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Como ler (e entender!

) textos filosóficos
Começar a ler filosofia não é fácil e pode desanimar muita gente já na primeira
tentativa. O motivo disso pode ser a pouca familiaridade do leitor com esse tipo de texto,
pouca bagagem anterior em filosofia – o que faz com que não entenda certos conceitos e
termos, desestimulando já na largada –, medo de não estar entendendo nada ou até uma
vontade excessiva de entender tudo de uma vez só, que, definitivamente, não costuma rolar
com textos filosóficos (ou acadêmicos em geral…).

Foto: Seven Shooter @ Unsplash

Este post é para apresentar alguns passos simples que, se seguidos, podem ajudar na
leitura e apreensão das ideias presentes em textos filosóficos. Serve, porém, para quem
precisa ler textos em geral, especialmente de teor acadêmico/científico. As orientações são
baseadas em dois livros do mineiro Antônio Joaquim Severino, que referencio ao final do
post. Severino desenvolveu uma metodologia para a leitura de textos filosóficos.

Aqui também me baseio na minha própria experiência com a leitura de textos de


filosofia e nas aulas do professor Ralph Bannell, meu orientador de doutorado, com quem
fiz estágio à docência em filosofia da educação. Ressalto que faço algumas (poucas)
adaptações à metodologia de Severino, e indico a leitura integral dos livros dele a quem
tem interesse no assunto.

ANTES DE COMEÇAR – Delimitação da unidade de leitura. Você precisa


escolher o que vai ler e separar a sua leitura em unidades. Um capítulo? Um artigo/ensaio
filosófico? Depois de escolher, não é demais dar uma pesquisada no autor, período em que
escreveu, se está vivo ainda; dar uma olhada na bibliografia dele e na biografia etc.
Lembrando que o autor escreve no contexto de sua época, de sua vida, de sua proposta de
trabalho, e quanto mais der para saber sobre isso previamente, mais isso pode ajudar na
compreensão dos textos dele.
PASSO 1 – Análise textual
Severino indica que, após a escolha do que será lido, é preciso fazer o que ele
chama de análise textual. Ele une este passo ao passo seguinte, a esquematização, mas eu
cada vez mais tenho considerado a esquematização um passo (e um tópico) importante
demais para ser unido à análise temática, então aqui proponho que essas fases sejam vistas
como etapas separadas.

A etapa da análise textual significa fazer uma primeira abordagem do texto, ainda
não tão aprofundada. A ideia, neste primeiro momento de leitura, não é esgotar a
compreensão de todo o texto, mas que o leitor tenha contato com a unidade de leitura
escolhida; a ideia é que obtenha uma visão panorâmica, como Severino fala; nesse
momento, é possível observar o estilo do autor, o método que ele usa, isto é, a forma como
escreve e organiza suas ideias e pensamentos. Ainda neste momento, como a ideia é buscar
familiaridade com o texto, o leitor deve assinalar aqueles elementos que, à primeira vista,
lhe geram dúvidas. Severino recomenda que sejam buscados dados a respeito do autor,
com o cuidado para que os comentaristas (as pessoas que escreveram esses textos sobre o
autor) não “contaminem” a perspectiva individual que o leitor será do texto. Mas, eu
indiquei que você faça isso antes mesmo de dar início aos passos de Severino, láá no
início. Ainda na etapa de análise textual, o leitor deve assinalar termos e conceitos que
desconheça, mas que pareçam importantes para que aquele texto seja compreendido. Deve
anotar esses termos em uma folha/arquivo separado. O leitor deve anotar, ainda, eventuais
fatos históricos citados pelo autor e referências a outros autores que lhe causem dúvida.

