depois de terminar o trabalho vespertino de ler a
mrrespondência e os jornais do dia" . A filosofia de Jesus de Nazaré continha os dizeres do
Evangelho que Jefferson considerava autênticos. E concluiu, talvez no verão de 1 820,
uma compilação mais ambiciosa: A vida e a moral de Jesus de Nazaré extraídas textualmente
dos Evangelhos em grego, latim, francês e inglês. O que foi omitido é, em muitos aspectos,
mais revelador do que o incluído. Desapareceram tanto o início quanto o fim da
narração do Evangelho. O prólogo do Evangelho de João foi excluído, assim como os
relatos da anunciação, do parto virginal de Maria e do aparecimento dos anjos e dos
pastores. A narração se encerra como uma fusão da primeira metade de João 19:42 com
a segunda de Mateus 27:60: "Ali. eles depositaram Jesus e rolando uma grande pedra
para a entrada do túmulo, retiraram-se" . Não se menciona a ressurreição. Em A filosofia
de Jesus, Lucas aparecera na íntegra: "E o menino crescia, tornava-se robusto, enchia-se
de sabedoria; e a graça de Deus estava com ele" (Lc 2:40). Contudo, em A vida e a moral
de Jesus de Nazaré, Jefferson excluiu, nos quatro idiomas, as oito palavras finais, como
observou com simpatia o editor de sua versão do Evangelho, mas nem por isso menos
efetivamente: "Embora muitos ilustres estudiosos da Bíblia tenham desanimado perante
o desafio de desenredar as diversas camadas do Novo Testamento, o Jefferson
racionalista tinha plena confiança em sua capacidade de distinguir o verdadeiro do falso
nos preceitos de Jesus" .
O Jesus que emergiu era o Mestre do Bom Senso ou, nas palavras de Jefferson, "o
maior de todos os Reformadores da religião depravada de seu próprio país" -
naturalmente, o judaísmo era essa "religião depravada" . O conteúdo de sua mensagem
era uma moralidade de amor e de serviço absolutos, que não dependia nem do dogma
de sua divindade nem da afirmação de que ele havia se inspirado unicamente em Deus,
mas legitimava-se perante os ouvintes por seu valor intrínseco. Muitos desses elementos
da imagem iluminista de Jesus estão sucintamente descritos na carta que um colega de
Jefferson, Benjamin Franklin, escreveu, poucas semanas antes de morrer, a Ezra Stiles.,
teólogo e presidente da Yale College: "Quanto a Jesus de Nazaré, sobre o qual o senhor
pede a minha opinião, eu considero o sistema de moral e religião, tal qual ele nos
deixou, o melhor que o mundo já viu e talvez verá; mas percebo que sofreu várias
alterações corruptoras e tenho, como a maioria dos atuais dissidentes da Inglaterra,
certas dúvidas quanto a sua divindade, muito embora essa seja uma questão que eu não
dogmatizo, visto que nunca a estudei, e acho desnecessário ocupar-me dela agora, pois
O Mestre do Bom Senso + 205

espero ter em breve a oportunidade de conhecer a verdade com menos esforço. Entre­
tanto, não vejo nenhum mal em que assim acreditem se essa crença trouxer a boa conse­
qüência, como provavelmente trouxe, de tornar suas doutrinas mais respeitadas e mais
bem observadas" . Para Franklin e Jefferson, essa mensagem de bom senso era suficiente,
e o Almanaque do pobre Ricardo, de Franklin, pode ser lido como uma compilação dela.
Mas, para muitos outros, ou era suficiente demais, ou de menos - ou talvez as duas
coisas.
Aquilo que nenhum forasteiro conhece!
Aquilo que se difunde tão longe quanto possa levar a asa da Fan tasia!
Aqu ilo que a inda se dissemina! Que mesmo esquecido de si,
É de tudo o dono absoluto! Eis a fé!
Eis a vitória destinada ao Messias !

- Samuel Taylor Coleridge,


"Devaneios religiosos"

1 6 + O Poeta do Espírito

Boa parte do pensamento e da literatura do século XIX acusou seus


predecessores do século XVIII de, ao reduzir o mistério à razão e converter a
tra nscendência em bom senso, o racionalismo iluminista destronou a
superstição apenas para entronar a banalidade. O século XIX preferiu
substituir tal racionalismo pela visão romântica, a qual René Wellek descreveu
como uma "tentativa, aparentemente condenada ao fracasso e abandonada
pela nossa época, de identificar o sujeito com o objeto, de reconciliar o homem
com a natureza, a consciência com a inconsciência, por intermédio da poesia,
que é 'o começo e o fim de todo conhecimento'" . Wellek estava definindo o ro­
mantismo, que, para os nossos objetivos, podemos caracterizar como o esforço
dos pensadores do século XIX para ir além da busca do Jesus Histórico rumo a
208 + O Poeta do Espírito

Ralph Waldo Emerson começou um Jesus que fosse considerado o Poeta do Espírito ou - como escreveu Coleridge no
como pastor unitarista. Todavia,
achando constringente até mesmo
Natal de 1 794 - ao encontro "da fé" e "da vitória destinada ao Messias", em defesa da­
essa filiação, renunciou a sua quilo "que nenhum forasteiro conhece!"
ordenação e se tornou, no círculo Cinco anos depois, como que anunciando o fim do século XVIII, Friedrich
acadêmico e por intermédio de seus
livros, "o Sábio de Concord" - Schleiermacher - o principal intérprete alemão dessa versão romântica da fé em Cristo,
aliás, o sábio da Nova Inglaterra e tradutor de Platão ao seu idioma - publicou Sobre a religião: discurso aos seus cultivados
de boa parte do mundo de língua
inglesa. No polêmico "Discurso" con temptores. Em 1 806, Schleiermacher divulgou uma espécie de diálogo platônico sobre
que pronunciou na Harvard Cristo intitulado Comemoração da noite de Natal e, em 1 819, tornou-se "a primeira pessoa
Divinity School em 1 838, declarou
a lecionar sobre a vida de Jesus" . Entre os escritores ingleses, o mais profundo e também
que Jesus Cristo "pertenceu à
verdadeira raça dos profetas [ . . .] o mais importante divulgador do romantismo alemão decerto foi Coleridge que, por sua
Um homem foi sincero com o que vez, exerceu enorme influência sobre o desenvolvimento intelectual e espiritual de
está em vocês e em mim . Viu que
Deus se encarna no homem e para Ralph Waldo Emerson, talvez o pensador mais influente dos Estados Unidos no século
sempre continua tomando nova XIX. Os três foram porta-vozes altamente individuais do espírito literário e filosófico do
posse de seu Mundo".
romantismo e buscaram a encarnação desse espírito na pessoa de Jesus.
" A história da vida [de Cristo] há Tal qual os racionalistas, eles consideravam impossível aceitar os milagres de Jesus
de caúsar lágrimas infinitas", como verdades históricas literais, mas empenharam-se em integrá-los a uma visão mais
escreveu o romântico francês Joseph
Ernest Renan, e cada uma das abrangente do mundo. Como disse Coleridge, "O que atualmente consideramos
passagens importantes dessa milagres em oposição à experiência ordinária" seria visto, com perspicácia e "com
história (aqui disposta
cronologicamente) expressou a uma devoção ainda mais elevada, como partes harmoniosas de um grande e complexo
sensibilidade romântica e evocou
tais lágrimas. Nessa história, o
imaginário e o folclore que
tradicionalmente cercava a
Natividade de Cristo levou Gerrit
van Honthorst, que - graças a
Caravaggio foi "um pintor
romântico antes do Romantismo" -
a fazer a Mãe tão radiante e o
Menino Jesus tão encantador (ao
lado), que a reação a eles deve ter
sido geral.
O Poeta do Espírito + 209

milagre quando a antítese entre a expenencia e a fé se alçasse à unidade da razão


intuitiva" . Tanto o ataque à noção de milagre quanto a sua defesa teológica estavam
equivocados; pois em ambos os lados, no dizer de Emerson, "o sábio se torna não­
poético" quando não consegue perceber "que uma suposição é, com freqüência, mais
fecunda que uma afirmação indiscutível e que um sonho pode nos aprofundar mais no
segredo da natureza do que uma centena de experimentos combinados" .
Nessa busca de uma "unidade da razão intuitiva" que fosse além da antítese entre
natureza e milagre ou entre experiência e fé, os três reconheciam que Jesus era o
problema crucial e, como também acreditavam, a fonte de sua solução. Schleiermacher
descartava, por carecer de utilidade, "o contraste entre o sobrenatural e o natural, que
incluímos no termo 'milagre' com base na terminologia escolástica" . Os milagres
210 + O Poeta do Espírito

Nas três tentações de Satanás


sofridas por Jesus no deserto
(Mt 4:1-11) - viver só do pão, sem
a palavra de Deus, atirar-se
num precipício, obter poder e glória
em troca de um compromisso com
o diabo -, os russos do século XIX,
de Dostoiévski a Kramskoy, viram
um resumo das questões
fundamentais da vida e da fé.

tinham importância como "sinais" e "obras poderosas", dos quais o componente pri­
mário não �ra a suspensão das leis da natureza, e sim a "significação" . Confrontado,
pois, com os relatos dos milagres nos Evangelhos, o biógrafo de Jesus era obrigado a
relacioná-los com os temas centrais de sua vida e obra: "Quanto mais o fato puder ser
entendido como um ato moral da parte de Cristo, quanto mais formos capazes de
estabelecer uma comparação entre a sua maneira de obter determinado resultado e a
das outras pessoas, tanto melhor poderemos compreender os atos como componentes
genuínos de sua vida. Quanto menos soubermos entendê-los como atos morais da parte
de Jesus e, ao mesmo tempo, quanto menos formos capazes de descobrir analogias,
tanto menos teremos condições de formar uma idéia definida do relato e de
compreender os fatos em que se baseia" .
O conteúdo central da biografia de Cristo, na Vida de Schleiermacher, era o
"desenvolvimento" em Jesus de uma "consciência de Deus" que, em comparação com a
consciência de Deus dos outros, era "perfeita" e, por conseguinte, única em grau, mas
não fundamentalmente diferente em espécie. O que havia de característico em Jesus não
era "a pureza de seu ensinamento moral" nem "a individualidade de sua personalidade,
O Poeta do Espírito + 211

a união íntima de alto poder com comovente delicadeza", traços presentes em todo Praticamente contemporâneo do
cardeal Newman e de Tennyson, o
grande líder religioso. "O elemento verdadeiramente divino é a gloriosa clareza que a pintor escocês William Dyce foi um
grande idéia que ele veio expor atingiu em sua alma" : "tudo quanto é finito requer uma estudioso, além de professor de
mediação mais elevada para estar de acordo com a Divindade e, para o homem sob o belas-artes no King's College, em
Londres. Em seu retrato de Jesus,
poder do finito e do particular e excessivamente disposto a assim imaginar o próprio assim como em obras mais
divino, a salvação só pode ser encontrada na redenção" . seculares, mostrou o quanto se
beneficiou com o estudo de criações
Como tal "consciência de Deus" e tal inspiração divina se manifestavam com força artísticas anteriores.
especial em artistas e poetas, a experiência estética oferecia as categorias mais
adequadas à interpretação de Jesus. Em sua obra sobre a vida e os ensinamentos de
Jesus, O espírito do cristianismo e seu destino, Hegel definia a "verdade" como "a beleza
intelectualmente representada"; assim, via "o espírito de Jesus" como "um espírito
elevado acima da moralidade" . Naturalmente, Jesus foi uma inspiração para artistas,
poetas e músicos desde o início do cristianismo. O que separa boa parte do século XIX
da tradição universal é o esforço de fazer com que essa compreensão poética e artística
dele supere a compreensão dogmática, moral e até histórica. O poema inacabado de
William Blake, "O eterno Evangelho", assemelha-se a outras tentativas da época: seu
Jesus, como materialização do que ele chama de "o poético", denunciava nas palavras e
transgredia nos atos as convenções da religião cortês e polida. No caso de Blake,
ademais, a compreensão poética e artística de Jesus ganhou um significado especial, pois
ele criou retratos de Jesus que transcenderam a antítese entre natural e sobrenatural.
Muitos poetas e pensadores
românticos acreditavam que, nas
palavras de Wordsworth, as
crianças vinham ao mundo
"arrastando nuvens de glória". Tal
sentimento foi facilmente adaptado
ao espírito ao mesmo tempo
ingênuo e profundo das palavras de
Jesus em Marcos 10:14: "Deixai as
crianças virem a mim. Não as
impeçais, pois delas é
o Reino de Deus".
O Poeta do Espírito + 213

Era precipitado e superficial, argumentavam os românticos, conclu_ir, com base nas


descobertas científicas do mundo natural, que agora todo o mistério havia sido exorci­
zado. Se o mistério da fé não tinha sentido para o século XVIII, talvez o da beleza tives­
se. Como dizia Emerson, "Os gregos antigos chamavam o mundo de kosmos, beleza. Tal
é a constituição de todas as coisas, ou tal é o poder estético do olho humano, que as
formas primárias, como o céu, a montanha, a árvore, o animal, nos dão prazer em si e por
si mesmos" . Emerson procurava "enxergar a natureza com olhos de artista", pois desse
modo podia "aprender com o grande Artista cujo sangue pulsa em nossas veias, cujo
gosto brota em nossa própria percepção da beleza" . A analogia entis medieval, ou seja, a .:

analogia do ser entre Criador e criatura, tornara-se agora uma estética da analogia
Naturae, uma analogia da Natureza.
Mais ainda que nesses pensadores, o esteticismo moldou a apresentação da biografia
de Jesus publicada em 1863 por Ernest Renan, contemporâneo francês de Emerson. Foi
uma celebração do que ele chamava de "a poesia da alma - a fé, a liberdade, a virtude, a
devoção", tal qual a verbalizou Jesus, o Poeta do Espírito. "Essa pessoa sublime", disse,
"que continua presidindo cotidianamente o destino do mundo, nós a podemos chamar
de divina", não no sentido em que o mundo emprega o termo a partir do dogma
ortodoxo, mas porque "o seu culto sempre há de lhe renovar a juventude, a história de
sua vida há de causar lágrimas infinitas, seu martírio há de abrandar os melhores
corações" . Historiador, Renan invocou o mistério estético como um antídoto para as
devastações de um ceticismo racionalista histórico. Era necessário, conclamava, que o
historiador entendesse como a fé "havia encantado e satisfeito a consciência humana",
mas era igualmente necessário já não crer, pois "a fé absoluta é incompatível com a
história sincera". No entanto, Renan se consolava com a convicção de que "abster-se de
aderir a quaisquer formas que cativem a adoração dos homens não significa privar-se do
regozijo daquilo que nelas há de bom e de belo" . Assim devia ser com relação a Jesus.
Muitos esforços para ajustar a pessoa de Jesus a esses moldes fracassaram na
questão moral. Por mais que tentassem, esses teólogos do romantismo não conseguiam
vincular a categoria fundamental de uma apreciação estética de Jesus ao zelo profético
que estava inquestionavelmente presente em suas convocações ao discipulado. Para
Emerson, a crise se desencadeou diante do conflito a propósito da escravidão nas
décadas que precederam a Guerra de Secessão. No ensaio "O poeta", de 1 844, ele
procurou unir o Verdadeiro, o Bom e o Belo. "O Universo", afirmava, "tem três filhos,
todos nascidos ao mesmo tempo" . "Teologicamente", chamam-se "o Pai, o Espírito
Santo e o Filho", mas "nós [os] chamamos o Sábio, o Cumpridor e o Orador" . "Estes
correspondem respectivamente", explicava, "ao amor à verdade, ao amor ao bem e ao
amor à beleza" . "Os três são iguais", acrescentou numa alusão óbvia ao dogma trinitário
que ele rejeitara como Unitário antes mesmo de se tornar transcendentalista. Era missão
do poeta ser o orador e o nomeador, assim como representar a beleza. Nessa missão, ele
permanecia em contínua relação com Deus. "Pois o mundo não foi pintado nem ador-
214 + O Poeta do Espírito

