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SEIXAS
Cristiana Seixas é psicóloga, biblioterapeuta, mestre em Educação pela UFF, espe-
cialista em arteterapia, focalizadora de danças circulares e consteladora familiar.
É contínua buscadora de veículos sensíveis de cuidado e expressão. Assumiu des-
de 2011 o propósito em solidificar e socializar a função terapêutica da literatura.
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REPAGINAR COM LIVROS
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ela iniciou os laboratórios de si: retomou a meditação, a dança, buscou
programar viagens de final de semana e criar espaço para pedalar ao
vento. Não sem esforço. Sem vigília, seu modo automático se mani-
festa, como a engrenagem imortalizada por Chaplin, no filme Tempos
Modernos, ao repetir padrões como peças de grande máquina. Outra
recomendação que foi prontamente acolhida foi a participação em al-
gum grupo de leitura de Mulheres que correm com os lobos, de Claris-
sa Pinkola Estés (1994). São 15 capítulos de histórias arquetípicas do
resgate da mulher selvagem. Mulheres no mundo todo se reúnem para
trocar suas próprias histórias provocadas pelas leituras.
No dia a dia, contou-me que fica muito agressiva diante dos desres-
peitos sociais. Toda vez que alguém é ignorado, ela sente como se fosse
com ela, como se sua cota de desvalia já tivesse se esgotado. Cada um
tem seu ponto de saturação. Quando o nível limite é alcançado, parece
que um monstro é despertado das profundezas. Quem descreve o pro-
cesso é Thiago de Mello (2013, p. 29):
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um tremor percorre,
longínquo, levíssimo,
o nervo das águas
— essas águas fundas
que enrolam, dormidas,
o sono do bicho,
que já não é sono:
mal findo o arrepio,
começa a lavrar
o incêndio no açude.
Como encontrar saída para esses incêndios, para lidar com tantos
detonadores internos e externos? Na biblioterapia, o compromisso é
com a expressão e ampliação do repertório do imaginário para esprei-
tar outras lógicas. No término de cada atendimento, costumo enviar
pelo Whatsapp as fotos das capas dos livros e trechos apresentados nas
sessões. A prática permite uma cartografia biblioterapêutica. Este caso
foi selecionado por ser um padrão recorrente que aflige muitas mulhe-
res, inclusive a mim. Apresentarei a seguir algumas leituras partilhadas
após escuta das questões trazidas.
Para dar acolhimento aos descaminhos que nos constituem, ofereci
o poema “Astrologia” de Quintana (2006, p. 119):
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Os verbos permitir e desfrutar são abordados com frequência nas ses-
sões. Faz parte do trabalho dar atenção às palavras, pois elas tanto podem
reforçar o que não se quer mais, quanto anunciar novas possibilidades.
A paciente verbalizou que dorme muito pouco. Diante da não diges-
tão de pensamentos, o corpo não pode relaxar. Em diálogo, apresentei
fragmento de A conferência dos pássaros, de Peter Sis (2013, n.p.):
VI
Tu tens um medo:
Acabar.
Não vês que acabas todo o dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo o dia.
No amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
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Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.
IX
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nho do jardim — seja ele de um côvado por um,
tenha ele campos tão imensos que não se veja o
fim — quando se está plantando direto; deve-se
afagar a terra, sem parar, remexendo pequenos
punhados dela. Ser delicado. Ser econômico. Não
tirar enormes pazadas para terminar o trabalho
mais rápido. Como na hora de derramar o leite
sobre a farinha, não se joga todo o leite de uma
vez. Não, com delicadeza derrama-se um pou-
quinho, mexe-se um pouquinho, derrama-se um
pouco mais, mexe-se um pouco mais, e é assim
que se deve tratar a terra, com consideração, com
presença de espírito.
Foi assim que aprendi que esta terra, da qual
dependíamos para nossa alimentação, nosso
ganha-pão, nosso descanso, para a oportunida-
de de ver a beleza, deveria ser tratada da mesma
maneira que esperaríamos tratar os outros e a
nós mesmos. O que quer que seja que aconteça
a este campo, de algum modo, também aconte-
ce a nós.
