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CRISTIANA

SEIXAS
Cristiana Seixas é psicóloga, biblioterapeuta, mestre em Educação pela UFF, espe-
cialista em arteterapia, focalizadora de danças circulares e consteladora familiar.
É contínua buscadora de veículos sensíveis de cuidado e expressão. Assumiu des-
de 2011 o propósito em solidificar e socializar a função terapêutica da literatura.

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REPAGINAR COM LIVROS

— PRECISO aprender a ser mais feminina — ela me disse, já no pri-


meiro encontro. Aos poucos desfiou seu desamparo do passado que
insiste em turvar o presente. Sem ter com quem contar, ainda menina,
descobriu formas de resistência e formou fria couraça que petrificou
seu coração.
Adulta, por muitos anos, ocupou cargo de liderança numa grande
empresa. Rigorosa e exigente, trabalhava como um trator. Sua fragi-
lidade permanecera escondida, assim como tantas outras sensibilida-
des. Metas ousadas eram alcançadas, afinal sua energia amalgamada
com dor e raiva diante de seus vazios afetivos era canalizada aos resul-
tados. Empresas valorizam e remuneram bem pessoas assim. E isso só
a fazia cobrar cada vez mais dos outros e de si mesma. O ritmo, porém,
tornou-se insustentável.
Ela surpreendeu ao se repaginar: saiu do ambiente corporativo e
passou a atuar como psicóloga autônoma. A autoexigência, porém,
não a abandonou. Pelo contrário, sem a remuneração fixa, ela redo-
brou suas cobranças. Pausar, respirar, tirar férias continuam sendo
grandes desafios. As restrições impostas pela pandemia da Covid-19
intensificaram as demandas e responsabilidades com a filha pequena
que mora com ela.
Diante desse cenário, fomos, aos poucos espreitando e experimen-
tando dar espaço às poéticas no cotidiano. Assim, entre diálogos com
trechos da literatura e ponderações sobre seu modo automático de ser,

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ela iniciou os laboratórios de si: retomou a meditação, a dança, buscou
programar viagens de final de semana e criar espaço para pedalar ao
vento. Não sem esforço. Sem vigília, seu modo automático se mani-
festa, como a engrenagem imortalizada por Chaplin, no filme Tempos
Modernos, ao repetir padrões como peças de grande máquina. Outra
recomendação que foi prontamente acolhida foi a participação em al-
gum grupo de leitura de Mulheres que correm com os lobos, de Claris-
sa Pinkola Estés (1994). São 15 capítulos de histórias arquetípicas do
resgate da mulher selvagem. Mulheres no mundo todo se reúnem para
trocar suas próprias histórias provocadas pelas leituras.
No dia a dia, contou-me que fica muito agressiva diante dos desres-
peitos sociais. Toda vez que alguém é ignorado, ela sente como se fosse
com ela, como se sua cota de desvalia já tivesse se esgotado. Cada um
tem seu ponto de saturação. Quando o nível limite é alcançado, parece
que um monstro é despertado das profundezas. Quem descreve o pro-
cesso é Thiago de Mello (2013, p. 29):

Não sei nem jamais


saberei o nome
(se acaso tem nome)
do bicho que dorme
no escuro do açude
sem fundo que sou.
Nascido, senão
comigo, de mim,
é um bicho, ou como
se fosse; e que dorme.
Nem sempre ele dorme.
Talvez o agasalhem,
de sono enrolado,
as mais fundas águas
que em minha alma dormem:
— as águas e o bicho
num sono só, feito
de grávidos nadas
espessos e imóveis.
Mas nem sempre imóveis.
Um dia estremecem:
sem causa, e de súbito,

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um tremor percorre,
longínquo, levíssimo,
o nervo das águas
— essas águas fundas
que enrolam, dormidas,
o sono do bicho,
que já não é sono:
mal findo o arrepio,
começa a lavrar
o incêndio no açude.

Como encontrar saída para esses incêndios, para lidar com tantos
detonadores internos e externos? Na biblioterapia, o compromisso é
com a expressão e ampliação do repertório do imaginário para esprei-
tar outras lógicas. No término de cada atendimento, costumo enviar
pelo Whatsapp as fotos das capas dos livros e trechos apresentados nas
sessões. A prática permite uma cartografia biblioterapêutica. Este caso
foi selecionado por ser um padrão recorrente que aflige muitas mulhe-
res, inclusive a mim. Apresentarei a seguir algumas leituras partilhadas
após escuta das questões trazidas.
Para dar acolhimento aos descaminhos que nos constituem, ofereci
o poema “Astrologia” de Quintana (2006, p. 119):

Minha estrela não é a de Belém:


A que, parada, aguarda o peregrino.
Sem importar-se com qualquer destino
A minha estrela vai seguindo além…

— Meu Deus, o que é que esse menino tem? -


Já suspeitavam desde eu pequenino.
O que eu tenho? É uma estrela em desatino…
E nos desentendemos muito bem!

