Você está na página 1de 4

Capítulo I

A LITERATURA E A VIDA

Escrever não é certamente impor uma forma (de expressão) a


uma matéria vivida. A literatura está, ao invés, do lado do informe,
Ou do inacabamento, como Gombrowicz o disse e fez. Escrever é
uma tarefa de devir, sempre inacabada, sempre a fazer-se, e que
extravasa toda a matéria que se pode viver ou vivida. E um proces-
so, quer dizer, uma passagem de Vida que atravessa o vivível e o
vivido. A escrita é inseparável do devir: ao escrevermos, devimos-
mulher, devimos-animal ou vegetal, devimos-molécula até ao,
devir-imperceptivel. Estes devires encadeiam-se uns com os outros
segundo uma linha particular, como num romance de Le Clézio, ou
então coexistem a todos os níveis, através de portas, entradas e zonas
que compõem todo o universo, como na poderosa obra de
Lovecraft. 0 devir não se encaminha noutro sentido, e não devimos
Homem, mesmo que o homem se apresente como uma forma de
expressão dominante que pretenda impor-se a toda a matéria, ao
passo que mulher, animal ou molécula possuem sempre uma com-
ponente de fuga que se furta à sua própria formalização. A vergonha
de ser um homem, existe uma melhor razão para escrever?
Mesmo
quando é uma mulher que devém, ela tem de devir-mulher, e este
devir nada tem que ver com um estado do qual ela poderia reclamar-
Se. Devir não é atingir uma forma (identificação, imitação,
Mimésis), mas encontrara zona de vizinhança, de indiscernibilidade
GILLES DELEUZE-
- CRÍTICA E CLINICA

tal que ja nao nos podemos distinguir deun


de indiferenciação fazemos projectar no imaginário. E pai que procuramos no fim
um
ou
animal de uma molecula:
nao imprecisos
nen
sonho, numa concepção infantil da li-
ou
mulher. de um da viagem, como no seio do
tanto menos determi
imprevistos,
nao-preexistentes,
pai-mãe. Marthe Robert levou até ao
gerais, mas
maIs singularizados numa populacan teratura. EScreve-se para o seu

da literatura, ao não
dos numa forma quanto fundo esta infantilização, esta psicanalização
uma zona de VIZinnança
com qualquer coisa com de Bastardo ou Criança
Pode-se instaurar deixar outra escolha ao romancista senão a
os nmeios neranos, como com o áster de uma
a condição que se criem
reencontrada', Mesmo o devir-animal não está ao abrigo
André Dhotel. Entre
OS SexOs, 0S generOs ou os reinos gato, meu cão». Como diz
segundo redução edipiana, do genero «o meu o

sempre «entre» ou «de entre»: mu-


devir e Lawrence, «se eu sou uma girafa, e os ingleses vulgares que
qualquer coisa passa'.O
lher entre as mulheres, ou animal de entre outros. Mas o artigo
escrevem sobre mim säo gentis cães bem educados, ai esta, os a n i

indefinido apenas realiza a sua pOtencla se u c 1az devir mais são diferentes.. vós detestais instintivamente o animal que

