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MÓDULO ESCRITA FILOSÓFICA

Exegese versus
Argumentação

Curso online
Produção de
textos filosóficos
Prof. Dr. Mateus Salvadori
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Exegese versus Argumentação

EXEGESE VERSUS ARGUMENTAÇÃO

ARGUMENTATIVO EXEGÉTICO

1. PARADIGMA Disputa entre ideias Interpretação do pensamento


de um autor ou autores
2. OBJETO Ponto (sentença simples sujeito, Pergunta
CENTRAL verbo e complemento)
3. FINALIDADE Mostrar que alguém está certo Ampliar a compreensão
GERAL ou errado relativamente a que temos sobre o
um ponto pensamento de alguém
4. FINALIDADE Provar ou refutar ideias Explorar de maneira intensa
ESPECÍFICA o que o filósofo pensou
sobre o assunto
5. ESTRATÉGIAS a) análise das ideias que estão a) dissecar a ideia que está
MAIS COMUNS em jogo em cada um dos lados para ser compreendida, mos-
da disputa, buscando explicitar trando as origens, as influên-
a estrutura, as intuições de cias, a maneira particular
fundo, o conteúdo de cada parte como ela é pensada pelo
dos argumentos envolvidos etc.; filósofo em questão, o papel
b) argumentação dentro do corpus;
b) discutir interpretações
já dadas

6. FOCO No problema No autor

7. VOCABULÁRIO Mais enxuto, prescindindo Mais barroco, utilizando


de vocabulário rebuscado um vocabulário próprio
(embora frequentemente do autor e frequentemente
utilizando vocabulário técnico) empregando jargão
8. CONSIDERAÇÕES Frequentemente Necessárias
HISTORIOGRÁFICAS desnecessárias

9. OPINIÃO DE Frequentemente Necessárias


COMENTADORES desnecessárias
10. PONTO DE VISTA Frequentemente necessário Muito frequentemente
DO PRÓPRIO AUTOR e explícito desnecessário e/ou implícito
11. VOZ Frequentemente na Frequentemente na
primeira pessoa do singular terceira pessoa
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Exegese versus Argumentação

ESTILO ARGUMENTATIVO

- Em geral, o estilo argumentativo de texto é aquele que de um modo ou de


outro gira em torno de uma disputa entre ideias, ou pontos de vista, sobre algo.
Isso quer dizer que esse estilo de trabalho sempre se baseia, de um modo ou de
outro, numa tentativa de mostrar que determinado filósofo está certo ou errado
relativamente a determinado ponto.
- Ele dá muita atenção à análise das ideias que estão em jogo em cada um dos
lados da disputa – e sempre há pelo menos dois lados –, buscando explicitar a
estrutura dessas ideias, suas intuições de fundo, o conteúdo de cada uma das
partes dos argumentos envolvidos etc., com a finalidade de provar tais ideias ou
refutá-las.
- Em geral, o foco desse tipo de trabalho é no problema (o problema que gerou
a disputa), e não no filósofo. Isso significa que a pessoa que opta por trabalhar
com esse tipo de metodologia se debruça sobre determinado filósofo para ver o
que ele tem a dizer contra ou a favor do ponto que está sob disputa, deixando
em segundo plano o que ele eventualmente tenha dito sobre outros assuntos.
- A escrita argumentativa costuma ser bem enxuta, prescindindo do uso de vo-
cabulários rebuscados, isto é, de jargão (embora frequentemente se utilize de
vocabulário técnico); e prescindindo também de considerações historiográficas
e mesmo de comentadores (i.e., de intérpretes dos filósofos que estão sendo
abordados).
- Ela tem como um de seus traços marcantes a expressão (que pode ser mais ou
menos explícita) do ponto de vista do próprio autor, quer dizer, a própria pessoa
que está escrevendo o trabalho é bem-vinda para emitir juízos de valor sobre a
qualidade e alcance dos argumentos que estão sendo abordados, o que ela nor-
malmente faz utilizando pronomes na primeira pessoa do singular.
- Usando a analogia entre argumentos e engrenagens de um motor, podemos
dizer o seguinte: o autor de um texto argumentativo faz como um engenheiro
mecânico, quando este avalia um problema acometendo um motor que está em
fase de testes. Assim como o engenheiro mecânico emite juízos sobre quais
peças do motor precisariam ser substituídas para que o problema seja resolvido,
assim também o autor de um texto argumentativo emite juízos sobre que partes
do argumento de alguém não estão funcionando ou não estão tendo o alcance
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que precisam ter para os fins a que se destinam, e por quê. Em outras palavras:
o engenheiro mecânico dá palpite sobre o que está certo e o que está errado no
motor recém-construído. De modo semelhante, o autor de um texto argumenta-
tivo dá palpite sobre onde a teoria de determinada pessoa está certa e onde está
errada e o porquê.