E quando tudo parecia a esmo


E nesses descaminhos me perdia
Encontrei muitas vezes a mim mesmo…

Eu temo é uma traição do instinto


Que me liberte, por acaso, um dia
Deste velho e encantado Labirinto.

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Os verbos permitir e desfrutar são abordados com frequência nas ses-
sões. Faz parte do trabalho dar atenção às palavras, pois elas tanto podem
reforçar o que não se quer mais, quanto anunciar novas possibilidades.
A paciente verbalizou que dorme muito pouco. Diante da não diges-
tão de pensamentos, o corpo não pode relaxar.  Em diálogo, apresentei
fragmento de A conferência dos pássaros, de Peter Sis (2013, n.p.):

Poupa: Por que você não dorme, passarinho?


Todos nós precisamos descansar.

Passarinho: Nunca estou


totalmente seguro. Um dia estou
confiante, no outro estou incerto.
Um dia fico aflito, no outro alço 
voo. Sou fraco, sou frágil.
Nunca estou em harmonia.

Poupa: Todos têm altos e baixos, passarinho.


Voe… purifique seu coração.

A tarefa de purificar o coração e a mente requer dedicação diária.


Para isso, prescrevi como “homeopatia literária”, ou seja, para ler dia-
riamente, Cânticos, de Cecília Meireles (1982, n. p.):

VI

Tu tens um medo:
Acabar.
Não vês que acabas todo o dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo o dia.
No amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.

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Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.

E então serás eterno.

IX

Os teus ouvidos estão enganados.


E os teus olhos.
E as tuas mãos.
E a tua boca anda mentindo
Enganada pelos teus sentidos.
Faze silêncio no teu corpo.
E escuta-te.
Há uma verdade silenciosa dentro de ti.
A verdade sem palavras.
Quem procuras inutilmente,
Há tanto tempo,
Pelo teu corpo que enlouqueceu.

O corpo é sábio. Ele reconhece quando os limites são ultrapassados


e envia seus sinais. Escreveu Adélia Prado (2014, p. 41): “Minha fra-
queza me põe no caminho certo”. Nosso corpo é fio de prumo, precisa
ser olhado, cuidado e ouvido. Se o ignoramos, ele nos derruba. É nossa
terra. Quem lida com ela sabe que é preciso ter consideração e respeito
pelos seus sagrados tempos preparo, semeadura e colheita. Vivemos
a era da ansiedade, desejamos soluções mágicas e rápidas, mas, ape-
sar da aceleração do cotidiano, os processos humanos são tão lentos
quanto sempre foram. Há fragmento no O jardineiro que tinha fé, de
Clarissa Pinkola Estès (1996, p. 36-37), que ilustra o processo:

É verdade que em muitos lugares o Éden está


enterrado e esquecido, mas o jardim pode ser
restaurado. Onde quer que haja terra sem uso,
mal utilizada ou exausta, o Éden ainda está bem
ali embaixo.
Só que nós não íamos querer escavar a terra para
lhe devolver a vida, nem tentar recriar o Éden a
grandes pazadas. Não, não. Não importa o tama-

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nho do jardim — seja ele de um côvado por um,
tenha ele campos tão imensos que não se veja o
fim — quando se está plantando direto; deve-se
afagar a terra, sem parar, remexendo pequenos
punhados dela. Ser delicado. Ser econômico. Não
tirar enormes pazadas para terminar o trabalho
mais rápido. Como na hora de derramar o leite
sobre a farinha, não se joga todo o leite de uma
vez. Não, com delicadeza derrama-se um pou-
quinho, mexe-se um pouquinho, derrama-se um
pouco mais, mexe-se um pouco mais, e é assim
que se deve tratar a terra, com consideração, com
presença de espírito.
Foi assim que aprendi que esta terra, da qual
dependíamos para nossa alimentação, nosso
ganha-pão, nosso descanso, para a oportunida-
de de ver a beleza, deveria ser tratada da mesma
maneira que esperaríamos tratar os outros e a
nós mesmos. O que quer que seja que aconteça
a este campo, de algum modo, também aconte-
ce a nós.