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Da literatura infantil e juvenil para todas as idades, há livro que vi-
bra na mesma frequência dessa busca de inteireza: A alma perdida,
de Olga Tokarczuk (2020), que foi apresentado à paciente. Conta a
história de um homem que trabalhava com pressa e sem descanso e
que há muito tempo havia deixado a alma num lugar distante. Um dia
ele passa mal, já nem podia respirar, se reconhecer. Chega a esquecer
seu próprio nome. Ao se consultar com uma médica velha e sábia, ela
contou que o mundo está repleto de pessoas que andam apressadas e
que as almas não conseguem acompanhá-las. Ela sugeriu que ele en-
contrasse um lugar só para si, que se sentasse e aguardasse sua alma,
com paciência pois ela deveria estar no lugar onde ele havia passado
há dois ou três anos. A espera poderia demorar, mas não havia outro
jeito. Depois de muita espera, a alma chegou cansada, suja e arranhada.
Aos poucos, o homem e sua alma foram se conhecendo. Desde então, o
homem passou a prestar atenção para não fazer nada numa velocidade
que sua alma não pudesse acompanhar. O livro é belíssimo, farto em
ilustrações, que reverberam profundamente.
O excesso de informações e estímulos fomentam enfermidades neu-
ronais, como a ansiedade. No caso da paciente, a ansiedade também
se manifestava no excesso de organização. Quando me contou isso,
lembrei imediatamente da A menina que organizava, de Eve Ferretti e
Fabiola Werlang (2016). O livro conta a história de uma menina dife-
rente das demais, que desde pequenina gostava de organizar. Andava
impecável, alinhava objetos, nem se mexia ao dormir para não deixar
vestígios. Adulta, dispensou pretendentes por serem desalinhados. Seu
rigor a isolou dos outros. A história traz um final seco e deixa no ar a
perplexidade. Ao terminar a leitura, comentei da possibilidade gerada
pelo livro de condensar o tempo e nos permitir ver o desdobramento
de certas maneiras de ser. A paciente, além de visivelmente engolir a
seco, me contou que havia lembrado de três pessoas que ela atendia
que precisavam dessa história. Essa é outra característica da bibliotera-
pia: há grande chance de quem é cuidado tornar-se cuidador, pelo im-
pacto irresistível proporcionado por livros criteriosamente escolhidos.
Diante dos excessos, o antídoto é se distanciar do torvelinho do co-
tidiano para discernir o que é essencial e desapegar do que não for.
Quem ensina como fazê-lo é Fernando Pessoa (1996, p. 115), em tre-
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cho que impactou a paciente: “Quem quer pouco, tem tudo; quem quer
nada/É livre; quem não tem, e não deseja,/Homem, é igual aos deuses”.
Colocar essas palavras em ação é desafiante! O importante é adotar
o “abandono generoso”, expressão que aprendi com Ítalo Calvino, em
Cidades Invisíveis (1990, p. 104):
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ir até o fundo da cisterna e revirar o lodo, tirar
ele com a mão, me emporcalhar bastante, só pra
depois ver a água minando clarinha de novo.
Bibliografia
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__________. Mulheres que correm com os lobos: mitos e histórias do
arquétipo da mulher selvagem. Tradução de Waldéa Barcellos; con-
sultoria da coleção de Alzira M. Cohen. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco,
1998.
MEIRELES, Cecília. Cânticos. São Paulo: Moderna, 1982.
MELLO, Thiago de. Como sou. São Paulo: Global, 2013.
ORDINE, Nuccio. A utilidade do inútil: um manifesto. Tradução Luiz
Carlos Bombassaro. Rio de Janeiro: Zahar, 2016.
PESSOA, Fernando. Poesias/Fernando Antonio Nogueira Pessoa. Orga-
nização de Sueli Tomazini Cassal. Porto Alegre: L&PM, 1996.
PRADO, Adélia. Miserere. Rio de Janeiro: Record, 2014.
__________. Solte os cachorros. 4 ed. São Paulo: Siciliano, 1991.
QUINTANA, Mario. Baú de espantos. Organização Tania Franco Car-
valhal. São Paulo: Globo, 2006.
SIS, Peter. A conferência dos pássaros. Tradução Érico Assis. São Paulo:
Companhia das Letras, 2013.
TOKARCZUK, Olga; CONCEJO, Joana. A alma perdida. Tradução:
Gabriel Borowski. São Paulo: Todavia, 2020.
WERLANG, Fabiola; FERRETTI, Eve. A menina que organizava. São
Paulo: Peirópolis, 2016.
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