ESTILO EXEGÉTICO

- Já o estilo exegético tem mais ou menos as características opostas: ele não


costuma envolver disputa entre ideias, nem mesmo indiretamente.
- Seu foco geralmente é a busca por melhor compreender determinada ideia na
obra de determinado filósofo. Ou seja, o trabalho exegético é um trabalho inter-
pretativo, e não “disputativo”.
- Ele não visa provar que alguém está certo ou errado, e sim ampliar a compre-
ensão que temos sobre o pensamento de alguém. Para isso, ele procura dissecar
a ideia que está para ser compreendida, mostrando suas origens, suas influên-
cias, a maneira particular como ela é pensada pelo filósofo em questão, o papel
que ela desempenha dentro do corpus desse filósofo, enfim, procura explorar de
maneira intensa aquilo que o filósofo pensou sobre um assunto.
- Graças a isso, o foco desse tipo de trabalho é no filósofo, e não no problema.
Isso significa que a pessoa que opta por trabalhar com esse tipo de metodologia
se debruça sobre um filósofo para poder compreendê-lo de maneira mais apro-
fundada, eventualmente deixando em segundo plano o que outros filósofos
tenham dito contra ou a favor algum ponto específico que o filósofo aborda.
- Além disso, a escrita exegética costuma ser mais barroca, valorizando o uso
do vocabulário próprio do autor (seu jargão próprio), valorizando elementos
historiográficos, bem como a relação do filósofo em questão com a tradição na
qual está inserido; faz uso profuso de comentadores; e, tem como um de seus
traços marcantes o fato de que o autor costuma se abster de expressar seus pró-
prios pontos de vista, ou emitir juízos de valor sobre o que está sendo abordado.
- O autor fala sobre um filósofo, mas não discute com (ou contra) ele. E, vale
ressaltar, esse estilo tem grande expressividade no cenário brasileiro, podendo-
-se dizer que ele predomina na produção acadêmica nacional.
- Para descrever um texto exegético, a melhor analogia não é com a atuação do
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engenheiro mecânico frente às engrenagens de um motor em fase de testes, e


sim com a atuação de um investigador de polícia, ou detetive, que pretende
investigar um crime, esclarecendo algo que está obscuro. O detetive vai atrás de
certas informações que, juntas, formam uma reconstituição detalhada da cena
do crime. Ele se interessa por saber coisas como: de onde cada item veio e
porque foi colocado ali; qual foi a motivação por trás da mente criminosa; como
exatamente foi a sucessão de eventos; por que foi escolhida tal vítima, e não
outra; como exatamente a arma do crime provocou os danos que provocou, e
assim por diante. Seu objetivo é melhor compreender o crime (que ainda não
está completamente claro), e não palpitar sobre se alguém está certo ou errado.

ESTILO EXEGÉTICO-ARGUMENTATIVO

- Por fim, o trabalho do tipo exegético-argumentativo é aquele que costuma se


propor a realizar uma tarefa dupla: compreender e tomar partido.
- Ele reúne e mescla características dos dois estilos anteriores, porém de manei-
ra extremamente sistemática.
- Em geral, seu objetivo é compreender e deslindar uma disputa entre intérpre-
tes, sobre determinada ideia, presente em determinado filósofo.
- Para tanto, começa com a tarefa do investigador de polícia, reconstituindo a
cena em seus aspectos mais relevantes. Em seguida, identifica um ponto nevrál-
gico onde os especialistas discordam entre si – digamos que os peritos discor-
dam quanto a se o crime foi friamente calculado ou se foi passional. O investi-
gador então observa e compara como cada grupo de peritos justifica sua opi-
nião. Ou, em outras palavras, observa e compara os argumentos fornecidos por
cada grupo de peritos.
- E, em seguida, realiza a tarefa do engenheiro mecânico frente aos argumentos
(ou engrenagens) de cada grupo, identificando e mostrando onde cada um deles
está certo e errado, e tomando partido quanto a qual funciona melhor, ou qual
está mais certo.

Modelo exegético-argumentativo 1: “a tese X pode ser atribuída ao filósofo


Z?”
- Uma das estratégias mistas entre argumentação e exegese consiste em buscar
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compreender se determinada tese pode ser atribuída a determinado filósofo. Ela


é muito utilizada quando o objetivo do autor é ampliar a compressão que se tem
do pensamento de um filósofo quando ele não deixou explícita sua adesão ou
sua rejeição à tese em questão, e cujos textos aparentam uma certa ambiguida-
de, i.e., parecem poder ser entendidos das duas maneiras. Essa estratégia é im-
plementável principalmente quando há discordâncias entre os intérpretes, ou
seja, quando há comentadores que consideram que o filósofo aceita a tese em
questão, e outros que acreditam que ele a nega, pois assim o autor do trabalho
pode executar um plano argumentativo (equilibrado ou persuasivo) para lidar
com as posições dos intérpretes. Exemplo: “Descartes era um compatibilista?”.