nado, mas é belo desde o começo; e Deus não fez algumas coisas belas, mas a Beleza é a
criadora do universo." Assim como Jesus era o Poeta do Espírito, o poeta devia ser a
nova Segunda Pessoa da Trindade, por meio da qual a Beleza, que era a criadora do
universo, refulgiria manifestando sua unidade essencial com o Verdadeiro e o Bom.
Contudo, no fim do ensaio, Emerson lamentava: "Eu procuro em vão o poeta que
descrevo [. . . ] . O tempo e a natureza nos presentearam com muitas dádivas, mas ainda
não o homem oportuno, a nova religião, o reconciliador, que todas as coisas esperam" .
Em seu desempenho concreto como observatório do passado e método de com­
preender a história, o romantismo mostrou-se dotado de uma antena mais sensível aos
sinais da tradição que o racionalismo, o qual procurava basear-se com exclusividade na
história verdadeiramente científica. É difícil avaliar como a consciência atual da cultura
e do pensamento da Idade Média teria se desenvolvido não fosse a força difusora do
romantismo. Em 1 845! John Henry Newman, que às vezes é associado ao romantismo,
publicou o Ensaio sobre o desenvolvimento, que muito influenciou tanto o redescobrimento
quanto o resgate da tradição.
Em 15 de julho de 1 838, Ralph Waldo Emerson, convidado pela turma de formandos
da Harvard Divinity School, fez um discurso que escandalizou a Nova Inglaterra e o
impediu de voltar a Harvard durante quase trinta anos. Nele, atacou o "cristianismo
histórico" por ter "se apegado [ ... ] a perniciosos exageros quanto à pessoa de Jesus" .
Todavia, "a alma não conhece pessoas" . "Em vez de estimulá-los a viver segundo a Lei
infinita que está em vocês e na companhia da Beleza infinita que o céu e a terra refletem
em todas as amáveis formas", esse cristianismo exigia que "vocês subordinassem a sua
natureza à de Cristo; aceitem nossas interpretações e tomem o seu retrato assim como o
pintou o vulgo" . Isto transgredia o imperativo segundo o qual "todo homem há de se
expandir ao ciclo completo do universo" sem "preferências senão as do amor
espontâneo", mas também violava o retrato autêntico de Jesus. "Sua doutrina e sua
memória" sofreram uma grave "distorção" já em sua própria época e ainda mais nas
subseqüentes", quando suas figuras de retórica usurparam o lugar de sua verdade" . A
Igreja ignorava a diferença entre poesia e prosa; assim, os que se professavam seus
seguidores ortodoxos ameaçavam os adversários teolqgicos dizendo: "Aquele era Jeová
descido do céu. Eu o mato se você disser que ele era um homem" . Os pregadores e
teólogos, disse Emerson, "não percebem que não fazem bem ao seu evangelho e que o
separ�m da beleza e dos atributos do céu" .
Quão diferente era a verdadeira mensagem de Jesus como Poeta do Espírito! "Uma
conversão verdadeira, um Cristo verdadeiro, deve agora, como sempre, ser o recep­
táculo dos sentimentos belos." Longe de confinar-se no Jesus dos Evangelhos, esses sen­
timentos neles alcançaram o pináculo, pois eram universais: "Jesus Cristo pertenceu à
verdadeira raça dos profetas. Viu com olhos abertos o mistério da alma. Atraído por sua
rigorosa harmonia, arrebatado por sua beleza, viveu nele e nele teve o seu ser. Único em
toda a história, ele soube estimar a grandeza do homem. Um homem foi sincero com o
Para o Romantismo, 110 elemento
verdadeiramente divino" de Jesus
foi 11a clareza gloriosa da grande
idéia que ele expôs em sua alma",
a idéia de 1 1que tudo quanto é
finito requer uma mediação mais
elevada para estar de acordo com a
Divindade" . Epítome da concepção
romântica de Jesus como Poeta
do Espírito, Jesus no jardim de
Getsêmani, de Heinrich
Hoffmann, pintado na Alemanha
em 1890, popularizou-se
não só por meio dos livros, da
literatura devota e dos jornais
religiosos, mas de vitrais, murais
e pinturas de altar.
O Poeta do Espírito + 217

Se o Romantismo foi, na definição


de René Wellek, a tentativa "de
identificar o sujeito com o objeto, de
reconciliar o homem com a
natureza, a consciência com a
inconsciência, por intermédio da
poesia, que é 'o começo e o fim de
todo conhecimento"', a Cruz nas
montanhas, de Caspar David
Friedrich (página ao lado), com sua
romântica representação da árvore,
do céu e do monte, torna o Cristo
crucificado aquele que reconcilia
poeticamente o homem com a
natureza e, assim, une sujeito e
objeto, consciência e inconsciência.

No poema inacabado de William


Blake, O eterno Evangelho, Jesus
era a materialização do que se
considerava o "poético", assim
como em sua pintura da
ressurreição, na qual a qualidade
sobrenatural das outras
representações da vida de Jesus
atinge fulgurância transcendente e
quase fantasmática.

que está em vocês e em mim. Viu que Deus se encarna no homem e para sempre con­
tinua tomando nova posse de seu Mundo. Ele disse nesse jubileu de sublime emoção:
'Eu sou divino. Deus age por meu intermédio e por meu intermédio fala. Se quereis ver
Deus, olhai para mim; ou olhai para vós mesmos quando também pensardes como eu
penso agora"' . Prosseguiu Emerson: "é tarefa de um verdadeiro mestre mostrar-nos que
Deus é, não era; que Ele fala, não falou" . Do contrário, "o verdadeiro cristianismo - uma
fé como a de Cristo na infinidade dos homens - está perdido" . E concluiu expressando a
sua esperança: "Essa Beleza suprema que arrebatou a alma dos orientais" da Bíblia "há
de falar também no Ocidente", mostrando "que o Dever, a Obrigação, é uma só com a
Ciência, a Beleza e a Alegria" . A seguir, exortou o ministro neófito de Jesus Cristo,
218 + O Poeta do Espírito

"sendo você mesmo um bardo recém-nascido do Espírito Santo, aparte de si todo o


conformismo e identifique os homens antes de tudo com a Divindade" . Pois isso é
verdadeiramente fiel à pessoa e à mensagem de Jesus, o Poeta do Espírito.
Entretanto, o tratamento poético da pessoa de Jesus seguiu um rumo bem diferente.
Em Crime e castigo, de Dostoiévski, Raskólhnikov pede que Sônia leia para ele a história
da ressurreição de Lázaro. Ao ler, é como se estivesse "fazendo uma pública confissão
de fé" . No início, sua leitura "reproduziu apaixonadamente a dúvida, a desaprovação e
a censura" daqueles que se recusam a aceitar Cristo; mas ao chegar ao milagre da ressur-
O Poeta do Espírito + 219

A "prostituta com coração de ouro"


era lugar-comum da ficção e do
drama românticos; contudo, as
pinturas e os romances cristãos
lograram uma mudança especial ao
se concentrarem em Maria
Madalena (ao lado). A tradição
(mas não o Novo Testamento) a
identificou com a mulher adúltera
que trouxeram para que Jesus
julgasse (Jo 8:3-11); e o Novo
Testamento, por sua vez, como a
primeira a quem o Cristo
ressuscitado apareceu (Jo 19:11-18).

Uma realização do Romantismo foi


o resgate da tradição, que
geralmente se expressava na
saudade de uma idade de ouro,
cultivando um sentimentalismo
pelo passado como dimensão do
presente. Considerando tanto a
mudança quanto a continuidade na
história, o Ensaio sobre o
desenvolvimento, de John Henry
Newman, de 1845, emprestou a esse
sentimentalismo um novo
significado. Em um poema de 1833,
"O pilar da nuvem", Newman
identificou Jesus Cristo como a
"Luz Gentil", única que o podia
conduzir "na escuridão
circundante", tanto do passado
quanto do presente, à "aurora"
futura, na qual "sorriem aqueles
rostos de anjo / Que há muito eu
amo e há muito perdi". O papa Leão
XIII nomeou-o cardeal em 1879,
quando estava com quase oitenta
anos de idade.

reição de Lázaro, Sônia ficou "fria e trêmula de êxtase, como se o estivesse vendo com os
próprios olhos" . A chama oscilante da vela projetou sua luz mortiça "no homicida e na
prostituta que, estranhamente, juntos liam o livro sagrado", uma nova Madalena e um
novo Lázaro. E Raskólhnikov compreendeu que devia confessar-lhe que assassinara a
velha avarenta. E, ao ouvir a confissão, Sônia lhe disse o que fazer: "Vá imediatamente,
neste instante [ . . ], beijar a terra que você sujou! " . Justamente porque Sônia sabia que
.

era verdade, foi por meio da história do milagre da ressurreição de Lázaro que
Raskólhnikov adquiriu uma consciência autêntica de si e adquiriu um sentido de iden-
Em Crime e castigo, de
Dostoiévski, o encontro de
Raskólhnikov com Sônia centrou-se
no relato evangélico do milagre da
ressurreição de Lázaro. Ouvindo a
leitura do Evangelho por Sônia,
Raskólhnikov, o assassino, por um
milagre não menos assombroso,
transformou-se pelo poder de Cristo
num seguidor e discípulo: "Eu
mesmo era um Lázaro morto, mas
Cristo me ressuscitou" .
O Poeta do Espírito + 221

tidade com a terra. Todo o significado poético dessa reconciliação e identificação com
Cristo confirma-se na inusitada anotação que Dostoiévski fez para o romance em seu
diário:

Agora, beije a Bíblia, beije-a, agora leia-a.


[Continua Lázaro. ]
[ E mais tarde, quando Svidrígailov lhe d á dinheiro]
"Eu mesmo era um Lázaro morto, mas Cristo me ressuscitou."
Sônia o segue ao Gólgota a quarenta passos de distância.

E também este Cristo era o Poeta do Espírito.


Na beleza dos lírios, Cristo nasceu do ou tro lado do mar,
Com uma glória no seio que nos transfigura, a você e a mim,
Como ele morreu para san tificar o homem, morramos para
tornar o homem livre,
Enquanto Deus con tinua avançando.

- Julia Ward Howe,


"O hino de guerra da república"

1 7 + O Libertador

O mesmo escritor russo do século XIX, cuja narrativa de Sônia e Raskólhnikov


deu tão vívida expressão à percepção de Jesus como o Poeta do Espírito, arti­
culou o significado de Jesus Libertador no famoso romance Irmãos Karamázov,
na passagem dedicada à visão que Ivan Karamázov tem do Grande Inquisidor.
Cristo retorna a este mundo, mas é novamente preso, por ordem do Grande
Inquisidor, e se confronta com esse porta-voz do cristianismo institucionali­
zado que finalmente corrigiu todos os erros que ele cometeu na terra. Mas o
prisioneiro Jesus é na verdade o Libertador, como reconhece o Inquisidor ao
repetir as perguntas que Satanás lhe fez por ocasião da tentação no deserto. A
primeira delas - "Se és Filho de Deus, manda que estas pedras se transformem
em pães" (Mt 4:3) - apresenta a escolha entre transformar as pedras em pães
224 + O Libertador

"Conhecereis a verdade, e a verdade


vos libertará", prometeu Jesus,
o Libertador (Jo 8:32). Contudo,
na opinião do Grande Inquisidor,
em Os irmãos Karamázov,
de Dostoiévski, essa promessa era
perigosa. A partir dela, as pessoas
passaram a procurar os poderes da
Igreja e do Estado a fim de
"depositar humildemente a
liberdade aos nossos pés e
dizer-lhes, 'Podeis sujeitar-nos
à servidão, contanto que nos
alimenteis'". Por essa razão,
o retorno de Cristo às ruas de
Sevilha era uma ameaça, e o
Inquisidor lhe ordenou:
"Vai-te e não voltes mais ...
nunca, nunca mais!".

de modo que "atrás de ti a humanidade corra qual um rebanho dócil e reconhecido" e


"pregar aos homens uma liberdade que a estupidez e a ignomínia naturais deles os
impedem de compreender", "porque não há e jamais houve nada mais intolerável para o
homem e para a sociedade que a liberdade!" . Jesus escolheu ser o Libertador, não o Rei
do Pão, mas nisso equivocou-se. A liberdade que ofereceu era apenas para a elite. Desde
esse erro, seus seguidores têm procurado os poderes do mundo, tanto na Igreja quanto
no Estado, a fim de "depositar humildemente a liberdade aos nossos pés e dizer-nos:
'Podeis sujeitar-nos à servidão, contanto que nos alimenteis"' . Tendo concluído seu
comentário sobre a tentação de Jesus, o Inquisidor "espera algum tempo para que o
prisioneiro responda . . . Mas de repente [Jesus] aproxima-se em silêncio do nonagenário e
lhe beija os lábios exangues. É toda a sua resposta. O velho estremece, seus lábios
O Libertador + 225

tremem, ele vai à porta, abre-a e diz: 'Vai-te e não voltes mais . . . nunca, nunca mais!'� O
prisioneiro sai e se perde nas ruelas escuras da cidade" .
Junto aos retratos convencionais de Jesus como pilar do status quo no Estado e na
Igreja, existe uma contínua tradição de descrevê-lo como o Libertador. Mas foi sobretudo
nos séculos XIX e XX que ele se tornou o Libertador que derruba os impérios, mesmo os
chamados impérios cristãos. A agenda da libertação em Jesus Cristo foi formulada na
Magna Carta da liberdade cristã: "Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre,
não há homem nem mulher; pois todos vós sois um só em Cristo Jesus (Gl 3:28)" . Cada
um desses três cativeiros se justificou em nome de Cristo, o Senhor, mas por fim foi
contestado e superado em nome de Jesus, o Libertador.
O teste mais persistente da relevância de Jesus Libertador na ordem social foi a es­
cravidão. Ambos os lados do debate apelaram para a autoridade de sua pessoa. Ambos,
disse Abraham Lincoln, "liam a mesma Bíblia e oravam ao mesmo Deus; sendo que um
invocava a Sua ajuda contra o outro" . Como ele indicou, "Pode parecer estranho que um
homem peça a um Deus justo auxílio para ganhar o seu pão com o suor do rosto de
outro homem" . Mas, citando o mandamento de Jesus, acrescentou: "Não julgueis p�ra
não serdes julgados" (Mt 7:1 ). Acima de tudo, em virtude de sua consciência de que
"por ser finito, o homem nunca há de estar absolutamente certo de sentir a vontade de
Deus infinito", Lincoln é, "num sentido real, o centro espiritual da história americana" .
Para um abolicionista como James Russell Lowell, a autoridade de Jesus, na situação, era
bem menos equívoca:

Para todo homem e para toda nação,


Sempre chega o momento de decidir
Na luta da verdade contra a falsidade,
Entre o lado bom e o mau;
Numa grande causa, o novo Messias de Deus
Oferece a cada um o florescimento ou a danação,
E a escolha prossegue sempre,
Entre as trevas e a luz.

