Você está na página 1de 9
PYLA PERRONE-MoIsés lutagoes da literatura 0 século xx1 iphone Lela Fermne Moe snip A nf ing Peg 9D ‘eee ir ra 20, (Gms pot de Caro ep det 96 de ne ax 0S Fn Clete Ds ‘Dold eran ine eMedia Fen epee ee Prog Inftrerendts ag ee tebe rea “adroeditesdetneStoreednd india Pl. 32 iron SiePuiy—= ‘aoe 0350 fechreah ‘tipamphincons Feat copies seacoast Sumario Apresentagio | pate —muracOrs tramiwias &CULTURAIS 1.0 “fimdaliteratura” 7 2. Aliteraturana cultura contemporines ” Hist uma iterturs pés-moderna? .... es 6) A Alteratura como heranga.....c-essessessesseses 50 60 7 5.A critica itera 6,0 ensno daiteatara | A NARRATIVA CONTEMEORANEA | A.nova earn do romance | Metaiccto eintertextuslidade Osescrtores como personagens de cs | Tspectos da modeenidade liters Ayla do romangio. Aautofegz0 os limites doe © romance foi muitas vezes declarado morto, mas o que ve mos na atualidade, que ele sobreviven a todas as transformagé sociais ¢ artisticas do século xx. O romance sobreviveu por ser género plistico ¢ onivoro, capaz de incluir outros géneros, da nar. rativa de aventuras ao ensaio filoséfico, do diério intimo ao relat historico, da representagio realista do mundo em que vivemos invengao fantastica de outros mundos, do testemunho politico reportagem jornalistica, capaz enfim de absorver todo tipo de es tilo, prosaico ou postico, e de continuar revelando aspectos realidade que escapam a hiperinformagao das midias. m2, 8. Metaficcao e intertextualidade O termo metaliteratura [metaliterature] foi inicialmente usa- do nos paises angléfonos. Embora possa ser aplicado a outros gé- neros literdrios, ele se refere mais correntemente ao género ficcio- nal, De modo que metaliteratura e metaficeao se tornaram quase sindnimos. Segundo Carlos Ceia: Este termo tanto pode designar um qualquer texto pertencente a de- terminado género literdrio que trata outros textos ou géneros litera ros, sendo exemplo um romance que tem como temitica a poesia, como também as obras de um género literdrio que se voltam para si mesmas, ou seja, para a esséncia do género onde elas préprias se ins- crevem, adquirindo assim um caracter autoreflexivo, como sio exem- plo os romances que reflectem sobre o proprio provesso de escrita do romance e a sua ficcionalidade. Estao assim contidos neste termo conceitos como os de metadrama, metaficgao e metapoesia.! Oescritor e professor norte-americano William Gass foi pio- neiro no uso do termo,? e a canadense Linda Hutcheon esté entre 13 os primeiros tedricos a analisar detidamente esse tipo de prod sao literdria. Bla define a metaficeao [ metafiction] como “ficgéo espeito de ficgio, isto é, fic¢ao que inclui nela mesma um co mentério sobre sua propria narrativa e/ou sobre sua identidad lingufstica’? Mais recentemente, os termos metaliteratura e metaliterd tiveram seu emprego alargado, sesustenta em termos de teoria,e atribui-lo a pés-modernidade ignorar a historia literdria. Em termos de teoria, é uma generali zasdo que se afasta da defini¢ao mais restrita de Linda Hutcheo seguida pelos tedricos angléfonos. Do angulo da histéria literdri a referéncia a autores e obras do pasado é uma constante da lite- Tatura em todos os tempos. Ea metaficsao, tal como definida por Linda Hutcheon, foi praticada em séculos passados por Cervans tes, Sterne, Diderot, Machado de Assis e outros, Seria mais justo dizer que essa tendéncia autorreferencial da literatura se acene tuou na modernidade e se tornou ainda mais frequente na mo. dernidade tardia. | Na Franga, metaliteratura [métalittérature) foi um termo ctiado a partir do conceito de metalinguagem, que teve amplo uso na linguistica dos anos 1960 e 1970, a partir das obras de Hjelms- lev e sobretudo de Jakobson, com 0 sentido de “lingua que fala de Outra lingua’, esta chamada de lingua-objeto. O termo foi adotado em outras areas, como a sociologia, a psicologia, a