Modelo exegético-argumentativo 2: “a ideia X do filósofo Z foi superada?”


- Outra forma de mescla envolve avaliar se as teses advogadas por determinado
filósofo foram superadas pela tradição que se seguiu a ele (ou por seus críticos)
ou se ainda permanecem de pé, sendo defensáveis ainda nos dias de hoje. Como
a estratégia anterior, essa quase sempre só é implementável quando há comen-
tadores que consideram que as ideias do filósofo foram derrubadas por críticos
ou por pensadores posteriores, e outros que acreditam que elas permanecem
vivas e em pleno vigor (ou porque os críticos fizeram delas uma leitura incorre-
ta ou porque as objeções podem ser derrubadas através de tréplicas). Exemplo:
“A fenomenologia superou completamente a distinção kantiana entre númeno e
fenômeno?”
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- É importante ter em mente que esses caminhos de escrita não são os únicos
que existem, mas apenas alguns dos mais comuns. Além disso, seu passo-a-pas-
so não é rígido, ou seja, não se trata de receitas de bolo que têm que ser obedeci-
das à risca para que o produto final dê certo (vale a pena lembrar que o passo-a-
-passo indicado nos diagramas é apenas um exemplo de como cada modelo
pode ser executado, e não a fórmula universal caracterizadora do modelo).
Todos os modelos admitem adaptações e, certamente, o tom pessoal de cada
pesquisador ou escritor também contribui enormemente para variações em
termos de resultado.
- Como é feita a escolha de um caminho? A escolha por um caminho deve levar
em conta diferentes fatores.
-- Um deles é a afinidade, isto é, o gosto pessoal do autor: algumas pessoas
gostam mais de escrever sobre do que de discutir com. Já outras têm a preferên-
cia oposta. E há também as que gostam das duas coisas. Adotar o modo de tra-
balho que mais se gosta tem um grande impacto sobre a qualidade do trabalho
final: quando fazemos o que gostamos temos chances maiores de êxito porque
conseguimos nos dedicar durante mais tempo à tarefa e, consequentemente,
temos chances maiores de ficarmos muito bons naquilo que fazemos.
-- Mas o gosto pessoal não deve ser o único critério de escolha. Também é pre-
ciso levar em conta o que se tem. Quer dizer, é necessário avaliar se o material
disponível permite ser tratado em termos argumentativos, ou em termos exegé-
ticos, ou em ambos. Se os textos disponíveis (os que estão sendo pesquisados)
forem todos exegéticos, quer dizer, se não for possível identificar uma disputa
em meio aos textos, provavelmente a investigação argumentativa terá encontra-
do um obstáculo logístico. Por outro lado, se todo o material disponível trata de
disputas, e se não há nada exatamente obscuro em meio a essas disputas, fazer
uma exegese cuidadosa e que busque ampliar a compreensão geral que se tem
de um determinado conceito talvez não seja muito produtivo.
-- Um autor deve procurar observar o que é que tem em mãos e pensar: que tipo
de pesquisa poderia surtir efeitos aqui? Há algo não muito claro, que precise ser
mais bem esclarecido? Há alguma relação entre ideias ou entre conceitos que
ninguém está enxergando e que, se explorada, contribuiria para uma compreen-
são mais aprofundada de tal filósofo? Há intérpretes discordando entre si, ou
sustentando pontos de vista opostos sobre uma mesma coisa? Alguém está
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dizendo algo de que eu discordo? Fazer a si mesmo esse tipo de pergunta ajuda
a adquirir clareza sobre que tipo de pesquisa o material permite.
-- Por último, também é importante conhecer o círculo onde o trabalho será
recebido. Há ambientes completamente exegéticos e há ambientes completa-
mente argumentativos. Um autor precisa dar uma olhada em que tipo de mate-
rial é produzido pelas pessoas que compõem o ambiente onde ele pretende que
o texto seja lido e onde ele pretende ser aceito enquanto autor ou pesquisador,
a fim de tentar identificar qual tipo de trabalho tem boa recepção dentro desse
ambiente e qual não tem. Orientadores, tutores e supervisores podem ajudar
nisso, mas uma boa ideia é passar a “frequentar” o ambiente onde se pretende
que o futuro texto seja lido. Frequentar é algo que se pode fazer de maneira lite-
ral – participar de círculos, debates e reuniões em grupos de estudo, grupos de
pesquisa, eventos, conferências etc. – mas também de maneira metafórica,
digamos assim: é possível, e recomendável, ler os textos oriundos do ambiente
intelectual de interesse, ler o que é publicado nas revistas onde se pretende pu-
blicar etc. Acompanhando, dessa forma, a produção intelectual de cada ambien-
te, é possível adquirir uma boa noção sobre que tipo de trabalho cairia bem em
cada círculo e sobre quais os círculos mais indicados para receber o tipo de tra-
balho que se pretende fazer.

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