Severino recomenda, então, que após a leitura e a identificação dessas dúvidas o


leitor busque informação sobre elas, tentando esclarecê-las. É importante fazer isso, de
fato, podendo nesse momento usar dicionários de termos de filosofia, por exemplo; mas
também é importante não deixar que essa pesquisa se torne tão aprofundada a ponto de
desvirtuar o leitor de seu objetivo inicial, que seria compreender o texto selecionado.
Então, é preciso um bocado de bom senso para ter em mente que não é preciso esclarecer
tudo assim, de saída; muito será resolvido no decorrer da análise daquele texto, da troca de
ideias com outras pessoas sobre o texto ou da aula sobre ele, enfim. A minha dica é que
você procure saber um pouco, se torne mais confortável com as dúvidas, sem “pirar”.

PASSO 1 E 1/2 – Esquematização


Nesta etapa, a ideia é ler o texto extraindo dele as principais ideias presentes a cada
parágrafo, ou a cada dois parágrafos, mais ou menos. Atenção: NÃO se trata de fazer um
RESUMO do texto. O trabalho, aqui, é de apreensão das ideias do autor de uma maneira
sistematizada, e vou explicar como. Você deve ler cada parágrafo e escrever com as suas
próprias palavras as ideias do autor presentes naquele parágrafo. Uma dica um pouco
incomum: escreva com as suas próprias palavras e em primeira pessoa. Sim, como se
VOCÊ estivesse escrevendo, produzindo aquelas ideias. Isso pode parecer estranho de
cara, mas fará com que você “entre na cabeça” do autor, colocando-se no lugar dele. A
ideia é que, ao final desta etapa, você tenha as principais ideias extraídas do texto NA
ORDEM em que elas aparecem. Isso servirá como preparação para a etapa seguinte.
PASSO 2 – Análise Temática
Nesta etapa, a ideia é que você compreenda a mensagem passada pelo autor no
texto, de modo global e sem intervenções. O que significa sem intervenções? Não é hora,
ainda, de você expor a sua opinião ou o ponto de vista de outros autores. Não é nem
mesmo a hora de expor a opinião desse mesmo autor que esteja presente em outros textos
dele, ou sobre outros assuntos. Você terá um outro momento para fazer isso, no seu ensaio
filosófico. Também não é hora de tirar conclusões precipitadas. Apenas faça o seguinte: 1)
identifique o tema do texto; 2) identifique o problema que o autor se propõe a resolver; 3)
siga e exponha o raciocínio seguido pelo autor e 4) exponha a tese a que ele chega.
Detalhando um pouco mais:

Tema – Você deverá identificar, em uma linha ou duas, qual o TEMA da unidade
de leitura. Não se deixe enganar pelo título, que nem sempre é bom para revelar o tema do
texto.

Problema – A seguir, em algumas linhas, você deve expressar qual o problema que
o autor se propõe a resolver/argumentar sobre. Grande parte dos textos filosóficos e
científicos é motivada por um problema uma questão sobre a qual o autor se propõe a
argumentar. Ele vai elaborar argumentos justamente pensando na “defesa” que fará
daquela questão, que o provocou, o instigou. Ou irá “atacar” uma ideia com a qual não
concorda, desenvolvendo seus próprios argumentos para isso. Pode, ainda, concordar em
parte com uma determinada ideia/tese, mas querer colocar alguns pontos nos quais diverge.
Então, identifique essa questão, dificuldade, esse problema e anote. Tenha em mente que
nem sempre está tão óbvio qual é esse problema. Mas a sua esquematização ajudará a
identificá-lo.

Raciocínio/Argumentação – Com base na sua esquematização, agrupe as


informações que você extraiu de cada parágrafo em parágrafos/porções de texto contendo
as ideias presentes naquele conjunto de frases. Por exemplo, você pode encontrar relação
entre o primeiro e o quinto parágrafo; essa é a oportunidade de juntar as pontas, escrevendo
em um parágrafo o que é essa ideia. Ao fazer isso, você estará identificando a maneira
como o autor responde à questão que ele mesmo se propõe resolver, como raciocina para
resolvê-la, ou: como ele argumenta. Isto é, os argumentos, as defesas que ele efetivamente
elabora para resolver o impasse, a dificuldade que o motivou.