mesmo despojado dos caracteres tormas que fazem sou»'. Regra geral, os fantasmas apenas tratam o indefinido como a
Le Clézio devém.
dizer o, a («o animal que aqui esta...). Quando máscara de um pesoal ou de um possessivo: «uma criança foi bati-
inacabado, que nao «o meu pai bateu-me». Mas a lite-
-índio, é um indio sempre da» transforma-se depressa em
sabe KCuiivar o
milho nem talhar uma piroga»: ele entra
numa z0na ratura segue a via inversa, e não se afirma senão descobrindo
de vizinhança as
sob
em vez de adquirir caracteres formais. Como, segundo Katka, oaparentes pessoas a potência de um impessoal que de modo ne-
campeão de natação que não sabia nadar. Toda a escrita implica um nhum é uma generalidade, mas uma singularidade ao mais alto
atletismo, mas, longe de reconciliar a literatura com o desporto, ou nível: um homem, uma mulher, um animal, um ventre, uma cri-
de fazer da escrita um jogo olimpico, este atletismo exerce-se na ança.. Não são as duas primeiras pessoas que servem de condição
fuga e no desaparecimento organicos: um desportista na cama, dizia i enunciação literária; a literatura só começa quando nasce em nóós
Michaux. Devimos tanto mais animal quanto o animal morre; e uma terceira pessoa que nos despoja do poder de dizer Eu (o «neu-
contrariamente a um preconceito espiritualista, é o animal que sabe tro» de Blanchot:. Certamente, as personagens literárias são per-
morrer e sente-o ou pressente-o. A literatura começa com a morte tetamente individuadas, e não são nem vagas nem gerais; mas
do porco-espinho, segundo Lawrence, ou com a morte da toupeira todos os seus traços individuais elevam-nas a uma visäo que as
segundo Kafka: «as nossas pobres patinhas vermelhas estendidas transporta para um indefinido como um devir demasiado poderoso
mum gesto de tema piedade». Escreve-se para os bezerros que mo para elas:Ahab e avisão de Moby Dick. 0 Avarento não é de
rem, dizia Moritz'. A lingua deve alcançar desvios femininos, ani maneira nenhuma um tipo, mas, pelo contrário, os seus traços indi-
mais, moleculares, e todos os desvios são um devir mortal. Não hvduas (amar uma rapariga, eto.) fazem-no aceder a uma visäo, cle
ve o
linha direta, nem nas coisas nem na A sintaxe e o
linguagem. ouro, de tal modo que se mete a fugir numa linha de feiticeira
cou"
Junto dos desvios necessários criados sempre para revelar a vida u adqure a potencia do indefinido-um avarento.., de ouro,
ainda de ouro... Não há literatura
nas coisas. sem fabulação, mas, como

Escrever não é narrar as


recordações, as Viagens, os a esBergson soube vê-lo, a fabulação,
t
a função fabuladora não consiste
os lutos, os sonhos e os fantasmas. E a mesma colsa quc
em
imaginar nem em projectar um eu. Ela acede antes a essas

de
p Visões, eleva-se até aos seus devires Ou potenCias.
excesso
realidade, ou de
imaginação: em ambos os casos Não se escreve com neuroses. A neurose, a não säo
eterna estrutura
me-pai edipiana que projectamos no rear o que psicose,

2
GILLES DELEUZE -
CRITICA E CLINICA -

vida, mas estadoS nos quas quando o procese


se cal
passagens de
colmatado. A doença não é process
escritor. Kafka na Europa central, Melvillena América,apresenta
é interrompido, impedido, COmo a enunciação colectiva de um povo menor, ou de
mas paragem do processo,
«caso
mo no «caso
como Também otodostaud
Nietzsche».
Nietzscn. 1ambem os povos menores, que apenas encontram a sua expregsao
escritor como tal não e doente, mas antes medico, médico de s pelo e no escritor. Embora ela remeta sempre para agentes singu-
do mundo. O mundo e o conjunto dos sintomas cuia lares, a literatura é agenciamento colectivo de enunciação. A
próprio e

confunde com o homem. A aparece entäo como


lhteratura
ratura é delirio, mas o delirio não é um assunto do pai-me: não há
lite-
doença se
um empreendimento de saúde: no que o escritor tenha forçosa
delirio que não passe pelos povos, pelas raças e pelas tribos, e que
mente uma grande saude (haveria aqut a mesmd amorgudade que não habite na história universal. Todo o delírio é histórico-mundial,