À luz dos mártires queimados,


Os pés ensangüentados de Jesus eu sigo,
Subindo sempre novos Calvários,
Com a cruz que não retorna jamais;
As novas ocasiões ensinam deveres novos,
O tempo torna estranhos os antigos bens;
Ainda precisam seguir em frente, subir,
Aqueles que andam com a verdade.
226 + O Libertador

Inclinado à linguagem e às imagens A tensão acerca do que Jesus, o Libertador, significava para a escravidão parece
da Bfblia inglesa, porém jamais à
vontade em nenhuma igreja,
presente nos próprios Evangelhos. Agostinho declarou que a intenção original do Criador
Abraham Lincoln cultivou um era "que sua criatura racional não devia ter domínio senão sobre a criação irracional - não
sentido de reverência perante a a do homem sobre o homem, mas a do homem sobre os animais" . Contudo, num mundo
pessoa de Cristo ao mesmo tempo
em que se mostrava ambíguo decaído, a escravidão devia ser tolerada do mesmo modo que outras instituições
quanto a qualquer aplicação simples imperfeitas, e a autoridade de Cristo, o Libertador, não podia justificar sua abolição pela
de seus ensinamen tos à sociedade.
A combinação de sensibilidade força. O mais impressionante testemunho de semelhante conservadorismo social achava­
política com senso moral levou-o se na epístola de Paulo a Filemon, um senhor de escravos, na qual ele diz que lhe estava
a finalmente superar tal
devolvendo Onésimo, um escravo fugitivo, para "nada fazer sem teu consentimento" .
ambigüidade: essa charge política
de 1862 mostra-o como o Grande Recusou-se a obrigar Filemon a libertar Onésimo como dever cristão e não fez referência à
Emancipador pouco antes da questão genérica da atitude cristã em face da escravidão como instituição. Os que
abolição da escravidão, em 1 º
de janeiro de 1863. Lincoln foi continuavam achando tolerável essa instituição podiam, pois, apoiar-se na carta do Novo
assassinado em 14 abril Testamento. De acordo com sua leitura, empregar os dizeres de Jesus como arma contra a
de 1865 .
escravidão não era mais legítimo do que usar a sua linguagem sobre o reino de Deus a
fim de denunciar como usurpações todos os reinos terrenos. Mas o espírito do episódio de
Filemon, quando não a própria epístola, questionava, sim, a escravidão, e novas ocasiões
ensinaram deveres novos, embora tenha se passado muito tempo antes que o reco­
nhecimento desses deveres produzisse uma ação decisiva.
Combinando elementos da tradição
hindu com a interpretação radical
dos ensinamentos de Jesus,
o Libertador, nos Evangelhos -
como aprendeu em O Reino
de Deus está dentro de ti, de
Tolstoi -, Mohandas Gandhi elevou
a não-resistência a uma filosofia
religiosa, convertendo-a em
estratégia política. Em seu nome,
desafiou o imperialismo; em 30 de
janeiro de 1948 foi assassinado.

Não só nos Estados Unidos de


Abraham Lincoln, mas também na
Holanda, no Suriname (Guiana
Holandesa) e na América do Sul, o
ano de 1863 levantou a bandeira da
abolição da escravatura. Com os
dizeres "Emancipação dos Escravos
em Suriname, 1 9 de julho de 1863 ",
a gravura comemorativa do
qüinquagésimo aniversário, de C.
Jetses (ao lado, à direita), creditou
o bem da liberdade a Cristo, o
Libertador, adorado tanto pelos
escravos quanto pelos senhores.
228 + O Libertador

O Rev. Dr. Martin Luther King O redescobrimento do Jesus, o Libertador, não se limitou nem ao debate sobre a
Júnior foi o orador mais articulado
do movimento dos direitos civis,
escravidão nem ao pensamento britânico e americano. Quem mais amplamente celebrou
líder de suas passeatas, estrategista tal descoberta, no século XIX, talvez tenha sido Leon Tolstoi. Em Ressurreição, o contraste
de suas campanhas. Todavia, não se entre o Libertador e o inquisidor aparece uma vez mais numa prisão, onde um visitante
deve esquecer que esse ministro de
Jesus Cristo considerava esta a "ficou assombrado ao dar com um enorme quadro da crucificação na parede de uma
forma de seguir o caminho de Jesus, cela. 'Por que penduraram isto aqui?', ele se perguntou vinculando involuntariamente a
em obediência e discipulado
radicais, que, como ele mesmo disse, imagem de Cristo à libertação, não ao cativeiro" . A mensagem de Tolstoi era a de que os
o levaram a retomar "o Sermão da ensinamentos de Jesus deviam ser tomados literalmente. O capítulo final do romance é
Montanha, com seus sublimes
um comentário sobre o Sermão da Montanha, no qual o protagonista "imaginou como
ensinamentos de amor, e o método
de resistência não violenta de seria a sua vida se as pessoas aprendessem a seguir aqueles mandamentos" . O êxtase o
Gandhi". E isso lhe custou dominou; "foi como se, depois de muita dor e de um longo sofrimento, ele tivesse en­
a vida.
contrado repentinamente a paz e a libertação" .
O cristianismo radical do escritor provocou a sua excomunhão da Igreja Ortodoxa
Russa, mas sua interpretação da mensagem de Jesus também atraiu a atenção devota de
milhares de pessoas. Em sua filosofia, como observou Isaiah Berlin, Tolstoi "acreditava
unicamente num todo vasto e unitário", o qual ele finalmente formulou como "uma
simples ética cristã divorciada de toda teologia ou metafísica complexas [ ... ], a neces­
sidade de excluir tudo quanto não se submeta a um padrão muito geral e muito simples:
ou seja, aquilo de que os camponeses gostam .ou não gostam ou aquilo que os
O Libertador + 229

Evangelhos consideram bom", dois padrões que freqüentemente se confundiam. Para a


maior parte dos profetas da libertação e dos defensores dos oprimidos, a aplicação
literal de Tolstoi das palavras de Jesus sobre a não-violência era o cúmulo da
impraticabilidade, não passava de uma capitulação ante a injustiça, era o próprio "ópio
do povo" .
Uma exceção foi a de um jovem advogado de origem indiana residente na Á frica do
Sul. Sobre o livro de Tolstoi, O Reino de Deus está den tro de ti, este diria: "vi-me
arrebatado [ . . . ]. Diante do pensamento independente, da moralidade profunda, da
fidedignidade deste, todos [os outros] [ . . . ] livros [cristãos] pareciam empalidecer e
reduzir-se à insignificância" . No dia 7 de setembro de 1910, Tolstoi escreveu uma carta
(em inglês) a esse admirador, a qual viria a ser o seu último desejo e o seu testamento
religioso-filosófico: "Quanto mais eu vivo e especialmente agora que sinto a intimidade
e a proximidade da morte, quero contar aos outros o que sinto com tão particular
entusiasmo e o que, na minha opinião, é de enorme importância, ou seja, aquilo que se
chama de não-resistência, mas que essencialmente não é mais que a doutrina do amor
não distorcida por falsas interpretações [ .. . ] . Todos os sábios do mundo - indianos,
chineses, judeus, gregos e romanos - proclamaram essa lei. Penso que Cristo foi quem a
expressou de maneira mais clara [ . . . ] . O conjunto da civilização cristã, tão brilhante na
superfície, criou-se em [um] óbvio, . estranho, por vezes consciente, mas quase sempre
inconsciente mal-entendido e em contradição [com os ensinamentos autênticos de Jesus,
o Libertador]" . Mas em breve "o seu governo britânico, assim co�o o nosso, russo",
com sua adesão nominal ao poder de Jesus Cristo, terá de enfrentar essa contradição e
suas conseqüências.
'
O nome do discípulo de Tolstoi era Mohandas Gandhi. Sua filosofia da "não-violência
militante" combinava elementos do hinduísmo tradicional com aspectos do cristianismo
ou, mais especificamente, dos ensinamentos de Jesus. As interpretações de Tolstoi
ajudaram-no a compreender a autêntica mensagem de Jesus, e, quando Gandhi morreu
como mártir em 30 de janeiro de 1948, a história tinha realizado a profecia do Tolstoi
moribundo. "O seu império britânico" e "o nosso, russo", que pretendiam incorporar os
valores cristãos, foram derrubados. No entanto, Gandhi continuou tendo muitos
discípulos de seu evangelho da não-violência no espírito de Jesus, o Libertador. Alguns
seguiram Jesus Libertador por uma rota que ia do Domingo de Ramos � Sexta-feira _
Santa, à medida que o caminho do triunfo se tornava o caminho da cruz e a imitação de
Cristo tomava literalmente a forma "conformando-me com ele na sua morte" (Fl 3:10).
Um deles foi Martin Luther King, também sacrificado por uma bala assassina vinte anos
depois de Gandhi, em 4 de abril de 1968.
A conformitj.ade radical com a vida de Jesus e até com a sua morte e_ a obediência
revolucionária aos seus imperativos não eram estranhas às tradições de que veio
Martin Luther King. Tanto na qualidade de afro-americano quanto na de batista
americano da linhagem espiritual dos anabatistas, ele descendia de ancestrais que
O Libertador + 23 1

muitas vezes pagaram o preço do discipulado sofrendo a opressão e até a morte. A "Instituição peculiar" ou não, a
escravidão, as?im como a opressão,
data do assassinato de Mohandas Gandhi coincidiu com a da matrícula de King no da qual Cristo libertou os homens,
seminário. Aquele havia expressado a esperança de que pelos negros americanos "seria deve ser considerada em toda sua
levada ao mundo a mensagem inalterada da não-violência" . Foi Mordecai Johnson, amplitude. Assim, tanto para o
opressor quanto para o oprimido, a
importante pensador negro, que colocou o jovem estudante de teologia face a face com o libertação que a cruz concede, por
pensamento de Gandhi, que ele considerava um sistema contemporâneo eminentemente quaisquer meios, pode também
parecer extremamente dramática e
exeqüível. Johnson despertou nele a convicção de que o líder indiano tinha sido "a pri- _
até grotesca: "como uma pessoa de
meira pessoa na história a viver o amor ético de Jesus acima das meras interações entre quem todos escondem o rosto"
(Is 53:3).
os indivíduos" . Anos depois, em seu último livro, ainda citava Gandhi em oposição à
"filosofia niilista" e ao ódio que ameaçavam tornar a revolução "sangrenta e violenta" .
"O que havia de novo no movimento de Mahatma Gandhi, na Índia", declarou King , "foi
ele basear uma revolução na esperança e no amor, na esperança e na não-violência" .
Essa interpretação da doutrina de Jesus representou o fundamento intelectual e
moral do pensamento e da ação de King. E, mais tarde, ele recordaria: "Quando o
protesto começou, minha mente, consciente ou inconscientemente, retomou o Sermão da
Montanha, com seus sublimes ensinamentos de amor, e o método de resistência não
violenta de Gandhi" . Sua ênfase aparece em documentos públicos como a Carta da
prisão de Birmingham, em que ele manifestava a esperança profética: "um dia o ·sul
saberá que quando aqueles filhos deserdados de Deus se sentavam para almoçar, na
verdade estavam se erguendo para o melhor do sonho americano e par� os valores mais
sagrados de nossa herança judaico-cristã" . Isso parecia ingênuo a todos os seus críticos e
até a alguns de seus adeptos, assim como aos intérpretes eruditos dos Evangelhos, que
haviam concluído que a mensagem de Jesus era uma "escatolC?gia consistente" não
destinada a este mundo. Mas a interpretação de King do Sermão da Montanha era na
verdade uma reflexão cautelosa e uma estratégia altamente sofisticada. Em sua série de
campanhas não violentas, ele testou essa estratégia. Muitos de seus partidários, tanto
negros quanto brancos, insistiam em que o tempo da não-violência tinha passado.
Várias vezes ele admitiu que considerava esses argumentos impacientes cada vez mais
convincentes, essas estratégias de ação direta cada vez mais tentadoras. Contudo, sem­
pre acabava reafirmando o compromisso fundamental com a exeqüibilidade dos ensina­
mentos do Sermão da Montanha como um programa político de libertação dos afro­
americanos. No núcleo desse programa achava-se uma visão da sociedade como uma
"comunidade fraterna" de amor e justiça, com a qual, por intermédio do poder, até o
recalcitrante teria de se conformar.
Certa vez, quando perguntei ao meu colega Charles Davis por que Martin Luther
King não abraçara o marxismo e por que os que o seguiam aceitaram sua filosofia da
não-violência, ele respo"ndeu sem hesitação: "Por causa da figura poderosíssima de
Jesus" . Esse foi também o motivo de muitos casos de reação posHiva, por mais dolo­
_
rosamente demorados que tenham sido, que a mensagem de King provocou em cristãos
brancos. Certamente, continuou existindo um grupo enorme que não reagiu positiva-
O Libertador + 233

mente, e Martin Luther King foi sua vítima, como ele sabia que podia vir a ser. Ao Embora a doutrina cristã não
condenasse a escravidão, esta
morrer, cumpriu o que já sabia em vida, que tinha sido chamado a segliir os passos do contradizia o espírito de Jesus, o
Outro . Quando recebeu o Prêmio Nobel, em dezembro de 1 963, repetiu os Libertador. Tal contradição ganhou
mandamentos e as promessas de Jesus no evangelho da libertação tal como foram voz nos escritos de duas mulheres.
Filha do teólogo Lyman Beecher e
enunciados no Sermão da Montanha: "Quando os anos tiverem passado e a luz esposa de Calvin Ellis Stove,
resplandecente da verdade focalizar esta época maravilhosa em que vivemos, os também teólogo, Harriet Beecher
Stowe (página ao lado, abaixo), em
homens e as mulheres saberão e as crianças aprenderão que temos um belo país, um A cabana do Pai Tomás, de 1852,
povo ainda melhor e uma civilização mais nobre porque estes humildes filhos de Deus produziu um verdadeiro panfleto
que exortava uma América .
se dispuseram a ser 'perseguidos por causa da justiça' (Mt 5:1 0)" .
supostamente cristã a desfazer-se do
Apesar de sua ambigüidade não menos teológica que política, tal leitura da jugo da escravidão. Julia Ward
mensagem de Jesus continua inspirando a campanha da libertação da humanidade, na Howe, aqui apresentada já na
velhice, articulou a exortação num
qual Jesus, o Libertador, combate todos os Grandes Inquisidores eclesiásticos _ou poema que se tornou verdadeiro
seculares. Mas agora ele é visto, com freqüência, como se estivesse invertendo sua hino nacional, cuja estrofe final e
apoteótica era um grito de liberdade
afirmação original (Mt 4:4): assim, o homem não há de viver só da palavra de Deus, mas em nome de Cristo: "Como ele
também do pão, como se sancionasse não só a não-violência militante, mas também a ­ morreu para santificar o homem;
ação direta, como se abençoasse não só uma pobreza espiritual que aguarda bens morramos para tornar o homem
livre".
sobrenaturais na vida futura, mas conduzisse os pobres aos bens naturais nesta vida e
neste mundo. Talvez o contraste de tal retrato de Jesus, o Libertador, com os anteriores
possa ser iluminado por uma comparação entre duas versões de uma das Beatitudes.
Como se�pre observaram os advogados da interpretação apolítiFa do Cristo, o
Libertador, a versão mais conhecida, a do Evangelho de Mateus, diz: "�em-aventurados
os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus" (Mt 5:3). Não obstante, a teologia
da libertação baseia-se na lembrança de que, no Evangelho de Lucas, Jesus proclama:
"Bem-aventurados vós, os pobres [ ... ] . Mas, ai de vós, ricos, porque já tendes a vossa
consolação!" (Lc 6:20-24) . Se a lenda de Dostoiévski do Grande Inquisidor é o retrato
mais profundo de Jesus, o Libertador, foi a guerra entre os estados americanos que
evocou não só o reconhecimento de Lincoln da ambigüidade da citação de Jesus como
·
autoridade para uma ação política específica, como também a mais impressionante
convocação já escrita para viver e morrer em nome de Jesus, o Libertador político, o
Hino de guerra da república, de Julia Ward Howe, que serve de epígrafe a este capítulo.
Jesus há de reinar onde o sol
··

Faz suas sucessivas viagens diárias,


Seu reino se estende de praia a praia
Até que as luas deixem de crescer ou minguar.
A gente e os reinos de todas as línguas
Vivem em seu amor com a mais doce canção . .