Tese – Após expor a argumentação do autor, você será capaz de expor a tese dele;
em resumo, o que ele argumenta? O que propõe? Então, faz o próximo passo, e escreve a
tese, resumidamente.

PASSO 3 – Análise interpretativa/Interpretação


É chegada a hora de começar a interpretar as ideias expostas pelo autor no texto
lido. Neste momento, o leitor coloca as ideias do autor em diálogo com as ideias de outros
autores. Esses autores que falam do autor em questão são, nesse contexto, comentaristas. É
um momento que você situa o autor e o texto lido também em relação a outros textos do
próprio autor, de modo a buscar localizá-lo numa esfera maior de pensamento daquele
autor. Pode verificar como as ideias que ele expõe no texto que você leu se relacionam
com ideias em que ele expõe em outros textos dele, por exemplo, ou contrapor essas ideias
com as perspectivas de outros autores sobre o que ele escreveu.

Severino destaca que um momento importante desta etapa de interpretação é a


formação de uma perspectiva crítica sobre o que foi lido; isto significa, neste caso,
procurar julgar a coerência interna do texto e também a sua originalidade, a contribuição
que dá ao problema que aborda. Tentar entender até que ponto o autor conseguiu alcançar,
de modo lógico, os objetivos que propôs a si mesmo. Severino diz o seguinte: “Pergunta-se
até que ponto o raciocínio foi eficaz na demonstração da tese proposta e até que ponto a
conclusão a que chegou está realmente fundada numa argumentação sólida e sem falhas,
coerente com as suas premissas e com várias etapas percorridas”. Também é o momento de
procurar compreender se a argumentação do autor é original e sua contribuição, relevante.

PASSO 4 – Problematização
Esta é uma etapa em que se busca desde problemas textuais possivelmente
presentes no texto até possíveis problemas de interpretação. É uma etapa bacana
especialmente quando se realiza um trabalho em grupo, pois neste momento pode-se
debater essas impressões. Vale ler as palavras de Severino diferenciando esta etapa da fase
de identificar o problema, presente na análise temática: “Cumpre observar a distinção a ser
feita entre a tarefa de determinação do problema da unidade, segunda etapa da análise
temática, e a problematização geral do texto, última etapa da análise de textos científicos.
No primeiro caso, o que se pede é o desvelamento da situação de conflito que provocou o
autor
para a busca de uma solução. No presente momento, problematização é
tomada em sentido amplo e visa levantar, para a discussão e a reflexão, as
questões explícitas ou implícitas no texto”.

PASSO 5 – Síntese Pessoal


Trata-se talvez da etapa mais aguardada entre estudantes, que durante todo esse
processo ficam geralmente bem ansiosos para dizer o que acham do que leram! Bom, esta é
de fato a hora de discutir a problemática levantada no texto para, a partir da reflexão a que
ele leva, desenvolver o seu próprio ensaio filosófico. A síntese é uma preparação para o
ensaio, ainda não é o ensaio em si. Mas, se bem feita, ajuda bastante na hora de elaborá-lo.

É interessante como a metodologia de Severino termina com esta etapa, (chamada


de síntese pessoal) que exige que você escreva, exponha a sua perspectiva; isso mostra que
a apropriação das ideias presentes em um texto de caráter filosófico também depende do
exercício da redação. Ao escrever nós organizamos o nosso pensamento e conseguimos
realizar nossas próprias reflexões, assim conseguindo desenvolver a habilidade de pensar
filosoficamente.
Severino aponta esta etapa como uma fase de amadurecimento intelectual e de
exercício do raciocínio. Nesta etapa, pode escolher um ou mais aspectos do texto lido que
mais tenham lhe saltado aos olhos, trabalhando em cima desses aspectos. Você deve
também buscar o embasamento conseguido com a leitura dos textos dos comentaristas,
principalmente se toda a aventura filosófica, o tema ou o(s) autor(es) forem novidade para
você.