no atletismo), mas goza de uma irresistivel pequena saude que vem deslocamento de raças e de continentesy. A literatura é delírio, e
daquilo que viu e ouviu das coisas demasiado grandes para ele como tal joga o seu destino entre dois pólos do delirio. O delirio é
demasiado fortes para ele, irrespiráveis, cuja passagem o esgota,
dando-lhe, no entanto, devires que uma enorme saüde dominante
umadoenga, a doença por excelência, quando erige uma raça pre-
tensamente pura e dominante. Mas ele éa medida da saúde quando
tornaria impossiveis'. Daquilo que Viu c ouviu, o escritor fica com invoca essa raça bastarda oprimida, que não pára de se agitar sob as
os olhos
vermelhos, timpanos
suficiente para
os
a vida
libertar
rebentados. Qual a saüde que seria dominaçoes,de resistur a tudo o que esmaga eaprisiona,
todo o lado onde ela está apri
e de se
em
esboçar enquanto fundo na literatura como processo. Há ainda ai
homem, pelos e doentio
sionada pelo e no nos organismos, e nos géneros? um estado que ameaça sempre interrompero processo ou o
Ea pequena saúde de Espinosa, enquanto dura, testemunhando até devir, e encontramos a mesma ambiguidade da saúde e do atletismo,
ao fim uma nova visão que se abre å sua o risco constante que um delirio de dominação se misture ao delirio
passagem.
A saúde como literatura, como escrita, consiste em inventar Dastard0, e arraste a literatura para um fascismo maníaco, a doença

um povo que falta. Pertence à função fabuladora inventar um povo. contra qual ela luta, até que a diagnostique nela própria e lute con-
a

Não se escreve com as suas recordações, a menos que se faça delasra ea propria. Fim ullimo da literatura, distinguir no delírio essa
a origem ou o destino colectivos de um povo vindouro ainda raçao de uma saude, ou essa invenção de um povo, quer dizer,
envolto nas suas traições e renegações. A literatura americana tem pSS1DIIade de vida. Escrever por esse povo que falta...

de produzir escritores que podem narrar po) SIgnifica lugar de» do que menos «no «na intenção de»).
essepoder excepcional O que a
as
literatura faz na lingua
Suasproprias recordações, mas como recordações de um povo uni-
diz
aparece agora imelhor: como
versal composto pelos emigrados de todos
Proust, ela
esboça ai uma especie de lingua estrangeira, que nao
os paises. Inomas wo é outra lingua, nem
verte em escrita todaa um dialecto recuperado, mas um devir
América tanto quanto ela se pode encontra ingua, uma minoração dessa lingua maior, um
outro da
na
experiência de um só homem»'. Precisamente, na0 e
un po uma linha de
delirio que a arrasta,
feiticeira que se escapa do sistema
Chamado a dominar o mundo. E um povo menor, eternameni
fazia dizer dominante. Katka
menor, absorvido num devir-revolucionário. Talvez ao
campeão de natação: eu falo a mesma lingua que vós,
nas nos åtomos do ele exIS1 e, no entanto, não compreendo uma palavra daquilo que dizeis.
escritor, povo bastardo, inferior, dominado, so
pre em devir, sempre inacabado. Bastardo no Criação sintáctica, estilo, é este odevir da lingua. Não há criação de
do
ja designa um es palavras, não há neologismos que possuam valor fora dos efeitos
familiar, mas o
processo ou a deriva das raças. Sou uma bDES de
um
negro de sintaxe em que se desenvolvem. A Iiteratura apresenta já dois
raça inferior para toda a eternidade. E o
aev
5
14
GILLES DELEUZE
-

CRITICA E CLINICA -

aspectos, na medida em que ela opera uma decomposição ou uma

da lingua materna, mas


tambem opera a invencao Escrever é também devir outra
coisa diferente de um
destruição seu devir.
uma nova lingua dentro da lingua, por criação de sintaxe. «O escritor. Aqueles que lhe em que é que consiste
perguntam
a escrl

modo de defender a lingua, é atacá-la... Cada escritor é obrioad a quem é que vos fala
em escrever? O
ta, Virginia Woolf responde:
fazer a sua lingua.". Dir-se-1a que a lingua ë tomada por com outra coisa.
um escritor näão fala disso, ele está preocupado
delírio, que a faz precisamente sair dos seus proprios sulcos. uanto considerarmos estes critérios,
Se vemos que, de entre todos
intenção literária, mesmo entre
ao terceiro aspecto, reside em que uma ingua estrangeira não sul aqueles que fazem livros com uma