- Isaac Watts,
"Salmos de Davi"

1 8 + O Homem que Pertence ao Mundo

Nazaré não passava do que a linguagem popular designa por "fim de mundo",
e Jesus de Nazaré só podia ser provinciano. A_o falar nos governadores que
dominavam as nações e nos grandes que as tiranizavam (Mt 20:25), ele estava
descrevendo um fenômeno de um universo muito distante do seu. E mesmo_.
quando, numa aparição após a ressurreição, o autor dos Atos dos Apóstolos o
apresenta referindo-se a todo o mundo exterior, sua concepção não era senão a
de um poder provincial que dividia a terra entre as proximidades imediatas e
tudo qua11:do ficasse mais além (At 1 :8): "sereis minhas testemunhas em
Jerusalém, em toda a Judéia e a Samaria, e nos confins da terra" . Por isso, no
Império Romano, seus detratores cosmopolitas puderam troçar dele, dizendo
que tinha aparecido ':num canto obscuro qualquer da terra" .
236 + O Homem que Pertence ao Mundo

Jesus se tornou o Homem que Jesus de Nazaré pode ter sido provinciano, mas Jesus Cristo é o Homem que Per­
Pertence ao Mundo quando as
tence ao Mundo: em seu império o sol nunca se põe. Seu nome é conhecido "até nos
jornadas missionárias de seus
primeiros apóstolos levou-o além da mais remotos confins da terra" . Em 1 71 9, quando o autor do hino inglês, Isaac Watts,
Palestina e, depois, além da Ásia publicou o poema que é a epígrafe deste capítulo, o crescimento mais dramático da
Menor, ao continente europeu e a
Roma. Os artistas europeus do extensão de sua influência estava apenas começando. Por causa desse crescimento, a
século XX, como Georges Rouault, mais conhecida história da expansão do cristianismo em língua inglesa, a de Kenneth
procuraram um novo idioma para
expressar essa universalidade que Scott Latourette, dedicou três de seus sete volumes ao século XIX, denominando-o O
hoje envolve o globo. grande século. Não por coincidência, o grande século da difusão missionária cristã foi
também o da expansão do colonialismo europeu. Conseqüentemente, embora Jesus
tenha vivido no Oriente Próximo, sua mensagem chegou como uma religião da Europa:
tanto no sentido de uma religião provinda da Europa quanto - e muitas vezes - no de
uma religião sobre a Europa. Aliás, na véspera da Primeira Guerra Mundial, suspeita-se
que Hilaire Belloc cunhou o aforismo provocador: "A fé é a Europa e a Europa é a fé" .
Isto parecia implicar que aqueles que adotavam a civilização européia eram pres­
sionados a sujeitar-se à conversão à fé européia em Jesus Cristo e que esta tinha de ser
praticada em termos europeus.
É demasiado simplista reduzir as missões a nada mais que um pretexto para o
imperialismo branco. Tal simplificação ignora as realidades biográfica, religiosa e política
que permeiam a história das missões cristãs durante o grande século e muito antes, visto
que em nome de Jesus os missionários esforçaram-se para compreender e aprenderam a
respeitar as particularidades das culturas com as quais entraram em contato. O exemplo
mais celebrado foi a obra do jesuíta Matteo Ricci na China. A primeira geração de jesuítas,
sob a liderança de Francisco Xavier, seguiu o padrão medieval da Igreja ocidental,
introduzindo a liturgia católica romana da missa, proibindo o uso de qualquer vernáculo
no culto e impondo o do latim. Com a chegada de Ricci a Macau em 1582, essa estratégia
sofreu uma drástica revisão. Ele adotou o hábito monástico dos monges budistas, depois o
traje de um sábio confucionista, e tornou-se uma conhecida autoridade tanto em ciências
naturais quanto na história e na literatura da China. Essa erudição lhe permitiu apresentar
a pessoa e a mensagem de Jesus como a realização das aspirações históricas da cultura
local. Os chineses, sustentava Ricci, "certamente podem tornar-se cristãos, uma vez que a
essência de sua doutrina nada contém que se oponha à essência da fé católica, nem esta fé
os tolheria de modo algum, mas, ao contrário, ajudá-los-ia a atingir a paz e a tranqüilidade
da república que seus livros consideram um objetivo" . Ele se conservou um crente católico
ortodoxo e sua própria ortodoxia o impeliu a levar a sério a integridade das tradições
chinesas. Do mesmo modo, embora não tão dramaticamente, os missionários católicos e
protestantes do século XIX conseguiram, com freqüência, combinar o compromisso com a
evangelização em nome de Jesus com um profundo (e cada vez mais profundo) respeito
pelas tradições autóctones.
Como no passado, as missões cristãs dos séculos XIX e XX envolveram diversas
mudanças sociais. Talvez a mais importante delas no desenvolvimento cultural das nações
Em A tempestade acalmada, de
Monika Liu Ho-Peh, um Jesus
chinês, na proa do barco, conjura o
vento e diz ao mar: "Silêncio!
Quieto!" (Me 4:39), enquanto seus
aterrorizados discípulos chineses -
quase todos barbados como na arte
ocidental, ainda que com feições
orientais - lidam com os remos e
puxam as agitadas velas.
A fusão de tradições culturais para
tornar visível a universalidade de
Jesus podia assumir formas
extravagantes, como nesta pintura
de um artista da Índia que situou a
ascensão de Jesus num cenário
evidentemente indiano, retratando
seus seguidores com as mais
diferentes nacionalidades - vestindo
a figura ascendente do Salvador
com a batina jesuíta.
240 + O Homem que Pertence ao Mundo

Nesta interpretação da aborígine tenha sido a íntima associação entre as missões e a campanha de alfabetização. Um mo­
australiana Miriam Rose
numento a essa realização na história dos eslavos é o próprio alfabeto em que a maioria
Ungunmerr·Baumann, a
crucificação de Cristo - uma das deles escreve, chamado cirílico em homenagem a são Cirilo. Entretanto, não só entre os
quatorze etapas da Via Sacra - eslavos do século XIX, mas também entre outros ditos gentios da época, os dois elementos
apresenta uma infinidade de traços
na cruz e em seus braços para fundamentais da cultura missionária foram a tradução da Bíblia e a educação nas escolas
mostrar o número de pessoas pelas missionárias. Em cada nação tornou-se necessário, a fim de traduzir a palavra de Deus,
quais ele morreu, pois, na cruz,
"seus pensamentos ainda se movem
registrar a linguagem na forma escrita; assim, em muitos casos os primeiros esforços para
em todas as direções rumo aos uma compreensão científica do idioma, pelo nativo ou pelo estrangeiro, procederam dos
povos do mundo". missionários cristãos. Eles compilaram os primeiros dicionários, escreveram as primeiras
gramáticas, desenvolveram os primeiros alfabetos. Dessa maneira, ocorreu que o primeiro
nome próprio importante a ser escrito em muitas dessas línguas deve ter sido o de Jesus,
com a pronúncia adaptada a suas estruturas fonéticas características, assim como se pas­
sou com todos os idiomas da Europa. · Estima-se que as sociedades bíblicas missionárias
protestantes traduziram os Evangelhos a mil línguas ou mais.
As escolas fundadas pelas sociedades missionárias protestantes e pelas ordens
religiosas católicas romanas associaram-se intimamente a esse empreendimento, e
muitas vezes funcionaram como centros tanto da tradução dos Evangelhos quanto dos
estudos lingüísticos que lhe serviram de base. Isso as tornou ambivalentes ante a cultura
indígena, a qual os professores missionários queriam dominar em nome de Cristo e
O Homem que Pertence ao Mundo + 241

Os totens do Pacífico Noroeste


lembram às vezes a Cruz de
Ruthwell e outras cruzes de beira de
estrada da Europa. Combinando as
duas coisas, Stanley Peters colocou
o Jesus totêmico numa cruz a fim de
comunicar o mistério de Cristo
como o verdadeiro Homem que
Pertence ao Mundo.

sentiam-se obrigados a exorcizar, também em nome de Cristo, por estar eivada do es­
pírito e das superstições do gentilismo. As memórias dos universitários asiáticos e afri­
canos lamentam muitas vezes a perda das raízes nacionais, um subproduto de tal
educação. O primeiro-ministro indiano Jawaharlal Nehru, por exemplo, que estudou em
Harrow e Cambridge, tornou-se, em sua própria expressão eloqüente, "uma esquisita
mistura de Oriente e Ocidente, deslocado em toda parte, em lugar nenhum em casa", e
passou a sentir-se profundamente alienado da religião das pessoas comuns da Índia -
No século XX, até as culturas
cristãs tradicionais do Ocidente
buscaram meios inovadores de
retratar Jesus Cristo como o
Homem que Pertence ao Mundo.
Em O presépio, do pintor
ítalo-americano Joseph Stella, os
pastores de Belém e os Reis Magos
orientais representam "todas as
nações, tribos, povos e línguas"
(Ap 7:9), assim como todas as
classes sociais, unidas na adoração
do Menino Jesus.
244 + O Homem que Pertence ao Mundo

Tradicional e ao mesmo tempo assim como do cristianismo dos missionários britânicos. Desse modo, as palavras de
inovador, o Monte Calvário, de
William Johnson (página ao lado)
Jesus nos Evangelhos se cumpriram de maneira amargamente literal: "[ . . . ] vim contrapor
provém da tra'dição cristã da o homem ao seu pai, a filha à sua mãe e a nora a sua sogra. Em suma: os inimigos do
comunidade negra norte-americana homem serão os seus próprios familiares" (Mt 10:35-36) .
e representa os quatro personagens
bfblicos, incluindo Jesus (cuja pele Não obstante, também as igrejas reconheceram logo, por vezes bem mais expli­
era provavelmente bem escura), tão citamente na missão que na metrópole, que não bastava levar as palavras sobre Jesus ao
negros quanto o foram "italianos"
nas obras dos artistas florentinos, mundo não cristão. Tampouco bastara no tempo de Cristo, de modo que ele veio como
germânicos e flamengos. médico e não só como mestre. De forma semelhante, nos séculos II e III, o cristianismo
"assumiu deliberada e conscientemente [ . . ] a forma de 'religião da salvação e da cura'
.

O processº de "aculturação" - pelo


qual a fé em Jesus Cristo, não só na ou de 'medicina da alma e do corpo' e, ao mesmo tempo, reconheceu que um de seus
qualidade de Salvador europeu, mas deveres principais era o atendimento assíduo aos doentes do corpo" . Essa descrição
também como o Homem que
Pertence ao Mundo - encontra sucinta de Adolf von Harnack aplica-se com a mesma facilidade aos séculos XIX e XX e
expressões igualmente legftimas em aos séculos II e III. O último capítulo do Novo Testamento descreve a cidade de Deus,
sfmbolos e formas artfsticas
oriundas de culturas não européias.
com o trono de Jesus Cristo, o Cordeiro de Deus, e a árvore da vida, e explica que "suas
Essa·máscara tradicional igbo de folhas servem para curar as nações" (Ap. 22:2).
rosto branco da Nigéria Oriental Numa época em que curar as nações da devastação da fome, das enfermidades e da
tem, no alto, uma representação de
Cristo ladeado por dois anjos. guerra tornou-se o imperativo moral dominante, Jesus, o Médico, assumiu uma posição
central. Todavia, o vínculo entre a evangelização em nome de Jesus e a missão de auxi­
liar e curar também foi tema de debate e suscitou comentários sobre o significado literal
O Homem que Pertence ao Mundo + 245

de um trecho dos Evangelhos: "De fato, quem vos der a beber um copo d' água por
serdes de Cristo, em verdade vos digo que não perderá a sua recompensa" (Me 9:41 ).
Alguns mencionaram o nome de Cristo, esclarecendo o seu significado doutrinário e
teológico, mas sem oferecer o copo de água; outros deram a água, fornecendo a cura e
melhorando a situação social dos carentes, mas sem mencionar explicitamente o nome
de Cristo e a doutrina sobre a sua pessoa. Será cada uma delas uma obediência apenas
parcial à dupla convocação de Jesus?
246 + O Homem que Pertence ao Mundo

Um aspecto cada vez mais importante da polêmica tem sido o esforço de cooperação,
não a competição, entre os discípulos de Jesus e os que seguem outros antigos Mestres do
Caminho_. Os seguidores de Jesus que advogam tal colaboração insistem que não estão
menos comprometidos com a universalidade de sua pessoa e de sua mensagem que qs
defensores dos métodos tradicionais de conquista por intermédio da evangelização. A
universalidade de Jesus, asseveram, não se estabelece no mundo pela da obliteração de
quaisquer elementos de luz e de verdade que já tenham sido outorgados às nações do
mundo. Sejam quais forem as fontes próximas e históricas dessa verdade, sua origem
última é Deus, o mesmo que Jesus. chamava de Pai; do contrário, a crença na unicidade de
Deus é vazia. Jesus foi o Homem que Pertence ao Mundo porque tornou possível apreciar
mais profundamente a verdadeira amplitude da revelação divina onde quer que tenha
aparecido na história do mundo, à luz da qual o seu próprio sentido e a sua própria
mensagem adquiriram um significado mais profundo. No eloqüente paradoxo articulado
pelo arcebispo Nathan Soderblom em suas conferências de Gifford de 1931, "a unicidade
de Cristo como o revelador histórico, como o Verbo feito carne, e o mistério do Calvário",
que são um "caráter essencialmente único do cristianismo", impõem a afirmação de que
"Deus se revela, na história, tanto fora da Igreja quanto dentro dela". Uma revisão tão
drástica do entendimento cristão de que só existe salvação em Jesus, "Pois não há, debaixo
do céu, outro nome dado aos homens pelo qual devamos ser salvos" (At 4:12), provocou
inevitavelmente uma acalorada discussão.
Tais propostas de redefinição da universalidade de Jesus surgiram no momento em
que os estudiosos do Ocidente se debruçavam sobre as línguas e as culturas das outras
tradições religiosas. Em 1 875, Friedrich Max Müller iniciou a publicação dos Livros
sagrados do Oriente, os 51 volumes que apresentavam a riqueza da sabedoria religiosa
oriental aos leitores que não tinham como estudar os originais. Em 1 893, convocou-se o
Parlamento Mundial das Religiões com o intuito de determinar as implicações religiosas
do fato inegável de que a raça humana não era exclusivamente européia e, portanto, não
podia ser exclusivamente cristã. Visto que a porcentagem de cristãos no conjunto da
população mundial continua em declínio, é inconcebível que as Igrejas cristãs venham a
substituir as demais religiões da humanidade. Se Jesus deve ser o Homem que Pertence
ao Mundo; terá de sê-lo de outro modo.
O mais notável documento oriundo dessa compreensão cada vez mais profunda de
um novo universalismo foi publicado em 28 de outubro de 1965: a Declaração sobre as
relações da Igreja com as religiões não cristãs, Nostra aetate, do Concilio do Vaticano II.
Após uma descrição sucinta e fiel da indagação religiosa e dos valores espirituais exis­
tentes nas religiões primitivas, no hinduísmo, no budismo e no islamismo, o concílio,
numa afirmação histórica, declarou: "A Igreja Católica nada rejeita que seja verdadeiro e
sagrado nessas religiões. Encara com sincero respeito esses tipos de conduta e de vida,
essas regras e doutrinas que, embora diferentes em diversos aspectos do que ela sus­
tenta e afirma, muitas vezes refletem um raio da Luz Verdadeira que ilumina todo
O Homem que Pertence ao Mundo + 247