Lembre-se que, no caso de um ensaio filosófico ou texto acadêmico, o que vale não
é a nossa opinião livre, mas uma perspectiva embasada, bem argumentada – como você
terá observado no texto lido, se tiver gostado da maneira como o autor conduziu sua
argumentação 😉

Ah, também vale lembrar que um ensaio filosófico geralmente contém as sínteses
de vários textos e não somente de um.

Antes de terminar…

Mais umas dicas.

Sossego – Às vezes, é difícil conseguir um lugar sossegado para ler, estudar,


escrever. Mas isso se torna ainda mais importante quando nos propomos a ler um texto
seguindo etapas dessa metodologia, isto é, procurando extrair mesmo um aprendizado,
alcançando uma compreensão dos textos. Então, ler no ônibus, metrô, no meio de um
ambiente barulhento pode complicar. Quando o confinamento acabar, a biblioteca é a
melhor opção para esse tipo de tarefa.

Tempo – Se você não tem tempo para seguir TODOS esses passos toda vez que se
propõe a ler um texto filosófico, indico que siga, pelo menos, os passos 1 e 2. Com esses
passos você terá uma excelente visão geral do texto, podendo partir para as etapas
seguintes somente se você for se aprofundar naquela leitura. Claro, o ideal é você
conseguir avançar o máximo possível, contrastar o texto com outras leituras do mesmo
autor, escrever as suas ideias, dialogar com ele etc., mas, de fato, muitas vezes não há
tempo para isso e os passos 1 e 2 são suficientes para uma apreensão excelente de um texto
filosófico/acadêmico. Só ler sem anotar nada não adianta muito no caso de textos
filosóficos.

Espero que este post, apesar de longo, tenha sido útil. Recomendo fortemente a
leitura dos materiais a seguir, dos quais as orientações foram retiradas. E agradeço ao meu
professor e orientador de doutorado Ralph Ings Bannell por ensinar essa metodologia em
suas aulas de filosofia.

Fontes:
SEVERINO, Antônio Joaquim. Metodologia do Trabalho Científico. São Paulo: Cortez,
2013.

SEVERINO, Antônio Joaquim. Como ler um texto de filosofia. São Paulo: Paulus, 2009.

Como ler um texto filosoficamente?

