Você está na página 1de 17

28/06/2023, 11:33 A ficção da história nacional portuguesa em A Ilustre Casa de Ramires

Ler História
81 | 2022
História do Brasil
Espelho de Clio

A ficção da história nacional


portuguesa em A Ilustre Casa de
Ramires
The Fiction of National Portuguese History in A Ilustre Casa de Ramires

La fiction de l’histoire nationale portugaise en A Ilustre Casa de Ramires

Ricardo Ledesma Alonso


p. 45-67
https://doi.org/10.4000/lerhistoria.11026

Resumos
Português English Français
Uma das questões que os especialistas na produção literária de Eça de Queirós têm trabalhado
com maior assiduidade é a reflexão sobre a história que ele desenvolveu nas páginas do seu
romance A Ilustre Casa de Ramires (1900). Como é sabido, esta reflexão levou o escritor à crítica
das principais formas de representação do passado nacional no Portugal da Regeneração: o
romance histórico ultrarromântico e a historiografia historicista. Este artigo foca um elemento
dessa crítica que não tem sido abordado com profundidade suficiente. Especificamente, examina
☝🍪
o ataque de Eça ao substrato metafísico imanente nos relatos históricos convencionais da nação
portuguesa. Postula-se que A Ilustre Casa de Ramires merece ser lida como um discurso que,
através
Este sitedeutiliza
um repertório
cookies ede estratégias ficcionais, questionou a meta-narração histórica
pressuposta nas representações narrativas do passado nacional em vigor no Portugal pós-
dá-lhe controle sobre o que
Ultimatum.
quer ativar
One of the problems that scholars of the literary production of Eça de Queirós have most
assiduously addressed is the reflection on history that he developed in the pages of his novel A
Ilustre Casa de Ramires (1900). As is well known, this reflection led the writer to criticize the
✓ OK, aceitar tudo
main forms of representation of the national past in Portugal during the Regeneração: the ultra-
romantic historical novel and historicist historiography. This article focuses on an element of this
✗critique
Proíbe thattodos
has notcookies
been addressed in sufficient detail. Specifically, it examines Eça’s attack on
the metaphysical substratum inherent in conventional historical accounts of the Portuguese
nation. I argue that A Ilustre Casa de Ramires deserves to be read as a discourse that, through a
Personalizar
repertoire of fictional strategies, questioned the historical meta-narrative presupposed by
representations of the national past during post-Ultimatum Portugal.
Política de Privacidade
L’une des questions sur lesquelles les spécialistes de la production littéraire d’Eça de Queirós ont
travaillé le plus assidûment est la réflexion sur l’histoire développée dans les pages de son roman

https://journals.openedition.org/lerhistoria/11026 1/17
28/06/2023, 11:33 A ficção da história nacional portuguesa em A Ilustre Casa de Ramires
A Ilustre Casa de Ramires (1900). Comme on le sait, cette réflexion a conduit l’écrivain à
critiquer les principales formes de représentation du passé national dans le Portugal de la
Regeneração: le roman historique ultra romantique et l’historiographie historiciste. Cet article se
concentre sur un élément de cette critique qui n’a pas été abordé de manière suffisamment
approfondie. Plus précisément, il examine les attaques d’Eça de Queirós contre le substrat
métaphysique immanent aux récits historiques conventionnels de la nation portugaise. Il est
postulé que A Ilustre Casa de Ramires mérite d’être lu comme un discours qui, à travers un
répertoire de stratégies fictionnelles, a remis en question le métarécit historique présupposé par
les représentations narratives du passé national en vigueur dans le Portugal post-Ultimatum.

Entradas no índice
Mots-clés : métarécits historiques, histoire de Portugal, Ultimatum, Eça de Queirós
Keywords: historical meta-narratives, history of Portugal, Ultimatum, Eça de Queirós
Palavras-chave: metanarrativas históricas, história de Portugal, Ultimatum, Eça de Queirós

Texto integral
1 Ao longo do século XIX, como foi o caso em muitas outras latitudes europeias,
desenvolveu-se em Portugal uma cultura histórica marcante e complexa. Os sectores
burgueses, que tinham ascendido recentemente ao poder político através do processo
das guerras liberais, promoveram e cultivaram, através de uma vasta gama de formas
culturais como a historiografia, a literatura, as ciências sociais, a música e a pintura, a
recuperação de um passado nacional que iria legitimar a ordem política – o estado-
nação – que tinha vindo substituir a monarquia absoluta. Em termos gerais, poderia
dizer-se que, em todas estas disciplinas, ainda que a partir de estratégias
epistemológicas e representacionais muito diferentes, triunfou a noção romântico-
historicista – de matriz herculaniana – que assinalava que Portugal possuía uma “alma
nacional” nascida durante a Idade Média peninsular, e que, embora extraviada durante
o período de expansão ultramarina, era historicamente destinada a uma vocação ou
missão universal de natureza quase messiânica. Por volta do último terço de
Oitocentos, no âmbito do Scramble for Africa, e particularmente no contexto do
conflito com a Grã-Bretanha em 1890, aquela conceção da história portuguesa recebeu
um impulso radical, principalmente nos discursos poéticos e doutrinários que
promoveram a defesa patriótica dos interesses portugueses em África sob ameaça
estrangeira (Matos 2008, 95 e 101-102).
2 No conjunto de discursos produzidos na década que se seguiu ao Ultimatum
britânico,1 o romance A Ilustre Casa de Ramires (1900), de Eça de Queirós, destaca-se
pela sua excentricidade. Críticos como Salvato Trigo (1990, 293), João Medina (1974,
107-110), Teresa Rita Lopes (1995, 496-507) e Maria Teresa Pinto Coelho (1996, 204),
entre outros, embora defendam a ideia de que, no pensamento do “último Eça”, ainda
☝🍪
era válida a noção da possibilidade de uma regeneração nacional inspirada no
prestigiado passado medieval português, reconhecem no entanto o seu questionamento
Este site utilizanacional”
da “identidade cookies e – isto dada a analogia que, no final do romance, e na voz da
dá-lhe controle sobre o que
personagem do administrador João Gouveia, o escritor fez entre o seu protagonista
quer ativar
aparentemente “triunfante”, o fidalgo Gonçalo Mendes Ramires, e Portugal. Marie-
Hélène Piwnik (2012, 32-35), por seu lado, rejeita esta perspetiva, argumentando que o
tratamento dado por Eça à história portuguesa, especialmente na sua crítica às imagens
convencionais do romance histórico tradicional, não teve “papel regenerativo” nenhum,
mas “trata-se, nada menos, que dos efeitos da irrisão queirosiana”, que acaba por dar à
narrativa “as dimensões de uma verdadeira farsa”. O argumento que pretendo
desenvolver neste artigo concorda com a interpretação de Piwnik (2012, 35), segundo a
qual as evocações do passado nacional e as estratégias discursivas de representação
ficcional e histórica contidas neste romance estão cheias de “comicidade”, de “discretas
deslocações que afastam essa história de uma síntese que ofereça todas as garantias de
seriedade”.

https://journals.openedition.org/lerhistoria/11026 2/17
28/06/2023, 11:33 A ficção da história nacional portuguesa em A Ilustre Casa de Ramires

3 Contudo, discordo das conclusões de Piwnik na medida que tendem a considerar a


atitude de Eça face à consciência histórica portuguesa do seu tempo como um elemento
puramente estilístico, um produto da ironia emblemática do seu realismo literário.
Concentrando-se exclusivamente no texto, a erudita francesa não explora nem as
relações extraliterárias nem intertextuais do romance, que poderiam oferecer uma
explicação mais ampla e profunda do seu ponto de vista intempestivamente irónico ou
“irrisório”. Este artigo pretende avançar nessa linha de pesquisa propondo: (1) situar A
Ilustre Casa de Ramires no contexto da avalanche de discursos histórico-nacionalistas
da década de 1890; (2) investigar o que está subjacente à crítica queirosiana ao
nacionalismo expresso pelos referidos discursos, nomeadamente a sua esquematização
convencional do devir histórico português; e (3) expor as principais estratégias poéticas
utilizadas por Eça para satirizar este esquema.