A lógica da produtividade reduziu nossa capacidade de desacelerar,


sentir, devanear e usufruir. Essa dinâmica é descrita com maestria por
Eugène Ionesco, citado por Nuccio Ordine, em A utilidade do inútil
(2016, p. 96):

O homem moderno, universal, é um homem


atarefado: não tem tempo, é prisioneiro da ne-
cessidade, não compreende como algo possa
não ser útil; não compreende nem como, na
realidade, até mesmo o útil possa ser um peso
inútil, esmagador. Se não se compreende a utili-
dade do inútil, a inutilidade do útil, não se com-
preende a arte; um país que não compreende a
arte é um país de escravos ou de robôs, um país
de pessoas infelizes, de pessoas que não riem
nem sorriem, um país sem espírito; onde não
há humor, não há riso, há cólera e ódio.

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Da literatura infantil e juvenil para todas as idades, há livro que vi-
bra na mesma frequência dessa busca de inteireza: A alma perdida,
de Olga Tokarczuk (2020), que foi apresentado à paciente. Conta a
história de um homem que trabalhava com pressa e sem descanso e
que há muito tempo havia deixado a alma num lugar distante. Um dia
ele passa mal, já nem podia respirar, se reconhecer. Chega a esquecer
seu próprio nome. Ao se consultar com uma médica velha e sábia, ela
contou que o mundo está repleto de pessoas que andam apressadas e
que as almas não conseguem acompanhá-las. Ela sugeriu que ele en-
contrasse um lugar só para si, que se sentasse e aguardasse sua alma,
com paciência pois ela deveria estar no lugar onde ele havia passado
há dois ou três anos. A espera poderia demorar, mas não havia outro
jeito. Depois de muita espera, a alma chegou cansada, suja e arranhada.
Aos poucos, o homem e sua alma foram se conhecendo. Desde então, o
homem passou a prestar atenção para não fazer nada numa velocidade
que sua alma não pudesse acompanhar. O livro é belíssimo, farto em
ilustrações, que reverberam profundamente.
O excesso de informações e estímulos fomentam enfermidades neu-
ronais, como a ansiedade. No caso da paciente, a ansiedade também
se manifestava no excesso de organização. Quando me contou isso,
lembrei imediatamente da A menina que organizava, de Eve Ferretti e
Fabiola Werlang (2016). O livro conta a história de uma menina dife-
rente das demais, que desde pequenina gostava de organizar. Andava
impecável, alinhava objetos, nem se mexia ao dormir para não deixar
vestígios. Adulta, dispensou pretendentes por serem desalinhados. Seu
rigor a isolou dos outros. A história traz um final seco e deixa no ar a
perplexidade. Ao terminar a leitura, comentei da possibilidade gerada
pelo livro de condensar o tempo e nos permitir ver o desdobramento
de certas maneiras de ser.  A paciente, além de visivelmente engolir a
seco, me contou que havia lembrado de três pessoas que ela atendia
que precisavam dessa história. Essa é outra característica da bibliotera-
pia: há grande chance de quem é cuidado tornar-se cuidador, pelo im-
pacto irresistível proporcionado por livros criteriosamente escolhidos. 
Diante dos excessos, o antídoto é se distanciar do torvelinho do co-
tidiano para discernir o que é essencial e desapegar do que não for.
Quem ensina como fazê-lo é Fernando Pessoa (1996, p. 115), em tre-

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cho que impactou a paciente: “Quem quer pouco, tem tudo; quem quer
nada/É livre; quem não tem, e não deseja,/Homem, é igual aos deuses”. 
Colocar essas palavras em ação é desafiante! O importante é adotar
o “abandono generoso”, expressão que aprendi com Ítalo Calvino, em
Cidades Invisíveis (1990, p. 104):

Preocupada em acumular os seus quilates de


perfeição, Bersabeia crê que seja virtude aquilo
que a esta altura é uma melancólica obsessão de
preencher os receptáculos vazios de si mesma;
não sabe que os seus únicos momentos de aban-
dono generoso são aqueles em que se despren-
de, deixa cair, se expande.