homem (Jo 1 :9). De fato, ela proclama e sempre há de proclamar Cristo, 'o Caminho, a
Verdade e a Vida' (Jo 14:6), no qual o homem encontra a plenitude da vida religiosa e no
qual Deus reconciliou todas as coisas Consigo". As duas passagens do Evangelho de
João citadas no édito identificam claramente o problema. Mencionando a autoridade de
ambas as passagens, o concílio procurou afirmar simultaneamente a universalidade e a
particularidade, fundando-as na figura de Jesus.
Uma questão especial no Concílio do Vaticano Segundo e em toda a cristandade,
particularmente a partir da Segunda Guerra Mundial, foi a relação entre os cristãos e o
povo judeu, o povo de Jesus; era um aspecto que não podia simplesmente ser incluído na
categoria geral das religiões do mundo. O Holocausto ocorreu num território até então
considerado cristão, e houve, entre os católicos e os protestantes da Alemanha, aqueles
que, como diz o Novo Testamento sobre o envolvimento de Paulo com o martírio de
Estêvão, estavam "de acordo com a [ . . . ] execução" dos judeus (At 8:1), sem contar os
muitos que se mostraram (como parece agora olhando-se em retrospectiva) cegamente
insensíveis para a situação. O Concílio do Vaticano Segundo declarou que deplorava "o
ódio, as perseguições e as manifestações de anti-semitismo dirigidos contra os judeus em
qualquer tempo e de qualquer origem", o que parece incluir as fontes oficiais do passado
da Igreja. E condenava toda tentativa de atribuir a culpa da morte de Jesus "aos judeus
então viventes, sem distinção, ou aos judeus de hoje", insistindo em que "os judeus não
deviam ser apresentados como repudiados ou amaldiçoados por Deus" .
Esse repensar da relação entre cristianismo e judaísmo foi, em parte, conseqüência do
horror universal em face do Holocausto, mas proveio em parte também da· mais básica
reconsideração cristã do status do judaísmo a partir do século 1. Ironicamente, os anos do
nazismo, do anti-semitismo e do Holocausto na Alemanha foram também aqueles em que
os cristãos desenvolveram esta nova consciência do judaísmo de Jesus, dos apóstolos e do
Novo Testamento, a qual fala na mesma linguagem do Concílio do Vaticano. Em 1933, no
começo da era nazista na Alemanha, foi publicado nesse mesmo país o primeiro volume
de uma das mais influentes obras de referência bíblica do século XX, o ambicioso
Dicionário teológico do Novo Testamento, que documenta amplamente a impossibilidade de
se compreender a doutrina e a linguagem do Novo Testamento, incluindo as de Jesus, fora
do contexto do judaísmo. É uma vez mais no Evangelho de João, a despeito da hostilidade
que parte de sua linguagem manifesta contra os judeus, que Jesus, falando como judeu a
um não-judeu, aparece dizendo: "[ . . . ] nós [judeus] adoramos o que conhecemos, porque a
salvação vem dos judeus" (Jo 4:22-23). E prossegue no versículo seguinte: ''Mas vem a
hora - e é agora - em que os verdadeiros adoradores [tanto judeus quanto gentios] ado­
rarão o Pai em· espírito e verdade" . Também aqui o tema é a universalidade com particu­
laridade, pois ambas as coisas se fundamentam na figura de Jesus, o Judeu.
Pela curiosa combinação dessas correntes de fé religiosa e erudição com as não
menos poderosas influências do cepticismo e do relativismo religioso, a universalidade
com particularidade de Jesus tornou-se, assim, tema, no século XX, não só dos cristãos,
248 + O Homem que Pertence ao Mundo

Do mesmo modo que a conhecida


estátua de Cristo dos Andes, na
fronteira montanhosa do Chile com
a Argentina, esta gigantesca figura,
no Rio de Janeiro, representa o
Redentor oferecendo a bênção e, ao
mesmo tempo, convidando não só o
povo do Brasil, mas toda a
humanidade, a reconciliar-se com
Deus e consigo por intermédio do
Homem que Pertence ao Mundo.

mas da humanidade. Os últimos capítulos deste livro mostram que, à medida que de­
clina o respeito pela Igreja organizada, tende a aumentar a reverência por Jesus. A uni­
dade e a variedade dos retratos de "Jesus ao longo dos séculos" demonstram que nele
existe mais do que são capazes de sonhar a filosofia e a cristologia dos teólogos. No seio
da Igreja, mas também muito além de suas paredes, a pessoa e a mensagem de Jesus
são, nas palavras de Agostinho, uma "Beleza tão antiga e tão nova", e que agora per­
tencem ao mundo.
Créditos das ilustrações + 249

CRÉDITOS DAS ILUSTRAÇÕES

As ilustrações estão listadas na ordem em que apare­ Matthias Grünewald, Ressu rreição, do Retábulo de são Policarpo em Esmirna, San Clemente, Roma
·

cem; os números das páginas vêm em negrito. Isenheirn, 1 5 1 3- 1 5, Musée Unterlinden, Colmar, (Alinari/ Art Resource, N.Y.) 49
França (Scala/ Art Resource, N.Y.) 22 (detalhe), 23 Consta n tino, o Grande, coroado pela mão de Deus,
Léon Augustin Lhermitte, O Amigo dos humildes (Ceia Albrecht Dürer, Visão dos sete candelabros, xilo­ medalha, Kunsthistorisches Museum, Viena 50
de Emaús) (detalhe), 1 892. Cortesia do Museum gravura, c. 1498, do Apocalipse 25 Cesare Nebbia, O Concz1io de Nicéia, afresco, c. séc.
of Fine Arts. Boston. Doação de R a n d o lph Luca Signorelli, Trindade, madona, arcanjos e os santos XVI, Biblioteca Apostólica, Vaticano (Scala/ Art
Coolidge i Agostinho e Atanásio, e. 1514, Galleria degli Uffizi, Resource, N.Y.) 51
Marco Palmezzano, Cristo carregando a cruz (detalhe), Florença (Scala/ Art Resource, N.Y.) 27 A corte do imperador Justiniano (detalhe de mosaico),
Pinacoteca, Museus do Vaticano (Sca l a / Art Santo Agostinho, início de A cidade de Deus, d a San Vitale, Ravenna, Itália (Scala/ Art Resource,
Resource, N.Y.) ii primeira edição, 1 467, impresso p o r Conrad N.Y.) 52
O Salvador, ícone russo, séc. XVI, Arsenal do Sweynheym e Arnold Pannartz no Mosteiro de Vista antiga de Constantinopla, de O desenvolvimento
Kremlin, Kremlin, Moscou (Beniaminson/ Art Subiaco 28 urbano de Constantinopla (séculos IV-VII), de Cyril
Resource, N.Y.) vi Dieric Bouts, Abraão e Melqu isedec, do Retábulo da Mango (Paris: Diffusion de Boccard, 1985) 53
Cristo Pantocrator, séc. VI, ícone encáustico, Santo última ceia (ala esquerda), 1464-67, Collégiale Saint Rafael, A expulsão de Á t ila, c. 1 5 1 3- 1 4, Stanze d i
Mosteiro de santa Catarina do Sinai, Egito x, Pierre, Louvain, Bélgica (Erich Less i n g / Art R a ffaello, P a l ácio d o Vaticano (Scala / Art
(detalhe) 1 Resource, N.Y.) 29 Resource, N.Y.) 54
Samuel Lawrence, Retrato de Alfred Lord Tennyson, A n d reas Cellarius, " U m Céu Cristianizado, Carlos Magno entre dois santos, do santuário
1840, National Portrait Gallery, Londres 2 Hemisfério Sul", do Atlas Coelestis seu Harmonia sepulcral de Carlos Magno, 1 2 1 5, Tesouro da
Sir Francis Chantrey, Arthur Henry Hallam, esboço a Macrocosmica, 1 660, Geography a n d M a p Catedral, Capela Palatina, Aachen, Alemanha
lápis, National Portrait Gallery, Londres 2 Division, L ibrary o f Congress, W a shington (Scala/Art Resource, N.Y.) 55
A Cruz de Ruthwell, primeira metade do séc. VIII o.e. 31 Cristo abençoando, séc. XIII, placa esmaltada francesa,
( Foto: T. M i d d lemass, © Departamento de Página inicial decorada do Livro I d a História .da Musée Dobrée, Nantes, França (Giraudon / Art
Arqueologia, Universidade de Durham, Durham, Igreja e do povo ingleses, de Beda, fim do séc. XVIII. Resource, N.Y.) 56
Inglaterra) 3 Com autorização da British Library, Cotton Mosaico bizantino de Cristo, Museu Hagia Sofia,
Mestres do Antigo Livro de Orações de Maximiliano Tiberius C II, fl. 5v 32 Istambul, Turquia (Scala/ Art Resource, N.Y.) 58
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rainha Isabel, a Católica, fl. 72v: A Crucificação e fl. prosa de Bede Vida de Cuthbert, fim do séc. XII. Cefalu, Itália (Scala/ Arf Resource, N.Y.) 59
73r: A Deposição, c. 1 497- 1 500, © Cleveland Com autorização da British Library, Yates Ilustração de A divina comédia, de Dante, Primum
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Gallery / Art Resource, N.Y.) 10 . (Purgatório 27), 1 824-27, Na tional G allery of 8846, fl. 1, Bibliotheque Nationale, Paris 64
William Holman Hunt, O encon tro do Senhor no Victoria, Legado Felton, 1 920 39 Teofânio, o G rego, A Transfiguração, G a leria
templo, 1 854-60, Birmingham Museums and Art M i chelangelo, A S ibila de C u mas, 1 5 1 0, Capela Tretiakov, Moscou (Scala/ Art Resource N.Y.) 69
Gallery, Birmingham, Inglaterra 11 Sistina, Palácio do Vaticano (Scala/Art Resoutce, A Transfiguração de Cristo, Rússia, c. 1 970, cripta
Enguerrand Quarton, Pietà de Villeneuve d'Avignon, N.Y.) 40 francesa do Centro Patriarcal Ortodoxo, Genebra­
séc . XV, M u sée du Louvre, Paris (Erich Michelangelo, O profeta Isafas,1509-10, Capela Sistina, C h a m bésy, Suíça ( Foto: Michel e Liselotte
Lessing/ Art Resource, N.Y.) 12 Palácio do Vaticano (Scala/ Art Resource, N.Y.) 40 Quenot) 69
J ames Jacques J oseph Tissot, O r e t o r n o do filho "O pintor da sereia", O barco de Wisses e o canto das Antonella da Messina, Cristo no pelourinho, séc. XV,
pródigo, 1882, Coleção Manney (Bridgeman/Art sereias (detalhe do stamnos encontrado em Vulci), Musée du Louvre, Paris ( Erich Lessi n g / Art
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Convento Loccum, Alemanha (Foto: Heike séc. I V a . C . , Musée d u Louvre, Paris (Girau­ Saubauda, Torino, Itália (Scala/ Art Resource,
Seewald) 14 don/Art Resource, N.Y.) 42 N.Y.) 73
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Curador, National Gallery of Art, Washington, Rafael, São P a u l o prega n do em Atenas, 1 5 1 5- 1 6, da National Gallery 74
D.C. 15 Victoria and Albert Museum, Picture Library. Michelangelo, A criação de Adão, 1 51 1 , Capela Sistina,
Jerusalém (Foto: Stuart Franklin /Magnum Photos) 16 Cortesia do Conselho Curador do Victoria and Palácio do Vaticano (Scala/ Art Resource, N.Y.) 76
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38, pág. 35, Beinecke Rare Book e Manuscript }:Ians Memling, Cristo Salvator Mundi entre anjos 1 483, Alte Pinakothek, Munique (Art Resource,
Library, Universidade de Yale 17 músicos (detalhe), c. 1 487-90, Koninklijk Museum N.Y.) 77
A árvore de Jessé, séc. XVIII, ícone das Ilhas Jônias, voor Schone Kunsten, Antuérpia 46, 47 Sandro Botticelli, Santo Agostinho, e. 1480, Chiesa di
parte de um díptico. Richardson apd Kalias Icons, Jacopo Tintoretto, Cristo perante Pilatos, 1 566-67, Ognissanti, Florença (Scala/ Art Resource, N .Y.)
Londres (Bridgeman/ Art Resource, N.Y.) 18 Scuola di San Rocco, Veneza (Scala / A r t 78 .
Marc Chagall, Crucificação amarela, 1943. © Centre Resource, N.Y.) 48 Vittore Carpaccio, Santo Agostinho em seu escritório, c.
Georges Pompidou, Paris (Foto: Phillipe Migéat) 20 Giacomo Triga, Encontro de santo Inácio, o Mártir, com 1 500, Escola de San Giorgio degli Schiavoni,
250 + Créditos das ilustrações