1. Os discursos nacionalistas do
Ultimatum e o caso Eça
4 A reação discursiva das elites letradas portuguesas ao Ultimatum britânico de 11 de
janeiro de 1890 tem sido extensivamente comentada na historiografia especializada. É
hoje bem conhecido, por exemplo, o impulso que a imprensa inteira deu,
independentemente da sua filiação partidária Regeneradora, Republicana e até
Progressista, aos protestos populares de natureza patriótica que foram organizados,
primeiro em Lisboa e mais tarde no Porto e em Coimbra, após a divulgação da posição
do governo de José Luciano de Castro em relação ao memorando enviado por Lord
Salisbury (Teixeira 1987, 705-713). Do mesmo modo, temos abundantes notícias das
revistas literárias que, nos meses e anos que se seguiram ao evento, dedicaram números
especiais cheios de artigos e poemas de ardor patriótico e antibritânico, entre as quais
se destacam Luzitania, Jornal Comemorativo da Revivescência Pátria (Porto) e
Anatema (Coimbra) (Coelho 1996, 89, 95, 122). Não obstante a diversidade de formatos
e, sobretudo, de posições políticas apresentadas por estes discursos – pois enquanto
alguns atribuíram a humilhação ao declínio da monarquia de Bragança, outros
apontaram para o governo Progressista como único responsável –, é possível afirmar
que todos eles tiveram como denominador comum a construção sobre argumentos
nacionalistas moldados por referências explícitas ao percurso histórico português.
5 No que diz respeito à referida característica comum dos discursos do Ultimatum,
deve ser notado que teve precedentes importantes nos anos que antecederam a fase
mais radical do conflito com o Reino Unido. Pelo menos desde o início da década de
1880, no âmbito do Scramble for Africa, múltiplos atores políticos e sociais tinham
sistematicamente utilizado a história para legitimar o projeto de um império português
transafricano. Especialistas na história de Portugal no último terço do século XIX, tais
☝🍪
como Maria Teresa Pinto Coelho (1996, 46), Ângela Guimarães (1984, 48-49), Nuno
Severiano Teixeira (1987, 688-689), Sérgio Campos Matos (2008, 102) e Miguel
Este site utiliza
Bandeira cookies
Jerónimo e 1-3, 15), destacam como atributo específico do chamado
(2015,
dá-lhe controle sobre o que
“Terceiro Império Português”,2 a marca “passadista” subjacente ao argumento
quer ativar
colonialista habitual da “missão civilizadora”. Potências como o Reino Unido, a França,
a Bélgica ou a Alemanha, para justificar a expansão dos seus abundantes recursos
económicos em África, usaram uma retórica marcadamente “presentista” de um
alegado interesse em “civilizar”, ou seja, em “proteger as tribos nativas africanas” e
“promover” o seu “bem-estar moral e material” com os benefícios atuais da “civilização
europeia”. Portugal, por seu lado, legitimou o seu interesse imperial ao revindicar
“direitos históricos” ancorados numa “antiga vocação civilizadora” considerada como
“destino histórico nacional”.
6 Assim, por exemplo, durante as conferências de antiescravatura de Bruxelas (18 de
novembro de 1889 e 2 de julho de 1890), os representantes portugueses, Henrique de
Macedo, Augusto Castilho, Brito Capelo e Batalha Reis, apresentaram-se “armados de
https://journals.openedition.org/lerhistoria/11026 3/17
28/06/2023, 11:33 A ficção da história nacional portuguesa em A Ilustre Casa de Ramires

memórias, documentos e mapas geográficos com os quais teriam de demonstrar a


secular atividade administrativa, científica e humanitária de Portugal em África”
(Jerónimo 2015, 11). Algo semelhante aconteceu com o próprio Barros Gomes, ministro
dos Negócios Estrangeiros do governo de Luciano de Castro, na sua missiva a Londres
em novembro de 1889 em defesa dos direitos portugueses na Maxonalândia (norte do
atual Zimbabwe). Para além de empunhar a cláusula da “ocupação efetiva” acordada
pelas potências europeias na Conferência de Berlim (1885), o célebre ministro invocou
o “glorioso passado português”: recordou o tratado de 1630 com os Monomotapa, os
heróis e mártires portugueses que tinham morrido na região pela fé católica, e mesmo
as ruínas portuguesas e as expedições de Cândido Cardoso da Costa, de quem o
explorador e missionário britânico David Livingstone tinha recebido informações sobre
o rio Chire e o lago Niassa (Coelho 1996, 54).
7 Tendo em conta este alargado recurso à história portuguesa para apoiar o projeto
imperial transafricano, não surpreende que, face à crise do Ultimatum, jornalistas,
poetas, historiadores e políticos de todas as opiniões a empregassem de forma
sistemática. Os jornais oferecem, em primeiro lugar, um exemplo muito claro da
prática. Já em 12 de janeiro de 1890, num artigo intitulado “Infeliz Pátria”, a Gazeta de
Portugal – órgão oficial do Partido Regenerador – utilizava o recurso do contraste
histórico entre um passado glorioso e um presente deplorável para estabelecer a sua
posição de indignação relativamente à incapacidade do governo de se opor aos
“usurpadores” britânicos. Segundo o(s) autor(es) do artigo, com a aceitação indolente
do “Memorando” os Progressistas tinham lançado “a nossa pátria em uma aventura em
que perdemos a única joia que ainda conservamos da nossa herança brilhante, aventura
em que perdemos a honra e vimos para sempre desaparecer o nosso prestígio” (Coelho
1996, 80). Uma estrutura de argumentação semelhante pode ser vista no jornal
republicano Os Debates, também publicado em 12 de janeiro. Neste outro caso, embora
o discurso seja muito mais específico quanto aos momentos do passado em relação aos
quais o presente devia ser contrastado – o reinado da dinastia de Avis, o período das
descobertas e conquistas ultramarinas, e o período do iluminismo pombalino –, o
fundamento argumentativo é idêntico: parte de uma conceção da trajetória histórica
portuguesa, desde um passado de “grandeza” e “valentia” até um presente de completa
“desonra” e “submissão”:

Dizia-se outrora que antes morrer que má sorte. Dantes, a ficar desonrado,
preferia-se morrer. Era no tempo de D. Nuno Álvarez Pereira, de Afonso de
Albuquerque, de D. João de Castro e, mais modernamente, do Marquês de
Pombal. Era no tempo em que nós eramos grandes, fortes, poderosos,
respeitados! Hoje, no tempo destes bandidos que aí poluem todos os sentimentos
de honra, todos os princípios de dignidade, todas as noções de brio, a covardia é
prudência, o servilismo é sensatez, o medo é tino, a infâmia é juízo, e a coragem, e
a valentia, e a dignidade e a honra é loucura! (Coelho 1996, 98)

☝🍪
Outras espécies de discursos de natureza mais doutrinária não foram estranhas à
8

mesma estratégia crítica. Veja-se o caso dos artigos publicados a 16 de janeiro de 1890
na edição especial que o jornal A Província dedicou ao Ultimatum. O dossier intitulado
Este site utiliza cookies e
“Pela Pátria” reuniu trabalhos de colaboradores como Luís de Magalhães, Alberto
dá-lhe controle sobre o que
Sampaio, Queirós
quer ativarVeloso, Oliveira Martins e Jaime Magalhães Lima, os quais, com base
num espírito patriótico inspirado nas ideias expressas por Antero de Quental no seu
artigo “Expiação”, apelavam efusivamente ao “ressurgimento” nacional (Quental 1982,
447-448; Coelho 1996, 89, 95). Entre esses artigos, “O Desagravo”, de Oliveira Martins,
ilustra como poucos o uso político de imagens do passado histórico português, não só
para fixar uma posição perante o conflito que se desenvolvia, mas também para
impulsionar a “regeneração” do país.
9 Nas páginas desse texto, Oliveira Martins (1891c, 55-67) salienta, acima de tudo, “a
vibração produzida [na sociedade portuguesa] pelo ultraje da Inglaterra”. Com base
neste reconhecimento, tenta direcionar o “brio nacional” utilizando um argumento de
natureza histórica: Portugal, cujas forças andavam espalhadas pelos quatro cantos do

https://journals.openedition.org/lerhistoria/11026 4/17
28/06/2023, 11:33 A ficção da história nacional portuguesa em A Ilustre Casa de Ramires