dizer-se escritores.
cada na própria lingua sem que toda a linguagem, por seu lilado, os loucos, muito poucos podem
oscile, sem que seja levada a um limite, a um exterior ou a um a
so consistindo em Visões e em Audições que já não fazem parte de
CI. Andre Dhötel, Terres de mémoire, Ed. Universitaires (acerca de um devir
nenhuma lingua. Estas visões não são fantasmas, mas verdadeiras
Ideias que o escritor ve e ouve nos intersticios da linguagem, nos -áster em La Chronique fabuleuse, p. 225).
Le Clézio, Hai, Flammarion, p. 5. No seu primeiro romance, Le procès-verbal,
desvios da linguagem. Não são interrupções do processo, mas para-
Folio-Gallimard, Le Clézio apresentava de maneira quase cxemplar uma perso-
gens que tazem parte dele, com0 uma eternidade que apenas pode
nagem tomada num devir-mulher, depois num devir-rato, depois num devir imper
ser revelada no devir, uma paisagem gue apenas aparece no movi
mento. Elas não estão no exterior da linguagem, elas são o seu exte- ceptivel em que desapareceu
C f . J-C. Bailly, La légende dispersée, anthoiogie du romaniisme allemand, 10
rior. O escritor enquanto vidente
ouvinte, objectivo da literatura:e
e
18, p. 38.
apassagem da vida na inguagem que constitui as ldeias, Marthe Robert, Roman des origines et origines du roman, GrasSet
Estes são os trës aspectos que esto perpetuamente em movi-
Lawrence, Lettres choisen, Plon, 11, p. 237.
mento em Artaud: a queda das letras na decomposição da lin-
Blanchot, La part dufeu, Gallimard, pp. 29-30, cL'ertretien infini, pp. S63-564:
guagem materna (R, T..), a sua repetição numa nova sintaxe ou em
aAlguma coisa acontece (às personagens), que elas apenas podern sobressair
novos nomes de alcance sintáctico, criadores de uma lingua
despojando-Se do seu poder de dizer Eu.» A lhteratura parece aqui desmentir a con-

(ceTRe Te»); por fim, as palavras-sopros, limite assintáctico para


onde tende toda a linguagem. E Céline, não podemos deixar de o
cepçdo linguistica, que encontra nos conectores lembrayeurs. e principalmente
duas primeiras pessoas, a propria condição da enunCiaçào.
nas

dizer, tão sumårio o sentimos: a Viagem ou a decomposição da lin- Acerca da literatura como assunto de saúde, mas pan aqueles que ndo tëm ou

gua materna, Morte aCrédito e a nova sintaxe como uma lingua que tem apenas uma saude fragil, ct. Michaux, postacio a «Mes proprietés», in La
da
dentro lingua; Guignol's Band e as exclamações suspensas como mui remue, Gallimard. E. Le Clázio, Hai, p. 7: «Um dia, saberemos talvez
que não
imite da linguagem, visões e sonoridades explosivas. Para escre havia arte, mas somente medicina»
ver Andre Bay, prefácioa Thomas Wolfe, De la mort au matin, Stock.
talvez seja preciso que a lingua matena seja odiosa, mas de ta
modo que uma Cf.
criação sintáctica trace aí uma espécie de lingus as reflexdes de Kafka das literaturas ditas menores, Journal, Livre de
acerca

estrangeira, e que todaa linguagem revele o seu exterio, para ale poche, pp. 179-182; e as de Melville
acerca da literatura americana, D 'où viens-fu,

ae toda a sintaxe. Acontece que se felicita um escritor, mas ele sabe Gallimard, p. 237-240.
Hawthorne?,
Dem que está longe de ter chegado ao limite a que se propõs e qu Proust, Correspondence avec Madame Strauss, Carta 47, Livre de
poche, Pp.
nao para de se desloca, ele sabe que está longe de ter realizado T10-115 («ndo há certezas, nem mesmo
gramaticais..»)
17
16

Você também pode gostar