pedagogia, a tradutologia, adquirindo em cada uma delas um sentido particu- Jar. Nos anos 1960, Roland Barthes definia a critica literdria como ‘uma metalinguagem. Mas abandonou essa definicao depois que o conceito de metalinguagem foi nuansado pela linguistica trans- formacional e fortemente contestado pelo psicanalista Jacques 4 Lacan, provocando grandes debates que, de certa forma, ainda nao terminaram, ‘Simplificando o debate: o psicanalista baseava suia afirmagao no fato de que tudo é linguagem endo existe uma lingua primeira, essencial, arquetipica, verdadeira, que possa ser tomada como lin- gua-objeto. Na fala, todo significado se torna outro significante, sem que haja um significado final. Assim sendo, “nao ha metalin- guagem, [pois] nenhuma linguagem pode dizer o verdadeiro so- bre o verdadeiro, uma vez que a verdade se fundamenta na fala, € nao dispoe de outro modo para fazé-lo”* Uma lingua pode dizer algo sobre outra lingua, de maneira heuristica ou pragmética, mas nao pode ser uma metalinguagem, no sentido de Ihe ser superior, mais verdadeira ou totalmente abrangente. No caso da literatura, isso 6 ainda mais evidente, pois, alinguagem literéria jé ¢ uma metalinguagem; ela é uma fala sobre o mundo e os homens numa linguagem que tem por base a lingua comum, mas nao se identifica com esta, nem na forma, nem na fungao. Além disso, qualquer obra literdria é metaliteréria, porque pressupde a existéncia de obras literdrias anteriores. Ninguém é escritor sem ter sido, antes, um leitor. Nem mesmo a critica literdria, que é uma linguagem secun- déria aplicada a linguagem primeira da obra, pode ser chamada de metalinguagem, porque ela também esté sujeita & regra do signifi- cante sem significado tiltimo. Podemos portanto afirmar que, por ser sempre metaliterdria, implicita ou explicitamente, a literatura dispensa esse qualificativo. No terreno da teoria e da critica, os termos e conceitos preci- sam ser bem definidos. E para bem definir os fenémenos metalite- rririos, 0s teéricos se embrenharam numa taxonomia que, embora justificada, complica, na pritica, a identificagao desses fendmenos. 0 conceito de intertextualidade basta para dar conta deles. Esse conceito foi criado por Julia Kristeva nos anos 1960, a partir dos 5 conceitos de polifoniae dialogismo, definidos por Mikhail Bakhtis desde os anos 1920.* Em seu ensaio Palimpsestos, Gérard Genk sugere uma terminologia tao minuciosa que acaba por se torn: impraticdvel. Das dezenas de termos sugeridos pelo tedrico, hipe texto 6 0 mais abrangente, pois ele o define como “toda relag unindo um texto B (que chamarei de hipertexto) a um texto ante rior A (que chamarei de hipotexto), sobre o qual ele se enxerta dk uma maneira que nao é a do comentario” Esse “enxerto” (greff) pode ocorrer de formas muito variadas.? Emboraa intertextualidade seja um fendmeno verificavel e qualquer época, ela se torna mais intensamente praticada no fin: do século xx. Podemos atribuir essa pratica a falta de um centro di verdade religioso ou filos6fico, a qual corresponde um sujeito des centrado, muiltiplo e dialégico. A proliferacao desse tipo de ob na modernidade tardia indica o agravamento da crise ontoldgica, Podemos também atribuir o gosto pelas alusdes a hiperinformacao sPonivel em nossa época, que dissemina as referéncias hist6ricas de modo insistente e andrquico. A intertextualidade praticada na literatura contemporanea pode assumir um tom melancélico (alusdes a momentos da histéria em que allteratura alcangou suas maiores realizag6es e seu maior reconhecimento), ou um tom iro= nico, lidico, caracteristico do estilo pés-moderno. A autorreferencialidade pode parecer uma atitude oposta a da referencialidade, isto é, a0 realismo. Em vez de tomar o mundo real como objeto de representago, o ficcionista elege sua repre sentagao (a literatura) como tema. Mas como a representacao