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LENDAS E NARRATIVAS, ALEXANDRE HERCULANO - "A ABÓBADA"

A Abóbada, conto pertencente ao livro Lendas e Narrativas, de Alexandre Herculano, narra a história
da construção do Mosteiro de Santa Maria da Vitória, ou da Batalha, iniciado por D. João I na Quinta do
Pinhal, que assim homenageou essa histórica batalha, a Batalha de Aljubarrota.

Em A Abóbada, para além do Mosteiro da Batalha, um "immenso livro de pedra", "a minha Divina
Comedia", no dizer de Afonso Domingues, que "escrevera sobre o marmore o hymno dos valentes d'
Aljubarrota" (1900, I: 295), essa valorização está presente no carácter de D. João I, "parente do povo
por sua mãe" (id.: 283), cuja palavra valia "por ser palavra de cavalleiro português daquelles tempos,
em que tão nobres affectos e instinctos havia nos corações de nossos avós que de bom grado lhes
devemos perdoar a rudeza."

Alexandre Herculano e a construção da cultura/literatura nacional


Carlos Manuel Ferreira da Cunha (Universidade do Minho) (excerto)

“ A s narrativas históricas de Herculano revelam, pois, dupla relação de intertextualidade com as obras
medievais: a que se manifesta diretamente entre o texto-fonte e a narrativa em que o escritor o
desenvolve, integrando-o sempre num contexto histórico pormenorizadamente reconstituído; e a que
está implícita nos temas e motivos de ficção preferidos por Herculano, assim como na caracterização
das personagens, ou dos grupos sociais, que se inserem e participam em acontecimentos históricos,
portanto reais, embora as suas reações apenas sejam imaginadas, ou, pelo menos, recriadas, pelo
escritor.
Ao elaborar um texto a partir de outro, que lhe servia de matriz, Herculano geralmente desenvolvia
certas unidades semânticas contidas no primeiro, completando pela imaginação, ou por sugestões
devidas a outras relações de intertextualidade, o que, a nível do significado, poderia considerar-se
implícito ou possível.

Assim, certas narrativas ( A Dama Pé de Cabra, Arras por Foro de Espanha, A Abóbada) evidenciam,
pelo próprio tema escolhido, ou através de processos de enriquecimento do texto-fonte, a leitura de
duas obras diferentes, mas igualmente reveladas e valorizadas pelo movimento romântico:
o Romanceiro e as Crónicas de Fernão Lopes. (…)
N’A Abóbada, Herculano glorifica uma época, reunindo, nesta sua criação original, os heróis de outra
gesta – a que Portugal travou contra Castela —, celebrada em pedra por um lídimo representante,
como homem de armas de D. Nun'Alvares Pereira, dos combatentes de Aljubarrota: Afonso Domingues,
o arquiteto e imaginário, autor do «imenso livro de pedra a que os espíritos vulgares chamam
simplesmente o mosteiro da Batalha». Colocando frente a frente o «rei dos homens do aceso imaginar»
e «o rei dos melhores cavaleiros», identifica-os no mesmo ideal: “só D. João I compreende Afonso
Domingues; porque só ele compreende a valia destas duas palavras formosíssimas, palavras de anjos —
pátria e glória.”
Utilizando também n'A Abóbada a narração dramatizada, e explorando a teatralidade dos diálogos,
Herculano ergue uma grandiosa encenação, que tem por cenário o mosteiro de Santa Maria da Vitória:
animada pelo povo que tornou possível o triunfo da nação portuguesa, atuam como personagens as
mais representativas e prestigiadas figuras históricas e lendárias — do Dr. João das Regras a Brites de
Almeida, a padeira, cuja “tremebunda e patriótica pá do forno [...] hoje é glória e brasão da gótica
vila de Aljubarrota”, conforme informação do narrador.
Contudo, no terceiro capítulo (em que ocorre o acontecimento fundamental para a progressão da ação
— a queda da abóbada), esta técnica narrativa foi substituída pela descrição, completada por outros
tipos de enunciado: narração e monólogo, além das reflexões do narrador. Deste modo são apresenta-
dos ao leitor, à maneira de uma encenação dentro de outra, dois espetáculos, cada um deles
caracterizado pelo seu ritual — a representação de um mistério, que o povo designa por Auto dos
Reis, e a cerimónia do exorcismo. A inclusão de versos contribui para imprimir veracidade à
reconstituição do auto, de acordo com o gosto do pitoresco, que caracteriza a estética romântica.
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Perante o irracionalismo da cena a que o leitor assiste, o narrador assume uma feição pedagógica e
crítica, no intuito de defender a mentalidade medieval, identificando as reações de “homens de um
século, não só crente, mas também supersticioso» às que não poderia deixar de experimentar, apesar
de todo o seu racionalismo, “uma grande manada de enciclopedistas”, como observa
desdenhosamente.
Na defesa dos valores nacionais e populares, que considerava sinónimos, Herculano evidencia o
contraste entre Afonso Domingues e Mestre David Ouguet, ridicularizando o irlandês, como homem e
como arquiteto, por meio de uma caricatura: que poderá considerar-se a expressão da anglofobia do
autor, mas serve também de pretexto para criticar com ironia um vício bem português: a preferência,
ou o respeito, pelo que é estrangeiro, mesmo que de inferior qualidade, em comparação com o que o
país possui ou poderá produzir.
Pelo contrário, o velho arquiteto parece constituir uma projeção dos íntimos desígnios do jovem
romântico (Herculano tinha então vinte e nove anos), e, como tal, anuncia também, com
impressionante previsão, o isolamento prematuro a que o escritor se condenará, vencido pela
incompreensão do “país sáfaro e inculto”, como diria Mestre Ouguet, e, parafraseando as suas
palavras, de “homens brigosos, incapazes dos primores das artes, ou sequer entendê-los”.
E a identificação entre Herculano e Afonso Domingues manifesta-se ainda sob vários aspetos. Como
poetas, ambos experimentaram os sentimentos expressos pelo velho arquiteto: “Este mosteiro era a
minha Divina Comédia, o cântico da minha alma. Este edifício era meu; porque o gerei; porque o
alimentei com a substância da minha alma”. Ambos defendem um conceito de arte nacional
(“português sou eu, portuguesa a minha obra”). Como Herculano, também Afonso Domingues foi
soldado e companheiro de um rei que lutou pela liberdade (“os vassalos portugueses são livres”). E, à
semelhança do “criador da oitava maravilha do mundo”, também Herculano provou com a vida e a
obra aspirar apenas a “um nome honrado e glorioso”.
Criando a ficção histórica como obra de arte, mas baseada em prévio trabalho científico, Herculano
soube imprimir seriedade às suas obras romanescas, constituindo-as como modelo de todos os que
cultivaram este subgénero narrativo.
Maria Ema Tarracha Ferreira
fevereiro, 1988

http://sentirportugus.blogspot.pt/2015/11/lendas-e-narrativas-alexandre-herculano_65.html

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