mundo – e sobretudo as forças da “marinha, que na nossa história tem um papel


extremo e neste episódio um título mais para a nossa admiração” –, tinha que enfrentar
aquela Albião “cobarde”, “brutal” e “felina”, não no campo de batalha, mas assumindo
“o bom senso, lúcido e firme a um tempo”, historicamente representado pelo “corajoso
e nobre dragão de Aviz”. Esta referência ao passado da segunda dinastia tornar-se-ia, de
facto, a principal arma do célebre historiador para censurar os seus contemporâneos
pela sua falta de raciocínio no contexto do conflito estrangeiro. Nas obras que publicou
nos meses e anos seguintes, particularmente em Os Filhos de D. João I (1891) e na Vida
de Nun’Álvarez (1893), embora utilizando mecanismos mais subtis, típicos de um
discurso historiográfico com aspirações de cientificidade, sugeriria também que a
regeneração de Portugal exigia a ressurreição simbólica dos valores encarnados pelos
primeiros reis da Casa de Avis: patriotismo, honra, bravura, genialidade, cautela
(Martins 1891b, 20-21, 60-61; Coelho 1996, 86).
10 No entanto, talvez as amostras mais sofisticadas deste uso político do passado
português se encontrem na esfera ficcional, na chamada “literatura do Ultimatum”.
Uma das primeiras manifestações é a peça A Torpeza, de António de Campos Júnior,
apresentada no Teatro Alegria no dia 7 de março de 1890. No âmago do enredo do
drama, as alegorias de Inglaterra e Portugal são levadas ao tribunal das nações e da
história. Nesse quadro, Portugal, personificado por um “velho paladino que se abordoa
ao montante heroico de Aljubarrota e afivela sobre as roupagens da sua pobreza o arnês
impoluto, em que se refletiam as auroras da Renascença, durante a marcha triunfal das
seis mil léguas, das escarpas de Sagres às mais remotas ínsulas de Oceânia”, é
interpelado pela história, que vem em sua defesa armada com o poderoso indício do
passado: “Velho! Levanta essa cabeça branca e não chores! Faz-te o mundo justiça.
Ninguém te julga um covarde. Foste sozinho o paladino da civilização, fizeste bussola a
estrela polar da renascença; a tua espada pôde mais que as multidões das cruzadas…
Ergue essa cabeça branca. Ainda tens a tua alma antiga, herói” (Campos Júnior 1890,
13-14, 40-41). Mais uma vez, embora aqui vestido com uma linguagem poética, aparece
o mecanismo simbólico de contraste passado-presente. Como pode ser observado, a
“jovem” nação portuguesa da época dos reis de Avis e da Renascença é oposta à “velha”
e “decadente” da Modernidade, da qual se espera uma reação digna daquele outro
“heroico” passado.
11 Encontramos algo muito semelhante no campo da poesia propriamente dita, onde os
exemplos abundam. Aí estão, para mencionar apenas alguns títulos relevantes, A
Desafronta (1890), de Jaime Victor; Finis Patriae (1890), de Guerra Junqueiro; e
Troça à Inglaterra (1890), de Gomes Leal. Todavia, a mais notável e complexa
contribuição lírica do Ultimatum é sem dúvida Pátria (1896), longo poema de Guerra
Junqueiro. Trata-se de uma obra trabalhada durante seis anos que, talvez por causa
disso, transcendeu a esfera da literatura puramente panfletária. Nos seus versos não
encontramos, como nos casos até agora citados, imagens dispersas e vagas do passado
português, orientadas especificamente para fazer a crítica da situação face ao Reino
☝🍪
Unido e para impulsionar a “regeneração nacional”. Pelo contrário, embora o poema
Pátria prossiga objetivos políticos muito claros – principalmente, o de censurar a
Este site utiliza cookies e
posição dos governos dos partidos monárquicos perante o governo de sua majestade
dá-lhe controle sobre o que
britânica, defendendo a solução republicana para o país –, testemunhamos nas suas
quer ativar
páginas uma atualização completa e coerente da versão da trajetória histórica nacional
de Portugal mais conceituada naquela altura (Coelho 1996, 163-164):

Que é da grandeza heroica do passado,

Que é das torres d’outrora olhando o mar?!...

Blocos no chão, vestidos d’heras,

Ameias, gárgulas, esferas,

Poeiras de sonhos, de quimeras,

https://journals.openedition.org/lerhistoria/11026 5/17
28/06/2023, 11:33 A ficção da história nacional portuguesa em A Ilustre Casa de Ramires
Luto, nudez, desolação,

Eis os restos de tantos extermínios,

De tanta dor e tanta maldição!...

Já nem cabe sequer em meus domínios

A magra sombra vã do meu bordão!

Régios palácios, fortalezas,

Mosteiros, campas, catedrais,

Orgulhosos padrões de mil empresas,

Conspurcados de lama e de impurezas,

Entre montes de entulho e silveiras!

Meus impérios distantes divididos,

Minha terra natal inculta e só! (Junqueiro 1896, 176-177)

12 O excerto aqui citado é retirado da famosa cena XXI de Pátria, aquela em que a
personagem principal do poema, o Doido-Portugal, reconhece finalmente a sua “alma”,
ou seja, o espírito de Nun’Álvarez Pereira identificado “com um passado luminoso qual
Idade de Ouro” que regressa para lamentar a situação atual e redimir Portugal (Coelho
1996, 175). Antes do clímax temos, no entanto, um conjunto de cenas que gradualmente
referem o curso inteiro da história portuguesa. Na cena VIII, por exemplo, Astrólogus,
cronista-mor d’el-rei, narra a história de “mil anos” do Doido-Portugal: o seu “heroico”
e “glorioso” começo como povo montanhês que, talvez devido ao seu “vigor” e “alento”,
um dia mau enlouqueceu e foi para o mar; enlouqueceu, quase morreu, e num último
lance heroico, foi para o mar novamente e para a batalha, só para ser mantido em
cativeiro durante quase seis anos, e lentamente desmaiar enquanto é envenenado pelos
seus parentes (Junqueiro 1896, 58-64). Mais tarde, nas famosas cenas XIII a XXI, a
narração histórica continua, agora a partir da dramatização das sucessivas aparições
dos reis e rainhas da dinastia Bragança – de D. João IV a D. Luís –, cujos atos
decadentes são comentados pelo Doido, que consegue então narrar a sua vida e
reconhecer, no aparecimento do último “fantasma” – o do corajoso condestável –, a sua
própria “alma” (Junqueiro 1896, 111-172).
13 O esquema da história portuguesa, poética e extensamente elaborado por Guerra
Junqueiro na sua Pátria, é o que de facto está subjacente a todos os outros discursos
jornalísticos, doutrinários e literários até agora citados. A ideia é clara: a vida de
Portugal estende-se desde um passado medieval em que o seu carácter histórico –
heroico, nobre, corajoso, aventureiro – é conformado e desenvolvido até uma
☝🍪
modernidade que, a começar pelo período das descobertas e conquistas de além-mar, e
chegando ao final do século XIX, leva à traição progressiva da sua natureza original. A
Este site utiliza
proposta cookies
de alcançar e
a regeneração nacional é mesmo idêntica à daqueles outros,
dá-lhe controle sobre o que
embora neste caso com um evidente preconceito republicano: nos parágrafos finais de
Pátria,quer ativar
a partir da imagem do velho e da criancinha que encontram a espada de
Nun’Álvarez junto ao Doido-Portugal crucificado pelos corsários ingleses, Guerra
Junqueiro (1896, 186-187) reclama simbolicamente o ressurgimento futuro do passado
português – e em particular, de um Portugal camponês como aquele que, imagina, foi o
do período medieval.
14 Tal esquematização da história portuguesa, bem como a designação dos seus
momentos e personagens-chave, não foi, afinal, uma contribuição original do
pensamento de Guerra Junqueiro, nem de qualquer um dos seus colegas
contemporâneos que escreveram artigos, poemas, dramas ou textos doutrinários após o
Ultimatum. Aquela foi antes uma reinterpretação da conceção romântico-historicista
da história de Portugal desenhada havia quase sessenta anos por Alexandre Herculano

https://journals.openedition.org/lerhistoria/11026 6/17
28/06/2023, 11:33 A ficção da história nacional portuguesa em A Ilustre Casa de Ramires

(Catroga 1996, 40), e que, no final do século XIX se tinha tornado em certa medida
convencional graças à sua reavaliação, não sem modificações consideráveis, nas obras
históricas de Antero de Quental e Oliveira Martins (Catroga 1982, 43; Matos 2008,
101). Poder-se-ia até dizer – recuperando as formulações teóricas de Arthur Danto
(2002, 292-296) e Frank Ankersmit (2004, 210-234) – que muitos dos escritores e
políticos da última década do século XIX pensaram e agiram a partir do “conceito” ou
“representação” da realidade histórica formulado por Herculano nas suas Cartas sobre
a História de Portugal (1842), e desenvolvido na sua História de Portugal (1846-1853)
e na sua História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal (1853-
1857):3

Habituados pela educação, e até por um estudo superficial e irrefletido, a


considerar o século decimo sexto como a verdadeira era da grandeza nacional,
parece-nos que o mais rico tesouro das nossas recordações históricas está na
pintura dos reinados brilhantes de D. Manuel e D. João III […] no espetáculo dos
nossos descobrimentos e conquistas do Oriente e da América, do
engrandecimento do nosso comércio, e do respeito e temor, que por isso nos
cantava o resto do mundo […]. Mas, se a história não é um passatempo vão; se,
como toda a ciência humana, deve ter uma causa final objetiva, ao contrário da
arte que por si mesma é causa, meio, e fim da sua existência […] não é por certo
naquela brilhante época que havemos de encontrar esses importantes resultados
do estudo da história; porque a virilidade moral da nação portuguesa completou-
se nos fins do seculo XV, e a sua velhice, a sua decadência como corpo social, devia
começar imediatamente. (Herculano 1886, 133)

