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Psico

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do
Eu&
Você&
a Bela &
a Fera. RAFAEL BALDASSARIS
Psicólogo Clínico
Escritor Amigo da AIL

A Bela e a Fera (La Belle et la Bête) é a estória escrita

CANTOS DIVERSOS • Informativo da Academia Itajubense de Letras • AIL


assustada, decide matar a besta. Bela consegue impedir,
por Gabrielle-Suzanne Barbot, em 1740, e modificada por até que beija a Fera, que se transforma em um lindo
Jeanne-Marie LePrince, em 1756. Apesar disso, as versões príncipe. Eles se casam e vivem felizes para sempre.
foram resumidas e adaptadas como um “conto de
fadas” infantil, a ser apresentado pela Walt Disney Em termos interpretativos, duas grandes correntes
Company. O filme que retrata a Bela e a Fera foi lançado realizam uma análise simbólica
em 1991, sob direção de Gary Trousdale e Kirk Wise. dessa estória:
Resumidamente, esse filme retrata a saga romântica (1) visualização de situações abusivas - neste caso, o
de Bela, uma jovem que vive em tempos medievais. conto retrata uma pessoa que sofre um relacionamento
Órfã da mãe, a garota vive com o pai (Maurice), um abusivo e, infelizmente, não consegue escapar;
pobre comerciante. Antes de certa viagem a trabalho, (2) expressão simbólica da natureza interior de cada
ele pergunta à Bela se ela desejaria que lhe trouxesse pessoa.
algum presente. Humildemente, a filha pede apenas A interpretação de número dois será utilizada no
uma rosa. restante deste artigo para abordar um assunto de grave
Após longa viagem, Maurice atravessa uma importância na vida de toda pessoa humana: a sombra
tempestade e se vê obrigado a fazer uma parada em psicológica.
alguma estalagem. Desviado do caminho, encontra um O psiquiatra suíço Carl Gustav Jung chamou de
incrível castelo. É curioso, Maurice nota, que todo o lugar “Sombra” a personificação do inconsciente pessoal. O
parece estar preparado para sua recepção: mesa a inconsciente é a esfera da mente à qual as pessoas não
postos, um prato para o visitante, comida farta, entre têm acesso em estado de vigília, embora seja possível
outros benefícios. O viajante, entretanto, não encontra o acessar essa estância psíquica mediante sonhos,
anfitrião em lugar algum. Já de partida, ele vê um belo meditação, estados alterados de consciência, profundas
roseiral nas terras do palácio, e se lembra da promessa reflexões e muita autocrítica.
à filha. Ao tirar uma rosa do lugar, uma terrível besta A Sombra é representada em antigos mitos e contos de
surge e lhe diz que, pela insolência em roubar uma rosa fadas como o maior desafio de heroínas e heróis. É o
julho de 2023 • Edição N⁰ 383

daquele jardim, Maurice teria duas opções: (1) ficar preso dragão, o demônio, o gênio malvado, o inimigo.
no palácio; (2) entregar sua filha à criatura. Na verdade, a Sombra personifica os defeitos que não
Ele é informado que teria apenas o prazo de uma aceitamos em nós mesmos(as). É um símbolo de tudo
semana para decidir. aquilo que rejeitamos em nós, bem como parte de
Ao chegar em sua casa, Maurice pranteia à filha seu instintos que são escondidos das pessoas comuns em
infortúnio. Decidida, Bela parte sob os protestos do pai nome da boa convivência. Em um primeiro momento, a
para o palácio da terrível besta. Ela recebe boas Sombra é como que um “inimigo interior”. O imortal
acomodações no castelo, bem como a melhor Mestre Nazareno, Jesus Cristo, já alertou com extrema
alimentação. Logo, começa a conviver com a criatura, sabedoria: “amai os vossos inimigos”. Há uma profunda
que se apaixona pela jovem e declara seu amor. verdade psicológica nessa frase: o maior inimigo que
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Em busca de certa liberdade, entretanto, Bela deseja existe mora no interior de cada pessoa. Quando isso não
sair do palácio. Já na cidade, informa às pessoas que a é reconhecido, passamos a ver inimigos nos rostos das
Fera não é uma criatura má, mas a população, muito pessoas que nos circundam.
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Qual o melhor caminho para evitar esse “sequestro”
da Fera e os piores defeitos que residem dentro de
cada um(a) de nós? A própria filmografia da Disney
traz a resposta em forma simbólica: o beijo de Bela –
Quando alguém é incapaz de admitir a raiva, a personificação da virtude do amor. Antes do amor, é
impulsividade, o orgulho, e todos os terríveis defeitos necessário coragem para reconhecer os próprios
comuns à humanidade, a Sombra surge (representada defeitos e vícios. Encarar as próprias sombras da alma
em sonhos, situações cotidianas, “surtos” de raiva ou na é coisa extremamente difícil, de fato. A psicoterapia,
personalidade de outrem) para lembrar a pessoa de sua para quem tem condições, é um excelente começo.
falibilidade. O ditado popular também possui sua Algumas religiões – quando não em sua versão
sabedoria: “quanto mais alto, maior a queda”. Os antigos repressiva ou “castradora” – também favorecem o
gregos e budistas ensinam uma pacífica solução: a trabalho correto da própria Sombra psicológica.
virtude está no “caminho do meio”, com evitação dos Mesmo fora dos meios religiosos, existem filosofias de
extremismos. vida que propõem uma revisão diária do próprio
A Sombra é uma representação daquilo que ainda não comportamento ao final do dia.
se tornou consciente. Por esse motivo, ela não é de todo Apesar da dificuldade em encarar a Fera interior, a
algo ruim. experiência mostra que não é correto simplesmente
Embora seja o repositório psíquico de todos os reprimir nossas faltas sob a “máscara do bom moço”
defeitos negados, ela também guarda as potencialidades
que qualquer pessoa pode alcançar, se buscar expandir ou da “boa moça”. O mais correto é acolher a própria
sua consciência acerca de si mesmo(a). Sombra através do amor. Quando nos aproximamos de
nossa humanidade, também somos aproximados(as)