Veneza (Scala/ Art Resource, N.Y.) 80 c. 880. Pierpont Morgan Library, Nova York Universidade de Yale 138
Gerard David, Casamento em Caná c.1 500, Musée du (Pierpont Morgan Library / Art Resource, N .Y.) Guercino (Giovanni Barbieri), Santa Margarida de
Louvre, Paris (Scala/ Art Resource, N.Y.) 82 113 Cortona, 1 648, Museus do Vaticano (Alinari/ Art
A árvore da vida e da morte, do Missal de Berthold Estátua de santo Anselmo, Roma (coleção do autor) Resource, N.Y.) 140
Furtmeyr, c. 1 440-45, Cod . lat. 1 571 0, Vol. 3, 1.14 Cabeça de Cristo, escultura de l'Eglise Saint-Sauveur
missa 1, fl. 4r, Staatsbibliothek, Munique (Foto Mestre San Pablo de la Moraleja, Lamentação, c. 1500, de Beauvais (destruída), Beauvais, Musée
Marburg/ Art Resource, N.Y.) 83 Museo Diocesano y Catedralico, Catedral de Départemental de l'Oise (Foto © Patrice Diaz) 142
Bartolomé Esteban Murillo, Imaculada Concepção de Valladolid 115 Jesus Nazareno, figura de Santos, Taylor Museum of
Aranjuez, c . 1 656-60, M useo del Prado, M ad ri Crucifixo de bronze (detalhe), c. 1 070, originalmente the Colorado Springs Fine Arts Center. Doação de
(Scala/ Art Resource, N.Y.) 84 na Abadia de Helmstedt, atualmente no Tesouro Alice Bernis Taylor 143
Jovan Vasilievic, Cristo entronado (detalhe), 1 745, de são Liud iger, Essen, Alemanha ( Foto Cuido Reni, São Francisco adorando um crucifixo, 1 631-
Mosteiro de Krusedeol, Sérvia (Erich Lessing/ Art Marburg/ Art Resource, N.Y.) 116 32, Nelson-Atkins Museum of Art, Kansas City,
Resource, N.Y.) 86 Jacopo Bellini, Santo Antônio Abade e são Bernardino de Missouri. Adquirido por intermédio do legado de
A Virgem com o Menino Jesus e dois santos, séc. XII, S iena (d etalhe), 1 459-60, Doação (parcial e Katherine Kupper Mosher 144
Santo Mosteiro de santa Catarina do Sinai, Egito prometida) de um d o a d or anônimo em Francisco de Zurbarán, São Francisco em meditação,
(Erich Lessing/ Art Resource, N .Y.) 87 homenagem ao qüinquagésimo aniversário da 1 635-39, National Gallery, Londres. Reproduzido
João Metropólitos, Cristo Redentor e Fonte da Vida, Na tional G a l l ery of Art, © 1 997 Conselho por cortesia do Conselho Curador da National
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(Giraudon/ Art Resource, N.Y.) 89 C. 117 Sassetta (Stefano di Giovanni), Casamento de são
Díptico de marfim u ti l i z a d o para cobrir os Sassetta (Stefano di Giovanni) e oficina, O encontro de Francisco com a senhora Pobreza, do Retábulo de
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Makarios Zographos, A Virgem de Pelagonitissa, 1 421- Monte Cassino em ruínas (acima) e restaura d o XIIl. Cortesia da Basílica de São Francisco, Assis
22, anteriormente no mosteiro de Zrze, Galeria de (abaixo). D e Leonard von Matt e Dom Stephan 148
Arte, Skopje, Macedônia ( Erich Lessing / Art Hilpisch, O. S. B., São Bento, trad. de Dom Emest Andrea della Robbia, Santo Antônio, Loggia di San
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O batismo de Cristo, ícone bizantino (detalhe) séc. São Bento entregando a regra monástica ao abade João, (Alinari/ Art Resource, N.Y.) 149
XVII, Museu Benaki, Atenas (Bridgeman/ Art. séc. X, Codex 175, Biblioteca de Monte Cassino Bico-de-pena de Guilherme de Ockham, séc. XIV, de
Resource, N.Y.) 92 122 Gonville e Caius, manuscrito 464/57, fl. 69r, com
Noli Me Tangere, Museu de Ícones, Dubrovnik, O Mosteiro de Dionísio, Atos, Grécia. Cortesia do a gentil autorização da Universidade Master and
Croácia (Scala/ Art Resource, N .Y.) 93 Mosteiro de Dionísio, Athos 123 Fellows of Gonville and Caius, Cambridge,
Nicholas Tzafuris, O Homem Sujeito à Dor entre a Cristo entronado en tre os poderes celestiais, de um Inglaterra 150
Virgem e são João, 1 450-1500, Kunsthistorisches afresco no refeitório do Mosteiro de Dionísio, dos D e uma edição de 1 539 de Imitatio Chris t i [ A
Museum, Viena 94-95 pintores Daniel e Mercurios, 1 603. Cortesia do imitação d e Cristo], d e Thomas à Kempis,
A descida ao inferno, ícone russo, séc. XVI, Museu Mosteiro de Dionísio, Athos 124 Collection of Early Manuscripts, Beinecke Rare
Rubliev, Moscou (Beniaminson/ Art Resource, Mapa das casas monásticas no Monte Athos. De Book and Manuscript Library, Universidade de
N.Y.) 96 Philip Sherrard, A thos: a montanha do silêncio Yale 151
Escola de Novgorod, O Juízo Final, séc. XV, Galeria (Londres: Oxford University Press, 1960) 125 Vista de Assis com o mosteiro e a Basílica de São
Tretiacov, Moscou (Bridgeman / Att Resource, Os san tos sérvios Sava e Simão Nemanja, séc. XV, Francisco de Assis (Corbis-Bettmann) 152
N.Y.) 97 provavelmente do Mosteiro Chilandari. Museu Giotto di Bondone, Vida de são Francisco: visão de
Andrey Rublyov, Ícone da Trindade do A n t igo Nacional, Belgrado 125 Inocêncio III, 1 297, Basílica de São Francisco, Assis
Testamento, c. 1 4 1 0, Galeria Tretiacov, Moscou Filippino Lippi, A visão de são Bernardo, c. 1 485-90, (Scala/ Art Resource, N .Y.) 154
(Scala/ Art Resource, N.Y.) 98 Igreja de Badia, Florença (Scala/ Art Resource, Rembrandt van Rijn, Cabeça de Cristo (detalhe), c.
Heiko Schlieper, Cristo- Pantocrator, 1980 (coleção do N.Y.) 126 1658, Gemãldegalerie, Staatliche Museen, Berlim
autor) 100 Pax Christi, escultura da A b a d i a de são João, (Art Resource, N.Y.) 156
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del Prado (todos o direitos reservados © Museo Warner Sallman, Cabeça de Cristo (detalhe), 1 940. de Jesus, 1 495-97, Santa Maria delle Grazie, Milão
del Prado, Madri) 102, 103 Cortesia das W ilson Galleries, U niversida d e (Erich Lessing/ Art Resource, N.Y.) 157
Edvard Munch, G6lgota, 1900, Munch Museum, Oslo Anderson, Anderson, Indiana 130 Domenico Ghirlandaio, A Santa Ceia, 1480, Museu de
(Erich Lessing/ Art Resource, N.Y.) 104 Mestre da Glorificação de Maria, Retábulo (detalhe), San Marco, Florença (Nimatallah/ Art Resource,
Hubert e Jan van Eyck, A adoração do Cordeiro, do W a ll ra f-Richartz - M u seums, Rheinisches .Y.) 158
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Bélgica (Scala/ Art Resource, N.Y.) 105 Emmanuel Tzanes, Dionísio, o Areopagita, séc. XVIl, Santa M a ria delle Grazie, Milão ( Erich
Paolo Veronese, A visão de santa Helena, c. 1 560-65, N asjona l g a l leriet, Oslo (Foto: J. Lathion Lessing/Art Resource, N.Y.) 159
Na tional Gallery, Londres. Reproduzido por © Nasjonalgalleriet) 133 Rafael, A Madona dos prados, 1 505-6,
cortesia do Conselho Curador da National Gallery "Cristo e a Igreja", de A Bfblia de Alardus, c. 1097, Kunsthistorisches Museum, Viena ( Erich
107 Bibliotheque V a lenciennes. C ortesia d a Lessing/ Art Resource, N.Y.) 161
Gentile Bellini, Procissão na Praça São Marcos, 1496, Bibliotheque Valenciennes, França 134 Sandro Botticelli, A Natividade mística, 1 500, The
Mu seu della Accademia, Veneza (Scala / Art J erónimo J a c in to d e Espinosa, São Bernardo de N a tional Gallery, Londres. Reprod uzido por
Resource, N.Y.) 109 Clairvaux com os instrumentos da Paixão, Frances cortesia do Conselho Curador da National Gallery
Assistente de Fra Angélico, Jesus confiando sua Mãe a Lehman Loeb Art Center, Universidade Vassar, 162
são João, c. 1450, Museo di San Marco, Florença Poughkeepsie, N.Y. Aquisição, Fundo Matthew Sandro Botticelli, O nascimen to de Vên us, 1 486,
(Scala/ Art Resource, N .Y.) 110 Vassar 135 Galleria degli Uffizi, Florença (Erich Lessing/ Art
A lbrecht Dü rer, G ra n de Paixão, 1 498 ( Foto Mestre da Glorificação de Maria, Retábulo, Wallraf­ Resource, N.Y.) 163
Marburg/ Art Resource, N.Y.) 111 Richartz-Museums, Rheinisches Bild archiv, Jacopo Tintoretto, A origem da Via Láctea, 1 580, The
Rabanus Maurus, De La u d i b u s S a n c tae Crucis Colônia 136 N a tional Gallery, Londres. Reproduzido por
[Louvores d a Santa Cruz], séc. IX, Biblioteca Anna Dimascio, Ícone da Senhora Juliana de Norwich, c. cortesia do Conselho Curador da National Gallery
Nacional de Viena. Cortesia da Osterreichischen 1980. Cortesia dos Amigos de Juliana de Norwich, 164
Nationalbibliothek, Viena lU Norwich, Inglaterra 137 Jacopo Tintoretto, O Sepultamen to, 1 592-94, San
Escola d a Corte de Carlos, o Calvo, d a capa do "Connubium Spirituale", de The Rothschild Canticles, Giorgio Maggiore, Veneza (Cameraphoto/Art
Evangelho de Lindau, Abadia de Saint Gall, Suíça, fl. 66r, Beinecke Rare Book e Manuscript Library, Resource, N.Y.) 165
Créditos das ilustrações + 251

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Musée du Louvre, Paris (Giraudon/ Art Resource, França (UPl/Corbis-Bettmann) 192 Crime e Cas t igo, d e Dostoiévski, tra d . de
N.Y.) 167 Léon Augustin Lherrnitte, O Amigo dos humildes (Ceia Constance Garnett (Nova York, 1 956) 220
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editado, trad uzido e anota do por Erasmo d e Fine Arts, Boston. Doação de Randolph Coolidge década de 1 450, Pina coteca Comunale,
Roterdã, 1 5 1 6 ( Foto: Bridwell Library, 194 Sansepolcro (Scala/ Art Resource, N.Y.) 222, 223
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Albrecht Dürer, Cristo entre os doutores (detalhe), Cortesia da Saint Pancras Parochial Church, irmãos Karamázov, de Dostoiévski, trad . d e
1 506, Fundação/ Acervo Thyssen-Bornemisza, Londres 195 Constance Garnett (Nova York: Random House,
Madri (Scala/Art Resource, N.Y.) 170 Samuel Watson, relógio astronômico (detalhe do 1943) 224
Albrecht Dürer, Auto-retrato de casaco de pele aos 28 mostrador), fim do séc. XVII, Castelo de Windsor, "Abraham Lincoln: emancipação dos escravos",
anos de idade, 1 500, Alte Pinakothek, Munique The Royal Collection, © Sua Majestade, a rainha gravura, Library of Congress, Washington, D.C.
(Scala/Art Resource, .Y.) 171 Elisabeth II 196 226
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Septembertestament de Lutero (Wittenberg, 1 522) Curador da National Gallery 198 um relicário m uç ulm a no " , 1 944 ( M a g n u m
173 Charles-Alphonse Dufresnoy, A morte de Sócrates, Photos) 227
Lucas Cranach, o Velho, Retrato do jovem Martinho G a lleria Palatina, P a l azzo Pitti, Florença "O Dr.Martin Luther King diz aos negros que eles
Lu tero, 1 526, Germanisches ationalmuseum, (Alinari/ Art Resource, N.Y.) 200 não perderão sua luta pelo registro eleitoral em
uremberg (Scala/Art Resource, N.Y.) 174 Thomas Sully, Thomas Jefferson, 1 822, The West Point Selma [ ... ], 22 de fevereiro de 1965" (UPl/Corbis­
J. S. Bach, A Paixão de são Mateus, reimpresso in Museum, United States Military Academy, West Bettmann) 228
Johann Seba stian Bach: His Life, Times a n d Point, Nova York 201 José Clemente Orozco, A epopéia da civilização
Influence, e d . Barbara Schwendowius e Wolfgang Thomas Jefferson, páginas de A vida e a moral de Jesus americana: a moderna migração do espírito (Painel
Domling (New Haven e Londres: Yale University de Nazaré, de Jefferson, ed. fac-símile (Washington 2 1 ), 1 932-34 . E ncomend a d o pelo Conselho
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Evangelische-Lutherische Kirchgemeinde, Weimar (Giraudon/ Art Resource, N.Y.) 206 Cristo como máscara, Zaire, c . 1 950 (Foto: Vivant
(Foto: Constantine Beyer) 179 Gustave Doré, Céu de Marte: a cruz, 1 868 (Foto: Yale Univers, Namur, Bélgica) 235
Promenade des Bastions, Genebra ( Foto: G reg Audio-Visual Department) 207 Georges Rouault, O rosto sagrado, Musée d' Art
Christensen/Image Bank, N.Y.) 180 R a l ph W a l d o Emerso n . C ortesia do H a rvard M oderne de la Ville de Paris (Giraudon / Art
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O cavaleiro em seu cavalo branco (detalhe), do começo Ivan Kramskoy, Cristo no deserto, 1 872-74, Galeria 1969) (Photo-Archiv des PGV, Aachen) 238
do séc. XIV, Apocalipse, Roy. 19.B.XV, fl. 37. Com Tretiakov, Moscou (Scala / Art Resource, N.Y.) A ascensão de Jesus vestido de sacerdote, Mughal, Índia.
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Manhã de domingo n u m navio de guerra em alto-mar W illiam Dyce, A m u l h e r da Samaria, c . 1 860, of Art 239
(UPI/ Corbis-Bettmann) 184 Birmingham Museums and Art G a l lery, Miriam Rose Ungunmerr-Baumann, Via Sacra:
O cavaleiro em seu cavalo branco, começo do séc. XIV, Birrningham, Inglaterra 211 Décima segunda estação, a Crucificação, 1974-75,
Apocalipse Roy. 19.B.XV, fl. 37. Com autorização Fritz von Uhde, Deixai as crianças virem a mim, 1884, Daly River Mission Church, Northern Territory,
da British Library 185 Museurn der Bildenden Künste, Leipzig 212 Austrá l i a . Cortesia da Socied a d e Bíblica d a
"Um galeão elisabetano", de Iconografia de navios. Heinrich Hofmann, Jesus no jardim de Getsêmani, Austrália 240
Cortesia do Mariners' Museum, Newport News, 1 890, reimpresso com autorização da Riverside Stanley Peters, Totem em cruz. Reproduzido com
Virgínia 186 Church e New York Graphic Society, todos os autorização da Conferência dos Bispos Católicos
Anna Hyatt H untington, Joana D'Arc, Munson­ direitos reservados 215 do Canadá, Ottawa (Foto: Thomas E. Moore, ©
Williarns-Proctor Institute Museum of Art, Utica, Caspar David Friedrich, Cruz nas montanhas, 1880, 1976, todos os direitos reservados) 241
Nova York. Doação do Scottish Deerhound Club Gemiildegalerie, Staatliche Kunstammlungen, Joseph Stella, O Presépio, c. 1 929-33. Acervo do
of Arnerica 187 Dresden (Erich Lessing/ Art Resource, N.Y.) 216 Newark Museum, Newark, Nova Jersey (Newark
William Otto Pitthan, Thomas M ü n zerin in der William Blake, A Ressurreição, 1805. Cortesia do Fogg Museum/ Art Resource, N.Y.) 242-43
Schlach t bei M üh lh a u s e n , 1 958, Art Museum, Harvard University Art Museums. Máscara igbo, séc. XX, Nigéria, Acervo de Ernst
Deutscheshistorisches Museum, Berlim 188 Legado de Grenville N. Winthrop 217 Anspach, N o v a York ( W erner Form a n / Art
Wamer Sallman, O Conto de Natal, de Grito de Guerra, Albert Pinkham Ryder, Cristo aparecendo a Maria, c. Resource, N.Y.) 244
Natal de 1942. Cortesia do Exército da Salvação 189 1 885, N a tional Museum of American Art, William H . Johnson, O Monte Calvário, e. 1 944,
Estátua de Comenius, Universidade da Morávia Washington, D.C. (National Museurn of American National Museum of American Art, Washington,
(Foto: Stephen Barth/Moravian College) 190 Art/ Art Resource, N.Y.) 218 D.C. (National Museum of American Art/ Art
Edward Hicks, O reino padfico com quacres usando Sir John E verett M i l lais, Retrato de Joh n Henry Resource, N.Y.) 245
estandartes (detalhe), séc. XIX, Yale University Art Newman. Cortesia da National Portrait Gallery, Estátua do Cristo Redentor, Rio de Janeiro (Foto:
Gallery, legado de Robert W. Carle 191 Londres 219 Bruno Barbey /Magnµm Photos) 248
252 + Índice Remissivo