15 É verdade que, mais do que apropriarem-se da conceção de Herculano, os membros


da Geração de 70 ainda ativos no período pós-Ultimatum contrariaram muitos dos seus
princípios, especialmente os do campo do pensamento político – v. g., a questão da
liberdade individual, a democracia, e a monarquia; e que figuras como Antero e Oliveira
Martins criticaram fortemente a relutância do “solitário de Vale de Lobos” em pensar a
história a partir de uma metodologia sintético-apriorística destinada a descobrir a
finalidade imanente e transubjetiva do processo histórico geral da humanidade
(Catroga 1982, 10-33). No entanto, todas estas divergências políticas e filosóficas não
impediram aqueles intelectuais de conceberem a história nacional com base no
esquema desenhado no fragmento das Cartas acima citado. Mesmo partindo de
doutrinas políticas opostas, como o socialismo e o republicanismo, muitos deles tinham
na altura internalizada a ideia herculaniana de que a “época dourada”, “viril”, da
história nacional tinha sido o período medieval (incluindo, no entanto, as aventuras
ultramarinas), e que o estabelecimento da monarquia absoluta não tinha feito senão
corromper o carácter nacional originalmente “popular” e “constitucional” (Saraiva 1971,
217).4
16 A prova mais óbvia deste fenómeno da consciência histórica é, sem dúvida, fornecida
pelo poema Pátria referido acima. Por outro lado, pode também afirmar-se que alguns

☝🍪
dos principais vultos intelectuais daquele período foram ainda mais longe, assumindo,
face ao conflito com a Grã-Bretanha, o corolário prático da interpretação herculaniana
da história
Este nacional:
site utiliza queredizer, o projeto de revitalizar a sociedade portuguesa a partir
cookies
do recurso
dá-lhe controleao sobre
passado medieval. Ironicamente, a despeito das críticas que tinham
o que
lançadoquer
anosativar
antes contra os poetas ultrarromânticos herculanianos, escritores como
Guerra Junqueiro e Oliveira Martins, após a lição do Mestre, fizeram do período da
dinastia Avis, e especificamente da figura de Nuno Álvares Pereira, modelo histórico
capaz de conduzir à ressurreição nacional – “Exemplo superior da conceção cristã da
vida”, diz Oliveira Martins em A Vida de Nun’Álvarez, “ e por isso venerado como
santo, Nuno Álvarez é porventura o tipo culminante da energia própria desta nossa raça
peninsular ibérica, idealista na alma, e afirmativamente heroica” (Martins 1984, 314).
17 Todavia, no contexto do Ultimatum em que ganhou força a ideia de que só a
recuperação da “índole portuguesa” do passado medieval poderia salvar Portugal da sua
queda trágica de três séculos, houve alguns intelectuais que se distanciaram dessa
perspetiva e apresentaram uma posição crítica face à esquematização herculaniana da

https://journals.openedition.org/lerhistoria/11026 7/17
28/06/2023, 11:33 A ficção da história nacional portuguesa em A Ilustre Casa de Ramires

história portuguesa e ao nacionalismo exacerbado. Entre eles o vulto mais conspícuo foi
Eça de Queirós.5 O conflito de 1890 com a Grã-Bretanha não foi, todavia, o primeiro
momento em que Eça deixou claras as suas reticências quanto ao uso político da
história nacional (Coelho 1996, 196-197). Já desde As Farpas (1871) tinha criticado
fortemente a forma como os seus contemporâneos, políticos e intelectuais, empregavam
o passado renascentista para defender o projeto colonial em África. À invocação dos
feitos heroicos das descobertas e conquistas de além-mar como justificação e defesa do
império, Eça replicava: – “Sim, sim! Bem sabemos! A honra nacional, Afonso
Henriques, Vasco da Gama, etc. Mas somos pobres, meus senhores! E que se diria de
um fidalgo (quando os havia), que deixasse em redor dele seus filhos na fome e na
imundície – para não vender as salvas de prata que foram dos seus avós?” (Queirós s.d.,
108).
18 Mas talvez um dos momentos mais interessantes da precoce censura de Eça ao uso
tendencioso da memória histórica se encontre no quadro da sua famosa e longa
polémica com Pinheiro Chagas. Falo sobretudo da segunda fase da contenda, aquela
que se segue ao artigo “O Brasil e Portugal” (31-10-1880) publicado por Eça na Gazeta
de Notícias do Rio de Janeiro (Queirós s.d., 592-599), ao qual Pinheiro Chagas
respondeu intemperadamente no seu artigo de 28 de novembro de 1880 em O Atlântico
(Matos 1998, 245-249; Reis 1999, 108-109; Mónica 2001, 720). Na série de réplicas que
o primeiro fez ao segundo também nas páginas de O Atlântico (29-12-1880 e 06-02-
1881), encontramos uma condenação mordaz dos “patriotacas, patriotinheiros,
patriotadores, ou patriotarrecas” como Pinheiro Chagas, para quem, diz Eça, “a pátria
não é a multidão que em torno dele palpita na luta da vida moderna – mas a outra
pátria, a que há trezentos anos embarcou para a Índia ao repicar dos sinos, entre as
bênçãos dos frades, a ir arrasar aldeias de mouros e traficar na pimenta” (Queirós 1983,
vol. 2, 51). Nesses mesmos artigos, Eça também censura a indolência dos referidos
“patriotarrecas” perante os males da sociedade portuguesa do presente, dada a sua
incapacidade de fornecer qualquer outra solução a não ser cantar os louvores do
passado glorioso:

Esse, a sua maneira de amar a pátria é tomar a lira e dar-lhe lânguidas serenatas
[…] Esse, cousa pavorosa! não ama a pátria, namora-a: não lhe dá obras, impinge-
lhe odes. Esse, quando a pátria se aproxima dele, com as mãos vazias, pedindo-lhe
que coloque nelas o instrumento do seu renascimento – põe lá (ironia magana!) o
quê? Os louros de Ceuta! Quando o povo lhe pede mais pão e mais justiça,
responde-lhe, torcendo o bigode: – Deixa lá. Tu tomaste Cochim. (Queirós 1983,
vol. 2, 51)

19 Já na conjuntura do Ultimatum, vivendo em Paris desde 1888, Eça reage ao conflito e


às explosões nacionalistas com uma atitude crítica – embora menos beligerante –
semelhante à que encontramos nos seus artigos dos anos 1870 e 1880. No seu famoso
texto doutrinário “O Ultimato” (fevereiro de 1890), ainda que reconheça que o

☝🍪
memorando de Lord Salsbury teve a virtude de evidenciar “o respirar, o mover, o
palpitar de um corpo que muitos julgavam morto, gelado, fácil de pisar e talvez de
retalhar”,
Este adverte,
site utiliza no entanto,
cookies e sobre os perigos do nacionalismo exacerbado e inútil em
que as
dá-lhe elites e as
controle classes
sobre populares estavam imersas:
o que
quer ativar
Esse movimento se começa a perder em direções desviadas, transversais, inúteis –
à maneira de uma torrente que, em lugar de correr direita ao moinho para o fazer
trabalhar, se espalha pelos lados em riachos esguios e lentos que bem depressa a
areia suga! (Queirós 1965, 240-241)

20 Na mesma veia, a sua carta a Oliveira Martins de 28 de janeiro de 1890, talvez devido
à sua natureza íntima, revela um Eça muito mais agressivo e em discordância com a
verbosidade discursiva dos seus contemporâneos:

Não estou certo do que deva pensar desse renascimento do Patriotismo, esse
gritos, esses crepes sobre a face de Camões, esses apelos às Academias do mundo,
esses renunciamentos heroicos das casimiras e do ferro forjado, essas joias

https://journals.openedition.org/lerhistoria/11026 8/17
28/06/2023, 11:33 A ficção da história nacional portuguesa em A Ilustre Casa de Ramires
oferecidas à Pátria pelas senhoras, essas pateadas aos Burnays e Mózers, esse
ressurgir de uma ideia coletiva, toda essa barafunda sentimental e verbosa, em
que o estudante do liceu e o negociante de retalho me parecem tomar de repente o
comando do velho Galeão Português. (Queirós 1983, vol. 2, 34)

21 Embora seja possível observar nestas linhas um intelectual que diz “duvidar” da
contribuição oferecida ao problema com o Reino Unido pelas manifestações de
patriotismo dos seus conacionais – manifestações que achava tão inocentes que, sugere,
o país dava a impressão de ser conduzido por um “estudante do liceu” ou um
“negociante de retalho” –, a verdade é que o tom satírico do seu discurso insinua algo
mais do que uma antipatia ingénua pelo “renascimento do Patriotismo”. Acontece que,
talvez por ter vivido desde Paris aquele episódio que feriu “a consciência pública
nacional de um país subitamente acordado para as suas fragilidades” (Reis 2014, 15),
ainda que talvez nisto tivesse mais peso a distância espiritual que caracterizava o seu
pensamento (Piwnik 2012, 43), Eça parece começar a desligar-se ou a localizar-se fora
do conceito de realidade histórica que era convencional em Portugal no final do século
XIX – ou seja, do esquema e das implicações práticas da conceção herculaniana da
história nacional partilhada pelos seus amigos e colegas Antero, Oliveira Martins e
Guerra Junqueiro. No entanto, foi num texto posterior – A Ilustre Casa de Ramires
(1900)6 – que o romancista expressou, de uma forma mas ampla e acabada, a partir de
recursos simbólicos ou metafóricos, a sua distância em relação ao nacionalismo
português contemporâneo e à ideia da história nacional nele implícita. No centro desse
intempestivo distanciamento crítico, Eça destacou a natureza ficcional das
esquematizações ou metanarrações da história nacional.