Aviso de antemão, na primeira linha: esse texto não apresentará um atalho, um


desvio, um meio de fazer com que a leitura de um texto filosófico torne-se mais fácil. Em
vez disso, trata-se de uma introdução, para servir como uma chave de leitura, ao que ficou
consagrado como o “método estrutural” de leitura de texto filosófico, um método de leitura
que se supõe simultaneamente científico e filosófico, cuja aplicação visa proporcionar à
leitura filosófica um rigor metodologicamente científico –– e consequentemente tornará a
leitura mais densa, demorada e trabalhosa.
Com efeito, não há somente um modo de ler um texto filosófico. Esse “método
estrutural” surgiu como uma resposta a leituras chamadas “dogmáticas”, que se preocupam
em compreender a verdade de um texto por meio da comparação de suas teses; assim como
a leituras chamadas “genéticas”, que buscam explicar um texto filosófico por seu contexto
gerador (contexto histórico, político, social, psicológico, etc.). Há diferentes abordagens,
diferentes perspectivas e meios possíveis de se lidar com um texto filosófico, como, por
exemplo, a perspectiva que coloca todos os filósofos e sistemas como momentos pontuais
no desenvolvimento progressivo rumo à verdade (modelo historiográfico hegeliano).
Nesse texto, discutiremos um dos modos possíveis, considerado o “modo
primeiro”, isto é, aquele que deve preceder qualquer uma das outras possíveis abordagens
— muito esclarecedoras e enriquecedoras. Portanto, esse modo precisa ser considerado
como um primeiro passo fundamental à leitura filosófica de um texto, primeiro passo
metodológico que não deve valer por si mesmo: a primeira abordagem para reconstituir o
sentido e significado de um texto, que deve, após ser realizada, permitir ao intérprete que
se valha de outros elementos para compreender um pensamento filosófico, como seu
contexto histórico, como o plano polêmico com o qual o texto polemiza, e assim por
diante.
Ler um texto estruturalmente significa, após o autor, reaprender, conforme sua
intenção, o discurso explicitado por meio de um movimento sucessivo de teses que são
construídas uma após à outra numa ordem por razões: sua estrutura. Em outras palavras,
significa lê-lo à luz de sua estrutura, que se constitui pela progressão desses movimentos
sucessivos, isto é, de seu método em ato, através do qual –– e tão somente por este –– suas
teses e dogmas são construídos.
Para interpretar um texto filosófico –– ou, de maneira mais abrangente, um sistema
––, devemos buscar suas razões, não suas causas. Que isso significa? Vamos lá: quando
deparamos com um texto filosófico, veremos sentenças, parágrafos e todo o corpo de um
texto. Através dessas sentenças, parágrafos e páginas, veremos teses que são apresentadas
pelo autor. Essas teses, por exemplo, podem aparecer na forma de um enunciado como “a
realidade é constituída por X”. Assim, devemos buscar as razões para tal tese, ou seja, as
premissas, as justificativas, os elementos que a constituíram e proporcionaram o autor
enunciar que “a realidade é constituída por X” –– os quais estarão presentes no próprio
texto em questão. Caso buscássemos suas causas, isto é, caso perguntássemos “por que
será que o autor está afirmando isso? Será sua religião? Será sua doença? Será seu partido
político”, estaremos separando os enunciados, suscetíveis de serem verdadeiros ou falsos,
da estrutura que produziu esses enunciados, além de ir para bem longe da intenção real do
autor, explicitada no próprio movimento sucessivo de enunciados presentes em um texto:
em seu método.
Por exemplo, Platão, na República, apresenta a tese de que “os filósofos precisam
tornar-se governantes, ou os governantes tornarem-se filósofos, para que os males das
cidades cheguem ao fim”. Caso busquemos as causas para esse enunciado, extrínsecas ao
texto, para esta tese central da República, poderemos dizer que Platão escreve isso,
primeiramente, porque é filósofo. Ele deve estar defendendo o peixe dele! E há tantas
outras causas passíveis de serem reputadas a esta tese. Todavia, caso busquemos as razões,
encontraremos sucessivas e progressivas teses, que são afirmadas e eventualmente
ultrapassadas, encadeadas por razões, constituindo a estrutura do texto. Neste caso,
podemos ilustrá-la da seguinte forma:
“Uma cidade só será justa se puder ser verdadeira, apresentando-
se como expressão da realidade. Somente o conhecimento dessa
realidade pode, portanto, proporcionar a compreensão de como
essa cidade deve ser. Consequentemente, seu governo só pode
caber, de direito, a quem detém tal conhecimento. Esse é o filósofo