Ao soltar, algo se expande. Na sessão, perguntei: do que você se-


ria capaz de abrir mão para conseguir o que deseja? São provocações
lançadas de uma semana à outra, pois sei que precisam circular por
mais tempo, antes de serem respondidas. Nesse diálogo de muitas vo-
zes, partilhei a importância da desistência, que li em Clarice Lispector
(1998, p. 176): “A desistência tem que ser uma escolha. Desistir é a
escolha mais sagrada de uma vida. Desistir é o verdadeiro instante hu-
mano. E só esta é a glória própria de minha condição. A desistência
é uma revelação”. Esse conhecimento retornou às sessões na fala da
paciente algumas vezes. Para mim, isso é evidência que foram narrati-
vas estruturantes. Ela não está mais só, segue acompanhada de Pessoa,
Clarice, Calvino, Cecília, Quintana.
Por quem somos povoados? Foi provocação que ela me trouxe como
reflexão, ouvida em alguma palestra. E discutimos da necessidade de
fazer essas purificações: se desintoxicar de certas vozes e paralelamen-
te nutrir e conectar com falas e ideias que possam nos levar a novas
possibilidades de ser, a despeito das histórias herdadas, aprendidas,
vivenciadas. Quem descreve a árdua tarefa dessa faxina é Adélia Prado
(1991, p. 75):

Se eu pudesse, hoje, varria, isto mesmo, varria


as pessoas todas com vassoura, como se fossem
cisco. Limpava o chão, passava pano molhado
para refrescar, ia chorar e dormir. [...] Gosto de

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ir até o fundo da cisterna e revirar o lodo, tirar
ele com a mão, me emporcalhar bastante, só pra
depois ver a água minando clarinha de novo.

A terapia, dentre outras práticas, revira o lodo, mexe no fundo do


tacho (onde fica tanta coisa agarrada), para clarear caminhos mais le-
ves. É só para os corajosos! E a literatura é catalisadora do processo:
vamos aos poucos, em diálogo, desapegando de algumas histórias e
dando espaço para novas narrativas. Isso faz lembrar de significati-
va contribuição de Andrea Nogueira, aluna do curso Biblioterapia
à liberdade, em encontro do Grupo de Estudos online realizado em
7/07/21. Ela comentou que na antiguidade utilizava-se o papiro para as
escrituras. Como era muito caro, o material não era descartado. Para
o reuso, as palavras eram raspadas e por cima se inscreviam outras.
Diante da fragilidade, nem tudo raspado era apagado totalmente e as
tramas do papel mesclavam-se às tramas das palavras, antigas e novas.
Assim somos nós: já recebemos algumas inscrições antes de chegar-
mos ao mundo: nosso nome, heranças ancestrais. Outras vão sendo
acumuladas ao longo das experiências: marcas culturais, educacionais
institucionais e travessias emocionais. Há tempos em que desejamos
rasurar algumas palavras de nossa história e rascunhar outras no lugar. 
A literatura pode ajudar nessa empreitada de repaginação, seja para ser
mais feminina, desobediente, independente ou mesmo mais humilde,
humana, em paz com seus vazios e inacabamentos.

Bibliografia

CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. Tradução de Diogo Mainardi.


São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
ESTÉS, Clarissa Pinkola. O jardineiro que tinha fé: uma fábula sobre o
que não pode morrer nunca. Tradução de Waldéa Barcellos. Rio de
Janeiro: Rocco, 1996.

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__________. Mulheres que correm com os lobos: mitos e histórias do
arquétipo da mulher selvagem. Tradução de Waldéa Barcellos; con-
sultoria da coleção de Alzira M. Cohen. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco,
1998.
MEIRELES, Cecília. Cânticos. São Paulo: Moderna, 1982.
MELLO, Thiago de. Como sou. São Paulo: Global, 2013.
ORDINE, Nuccio. A utilidade do inútil: um manifesto. Tradução Luiz
Carlos Bombassaro. Rio de Janeiro: Zahar, 2016.
PESSOA, Fernando. Poesias/Fernando Antonio Nogueira Pessoa. Orga-
nização de Sueli Tomazini Cassal. Porto Alegre: L&PM, 1996.
PRADO, Adélia. Miserere. Rio de Janeiro: Record, 2014.
__________. Solte os cachorros. 4 ed. São Paulo: Siciliano, 1991.
QUINTANA, Mario. Baú de espantos. Organização Tania Franco Car-
valhal. São Paulo: Globo, 2006.
SIS, Peter. A conferência dos pássaros. Tradução Érico Assis. São Paulo:
Companhia das Letras, 2013.
TOKARCZUK, Olga; CONCEJO, Joana. A alma perdida. Tradução:
Gabriel Borowski. São Paulo: Todavia, 2020.
WERLANG, Fabiola; FERRETTI, Eve. A menina que organizava. São
Paulo: Peirópolis, 2016.

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