2. A Ilustre Casa de Ramires: crítica aos


metarrelatos da história nacional
portuguesa
22 Seria um erro de juízo supor que o interesse de Eça na história portuguesa nasceu da
sua antipatia pelos discursos nacionalistas do Ultimatum. Como Carlos Reis (1999, 109;
2014, 14) corretamente observou, já em obras como O Crime do Padre Amaro (terceira
versão, 1880) e Os Maias (1888) é possível detetar uma inscrição explícita da história
na narrativa ficcional queirosiana, “não como cenário estático, mas como elemento
ideologicamente atuante”. Existe, no entanto, uma subtil, mas marcante, diferença
entre a conceção da história imanente na configuração destas obras e a que Eça
evidenciou em A Ilustre Casa de Ramires – a qual está muito mais próxima da que
encontramos na sua mais célebre ficção histórica, A Relíquia (1887). Em O Crime do
Padre Amaro e em Os Maias, por exemplo, vemos um romancista que ainda confia na
☝🍪
capacidade da história – como realidade passada e como escrita – para fazer a crítica da
sociedade portuguesa no último terço do século XIX – tanto que o conhecido final da
Este site versão
terceira utiliza cookies e
de O Crime e a analepse de abertura de Os Maias parecem ser
dá-lhe controle sobre o que
reproduções simbólicas da ideia decadentista da história recente de Portugal
quer ativar
esquematizada por Oliveira Martins no seu Portugal Contemporâneo (Reis 1999, 109-
111; 2014, 14). Por outro lado, em A Ilustre Casa encontramos, não só uma atualização,
mas uma radicalização da ousada e polémica afirmação apontada na carta de 15 de
junho de 1885 ao conde de Ficalho, redigida por Eça no contexto da escrita
precisamente de A Relíquia (Cunha 1997, 125-126):

À sua carta recebida em Bristol, respondo de Londres, onde vim indagar sobre
pedras, nomes de ruas, mobílias e toilettes para a minha Jerusalém. Digo minha –
e não de Jesus, como pedia a devoção, ou de Tibério, como pedia a história –
porque ela realmente me pertence, sendo, apesar de todos os estudos, obra da
minha imaginação. Debalde, amigo, se consultam in-fólios, mármores de museus,

https://journals.openedition.org/lerhistoria/11026 9/17
28/06/2023, 11:33 A ficção da história nacional portuguesa em A Ilustre Casa de Ramires
estampas, e coisas em línguas mortas – a História será sempre uma grande
Fantasia. (Queirós 2008, I, 370)

23 A Ilustre Casa de Ramires não é apenas, como é dito frequentemente, uma sátira do
romance histórico tradicional e ultrarromântico – uma ridiculização da linguagem
arcaica, das reconstruções de espaços, trajes e atitudes medievais, e da inclusão de
enredos amorosos entre cavaleiros e donzelas, característicos de obras tais como
Eurico, o Presbítero, de Herculano (1844); Ódio Velho Não Cansa (1848), de Rebelo da
Silva; ou Novelas Históricas (1869), de Pinheiro Chagas (Pimpão 1972, 561; Earle 1988,
515-519; Marinho 1999, 106; Monteiro 2014, 34). É muito mais do que isso. É
sobretudo uma crítica ao fundamento da consciência romântico-historicista da história
portuguesa, ou seja, à filosofia ou metanarrativa da história nacional subjacente não só
ao romance histórico e à poesia, mas também à historiografia, aos discursos políticos e
aos artigos jornalísticos do período pós-Ultimatum. Todavia, o aspeto mais interessante
do questionamento desenvolvido por Eça neste romance é, sem dúvida, a sua
apresentação: no mais puro estilo irónico (Sacramento 1945, 258), ele configurou-o
como uma ficção que acabou por revelar a própria ficcionalidade – a “grande Fantasia”,
como dizia na carta ao conde de Ficalho – das esquematizações convencionais do devir
histórico português.
24 A fim de compreender esta afirmação, que é, de facto, o principal argumento deste
artigo, é necessário partir de uma breve descrição das características formais que
conferem singularidade a A Ilustre Casa de Ramires. Em primeiro lugar, convém
salientar que se trata de um “romance metadiegético”, ou seja, de um romance que,
como parte da sua trama, envolve a configuração de um outro romance cujo argumento
é, por sua vez, baseado numa estrutura de feitos desenhados por outras narrações (Reis
e Lopes 1998; Pageaux 1990; Monteiro 2014, 34; Reis 2014, 19). Especificamente, o que
encontramos nas páginas do livro é o relato de alguns meses da vida – junho-dezembro
– de Gonçalo Mendes Ramires, fidalgo da velha aldeia de Santa Ireneia, em que se
narra como este último, na sua ânsia de entrar na vida política portuguesa, participa
nas eleições para deputado do círculo de Vila Clara (possivelmente uma localidade do
distrito de Viseu), e procura ganhar prestígio social escrevendo um romance histórico,
A Torre de D. Ramires, estimulado pelo seu antigo colega coimbrão, José Lúcio
Castanheiro, editor de uns Anais de Literatura e de História. É importante notar que
uma boa parte da narrativa do romance principal é dedicada ao processo de escrita do
romance histórico acima mencionado, e que existem também grandes segmentos dos
capítulos do livro que fazem referência direta à narrativa que vai configurando Gonçalo.
Esta última, por sua vez, é um relato dos feitos guerreiros do antepassado medieval do
próprio “Fidalgo da Torre”, Tructesindo Ramires, alferes de D. Sancho I, e que Gonçalo
toma a liberdade de “recuperar” – quase literalmente – de um poema escrito pelo seu
tio Duarte, O Castelo de Santa Ireneia, e de “completá-lo” a partir do recurso à História
de Portugal de Herculano (Queirós 2014, 52, 83, 91).
25
☝🍪
Como se pode ver, A Ilustre Casa de Ramires tem uma estrutura narrativa bastante
complexa, que alguns críticos definem como “figuração poliédrica”. A técnica da
“metadiégesis”
Este site utilizaou de mise-en-abyme
cookies e – a narração dentro de outra ou outras narrações
– parece,
dá-lhe desde
controle o início,
sobre o queconferir ao romance um “rendimento irónico”, dada a sua
queraoativar
referência próprio processo de escrita. Esta ironia é confirmada pela prioridade que
Eça dá às modalidades subjetivistas de enunciação: refiro-me ao pouco peso concedido
à narração heterodiegética – à narração “objetiva” enunciada por um narrador exterior
à ação –, que é apenas usada para dar a informação necessária para desencadear ou
iniciar a ação ficcional, e ao privilégio que outorga à narração de acordo com o ponto de
vista das personagens – principalmente ao que Gonçalo “vê, faz, diz, pensa e até sonha”
(Monteiro 2014, 24).
26 Com estas considerações formais em mente, é possível observar, desde as primeiras
páginas do romance, a crítica de Eça ao esquema da história portuguesa partilhado
pelos seus contemporâneos. Refiro-me à famosa analepse do capítulo I que se segue à
cena introdutória em que Gonçalo, sentado na livraria da sua casa senhorial em Santa

https://journals.openedition.org/lerhistoria/11026 10/17
28/06/2023, 11:33 A ficção da história nacional portuguesa em A Ilustre Casa de Ramires

Ireneia, em frente à mesa em que os “rijos volumes da História Genealógica, todo o


Vocabulário de Bluteau, tomos soltos do Panorama, e ao canto, em pilha, as obras de
Walter Scott, sustentando um copo cheio de cravos amarelos”, pensa no romance que
está a escrever, A Torre de D. Ramires, isto enquanto olha para a “inspiradora da sua
Novela – a Torre, a antiquíssima Torre […] robusta sobrevivência do Paço acastelado,
da falada Honra de Santa Ireneia, solar dos Mendes Ramires desde os meados do século
X” (Queirós 2014, 39-40):

Gonçalo Mendes Ramires (como confessava esse severo genealogista, o morgado


de Cidadelhe) era certamente o mais genuíno e antigo fidalgo de Portugal. Raras
famílias, mesmo coevas, poderiam traçar a sua ascendência, por linha varonil e
sempre pura, até aos vagos senhores que entre Douro e Minho mantinham castelo
e terra murada, quando os barões francos desceram, com pendão e caldeira, na
hoste do Borguinhão […]. Mais antigo na Espanha que o Condado Portucalense,
rijamente como ele, crescera e se afamara o Solar de Santa Ireneia – resistente
como ele às fortunas e aos tempos. E depois, em cada lance forte da História de
Portugal, sempre um Mendes Ramires avultou grandiosamente pelo heroísmo,
pela lealdade, pelos nobres espíritos. (Queirós 2014, 40)