do real sempre foi o objetivo da literatura (mesmo em suas formas fantésticas), centrar-se nessa representagio fatalmente leva 0 es ctitor a refletir sobre o mundo do passado e a confronté-lo com 0 de seu presente. A presenga do passado nas obras atuais nio se manifesta de modo diacrénico, como nos manuais de hist6ria literdria, mas de 6 modo sincrdnico, que é 0 modo da meméria. Por isso, te6ricos como Tiphaine Samoyault propdem que se encare a intertextuali- dade como “meméria da biblioteca’, individual e coletiva: Pensar a intertextualidade em termos de meméria permite: feet cer que os liames que se elaboram entre os textos nao sio atribuiveis, uma explicagao ou a um inventério positivista; mas isso nao impe- de que se permaneca sensivel & complexidade das interagGes que se travam entre os textos, tanto do ponto de vista da produgao como do ponto de vista da recepeao. A memoria da literatura age em trés niveis, que nunca se recobrem inteiramente: a meméria contida no texto, a memoria do autor e a meméria do leitor.* Boa parte da ficgdo e da poesia atuais esté encharcada de refe- réncias a ficgéo e & poesia anteriores, na forma de citagao, alusio, pastiche ou parddia, Essa “memoria da biblioteca” remete & ques- tao do “fim da literatura”, que se tornou nao apenas um tema aca- démico, mas também um tema literério. (O melhor exemplo da metaliteratura, no sentido amplo, é a obra ficcional do escritor cataldo Enrique Vila-Matas, saturada ce referéncias a escritores e obras do passado. Ele mesmo se definiu, uma vez, como “um leitor que escreve”. Bartleby e companhia, mis- to de ensaio e ficgdo, expée a crise da literatura moderna numa forma original, acessivel e divertida. Trata-se do levantamento de um yasto rol de escritores atingidos pela “sindrome de Bartleby”. Bartleby, como se sabe, é a personagem de um conto de Mel- ville, um modesto escriturério que perturba seu patrao, o escrit6- rio, a ordem social e talvez até mesmo a ordem do uatinsic bela resposta que costuma dar a qualquer ordem recebida: “Preferiria nao o fazer”, O narrador de Vila-Matas compara a atitude de Bartleby com a de numerosos escritores que “mesmo tendo cons- ciéncia literdria muito exigente (ou talvez precisamente por isso) uy nunca chegam a escrever; ou entio escrevem um ou dois livro. depois renunciam a escrita’? Sao os escritores do Nao e do Sil cio, que integram uma lista muito extensa. Esse livro nos interessa particularmente por algumas sug tes te6ricas nele embutidas. Vila-Matas nao disserta; apres “casos” tragicos, tragicémicos ou simplesmente comicos. Embt narrador de seu livro, em varios momentos, insinua uma r te6rica mais ampla, Em primeiro lugar, é preciso dizer algo acerca da fascinag exercida pela personagem de Melville. Nada fazia prever que obscuro escriturério, cuja biografia pregressa se ignora e cuj atos se resumem a contemplar um muro e a emitir a famosa fr até ser conduzido a cadeia e deixar-se morrer por inanicao, se nasse uma das mais famosas personagens da ficcao moderna. €justamente o caréter inescrutavel de Bartleby que tem suscita infinitas interpretagoes. Tudo esta na resposta “Preferiria no fazer’, que nao € negativa nem afirmativa, mas evasiva, Bartle do £0 contestatario de um poder, mas um resistente passivo ql Oe em xeque qualquer poder. Sua resposta nao permite nenhui contradigao ou ilagao. Ele é 0 mais humilde dos individuos, m sua possibilidade de dizer que “preferiria nao” lhe confere ut dignidade e uma soberania invenciveis. s estudos sobre Bartleby ja eram numerosissimos no aml to anglo-saxaio, mas foi o posficio ao conto, escrito por Gilles leuze em 1989, intitulado “Bartleby, ou a formula”, que colo. em circulagao filos6fica internacional a personagem de Melville sua frase, Deleuze observa: “A formula é arrasadora porque eli na de forma igualmente impiedosa o preferivel assim como qui quer nao preferido. Abole o termo sobre o qual incide e que Tecusa, mas também o outro termo que parecia preservar e que torna impossivel”.! 