ÍNDICE REMISSIVO

Os números em itálico correspondem às ilustrações. Beuron, abadia de, 129 Lutero, 1 74; Septembertestament (xilogravura), 1 73
Beze, Théodore de, 1 80 Credo dos Apóstolos, 97
Aachen, 55 Bzôlia de Alardus, A, 134 Credo de Nicéia, 62
Aarão, 28 Blake, William, Dante no momento de entrar no fogo, Cristo abençoando (placa esmaltada), 56
Abelardo, Pedro, "A Cruz", 1 14 39; O Eterno Evangelho, 21 1 , 217; A Ressurreição, Cristo Pantocrator, x (Sinai), 1 (Sinai), 58 (Istambul),
Abraão, 1 5, 98 217 59 (Cefalu), 89 (Skopje), 1 00 (de Schlieper)
Acciaiuoli, Donato, 159-60 Boécio, 1 14; De consolatione Philosophiae, 42 Cristo Redentor (estátua), 248
Adão, 38, 70, 81 , 106; lugar da crucificação de, 108, Boaventura, 1 36, 139, 145, 1 52-3; A jornada da alma Crucifixo de bronze (Alemanha), 1 1 6
1 10 para Deus, 1 34-5, 137; e a Regra de Francisco de Cruz de Ruthwell, 3, 241
Agostinho de Hipona, 26, 49, 63, 77, 78, 80, 109, 1 1 8, Assis, 152; Vida de Francisco, 1 52 Cruzadas, 183, 1 85; a cruz como símbolo das, 1 06
248; A cidade de Deus, 28, 29-30, 32, Confissões, 79, Boorstin, Daniel J., 203 Cuma (a sibila de Cumas), 38, 40
81-2, 1 0 1 , 138; Regra de santo Agostinho, 1 19; e o Bomkamm, Heinrich, 172 Cúpula do Rochedo, 1 6
sinal-da-cruz, 104; sobre a escravidão, 226; Sobre a Botticelli, Sandro, O nascimento de Vênus, 1 63; A
graça de Cristo e o pecado original, 85; sobre a guerra Natividade Mística, 1 62; Santo Agostinho, 78 Dali, Salvador, O Cristo de são João da Cruz, 1 78
.
justa, 1 86-7; sobre a imagem de Jesus como ima­ Bouts, Dieric, Retábulo da última ceia, 9 (Páscoa), 29 Daniel, 24
gem de Deus, 75-6; Sobre o belo e o conveniente, 1 0 1 ; (Abraão e Melquisedec) Daniel e Mercurius, Cristo entronado entre os poderes
sobre o casamento e a sexualidade, 79, 81 ; sobre o Bridges, Matthew, "A canção dos serafins", 23 celestiais, 1 24
pecado original, 79, 81 -2, 84-5; no tempo e na his­ Bruges, Mestre , Cristo apresentado ao povo, 74 Dante Alighieri, 57, 150, 1 60-1 , 1 63-4; A divina
tória, 30; sobre a Trindade, 76-7; sobre Virgílio, 38 Budismo, 236, 246 comédia, 6, 38, 39, 59, 60, 127, 1 38-9, 160;
·
Alcorão, 1 7 Burckhardt, Jacob, 157, 160, 166 Monarquia, 1 64; Vita Nuova, 160
Alvérnia, 145 David, Gerard, Casamento em Caná, 82
Ambrósio de Milão, 77 Cabeça de Cristo (escultura), 142 Davi, rei, 1 9, 21, 26, 41, 47, 1 89
Anabatistas, 190-2, 231; Confissão de Schleitheim, 192 Calcedônia, Concílio de, 90 Descida ao inferno, A, (ícone), 96
Angelico, Fra, Jesus confiando sua Mãe a são João (de Calvino, João, 1 72, 174, 1 80-1 , 1 80, 1 85 Dez Mandamentos, os, 87
seu assistente), 1 1 0; Madona e o Menino Jesus com Canossa, Henrique N e Gregório VII em, 127 Dicionário de hinologia, 1 3 1
oito santos, 37; Madona e o Menino Jesus segurando o Cântico dos Cânticos, 132, 134, 138-9 Dicionário teológico d o Novo Testamento, 247
globo, 36 Cânticos de Rothschild, 1 38 "Dies irae", 41
Anselmo de Canterbury, 104, 1 14; Por que Deus se Capadócia, relíquias da verdadeira cruz em, 1 05 Dilthey, Wilhelm, 1 75
tornou homem, 1 14-5 Caravaggio, A ceia de Emaús, 1 98 Dimascio, Anna, !cone da senhora Juliana de Norwich,
Antioquia, relíquias da verdadeira cruz em, 105 Carlos Magno, 57; tumba de, 55 1 37
Antonella da Messina, Cristo no pelourinho, 72 Carlos V, imperador, 1 89 Diocleciano, 35, 52
Antonino Pio, 43 Carpaccio, Vittore, Santo Agostinho em seu escritório, Dionísio, Mosteiro de, 123-4
Antônio de Pádua, 1 49 80 Dionísio Exíguo, 35
Antônio do Egito, Santo, 26, 1 1 8, 1 1 9 Carta Atlântica, 1 84 Dionísio, o Areopagita, 132, 1 33
;}quino, Tomás de, 63, 1 14, 1 76-7, 1 86-7 Cartago, 29, 79, 1 04 Domingo de Ramos, 1 4, 47, 229
Arvore de Jessé, A (ícone), 1 8 Cavalcanti, Guido, 1 60 Doré, Gustave, Cristo saindo do pretório, 206; Céu de
Árvore da vida e da morte, A (missal d e Berthold Cavaleiro em seu cavalo branco, O, 1 83, 1 85 Marte: a cruz, 207
Furtmyer), 83 Cellarius, Andreas, Atlas Coelestis seu Harmonia Dostoiévski, Fiódor, 210; Crime e castigo, 21 8, 220,
Ascensão de Jesus vestido de sacerdote, A, 239 Macrocosmica, 31 221; Os irmãos Karamázov, 6, 121-2, 223-5, 224, 233
Ashmole, Bestiário de, 62 Chagall, Marc, Crucificação amarela, 20 Dufresnoy, Charles-Alphonse, A morte de Sócrates,
Assis. Vide Francisco de Assis Chantrey, Sir Francis, Arthur Henry Hallam, 2 200
Atanásio de Alexandria, 26, 27, 35, 1 1 5; Vida de Chesterton, G. K., 149 Dürer, Albrecht, 1 74-5; Auto-retrato de casaco de pele
Antônio, 26, 30-2, 1 1 8-9 China, 236 aos 28 anos de idade, 1 71 ; Cristo entre os doutores, 1 70;
Atenas, 30, 42, 44, 66, 1 32-3 Churchill, Winston Spencer, 1 84 Grande Paixão, 1 1 1 ; Visão dos sete candelabros, 25
Athos. Vide Monte Athos Cícero, 88, 1 66 Dyce, William, A mulher da Samaria, 2 1 1
Á tila, 54, 56 Cimabue, Natividade com são Francisco, 1 48
Atos (apócrifo), 104 Cirilo, 1 27 Eco, Umberto, O nome da rosa, 129
Atos dos Santos, Os, 139-40 Clemente de Alexandria, 41-4 Egito, 24, 26, 34, 99, 1 1 9
Augsburgo, Dieta de santo Império Romano, 1 89 Cluny, centro monástico, 1 25 Eliot, George (Mary Ann Evans), 202
Auschwitz, 21 ' Código Teodosiano, 52, 54 Eliot, T. S., 79
Coleridge, Samuel Taylor, Devaneios religiosos, 207-8 Emerson, Ralph Waldo, 208-9, 208; "Discurso" de
Bach, Johann Sebastian, 1 75-6; A Paixão segundo são Comenius, Jan Amos, 1 83-4, 190, 1 90 Harvard, 214; "O Poeta", 21 3-4
João, 108; A Paixão segundo são Mateus, 104, 1 75 Concílio de Latrão rv, 1 55 Erasmo de Roterdã, 166, 167 1 68-9, 190; ; e as
Balaão, 38 Concílio do Vaticano u, 75, 106, 129, 246-47; Anotações de Valia, 166; Manual, 1 66-8; o Novo
Barba-roxa, Frederico, 185 Declaração sobre as relações da Igreja com as Testamento Grego, 1 58, 166, 1 68, 173
Barclay, Robert, 193 religiões não-cristãs, 246 Erfurt, mosteiro de, 1 23
Barco de Wisses e o canto das sereias, O, 41 Confissão de Augsburgo, 1 89 Espanha, 125, 1 76
Baring-Gould, Sabine, "Processional", 1 83 Confissão de Schleitheim, 1 92 Espinosa, Jerónimo Jacinto de, São Bernardo de
Basílio de Cesaréia, 60, 6 1 , 63, 66, 90, 92 Constância (irmã de Constantino), 88 Clairvaux com os instrumentos da Paixão, 135
Batismo de Cristo, O (ícone bizantino), 92 Constantino I (imperador), 54-6; Constantino, o Eugênio m (papa), 1 27
Beda, o Venerável, História da Igreja e do Povo ingleses, Grande, coroado pela mão de Deus (medalha), 50; Eusébio de Cesaréia, 35, 88; História eclesiástica, 30-1;
32; Vida de Cuthbert, 32, 33 a conversão de, 50, 52-3; e a cruz como insígnia sobre Constantino, 52-4;
Belém, bispo de, 1 06 militar, 106; e o direito romano, 52; Oração aos Eva, 38, 70, 81
Bellini, Gentile, Procissão na Praça São Marcos, 1 09 santos, 38-9; e os papas, 127; o reinado, 55 Evangelho de Lindau (capa), 1 1 3
Bellini, Jacopo, Santo Antônio Abade e são Bernardino Constantino V (imperador), 88-90 Evangelhos de Etchmiadzin, díptico de marfim usado
de Siena, 1 1 7 Constantinopla, 53; Cristo Pantocrator (Hagia como capa dos, 90
Belloc, Hilaire, 236 Sophia), 58; eleição de Fócio, 1 2 1 ; ícones Eyck, Hubert e Jan van: A adoração do cordeiro, 105
Bem-aventuranças, 1 63-4, 233 legitimados em, 91; a inauguração de, 56; o Ezequiel, 24
Bento de Núrcia, 120, 123, 127; Regra de, 1 1 9, 122, 124, patriarca de, 56, 121; relíquias de verdadeira cruz
1 28-9; São Bento entregando a regra monástica ao em, 105; o saque de, 188; transferência da capital Farei, Guillaume, 1 80
abade João, 1 2 2 para, 54, 56 Filemon, 226
Bergin, Thomas, 139, 1 60 Corinth, Lovis, O sacrifício de Isaac (segundo Filo de Alexandria, Sobre a vida contemplativa, 1 1 9
Berlin, Isaiah, 228 Rembrandt van Rijn), 1 5 Fócio, 1 2 1
Bernardo de Clairvaux, 1 26, 135; Sermões sobre o Cotton, John, 1 81 Francesca, Piero della, Ressurreição, 222-3
Cântico dos Cânticos, 132, 134; Sobre a consideração, Cranach, Lucas, o Moço, Die ErlOsung, 1 79 Franciscanos, 145-6, 149, 151, 153
127 Cranach, Lucas, o Velho, Retrato do jovem Martinho Francisco- de Assis, 1 4 1 , 144, 146, 148; Basílica de,
Índice Remissivo + 253

149, 152, 153; Cântico do irmão Sol, 150; os estigmas Vida (Metropólitos), 89; A descida ao inferno Kopman, Benjamin, "Sônia e Raskólhnikov", 220
de, 145-6; e a Igreja como instituição, 1 52-3, 155; e (Moscou), 96; Dionísio, o Areopagita (Tzanes), 133; Kramskoy, Ivan, Cristo no deserto, 210
o mundo material e natural, 149-50; e a ordem O homem sujeito à dor entre a Virgem e são João Kristeller, Paul Oskar, 164
franciscana, 145; e a pobreza, 146, 147, 149, 1 5 1 -3; (Tzafuris), 94-5; Ícone composto com a Crucificação,
Regra de, 145-6, 149, 152, 155; Testamento de, 152-3 Cristo no Sepulcro, ,santos e cenas do Evangelho (São Latourette, Kenneth Scott, 1 27; O grande século, 236
Franklin, Benjamin, 202, 203, 204-5; Almanaque do Petersburgo), 61; Icone da senhora Juliana de Latrão, Basílica de São João de, 1 55
pobre Ricardo, 205 Nonvich (Dimascio), 137; Ícone da Trindade do Lawrence, Samuel, Retrato de Alfred Lord Tennyson, 2
Friedrich, Caspar David, A cruz nas montanhas, 2 1 6 Antigo Testamento (Rublyov), 98; O Juízo Final Lázaro, 21 8-21
(Escola de Novgorod), 97; Noli Me Tangere Leão I (papa), 54, 56, 105
Gabriel (arcanjo), 35, 90 (Dubrovnik), 93; Transfiguração (Teofânio, o Leão III (imperador), 88
Galeão elisabetano, 1 86 Grego), 69; A Transfiguração de Cristo (Genebra- � Leão III (papa), 55, 57
Gália, relíquias da verdadeira cruz na, 105 Chambésy), 69; A Virgem com o Menino Jesus e dois Leão v (imperador), 88
Gandhi, Mohandas, 227, 229, 231 santos (Sinai), 87; A Virgem de Pelagonitissa Leclercq, Jean, 132
Gebhardt, Eduard von, O Sermão da Montanha, 14 (Zographos), 91 Lenda de Ouro, A, 107
Genebra, 1 75, 180; Promenade des Bastions, 1 80 Igreja do Santo Sepulcro, 105 León, Luis de, 1 76; Os nomes de Cristo, 176, 183
Gerhardt, Paul, 176 Igreja morávia em Herrnhut, 131 Leonardo da Vinci, 158; A Santa Ceia, 157, 159
Gershwin, Ira, "Porgy and Bess", 143 Inácio de Antioquia, 37 Leslie, George Dunlop, Benjamin Franklin, 203
Ghirlandaio, Domenico, A Santa Ceia, 1 58 Imitação de Cristo, A, 151, 153, 160 Lessing, Gotthold Ephraim, 200
Gibbon, Edward, 1 99-200 Império romano, 26, 55; a ascensão do, 1 1 9; os Lhermitte, Léon Augustin, O amigo dos humildes (Ceia
Gilson, Etienne, 169 detratores de Jesus no, 235-6; os efeitos do de Emaús), i, 194
Giotto di Bondone, Vida de são Francisco: Visão de cristianismo no, 29; Jesus na história do, 29; e o Liebermann, Max, Jesus aos doze anos no templo, 197
·
Inocêncio III, 154 reino de Jesus, 49-51; a vitória do cristianismo no: Lincoln, Abraham, 1 8 1 , 189, 225, 226; Proclamação
Goddard, François-Xavier, Cruz processional: figura de 199 da Abolição, 226
Cristo como máscara, 235 Índia, 231 , 239, 241, 244 Lippi, Filippino, A visão de são Bernardo, 1 26
Goethe, Johann Wolfgang von, 158; Fausto, 60, 199 Indulgência (pergaminho), 1 72 Lippmann, Walter, 79
Greccio, 151 Inocêncio m (papa), 145, 1 55; Visão de Inocêncio III, Lisipo, Busto de S6crates, 42
Gregório I (papa), 77, 105; Mora/ia, 1 12 154 Lowell, James Russell, 225
Gregório VII (papa), 125, 1 27 Isaac, 15 Lucas (evangelista), 12, 35, 1 09, 1 1 2, 204, 233
Gregório de Nazianzus, 53, 61 Isabel de Castela, 4; Livro das horas da rainha Isabel, a Luís rv (imperador), 153
Gregório de Nissa, 65 Cat6lica, 4-5 Lutero, Martinho, 123, 169, 1 74, 1 80, 1 84-6, 188, 190; e
Grünewald, Mathias, Ressurreição, 22-3 Isaías, 1 1 -2, 40, 4 1 , 45, 183 a arte sacra., 1 74; e a música, 1 75-6; o Novo
Guercino (Giovanni Barbieri), Santa Margarida de Islã, 1 6-7, 188, 246 Testamento em alemão, 1 72-4; "Poderosa
Cortona, 140 Israel, 1 3-5, 17, 19, 2 1 , 24, 26, 28, 38, 42, 99, 1 8 1 , 203. _ fortaleza é o nosso Deus", 1 71 ; Septembertestament,
Guerra Camponesa, 190; Batalha de Mühlhausen, Vide também Judaísmo 1 73; sobre o Sermão da Montanha, 1 77-8; teses de,
188 1 71 -3; toma-se reformador, 1 71 -2
Guerra dos Trinta Anos, 183, 190 Jardim do Éden, 38, 75, 81, 83 Lyte, Henry Francis, Poemas essencialmente religiosos,
Guerra entre os estados americanos, 233 Jefferson, Thomas, 201 , 203-5; A filosofia de Jesus de 117
Guilherme de Ockham, 150, 1 52-3 Nazaré, 201, 204; A vida e a moral de Jesus de Nazaré,
201 , 204 Mabuse (Jan Gossaert), Cristo, Maria e são João Batista,
.
Hallam, Arthur Henry, 2 Jericó, 43 1 82
Halpin, F., Retrato de Roger Williams, 1 8 1 Jerônimo, 38, 77; Vida de são Paulo Eremita, 1 1 8 Mântua, 38, 54, 57
Handel, George Frederick, 1 75; Messias, 24 Jerusalém, 1 1 , 1 6 , 1 9, 26, 34, 42, 66; a entrada d e Jesus Mapas; Atlas Coelestis seu Harmonia Macrocosmica, 31;
Harnack, Adolf von, 6-7, 244 em, 47; relíquias da verdadeira cruz em, 105 casas monásticas n o Monte Athos, 125; mapa
Hedge, Frederick H., 1 71 Jesuítas, 100, 236 circular do mundo (c.1 275), 34
Hegel, Georg Wilhelm Friedrich, O espírito do Jesus confiando sua Mãe a são João, 1 1 0 Mar Vermelho, a travessia do, 31, 99
cristianismo e seu destino, 21 1 Jesus Nazareno, 143 Marco Aurélio, 52
Heine, Heinrich, 173 Jetro, 38 Marcos (evangelista), 109, 1 12
Helena, Santa, 105-6; A visão de santa Helena, 107 Jetses, C., A liberdade como dádiva de Cristo, 226 Margarida de Cortona, 139, 140
Henrique IV (imperador), 127 Jó, 38; livro de, 1 12 Maria Laach, abadia de, 129
Heráclio (imperador), 106 Joana D'Arc, 187 Maria, mãe de Jesus, 10, 35, 43, 90, 103, 132, 139, 1 66,
Herodes, rei, 26 João (evangelista), 6, 60, 76, 109, 1 1 0 204; a Anunciação, 35; Bernardo de Clairvaux,
Herrick, Robert, 137 João Batista, 92, 1 1 7, 160, 1 85 1 27; in Dante, 160-1; a Imaculada Conceição, 85;
Herrnhut, igreja morávia de, 131 João Crisóstomo, 61 imagens de, 10, 12, 2 1 , 21, 37, 84, 87, 91 , 94, 1 10,
Heschel, Abraham, 1 32 João da Cruz, 178; O Cristo d e são João d a Cruz, 1 78; , 148, 1 6 1 ; e a pobreza, 149, 1 52-3
Hicks, Edward, O reino pacífico com quacres usando "De Cristo e da alma", 177; "Sobre a Encarnação", Maria Madalena, 93, 139, 218
estandartes, 191 1 77, Canções da alma, 176-7 Martírios, 104
Hilário de Poitiers, 66 João de Damasco, 90, 92, 99, 106 Máscara igbo, 244
Hildebrando. Vide Gregório VII (papa) João Paulo II (papa), 125, 1 27 Mateus (evangelista), 1 1 , 109, 1 1 2, 1 27, 146, 191, 20,
Hinduísmo, 227, 229, 246 João XXII (papa), 1 53 233
Hoffmann, Heinrich, Jesus no jardim de Getsêmani, 215 Johnson, Mordecai, 231 Maura, B., Frei Luís de Le6n, 1 76
Hollbein, Hans, o Moço, Alegoria d o Antigo e d o Novo Johnson, William H., Monte Calvário, 245 Mauro, Í talo Eugênio, 59
Testamentos, 1 77; Erasmo de Roterdã, 167 Jordão, batismo de Cristo no, 92, 99 McCrae, John, 192
Holl, Karl, 172 Josaphat, Frei Carlos, Prefácio da edição brasileira, Melquisedec, 28, 29, 56
Holocausto, 247 viii Memling, Hans, Cristo Salvator Mundi entre anjos
Homens da Quinta Monarquia, 190 José, 10 músicos, 46�7; A Paixão de Cristo, 73
Homero, Odisséia, 41 , 43 José d e Arimatéia, 1 65 Mestre da Glorificação de Maria, Retábulo, 131, 136
Honthorst, Gerrit van, Adoração do Menino Jesus, 209 Josué, 17, 43 Mestres do Antigo Livro de Orações de Maximiliano
Ho-Peh, Monika Liu, A tempestade acalmada, 238 Judá, reino de, 26, 108 1 e Associados, Livro das horas da rainha Isabel, a
Hopkins, Gerard Manley, "Esta natureza é um fogo Judaísmo, 1 1 -3, 16, 19, 26, 43, 73, 88, 101, 132, 204; Cat6lica, 4-5
de Heráclito", 87, 100-1 Concilio do Vaticano II, 247. Vide também Israel Metódio, 1 27
Howe, Julia Ward, 232; "O hino de guerra da Juízo Final, O, 97 Metropólitos, João, Cristo Redentor e Fonte da Vida, 89
República", 223, 233 Juliana de Norwich, 136, 137 Meyendorff, John, 1 32
Hume, David, 199 Juliano (imperador), 54 Michelangelo Buonarroti, A criação de Adão, 76; A
Hunos, 54, 56 Justiniano (imperador), 52, 56; A corte do imperador sibila de Cumas, 40; O profeta Isaías, 40; Capela
Hunt, William Holman, O encontro do senhor no Justiniano, 52 Sistina, 40- 1 , 76
templo, 8, 1 1 Justino Mártir, 43, 49 Miguel (arcanjo), 90
Huntington, Anna Hyatt, Joana D'Arc, 187 Juvenal de Jerusalém, 105 Mill, John Stuart, 7
Millais, John Everett, Retrato de John Henry Newman,
Ícones: A árvore de Jessé (Londres), 18; O batismo de Kantorowicz, Ernst, 164 219
Cristo (Atenas), 92; Cristo entronado (Vasilievic), 86; King, Martin Luther, 228, 229, 231; "Carta da prisão Milton, John, Paraíso perdido, 73, 75, 83
Cristo Pantocrator (Schlieper), 100; Cristo de Birmingham", 231 Moisés, 14, 31, 38; lei de, 1 6-7, 42; precursor de
Pantocrator (Sinai), x, 1; Cristo Redentor e Fonte da Knox, John, 180 Cristo, 43, 145; revelação de Deus à, 63, 65
254 + Índice Remissivo