27 A história familiar dos Ramires e dos seus feitos ligados à história de Portugal,
referida pelo narrador do romance depois deste eloquente preâmbulo, vai desde
Lourenço Ramires, “colaço de Afonso Henriques” e participante na batalha de Ourique,
ao próprio Gonçalo, passando por personagens como Diogo Ramires, lutador em
Aljubarrota; Paulo Ramires, “pajem do guião” que desaparece em Alcácer Quibir
juntamente com D. Sebastião; ou Nuno Ramires, cortesão de D. João V., que esbanja a
fortuna da casa com “sumptuosas festas de Igreja”, entre outros tantos Ramires
(Queirós 2014, 41-42). Este relato, aparentemente recuperado da fictícia História
Genealógica do morgado de Cidadelhe, e que dá a impressão de seguir à letra a
interpretação romântico-historicista da história de Portugal esquematizada por
Herculano – estendendo-se desde o passado medieval supostamente cavalheiresco e
glorioso dos Ramires-Portugal, até aos séculos mais recentes em que, “como a nação,
degenera a nobre raça” (Queirós 2014, 42) –, não pode ser lido sem reconhecer a sua
tonalidade irónica (Piwnik 2012, 35).
28 Vários exemplos podem ser apontados. De Lourenço Ramires, chamado “o Cortador”
– talvez antecipando, com este cognome, a observação mordaz que mais tarde no
romance, mas na voz de Gonçalo, é feita sobre o provável “avô carniceiro” de qualquer
fidalgo (Queirós 2014, 238) –, Eça diz que durante a batalha de Ourique “também
avista Jesus Cristo sobre finas nuvens de ouro, pregado numa cruz de dez côvados”. De
Diego Ramires, “o Trovador”, assinala que, através da sua espada, o pendão real de
Castela cai em Aljubarrota – aquele pendão no qual, ao fim da batalha, o seu irmão de
armas, D. Antão de Almada, “se embrulha para o levar, dançando e cantando, ao Mestre
de Avis”. No auge da época em que “Portugal se faz aos mares”, refere sobre o capitão
do Golfo Pérsico, Baltasar Ramires, que, embainhado na sua “pesada armadura”,
☝🍪
afunda-se “hirto” e em silêncio durante o naufrágio do Santa Bárbara. Do período
bragantino, conta como Inácio Ramires, que acompanha D. João como “reposteiro
Este sitee utiliza
maior” cookies
faz fortuna e negreiro, perde tudo para um velho frade capuchinho e
como
dá-lhe controle sobre o que
morre no seu solar de uma “cornada dum boi” (Queirós 2014, 40-42). Ao contrário dos
quer ativar
seus predecessores historicistas, o narrador desta analepse desenvolve, de facto, uma
paródia subtil que remove o ar de seriedade, seja este épico ou trágico, dos episódios
mais relevantes do referido esquema histórico, dando-lhes em vez disso uma tonalidade
satírica.
29 Contudo, a analepse do capítulo de abertura de A Ilustre Casa de Ramires não é o
único trecho onde encontramos a apreciação satírica de Eça sobre a história
portuguesa. Existem outras secções em que ele ironiza principalmente em relação
àquele período medieval que, como já vimos, não só os ultrarromânticos, mas também
os seus colegas da Geração de 70, concebiam como a quintessência do heroísmo
português, capaz de fazer sair o país do seu declínio secular. É verdade que aquele
passado é constantemente lembrado, sobretudo pela voz e o pensamento da
https://journals.openedition.org/lerhistoria/11026 11/17
28/06/2023, 11:33 A ficção da história nacional portuguesa em A Ilustre Casa de Ramires

personagem de Gonçalo para se encorajar, tanto na sua aventura política e na sua


carreira literária, como nas suas relações com os aldeões de Santa Ireneia, usando-o
como uma espécie de herança que inundava de heroísmo a sua pessoa – “Mas sentia a
grandeza e o préstimo histórico desse arrojo que outrora impelia os seus a arrasar
solares rivais, a escalar vilas mouriscas […] dentro do espírito e das expressões do
século era pois um bom Ramires – um Ramires de nobres energias, não façanhudas,
mas intelectuais, como competia numa idade de intelectual descanso” (Queirós 2014,
153-154). No entanto, é preciso reconhecer que o medievo é posto também em causa
pelo próprio “fidalgo” (Cunha 1997, 123). Talvez um dos momentos mais explícitos
desta ambiguidade seja aquele em que, depois de ter concluído a sua Torre de D.
Ramires, através de um discurso interior narrativizado, testemunhamos a admiração,
mas igualmente as dúvidas e o desgosto, que ele vem a sentir pela história do Portugal
medieval, especialmente depois de ter trabalhado na cena final do romance, na morte
do Bastardo de Baião – episódio aparentemente histórico que tinha recuperado do
poemeto do seu tio Duarte e da História de Portugal de Herculano:

Mas agora, abandonada a banca onde tanto labutara, não sentia o contentamento
esperado. Até esse suplício do Bastardo lhe deixara uma aversão por aquele
remoto mundo afonsino, tão bestial, tão desumano! Se ao menos o consolasse a
certeza de que reconstituíra, com luminosa verdade, o ser moral desses avós
bravios… Mas quê! Bem receava que sob desconsertadas armaduras, de pouca
exatidão arqueológica, apenas se esfumassem incertas almas de nenhuma
realidade histórica… Até duvidava que sanguessugas recobrissem, trepando dum
charco, o corpo dum homem, e o sugassem das coxas às barbas, enquanto uma
hoste mastiga a ração!... Enfim, o Castanheiro louvara os primeiros capítulos. A
multidão ama, nas Novelas, os grandes furores, o sangue pingado: e em breve os
Anais espalhariam por todo o Portugal, a fama daquela Casa ilustre, que armara
mesnadas, arrasara castelos, saqueara comarcas por orgulho e pendão, e afrontara
arrogantemente os Reis na cúria e nos campos de lide. (Queirós 2014, 341-342)

30 Como este extrato mostra, por um lado, Gonçalo não só considera o passado afonsino
“bestial” e “desumano”, mas até duvida da sua realidade, isto é, que a morte do
Bastardo tenha ocorrido como o seu tio e Herculano tinham registado; por outro lado,
ele é notoriamente orgulhoso dos seus heroicos antepassados que enfrentaram
“arrogantemente os Reis na cúria e nos campos de lide”. Eça faz, pois, coincidir numa
mesma mente, duas posições em relação ao passado medieval – desprezo e exaltação –,
dando assim lugar à perceção de uma conceção ambígua ou irónica da história. Mas o
passado medieval não é o único período da história portuguesa sobre o qual vemos Eça
ensaiar a representação de pontos de vista ou interpretações contraditórias que
eliminam as pretensões autoritárias dos discursos históricos unívocos e ideológicos
(Kellner 1989, 117). Outro exemplo desta “multivocalidade” está numa das cenas finais
de A Ilustre Casa, aquela em que Titó, Gracinha, Videirinha e o administrador João
Gouveia, por ocasião do regresso esperado de Gonçalo da sua aventura na Zambézia,

☝🍪
discutem a questão do império português em África. Assim, enquanto pela voz de
Gracinha contemplamos uma verdadeira atualização dos elogios históricos
convencionais
Este site utilizadas explorações
cookies e portuguesas de além-mar do século XVI – “O quê!
vender
dá-lhe o que tanto
controle custou
sobre a ganhar, com tantos trabalhos no mar, tanta perda de vida e
o que
fazenda” –, através
quer ativar da do administrador João Gouveia participamos numa completa
ridicularização daquelas mesmas empresas – “Quais trabalhos, minha senhora? Era
desembarcar ali na areia, plantar umas cruzes de pau, atirar uns safanões aos pretos…
Essas glórias de África são balelas. Está claro, V. Ex.ª fala como fidalga, neta de
fidalgos. Mas eu como economista. E digo mais…” (Queirós 2014, 370).
31 Com base nas estratégias ficcionais de índole irónica analisadas até este momento o
esquema convencional da história portuguesa é relativizado, revelando assim a sua
ficcionalidade, ou seja, a sua natureza como uma perspetiva entre outras possíveis. Em
resumo, as ditas estratégias são: (1) a metadiégese que permite observar os mecanismos
de elaboração tortuosa, e até plagiária, de um romance histórico; (2) a analepse
paródica dos episódios da história de Portugal em que os Ramires participaram; e (3) a

https://journals.openedition.org/lerhistoria/11026 12/17
28/06/2023, 11:33 A ficção da história nacional portuguesa em A Ilustre Casa de Ramires

avaliação ambígua que, na voz de diferentes personagens, é feita do passado medieval e