8 dotado de grande senso de humor, Vila-Matas nao é ingénuo, € Depois de Deleuze, outros filésofos contemporineos se de- brucaram sobre Bartleby, como Giorgio Agamben (Bartleby, ou da contingéncia) e Jacques Derrida (em cursos e trechos de livros). Inicialmente interessado em Bartleby pelo tema do “segredo”, 0 Ailtimo Derrida enfatizava, no escriturério, o tema da “resistencia ética”. Outros estudiosos assinalaram a afinidade da atitude de Bartleby com a propria “desconstrugao” derridiana, pelo fato de esta evitar o dualismo do sim ou nao. Vila-Matas nao ignora essas intrincadas reflexées filos6ficas, mas, travestido em modesto nar- rador, evita-as: “De especialista nao tenho nada, sou um rastrea- dor de bartlebys”!" De Bartleby, ele toma a atitude de desisténcia, como paradig- ma daquela adotada por criadores que renunciaram a continuar,a terminar, ou mesmo a comecar uma obra. Os casos veridicos so numerosissimos, sendo os mais conhecidos os de Rimbaud, Juan Rulfo, Salinger, autores de obras voluntariamente interrompidas, Mallarmé e seu projeto do “Livro”, Joubert, Arthur Cravan e Pepin Bello, escritores sem livro, Mas também hi o caso daqueles tantos que escreveram sobre a dificuldade de escrever: Kafka, Proust. Como todo rol, o de Vila-Matas é incompleto e, por isso, amplid- vel. Por exemplo: ele cita ocasionalmente Fernando Pessoa, refere pequeno heterdnimo bardo de Teive, mas se esquece de dizer que © proprio Pessoa editou apenas dois livrinhos e deixou sua imensa obra em estado de projeto. Além de ter escrito uma “Estética da desisténcia’.?® Poderiamos contestar a falta de critérios rigorosos para en- quadrar os escritores do Nao, jé que nao éa mesma coisa um escri- tor parar de escrever porque decidiu fazé-lo (Rimbaud), porque adoeceu (Larbaud), porque passou um tempo drogado (De Quin- cey), porque enlouqueceu (Hélderlin) ou porque se matou (vé- rios). E poderiamos também apontar certos anacronismos, pois. evidentemente um conego que deixou de escrever, referido por ng Cervantes, nao o teria feito pela mesma razdo que um Rimba ‘Mas esse tipo de exatidao é alheio ao projeto ficcional de Vila tas, que inclui em sua lista personagens fictfcias ou amigos do rador, de quem nao se sabe se deixaram de escrever por escrip ou por inépcia, Cobrar qualquer rigor classificatério a um nari dor de ficgao seria cair no ridiculo, e a resposta de Vila-Matas ria: “Preferi nao”. O fato € que, ao estabelecer essa lista longa e heteréclita, Vil ~Matas traca um vasto panorama da literatura ocidental e aponi nesta, uma crise que nao é apenas de hoje, mas data de mais de século, Sem sombra de chivida, desde o romantismo a literat sofre de um mal que vem se agravando, cuja causa & a percepgs de seu possivel desaparecimento. O grande te6rico desse mal literatura, que esté certamente na base do livro de Vila-Matas, Maurice Blanchot. Hé quase meio século, em O livro por: (1959), Blanchot descreveu a crise vivida pelos escritores modi ‘os, que, buscando a prépria esséncia da literatura, tornam a obi imposstvel. A literatura moderna morre assim de seu préprio reno, como o escorpiio que morde sua cauda:“A literatura vai diregao a cla mesma, em diregao a sua esséncia, que é 0 desapy cimento”." E os escritores que ele analisava séo, em grande par ‘0s mesmos arrolados por Vila-Matas. Assim, o livro de Vila-Matas é uma versio jocosa das gra reflexes de Blanchot, que ele cita na pagina 167 e parafraseia pagina seguinte: ‘Quem afirma a literatura em si nio afirma nada. Quem a proc Procura apenas aquilo que Ihe escapa, quem a encontra, encont apenas aquilo que estéaqui ou, que é pior,aquilo que est além literatura, Por isso, em suma, cada livro persegue a nao literatu como a esséncia daquilo que quer e que