Alexandre Herculano e a construção da cultura/literatura nacional
À primeira vista, há algo de aporético no facto de Herculano, que revolucionou a historiografia portuguesa ao depurá-la dos seus mitos, se dedicar à escrita das suas Lendas e narrativas, conferindo credibilidade ao maravilhoso, que recolhe de fontes documentais. Porém, ao narrar os elementos «fantásticos» da tradição e o maravilhoso nacional, cumpria o desiderato bem romântico de fundar uma cultura nacional autónoma, de promover o amor da pátria, a renascença da poesia nacional e popular e o estudo das primitivas fontes poéticas, onde pensa encontrar a fisionomia do povo e das suas tradições. Assiste-se assim a um processo de mitologização literária da individualidade nacional (popular), ao mesmo tempo que no plano da historiografia Herculano desconstrói as «mitologias» do Antigo Regime, que consagravam o «direito divino» e a ordem vigente. Nas palavras de A. P. Lopes de Mendonça, «Herculano abalançou-se a fabricar a nossa individualidade nacional, perdida e desfigurada em narrações soltas, em phantasias sem authenticidade, e sem valor scientifico.» (1855: 114; destaque nosso). É neste plano da fundamentação da soberania popular que a imaginação literária (idealização da Idade Média) e a história como ciência se encontram. Com efeito, a construção das «histórias nacionais» é, como a história literária, um fenómeno oitocentista. A história da «nação» é um género discursivo novo, em contraposição com a história dos monarcas. O modelo narrativo da história nacional, segundo Anne-Marie Thiesse, é fornecido pelo romance, em particular pelo «romance histórico», funcionando a história como uma espécie de «romance nacional». De modo particular nas Lendas e narrativas, é patente na reconfiguração da Idade Média o idealismo religioso e cavaleiresco, o amor pátrio e a coragem dos portugueses face a um presente visto como degenerado. Mas também aí se mostra a adesão à «monarquia liberal» de D. João I, que serve de modelo a uma monarquia representativa. A presença do elemento jogralesco é também evidente em «A Abóbada», onde aparece a representação de um auto que segundo o narrador «reflecte o autor da antiga chronica de que fielmente vamos transcrevendo esta veridica historia»; «a precedente loa (obra mui prima de certo leigo, afamado jogral daquelle tempo)» (1900, I: 250). Em todos os seus textos, Herculano parte da sua erudição histórica e de textos de natureza histórica, com o intuito pedagógico de divulgar a grandeza pátria durante a Idade Média, e antes do período de decadência da nação, que data do início da centralização monárquica. É pois para a Idade Média que convergem a historiografia e a obra romanesca de Herculano. As lendas e a história, a história lendária e as lendas históricas servem o intuito, como referimos, de fundamentar uma «narrativa da nação» cultural e histórica, remontando às origens da nacionalidade e à Idade Média o seu período de grandeza. Nas Lendas e narrativas, esse momento áureo é equivalente ao que Herculano postula na historiografia. Assim, são constantes as referências à grandeza do «velho Portugal» em oposição à sua degeneração no presente, mediante exemplos e símbolos da coletividade nacional. Em «A Abóbada», além do Mosteiro da Batalha, um «immenso livro de pedra», «a minha Divina Comedia», no dizer de Afonso Domingues, que «escrevera sobre o marmore o hymno dos valentes d'Aljubarrota» (1900, I: 295), essa valorização está presente no carácter de D. João I, «parente do povo por sua mãe» (id.: 283), cuja palavra valia «por ser palavra de cavalleiro português daquelles tempos, em que tão nobres affectos e instinctos havia nos corações de nossos avós que de bom grado lhes devemos perdoar a rudeza.» (id.: 280-1). CARLOS FERREIRA DA CUNHA, «Alexandre Herculano e a construção da cultura/literatura nacional», in Repositório da Universidade do Minho, http://repositorium.sdum.uminho.pt/handle/1822/14804, acedido em 21 de junho de 2016 (com adaptações).