renascentista português. A estas é possível acrescentar a comparação final que, através
da consciência lúcida deste romance, a do administrador Gouveia, é elaborada entre
Gonçalo e Portugal, caracterizando-os, literalmente, como autênticos Doidos (Queirós
2014, 375), e não um falso Doido como aquele outro do poema de Guerra Junqueiro.
Tendo em conta os elementos acima aludidos, poder-se-ia mesmo ir mais longe e
afirmar que, com base na sua relativização, Eça foi o destruidor do mito ou ficção da
história nacional que procurou enraizar e legitimar o estado-nação. Refiro-me ao mito
romântico-historicista segundo o qual, desde a Idade Média, Portugal tinha uma “alma
nacional” diferenciada, caracterizada pela ausência de despotismo, pelo seu
parlamentarismo original, pela unidade da coroa e do povo contra os sectores
privilegiados, pelo seu sebastianismo, e com a missão de exercer uma vocação
hegemónica na Península e além-mar, isto apesar do seu declínio dos três séculos
absolutistas, parcialmente diminuído com o estabelecimento da monarquia liberal
(Matos 2008, 95-97).
32 Mas será que Eça realmente pôs fim a todas as ficcionalizações ou esquemas da
história nacional portuguesa do seu tempo? Talvez a resposta mais conveniente a essa
pergunta seja que ele próprio empreendeu uma nova esquematização. Passo a explicar.
Enquanto Herculano, Antero, Oliveira Martins e Guerra Junqueiro tinham configurado
a história de Portugal em termos de um “romance”, entendido no seu sentido
arquetípico como a narração do triunfo do herói sobre as forças das trevas – pois por
detrás das suas críticas à situação presente do seu país, e das referências à trágica queda
do herói, esteve sempre a esperança sebastianista de que Portugal triunfaria sobre si
próprio e sobre os seus inimigos e seria redimido –, em A Ilustre Casa de Ramires
temos outro tipo de enredo. O que observamos na esquematização eciana da vida de
Gonçalo-Portugal, portanto da história portuguesa, é antes um “romance satírico” ou,
por outras palavras, “uma forma de representação disposta para expor, de um ponto de
vista irónico, a fatuidade da conceção romântica do mundo” (White 2014, 9-10). A
sátira, aponta Hayden White, dá forma irónica às esperanças, possibilidades e verdades
humanas; é uma apreensão da incapacidade da consciência para compreender
plenamente o mundo. A sátira é uma consciência da inadequação da própria imagem da
realidade; é um repúdio a todas as conceptualizações sofisticadas do mundo. A Ilustre
Casa de Ramires, romance que narra o ilusório triunfo político, literário e colonizador
do herói – de um Gonçalo-Portugal-D. Sebastião que regressa enriquecido de África –,
apela irónica e ficcionalmente para o dito repúdio.

3. Conclusão
33 Extrapolando para o caso português o modelo do “desenvolvimento ontogenético da

☝🍪
consciência histórica” de Jörn Rüsen (2005, 9-39), proposto por este último para
compreender a transição da consciência histórica pré-moderna para a moderna durante
o século XIX, poder-se-ia postular que o pensamento do “último Eça” (Monteiro 2014,
Este site utiliza cookies e
7 constitui a fase “crítica” na história da consciência histórica portuguesa
15-16)controle
dá-lhe sobre o que
moderna. No período pós-Ultimatum existia uma “narrativa-mestra” da história
quer ativar
portuguesa que, afirmando a continuidade essencial entre a realidade social do passado
medieval e o presente liberal-constitucionalista, e sendo replicada por um grande
número de políticos, poetas e historiadores – entre eles Pinheiro Chagas, Antero de
Quental, Oliveira Martins e Guerra Junqueiro –, tinha adquirido o estatuto de
“tradicional” e “exemplar”. Esta metanarrativa romântico-historicista esquematizava a
história portuguesa em três fases: em primeiro lugar, uma época medieval concebida
como o berço daquele vigoroso e heroico “carácter nacional” que levara um povo a olhar
para além das costas ocidentais da Europa; a seguir, um período de três séculos, onde o
ser nacional quase tinha perecido sob o absolutismo, a corrupção e a decadência; e
finalmente, uma época presente liberal-democrática que, embora representando um

https://journals.openedition.org/lerhistoria/11026 13/17
28/06/2023, 11:33 A ficção da história nacional portuguesa em A Ilustre Casa de Ramires

avanço em relação à anterior, dava continuidade à trajetória descendente da nação, à


espera de um ressurgimento messiânico. Esse relato que, não só tinha definido a
unidade e a identidade da sociedade liberal portuguesa como também fornecido os
modelos de ação que essa sociedade procurava transmitir como lições para o presente,
foi o que o autor de A Ilustre Casa de Ramires veio negar, questionando e dissolvendo a
sua estrutura, os seus princípios morais, as suas ideias de continuidade e de identidade
(Rüsen 2005, 13-14, 30-32).
34 A crítica da metanarrativa romântico-historicista que encontramos nas páginas de A
Ilustre Casa de Ramires não foi, contudo, feita através dos meios às vezes grosseiros e
explícitos de um texto doutrinário, mas com base nas estratégias subtis da narrativa
ficcional. A distância irónica, a sátira e a paródia foram, sem dúvida, os principais
aliados de Eça nesta tarefa: satirizando os momentos fundamentais da esquematização
convencional da história portuguesa em que um Ramires sempre participou;
caricaturando – como narrador ou através da voz do protagonista Gonçalo – os
artifícios da representação “realista” do passado típicos do romance histórico
tradicional e da historiografia; e dramatizando as diferentes versões ou pontos de vista
que as personagens têm sobre o mesmo acontecimento ou processo da história
portuguesa – por exemplo, as descobertas e conquistas de além-mar. Através de tais
estratégias poéticas e retóricas, Eça despojou a narrativa tradicional, assimilada e
replicada pelos discursos dos seus contemporâneos, do seu carácter unívoco.
35 Tendo em conta isto, foi o “último Eça” um antinacionalista? Provavelmente não.
Assim como os seus contemporâneos – e o demonstram os textos doutrinários que
escreveu nessa altura –, o romancista amava a sua pátria e queria vê-la emergir dos
problemas políticos, económicos e sociais que experimentava no final do século XIX.
Ele apenas não concordava com os meios utilizados pelos “patriotarrecas” que, face aos
problemas do seu tempo, não deixavam de empunhar o “glorioso” passado português.
Distanciando-se deles, a forma particular de Eça contribuir para o bem nacional foi
detetar e denunciar, no quadro de um romance, as aporias e ficções imanentes à
interpretação romântico-historicista da história nacional portuguesa – a maior de
todas, a de imaginar uma origem medieval, com traços aristocráticos, para uma
entidade objetivamente moderna como era o estado-nação português.

Bibliografia
Ankersmit, Frank (2004). Historia y tropología. Ascenso y caída de la metáfora. México: Fondo
de Cultura Económica.
Campos Júnior, António de (1890). A Torpeza. Lisboa: Editores Cruz & Cª.
Catroga, Fernando (1982). “Ética e sociocracia – O exemplo de Herculano na geração de 70”.
Estudos Contemporâneos. Aspectos da Cultura Portuguesa Contemporânea. No. 4. Porto:
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, pp. 9-68.

☝🍪
Catroga, Fernando (1996). “Alexandre Herculano e o historicismo romântico”, in L. R. Torgal, J.
A. Mendes e F. Catroga, História da História em Portugal. Séculos XIX e XX. Lisboa: Círculo de
Leitores, pp. 39-85.
Este site utiliza cookies e
Coelho,
dá-lhe Maria Teresa
controle sobrePinto
o que(1996). Apocalipse e Regeneração. O Ultimatum e a mitologia da
Pátria na literatura finissecular. Lisboa: Edições Cosmos.
quer ativar
Cunha, Maria do Rosário (1997). Molduras: articulações externas do romance queirosiano.
Coimbra: Universidade Aberta – Delegação Centro.
Danto, Arthur C. (2002). La transfiguración del lugar común. Una filosofía del arte. Barcelona:
Paidós.
Earle, T. F. (1988). “‘A Ilustre Casa de Ramires’ e o Romance Histórico”, in A. C. Matos (org),
Dicionário de Eça de Queiroz. Lisboa: Caminho, pp. 241-245.
Guimarães, Ângela (1984). Uma corrente do colonialismo português: A Sociedade de Geografia
de Lisboa 1875-1895. Lisboa: Livros Horizonte.
Herculano, Alexandre (1886). “Cartas sobre a História de Portugal”. Opúsculos. Tomo V. Lisboa:
Viuva Bertrand & Cª; Succesores Carvalho & Cª, pp. 31-160.
Herculano, Alexandre (1970). Lendas e Narrativas, 2 vols. Amadora: Livraria Bertrand.