gostaria apaixonadament dedescobrir, 120 Entretanto, Blanchot nao é apenas “inteligente e extravagante’, como disse Vila-Matas numa entrevista concedida a Folha de S.Paulo, Foi um dos maiores pensadores do século xx, € no ape- nas da literatura. E também é estranho que ele seja invocado, na mesma entrevista, como o inspirador de seu préximo livro, pois Bartleby e companhia ja era, em larga medida, tributario de Blan- chot, Até mesmo a evocagao do “tiltimo escritor” remete a um ca- pitulo de O livro por vir, intitulado “Morte do tiltimo escritor”. ‘A doenga dos escritores atormentados e desistentes é por- tanto, um fato comprovado na literatura da modernidade. So- mente, Vila-Matas parece falar de um simples resfriado, quando se trata de uma doenga virtualmente fatal. B, por juntar casos ilustres e comprovados com casos ficticios irris6rios, seu livro corre o ris- code reduzir todos os escritores a uma galeria de malucos e excén- tricos. Ora, a dificuldade e até a impossibilidade de continuar es- crevendo “literatura” foi expressa em didrios, cartas e escritos fragmentérios de alguns dos maiores escritores modernos. Neles se encontra a impressao de que tudo ja foi dito e de que s6 resta a cépia; a afirmagao de que as formas de representacio, na lingua- gem, tornaram-se incapazes de dizer a totalidade do real, restando apenas fragmentos e ruinas da grande literatura do passado; a constatagao de que aquilo que se chamava literatura esté fadado a desaparecer ¢ a angtistia de ainda nao vislumbrar o que poderia surgir em seu lugar. Bartleby pode ser encarado como desistente ou como resis- tente, As conclusdes de Vila-Matas, como as de Blanchot, sao cri- ticas, mas nao pessimistas. Blanchot indica como o Nao pode ser salutar, e 0 Siléncio, uma resisténcia & tagarelice reinante. Em 1992, na Feira do Livro de Frankfurt, Octavio Paz dizi “Nés, escritores de hoje, devemos reaprender aquela velha palavra que marcou 0 comeco da literatura moderna: Nao”, Quando Vila-Matas qualifica aliteratura do Nao como “a tinica tendéncia atraente da literatura aa contemporanea’, ele opta pelo Bartleby resistente:“A enfermil nao € catdstrofe, e sim danga, da qual jé poderiam estar surgine novas construgdes da sensibilidade”. E também: “Jé que todas ilus6es de uma totalidade representavel estéo perdidas, é precis reinventar nossos préprios modos de representacao”. Numa di suas entrevistas, Vila-Matas declarava que o éxito inesperado seu livro indica, talvez, que “os leitores esto se tornando mais exi gentes literariamente do que pensam os diretores de marketing o as grandes editoras” Dando prosseguimento a sua obra, em O mal de Montano! Vila-Matas narra as aventuras e desventuras de um grupo de escri- tores obcecados pela literatura e pelo literario. Em Doutor Pasa. vento,'* encontramos escritores e intelectuais cuja tinica aspiracao €desaparecer. Dublinesca se mantém na mesma via ultraliteréria, com a diferenga de que neste o her6i da ficgo nao é um escrito, mas um editor aposentado que sofre a0 mesmo tempo com seu envelhecimento pessoal, o desaparecimento dos grandes escrito~ res, dos editores de boa literatura e dls leitores & altura desses li= vros. O tema central do romance € o “réquiem pela era de Guten berg’, a auséncia de Deus, a obsolescéncia dos livros, a morte da literatura. Nada melhor para selar esse apocalipse do que uma viagem a Dublin, com amigos igualmente fanaticos por literatura, para comemorar 0 Bloomsday numa ceriménia realizada no ce- mitério descrito por Joyce em Ulysses. Varios espectros assombram a personagem: familiares, co- nhecidos e desconhecidos, escritores mortos ou virtuais. Joyce & naturalmente, o principals mas também um jovem que surge some na bruma, e que se parece com Beckett. Numa entrevista, 0 romancista explicou que se trata da passagem de uma época de epifania, representada por Joyce, a uma