Uma das características mais notórias do estilo de José Saramago é a
pontuação, conjugada com o tom oralizante de vários dos seus textos, como tão bem o mostra O Ano da morte de Ricardo Reis. Para Saramago, a utilização de sinais de pontuação é feita como se estes fossem “sinais de pausa, no sentido musical”. Assim, nesta obra, Saramago apresenta muitas vezes períodos longos, por exemplo o quinto capítulo tem um período com 23 linhas (pp.11-112). Nesse e noutros períodos, o que separa a as diferentes falas das personagens é a vírgula. Podemos dizer que a prosa de Saramago é coloquial, isto porque tem um tom oralizante, em que dá a sensação de que o romance é contado num ambiente informal, sem preocupações em recorrer a expressões rebuscadas e artificialmente literárias. Com frequência, a prosa de José Saramago revela a consciência de que a língua está viciada em expressões convencionais que impedem a renovação do idioma e favorecem o recurso ao lugar comum. Relativamente aos recursos expressivos, vamos dar enfoque a algumas figuras de retórica, tais como a antítese, ou seja, a figura que contrapõe palavras ou frases com sentido oposto, sendo ela, nesta obra, que, muitas vezes, mostra as diferenças e tensões sociais. Exemplo na página 19: “iria avançar a mão serviçal, mas também imperativa”. Também se verifica o recurso à comparação, ou seja, a aproximação de duas coisas, figuras ou conceitos, para realçarmos o que há de semelhante ou diferente entre eles. A comparação surge logo na primeira página, quando o narrador nos diz que o Higland Brigade atravessa o Atlântico: “entre Londres e Buenos Aires, como uma lançadeira nos caminhos do mar, para lá, para cá”. A metáfora, que estabelece uma equivalência entre conceitos ou acontecimentos, como se os seus sentidos fossem correspondentes, pode encontrar-se, por exemplo, num diálogo entre Pessoa e Reis, em que o segundo diz:” Sou um Argos com novecentos e noventa e nove olhos cegos”. A Ironia, que, num contexto próprio, afirma o contrário daquilo que se vê ou sabe, normalmente com intenção crítica, pode ser vista aquando a descrição da violência dos agentes da polícia , o narrador diz deles: “são homens habilíssimos nas respetivas artes”, uma afirmação inaceitável, a não ser que o seu sentido seja invertido. Relativamente à reprodução do discurso no discurso e remetendo para o tom oralizante, já enunciado, este abre caminho a uma espécie de vocalização do romance, isto é, parece que estamos a ouvir as vozes das personagens, alternando com a voz do narrador. Assim, nesta obra, encontramos as reproduções dos diálogos com um número reduzido de verbos declarativos e a transcrição do diálogo sem obedecer à convenção gráfica de separação das falas. Finalmente, podemos verificar o estilo próprio de José Saramago, nem sempre de aceitação fácil por quem lê, mas que diferencia este escritor e é a sua marca de identificação. Classificação do narrador O romancista mistura vozes de Reis e Pessoa, documentadas em textos em prosa e verso já publicados. Saramago atribui palavras às personagens em perfeita consonância com o seu perfil e forma de pensar. O leitor fica por vezes indeciso, sem saber a quem remeter a autoria de certas frases e palavras. Saramago revela uma capacidade inigualável de assumir a personalidade do Outro, integrando-se totalmente nele, inclusive falando com a sua voz e dicção.
Caracterização das personagens
Fernando Pessoa desencadeia a ação do romance, ou seja, logo no início ficamos a saber que, no dia seguinte à sua chegada, Ricardo Reis, trata de se informar, através da imprensa, das circunstâncias da sua morte (a 30 de novembro de 1935) e do seu funeral. Aliás foi através de um telegrama de Álvaro de Campos sobre esse acontecimento que Reis regressa a Portugal. Pessoa participa no romance de forma fantasmagórica e vai dialogando com Ricardo Reis sobre a sua vida, informando-o de que dispõe de nove meses na terra. Fernando Pessoa pede a Ricardo Reis para lhe ler as notícias e ficam a discuti-las, sendo todas as informações dos jornais verídicas. Ele também comenta sobre a postura e o contexto social da vida de Ricardo Reis, havendo ainda tempo para falar dos outros heterónimos e dos amores de Reis. Fernando Pessoa representa, neste romance, a consciência do progressivo esquecimento que inevitavelmente atinge aqueles que morrem. Ricardo Reis é o heterónimo de Fernando Pessoa e a personagem principal do romance. Enquanto heterónimo, Reis é indiferente, contemplativo, apologista da perfeição clássica e disciplinado, enquanto personagem de Saramago, Reis é ocupado com questões básicas do quotidiano, preocupado politicamente, atraído pelas imperfeições terrenas e descuidado. Reis está muito atento ao espaço e às pessoas, este lê as notícias do jornal para se manter informado, para se manter em contacto com o mundo, mas também fica a ver a vida a passar como se fosse um mero espectador. Ricardo Reis não compreende os tempos políticos e históricos. Importa realçar a relação entre Reis e o livro “The God of the Labyrinth” que requisitou no navio durante a sua viagem. Assim, Reis deambula pela cidade de Lisboa, que não reconhece como sua, e, perdido nesse labirinto, procura saber quem é. Localização das personagens Ricardo Reis surge na sequência I, aquando a sua chegada a Lisboa, ao fim de 16 anos ausente no Brasil, ou seja, a 29 de dezembro de 1935, instalando-se no Hotel Bragança. Na sequência II, lê as notícias sobre a morte de Fernando Pessoa e visita o seu túmulo no Cemitério dos Prazeres. Fernando Pessoa surge na sequência III, visitando Reis no hotel no fim dos festejos de fim de ano e diálogo com ele sobre a sua morte e os motivos do regresso de Reis. Informa Reis de que dispõe agora de oito meses para circular no reino dos vivos. No fim do romance, na sequência XIX, Reis acompanha Pessoa que regressa ao cemitério e presumivelmente termina assim a sua existência.