https://journals.openedition.org/lerhistoria/11026 14/17
28/06/2023, 11:33 A ficção da história nacional portuguesa em A Ilustre Casa de Ramires
Jerónimo, Miguel Bandeira (2015). The ‘Civilising Mission’ of Portuguese Colonialism, 1870-
1930. Hampshire: Palgrave MacMillan.
Junqueiro, Abílio Manuel Guerra (1896). Pátria. Porto: Livraria Chardron de Lello & Irmão.
Kellner, Hans (1989). Language and Historical Representation. Getting the Story Crooked.
Madison: The U. of Wisconsin Press.
Lopes, Teresa Rita (1995). “Eça e o regresso às raízes”. Actas do III Encontro Internacional de
Queirosianos, 150 anos de Eça de Queirós. São Paulo: U. de São Paulo, pp. 496-507.
Marinho, Maria de Fátima (1999). O Romance Histórico em Portugal. Porto: Campo das Letras.
Martins, Joaquim Pedro Oliveira (1887). História de Portugal. Tomo I. Lisboa: Livraria
Bertrand.
Martins, Joaquim Pedro Oliveira (1891a). Camões, Os Lusíadas e a Renascença em Portugal.
Porto: Livraria Internacional de Ernesto Chardron.
Martins, Joaquim Pedro Oliveira (1891b). Os Filhos de João I. Lisboa: Imprensa Nacional.
Martins, Joaquim Pedro Oliveira (1891c). Portugal em África. A Questão Colonial – O Conflicto
Anglo-Portuguez. Porto: Livraria Internacional de Ernesto Chardron.
Martins, Joaquim Pedro Oliveira (1984). A Vida de Nun’Álvarez. Lisboa: Guimarães Editores.
Matos, Sérgio Campos (1998). Historiografia e Memória Nacional no Portugal do Século XIX
(1846-1898). Lisboa: Edições Colibri.
Matos, Sérgio Campos (2008). Consciência Histórica e Nacionalismo (Portugal – Séculos XIX e
XX). Lisboa: Livros Horizonte.
Medina, João (1974). Eça Político. Lisboa: Seara Nova.
Mónica, Maria Filomena (2001). “Os fiéis inimigos: Eça de Queirós e Pinheiro Chagas”. Análise
Social, 36 (160), pp. 711-733.
Monteiro, Ofélia Paiva (2014). “A figuração ‘problematizadora’ de Gonçalo Ramires”. Revista de
Estudos Literários, 4, pp. 15-42.
DOI : 10.14195/2183-847X_4_1
Pageaux, Daniel-Henri (1990). “A Ilustre Casa de Ramires: da ‘mise en abyme’ à busca do
sentido”. Actas do colóquio Eça e Os Maias cem anos depois. Porto: Asa, pp. 191-96.
Pimpão, Álvaro Júlio da Costa (1972). “O nacionalismo na obra de Eça de Queirós”, in Escritos
Diversos. Coimbra: Coimbra Editora, pp. 555-579.
Piwnik, Marie-Hélène (2012). Eça de Queiroz revisitado (propostas de leitura). Guimarães:
Opera Omnia.
Queirós, Eça de (1965). “O Ultimatum”, in Cartas Inéditas de Fradique Mendes e Mais Páginas
Esquecidas. Porto: Lello e Irmão, pp. 233-255.
Queirós, Eça de (1983). Correspondência, 2 vols. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
Queirós, Eça de (2008). Correspondência, 2 vols. Lisboa: Caminho.
Queirós, Eça de (2014). A Ilustre Casa de Ramires. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
Queirós, Eça de (s. d.). Uma Campanha Alegre. Lisboa: Livros do Brasil.
Quental, Antero de (1982). “Expiação”, in J. Serrão (ed), Prosas Sócio-Políticas. Lisboa:
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, pp. 447-448.
Quental, Antero de (2008). Causas da Decadência dos Povos Peninsulares. Lisboa: Tinta-da-
china.
☝🍪
Reis, Carlos (1999). “Eça de Queirós e o discurso da História”, in C. Reis, Estudos Queirosianos:
ensaios sobre Eça de Queirós e sua obra. Lisboa: Editorial Presença, pp. 103-123.
Este site utiliza cookies e
Reis, Carlos (2014). “Introdução”, in Eça de Queirós, A Ilustre Casa de Ramires. Lisboa:
dá-lhe controle sobre o que
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, pp. 11-28.
quer ativar
DOI : 10.14195/2183-847X_12_0.1
Reis, Carlos; Lopes, A. C. M. (1998). Dicionário de Narratologia. Coimbra: Almedina.
Rüsen, Jörn (2005). History. Narration – Interpretation – Orientation. New York: Berghahn
Books.
DOI : 10.1515/9781782389675
Sacramento, Mário (1945). Eça de Queirós – uma estética da ironia. Coimbra: Coimbra Editora.
Saraiva, António José (1971). Herculano Desconhecido. Mem Martins: Publicações Europa-
América.
Teixeira, Nuno Severiano (1987). O Ultimatum Inglês: Política Externa e Política Interna no
Portugal de 1890. Lisboa: Alfa.

https://journals.openedition.org/lerhistoria/11026 15/17
28/06/2023, 11:33 A ficção da história nacional portuguesa em A Ilustre Casa de Ramires
Trigo, Salvato (1990). “O Porto na literatura de expressão portuguesa do século XIX”, in Eça e
“Os Maias”. Actas do 1.° Encontro Internacional de Queirosianos. Porto: Asa, pp. 289-295.
White, Hayden (2014). Metahistory. The Historical Imagination in 19th-Century Europe.
Baltimore: Johns Hopkins University Press.

Notas
1 Intimação que o governo britânico fez a Barros Gomes – ministro dos Negócios Estrangeiros do
governo progressista de José Luciano de Castro – para que as forças portuguesas sob as ordens
do governador de Moçambique, o major Serpa Pinto, se retirassem dos territórios dos Macololos,
do Chire e da Maxonalândia (atuais Zâmbia e Zimbabué).
2 O “Terceiro Império Português” insere-se na fase crucial do novo imperialismo europeu em
África, impulsionado pela descoberta de depósitos de diamantes na África do Sul (1869) e de ouro
no Transvaal (1873).
3 Existiu nessa altura uma outra interpretação da história portuguesa discordante com a
conceção herculaniana. Trata-se da que promoveram figuras como Rebelo da Silva e Pinheiro
Chagas. Consistente com o projeto do império transafricano, essa ideia procurava esbater a
imagem da decadência de três séculos que se seguiu à expansão ultramarina, enfatizando os
valores históricos que a tornaram possível: o espírito aventureiro, a propensão para a emigração,
e a vocação marítima e universalista (Matos 2008, 98).
4 Embora seja verdade que Oliveira Martins teve uma conceção mais positiva das descobertas
ultramarinas, a sua esquematização da história portuguesa manteve marcantes características
herculanianas. Tal como o mestre, Oliveira Martins (1887, 10; 1891a, XII) dividiu a história
portuguesa em duas fases: o período ascendente da Idade Média – culminando nas descobertas –
e o período absolutista moderno “decadente” (Matos 1998, 248). Algo semelhante pode ser dito
de Antero (2008, 38-39).
5 Na terceira edição da sua História de Portugal e no seu “Prólogo“ a Camões, Os Lusíadas e a
Renascença em Portugal, Oliveira Martins (1887, 9-10; 1891, X-XII) foi também crítico do
patriotismo retórico e passadista do período pós-Ultimatum. No entanto, Eça foi muito mais
longe do que o seu colega na sua ironia para com os discursos patrióticos.
6 A Ilustre Casa de Ramires foi publicada em 1900, editada por Júlio Brandão. Antes dessa
época, entre 1897 e 1899, nove capítulos e meio do romance tinham aparecido nas páginas da
Revista Moderna. Todavia, sabe-se que, desde 1890 e 1891, Eça tinha anunciado a obra na
Revista de Portugal editada por ele próprio em Paris. Ao longo da década de 1890, o romance vai
crescer ao lado de obras como A Correspondência de Fradique Mendes, A Cidade e as Serras,
José Matias ou São Cristóvão.
7 A última fase da carreira literária de Eça de Queirós, que corresponde à escrita de livros tais
como A Ilustre Casa de Ramires e A Cidade e as Serras.

Para citar este artigo


Referência do documento impresso
Ricardo Ledesma Alonso, «A ficção da história nacional portuguesa em A Ilustre Casa de
Ramires», Ler História, 81 | 2022, 45-67.

☝🍪
Referência eletrónica
Ricardo Ledesma Alonso, «A ficção da história nacional portuguesa em A Ilustre Casa de
Ramires», Ler História [Online], 81 | 2022, posto online no dia 12 dezembro 2022, consultado no
dia 28
Este junho
site 2023.cookies
utiliza URL: http://journals.openedition.org/lerhistoria/11026;
e DOI:
https://doi.org/10.4000/lerhistoria.11026
dá-lhe controle sobre o que
quer ativar

Autor
Ricardo Ledesma Alonso
Universidad Nacional Autónoma de México, México

ricardoledesmaalonso@comunidad.unam.mx

Direitos de autor

https://journals.openedition.org/lerhistoria/11026 16/17
28/06/2023, 11:33 A ficção da história nacional portuguesa em A Ilustre Casa de Ramires

Creative Commons - Atribuição-NãoComercial 4.0 Internacional - CC BY-NC 4.0

https://creativecommons.org/licenses/by-nc/4.0/

☝🍪
Este site utiliza cookies e
dá-lhe controle sobre o que
quer ativar

https://journals.openedition.org/lerhistoria/11026 17/17

Você também pode gostar