época de afonia, represen tada por Beckett, isto é “a decadéncia de certa forma de entender a literatura”, Identificando-se & artista plistica Dominique 122 Gonvélez-Foerster, a personagem principal de Dublinesca cultiva ama cultura apocaliptica da citagao literéria, uma cultura de fim de trajeto e, definitivamente, de fim de mundo” Com essa temitica tio especializada e obsessiva, 0 surpreen- dente é que Vila-Matas tem tido excelente recepcao, tanto da parte da critica especializada quanto de seus numerosos leitores. Isso ém um repert6rio de acontece porque mesmo aqueles que ndo t Ieituras t4o vasto quanto o do autor, nem perdem o sono pensan- do no fim da literatura, so seduzidos por suas extravagantes per- sonagens, por uma trama cheia de suspenses, por um humor refi- nado que se sobrepée, como um véu, a experiéncias dramaticas, ‘Aparentemente apocaliptico, Vila-Matas nao € entretanto ‘0 fim de Dublinesca, salva-se 0 deprimido editor € reaparece 0 autor. Aum entrevistador de BI Pais, que Ihe pergun~ tava como explicaria seu romance a um leigo, ele respondeu: “Eu Ihe diria que se trata de alguém muito acabado, que quer celebrar «9 funeral do mundo e que descobre que isso, paradoxalmente, € 0 futuro na vida", O velho Freud estaria de acor~ € preciso fazer o trabalho de luto. Vila-Matas conseguiu transformar 0 pessimista. No que permite ter um do: para continuar vivendo, Com sua melancolia ironica, “fm da literatura” num tema inesgotavel, numa forma de a man- ter viva. Outra forma de metaficgao que se tornou frequente em nossa época é incluso do proprio autor como personagem de sua obra ficcional. Essa forma no se identifica com a autoficsao, porque nao se trata de ficcionalizar uma biografia, mas de atribuir & per- sonagem que tem o mesmo nome do autor, ea outras personagens reais, dados existenciais evidentemente falsos. £ 0 que ocorre no romance de Michel Houellebecq O mapa eo territ6rio (2010), na personagem que tem seu nome e se parece muito endo assassinada. Delegado Tobias trama do qual a com cle participa de epis6dios ficticios e acaba s Ou na novela virtual do brasileiro Ricardo Lisias 133 (2014), na qual seu homénimo é indiciado por uma obra de ficsao. O curioso é que nos dois casos os autores sofreram pr S0s judiciais na vida real, Houellebecq por plagio e Ricardo pela criacao de falsos documentos oficiais, O romance do escritor francés teve um pastiche em 201 Tarte et le suppositoire [A torta e 0 suposit6rio], assinado por| autor ficticio chamado Michel Quellebeurre. Tendo comt com Dont Quixote, parddia dos romances de cavalaria, a pros ficgdo tem uma capacidade de metaderivacao, quer por refe @ outros autores ¢ obras, quer por autorreferéncia. Por essa fa dade de proliferar a custa de si mesma, a literatura pode pro guir indefinidamente. 124 . Os escritores como personagens le ficcao' Em seu ultimo curso no Collége de France (1979-80), Bar- thes observava que a“grande literatura” estava definhando na pré- tica e no ensino. Um dos sinais desse declinio, segundo ele, era 0 desaparecimento dos “grandes escritores”, Dizia ele: Desaparecimento dos lideres literdrios; esta é ainda uma nogao so- cial; 0 lider (¢ uma] figura na organizagao da Cultura. Mas, na co- munidade dos escritores [...] outra palavra se impoe, menos social, ‘mais mitica: her6i, Baudelaire a propésito de Poe: “Um dos maiores herdis literdrios”.E essa Figura — ou essa For¢a — do Heri literd- rio que perde hoje sua vitalidade? A literatura a que se refere Barthes, e 0s outros que anunciam, sua “decadéncia” ou seu “fim”, é aquela que se radicalizou, na pas- sagem do século xix para o xx, com Flaubert e Mallarmé: uma lite- ratura autotélica e altiva, oposta a sociedade burguesa. A defesa dessa literatura foi entao assumida como um ato de herofsmo. Na Inglaterra, Thomas Carlyle ja havia definido “o Poeta como 135

Você também pode gostar