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da humanidade de outras pessoas. A Fera, antes vista –
como que num espelho – no rosto das pessoas ao
MAS, AFINAL, O QUE ISSO TEM A VER COM A BELA E A FERA?
nosso redor, passa a ser reconhecida e ouvida em nós
Segundo essa interpretação, é preciso ver a Bela e a mesmos(as). Passamos a ter mais respeito por essa
Fera como uma única pessoa. Antigos contos possuem parte de nós, tratando-a com a importância que
verdades psicológicas escondidas, e as personagens da merece através de boas reflexões, autocrítica e
Disney precisam ser vistas como “pessoas interiores” ou autoconhecimento profundo. Ouvimos os apelos da
partes de nós mesmos(as). A Bela seria o lado mais Fera apenas para descobrir, como Bela, que é nossa
inocente, puro, independente e feliz que reside dentro de parte mais medrosa e carente de proteção, cuidado e
cada pessoa. A Fera é a Sombra que não foi elaborada carinho. Reduzimos as defesas da Sombra.
corretamente. Quando nós (a Bela) passamos por uma Após o reconhecimento e o corajoso beijo em nossa
situação que nos incomoda e não temos consciência de “ferinha interior”, deixamos a cara feia, as “garras”, a
nossos próprios defeitos, os sentimentos mais terríveis “pelagem” e a raiva de lado, assim como Bela deixa sua
(a Fera) transbordam de nossa mente e coração para o “pose” de “mulher perfeita” e atingimos o equilíbrio da
mundo exterior e, assim, aparecem às pessoas ao redor. maturidade profunda. O beijo (o amor) transforma a
Basta ver o sujeito gentil tomado de um súbito acesso Fera (a Sombra) em um belíssimo príncipe, revelado
de raiva, ou a pessoa rigidamente puritana que cai sob por detrás do medo de se olhar no espelho com todas
as delícias de boa dose de álcool. as hipocrisias. A partir disso, é possível começar a
A falta de consciência sobre próprios defeitos e a pensar em nossa humanização: perceber que somos
ausência da admissão de que eles existem dentro de seres complexos que necessitam de frequentes
cada um(a) de nós apenas torna a Sombra (a Fera) reajustes de rota, autocrítica diária, busca pelo
mais irritada. Ela se sente não ouvida e, nos momentos conhecimento de nossa vida interior e expansão da
mais imprevisíveis, resolve tomar nossa bondosa consciência, ao infinito. Em “A Bela e a Fera”, isso é
consciência (a Bela) à força e revelar-se da maneira retratado como o casamento das duas personagens
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mais grotesca. Pessoas invigilantes e que não são que, agora em paz, podem gerenciar com maior
honestas consigo mesmas facilmente caem sob as responsabilidade e (auto)domínio o palácio e suas
garras da Sombra. São, como Bela, como que localidades, representações de nosso corpo físico e das
“sequestradas” de sua consciência comum de “pessoa relações que temos com familiares e amigos(as).
de bem” pela Sombra (a Fera), e se tornam Ser rei, rainha, príncipe ou princesa de outras
momentaneamente aquilo que mais detestavam. As pessoas é fácil...a grande dificuldade está em ser
pessoas que mais adoram apontar defeitos, realizar imperador ou imperatriz de si mesmo(a).
fofocas e ver a maldade em tudo, são as que mais
padecem do sequestro da Fera. Ela está ali, em todo o
canto, a assombrar o indivíduo em personalidades
exteriores e interiores.
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