Monte Athos, 1 23, 1 24-5; mapa das casas monásticas, harmonia dos Evangelhos, 203; Sócrates e Jesus Steinberg, Leo, 159
1 25 comparados, 203 Stella, Joseph, O presépio, 242-3
Monte Cassino, mosteiro de, 120, 123, 128 Promenade des Bastions, 180 Stiles, Ezra, 202, 204
Moraleja , mestre San Pablo de la, Lamentação, 1 15 Stowe, Harriet Beecher, 232; A cabana do pai Tomás,
Mosaicos: A corte do imperador Justiniano (Ravenna), Quacres (Sociedade dos Amigos), 1 90-1 , 1 93 232
52; Cristo Pantocrator {Cefalu), 59; Cristo Quarton, Enguerrand, Pietà de Villeneuve d'Avignon, Strauss, David Friedrich, Vida de Jesus, 200, 202
Pantocrator (Hagia Sophia), 58 12 Sully, Thomas, Thomas Jefferson, 201
Moulthrop, Reuben, Ezra Stiles, 202
Swinburne, Algemon Charles, "Hino a Pro érpina",
Müller, Friedrich Max, Livros sagrados do Oriente, 246 Rabanus, Maurus, O s louvores d a Santa
47, 55
Munch, Edvard, Gólgota, 104 Cruz, 108, 1 1 2
Münzer, Thomas, 188, 1 89-90 Rafael, A Madona dos Prados, 1 6 1 ; A expulsão d e Átila,
Murdoch, Iris, 43 · 54; São Paulo pregando em Atenas, 44 Tabor, Monte, 99
Murillo, Bartolomé Esteban, A Imaculada Conceição de Ravena, 55, 90 Tennyson, Alfred Lord, 1, 2, 6; ln Memoriam, 1, 2
Aranjuez, 84 ·Recaredo (imperador), 1 05 Teodolinda, 105
Murray, Gilbert, 45 Regina coeli, 1 60 Teofânio, o Grego, Transfiguração, 69
Roboão, 26 Tertuliano, 24, 52, 65-6, 104, 109
Nápoles, 38 Reimarus, Hermann Samuel, Sobre a intenção de Jesus Therapeutae (comunidade monástica judia), 1 1 9
Natal, 150-1, 208 e de Seus ensinamentos, 200 Thomas à �empis, 1 5 1 , 153, 1 60; A imitação de Cristo,
Nazaré, 12, 235 Remaclus, 104 151
Nazismo, 49, 247 Rembrandt van Rijn, 1 5; Cabeça de Cristo, 156 Thring, Godgrey, "A canção dos serafins", 23
Nebbia, Cesare, O Concilio de Nicéia, 51 Remo, 35 Tibério César, 49-50
Nehru, Jawaharlal, 241, 244 Renan, Emest, 213 Tindal, Matthew, Cristianismo tão velho quanto a
Neoplatonismo. Vide Platão (platonismo, Reni, Guido, São Francisco adorando um crucifixo, 144
criação, 1 95
neoplatonismo) Ricardo Coração de Leão, 1 85
Tintoretto, Jacopo, Cristo perante Pilatos, 48; A origem
Nero, 35, 50, 52 Ricci, Mateo, 236
da Via úíctea, 1 64; O sepultamento, 1 65
Newman, John Henry, 219; Ensaio sobre o Robbia, Andrea della, Santo Antônio, 149
Tissot, James Jacques Jo eph, O retorno do filho
desenvolvimento, 214, 219; "O pilar da nuvem", 219 Roma, 1 3, 19, 26, 29, 35, 38, 51-3, 55, 1 1 9, 155, 1 60,
Newton, Isaac, 1 98-9 1 85-6, 1 89, 1 99, 203, 235; e a conversão de
pródigo, 13
Nicéia, Concílio de, 26, 51 , 53-4 Constantino, 53-4; destruição do oráculo, 39; Tolstoi, Leon, 1 21 -2, 229; O Reino de Deus está dentro
Niebuhr, Reinhold, 37 fundação de, 35; história de, 30; as relíquias da de ti, 227, 229; Ressurreição, 228
Noel, Roden, A bandeira vermelha, 195 verdadeira cruz em, 105; transferência da capital :
Tomás de Celano, 145 149, 151
Noli Me Tangere (ícone), 93 de, 56-7 Transfiguração de Cristo, A, 69
Nova Inglaterra, puritanismo na, 181 Rômulo, 35 Trifo (rabino), 43
Novo Testamento Grego, 1 68 Roosevelt, Franklin Delano, 184 Triga, Giacomo, Encontro de santo Inácio, o Mártir, com
Rossetti, Dante Gabriel, A Páscoa na Sagrada Família, são Policarpo em Esmirna, 49
Odo de Cluny, 1 1 2 10 Trinkhaus, Charles, 1 59-60
Onésimo, 226 Rouault, Georges, O rosto sagrado, 237 Turcos, 189
Oráculo de Delfos, 85 Rublyov, Andrey, Ícone da Trindade do Antigo Tzafuris, Nicholas, O homem sujeito à dor entre a
Orígenes, 42-3 Testamento, 98 Virgem e são João, 94-5
Orozco, José Clemente, A epopéia da civilização Runciman, Steven, 1 88
Tzanes, Emmanuel, Dionísio, o Areopagita, 133
americana: a moderna migração do espírito, 230 Ryder, Albert Pinkham, Cristo aparecendo a Maria, 218
Orvieto, Pietro di Pucci da, O universo sustentado por
Uhde, Fritz von, Deixai as crianças virem a mim, 212
Deus com os símbolos dos planetas, 63 Sabatier, Paul, 153
Ungunmerr-Baumann, Miriam Rose, A Via Sacra:
Sallman, Wamer, Cabeça de Cristo, 130, 189; O conto de
Pacher, Michael, Retábulo dos pais da Igreja, 77 Natal, 189 Décima segunda estação, a Crucificação, 240
Palestina, 1 6, 188 Salmo de Bay, 175 Urbano II (papa), 1 88
Palmezzano, Marco, Cristo carregando a cruz, ii Salmo de Canterbury, 64
Panofsky, Erwin, 174-5 Saltério de Genebra, 175 Valla, Lorenzo, Anotações sobre o Novo Testamento, 166
Parlamento Mundial das Religiões, 246 Salústio, 30 Vasilievic, Jovan: Cristo entronado, 86
Pascal, Blaise, 75 Salvador, O, vi Velázquez, Diego de, Cristo na cruz, 102-3
Pater, Walter, 1 58-9 Santa Catarina, Santo Mosteiro de (Sinai), Cristo Venâncio Fortunato, 108; hino de, 109
Paulo, o apóstolo, 1 5, 42, 45, 81, 90, 103-4, 146, 150; e Pantocrator, x, 1 ; A Virgem com o Menino Jesus e dois Veneza, 109, 1 1 0
o ascetismo, 1 1 9; em Atenas, 44; como parte da santos, 87 "V eni, Veni, Immanuel", 1 1
tradição oral, 9; e Dionísio, o Areopagita, 132; e a Santa Maria degli Angeli, Igreja de, 145 Verdi, Giuseppe, 56; Átila, 54
escravidão, 226e a grandeza da humanidade, 65; e Santos séruios Sava e Simão Nemanja, Os, (ícone), 1 25 Veronese, Paolo, A visão de santa Helena, 107
o judaísmo, 19; e os reformadores, 171-2 São João Batista, abadia de, 128
Vinci, Leonardo da. Vide Leonardo da Vinci
Paulo, o Eremita, 1 1 8 Sassetta (Stefano di Giovanni), Casamento de são
Virgem com o Menino Jesus e dois santos, A, 87
Pax Christi (escultura), 1 28 Francisco com a senhora Pobreza, 147; O encontro de
Virgílio, 39; Eneida, 38-9; Quarta Écloga, 37-8, 41, 52
Pedro, 57, 90, 155, 185; e Dante, 160-1; e o reinado, santo Antônio com são Paulo (e oficina), 1 1 8
Vitória (rainha), 2
127 Schleiermacher, Friedrich, 208-10; Comemoração da
Penn, William, 1 91 . noite de Natal, 208; Sobre a religião, 208; Vida, 210 Vulgata, Ave Maria da, 1 66
Peters, Stanley, Totem em cruz, 241 Schlieper, Heiko, Cristo Pantocrator, 100
Pilatos, Pôncio, 48, 74, 103, 163, 185, 189; e Jesus Schweitzer, Albert, 2, 195 Watson, Samuel, Relógio astronômico, 196
como rei, 49-50, 56, 57, 74; e o reino espiritual, 1 50 Sermão da Montanha, O , 14, 14, 1 6, 121; Lutero Watts, Isaac, Salmos de Davi, 235-6
Pio IX (papa), 85 sobre o, 1 77-8; Martin Luther King Jr. sobre o, 231, Wellek, René, 207, 217
Pio XI (papa), 143 233; Tolstoi sobre o, 228 Wells, J . D., Harriet Beecher Stowe, 232
Pippin, Horace, A crucificação, 234 Sexta-feira Santa, 24, 38, 108, 199, 229 Wesley, Charles, "Em Tentação", 1 31
Pitthan, William Otto, Thomas Münzerin in der Shakespeare, William, Henrique IV, 103, 106; Macbeth, Wesley, John, Tentação, 1 31
Schlacht bei Mühlhausen, 1 88 103 West, Benjamin, A bênção de Cristo, 195
Platão (platonismo, neoplatonismo), 30, 76, 90, 169; e Sharp, William, O Grande Inquisidor, 224 Whitehead, Alfred North, 59
a Bíblia hebraica, 43-4; e Clemente de Alexandria, Sibila Délfica, 41 Williams, Roger, 1 8 1 , 181
42, 44; a cosmogonia de, 62; e Dionísio, o Signorelli, Luca, Trindade, Madona, arcanjos e os santos
Wordsworth, William, 212
Areopagita, 132; a doutrina das formas, 66, 92; e o Agostinho e Atanásio, 27
mistic'smo, 132; A República, 44-5; e são João da Sinai, , X , 1
Xavier, Francisco, 236
Cruz, 177; e Schleiermacher, 208; Timeu, 43; a Singleton, Charles, 1 60
tríade platônica, 6 Sócrates, 7 , 42, 43-4, 85, 202-3; A morte d e Sócrates,
200; "socratismo cristão", 169 Zinzendorf, conde icolau von, "Seelenbrrautigam,
Policarpo de Esmirna, 49, 50
Ponte Mílvian, vitória de Constantino na, 106 Sõderblom, Nathan, 176; Aulas de Gifford, 246 O du Gottes Lamm!", 1 31-2
Pope, Alexander, 169; Um ensaio sobre o homem, 157, Solesmes, abadia de, 129 Zographos, Makarios, A Virgem de Pelagonitissa, 91
160 Somme, cemitério americano de, 1 92 Zurbarán, Francisco de, São Francisco em meditação, .

Portiuncula (Igreja àe Santa Maria degli Angeli), 145 Sonho da cruz, O, 3, 6, 108 146
Priestley, Joseph, Corrupções do cristianismo, 203; A Stalin, Joseph, 35
ISBN !5-!b37 -

11111

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