que deve, portanto, governar.” (BOLZANI FILHO, 2014, p. XXIV)
Deste modo, metodologicamente estaremos aceitando a pretensão desses dogmas e
dessas teses serem verdadeiros, não separando esses enunciados, passíveis de serem
verdadeiros ou não, da progressão pela qual essas teses foram geradas na estrutura do
texto. Platão, nesse caso, apresentou-nos o fato de que o filósofo é o único que pode
conhecer o real. Se a cidade precisa ser, na medida do possível, a expressão da realidade, e
–– agora teremos que concordar metodologicamente com Platão, para reconstituir o sentido
do texto –– o filósofo é o único que conhece o real, segue necessariamente que cabe ao
filósofo o governo e somente ele deve, portanto, governar.
Por sua vez, ao levar a efeito uma interpretação “dogmática” ou “genética”,
buscando as causas, lidando com essa tese como se fosse um “sintoma” de algum problema
por detrás do texto, removendo o sistema filosófico do tempo e pretendendo que todas as
teses sejam verdadeiras ao mesmo tempo, estaremos nos arriscando a ultrapassar o texto,
interpretando-o para além da intenção do autor, além de encontrar inúmeras contradições
decorrentes do fato de ignorarmos a progressão do método. Esses pressupostos (“ele
escreveu isso porque é aristocrata, porque é machista, porque é homossexual” –– e a lista
vai ad infinitum), não são depreendidos da doutrina do filósofo.
Agora, pelo contrário, ao fazer a interpretação a partir das razões que ligam as teses
umas às outras, a partir de sua estrutura, de seu método em ato, estaremos “retirando” o
texto do tempo histórico, do tempo das causas externas, e inserindo-o num tempo no qual
as teses são construídas sucessiva e progressivamente: seu tempo lógico. Estaremos
interpretando-o tão somente a partir de seu tempo interno, não de seu contexto temporal.
Evidentemente se pode objetar que o contexto histórico, político, social, etc., isto é,
o contexto do momento da produção de um texto filosófico, seu “tempo histórico”, são
extremamente importantes para seu entendimento. Essa objeção não poderia ser mais
verdadeira. Contudo, este complexo de elementos, os quais proporcionariam uma
interpretação genética do texto, não podem vir antes da leitura do entendimento do próprio
texto, à luz do discurso explicitado pelo autor. Em outros termos, o autor está explicitando
um discurso por meio de uma sucessiva cadeia de razões, com um fio condutor através do
qual podemos reconstituir seu sentido de acordo com sua intenção. Assim, caso ignoremos
isso para buscar as causas externas a esse texto, facilmente podemos cair no erro de
interpretar um texto “de cima”, não “de dentro”. Para o primeiro passo de uma
interpretação de texto, precisamos levar em consideração o próprio texto, devemos “nos
tornar discípulos” do autor, andar junto com ele; devemos mergulhar no texto e refazer os
passos dados pelo autor. Esses elementos adicionais enriquecem a interpretação do texto,
porém jamais devem precedê-la, devendo ser considerados somente após a leitura
estrutural.
“A filosofia é explicitação e discurso. Ela se explicita em
movimentos sucessivos, no curso dos quais produz, abandona e
ultrapassa teses ligadas umas às outras numa ordem por razões. A
progressão (método) desses movimentos dá à obra escrita sua
estrutura e efetua-se num tempo lógico. A interpretação consistirá
em reaprender, conforme a intenção do autor, essa ordem por
razões, e em jamais separar as teses dos movimentos que as
produziram.” (GOLDSCHMIDT, 1963, p. 140)
Essa primeira leitura evidenciará que a filosofia é explicitação. Um filósofo sempre
busca, através de seus textos, construir e esclarecer um discurso. Isso significa que o
filósofo quer comunicar teses, dogmas e ideias. Mesmo que você escreva um texto para
não mostrar a ninguém, você estará utilizando a linguagem para organizar e desenvolver
ideias. Deste modo, o texto é escrito de modo a desenvolver um pensamento a partir de
dogmas e de teses. Consequentemente, esses dogmas e teses deverão ser desenvolvidos
sucessivamente, um após o outro. Portanto, um texto filosófico, um sistema filosófico, é
desenvolvido na própria construção de sua estrutura e na progressão dessas teses.
Devemos resistir à tentação de buscar as causas de um pensamento em elementos
ocultos, que nem mesmo o filósofo poderia saber, seria uma absurdidade, na medida em
que ele está construindo de forma explícita, não oculta, teses e ideias que não poderiam
existir de forma estruturada antes de serem expressas por meio da linguagem. Esse filósofo
ativamente construiu um texto com uma intenção, desenvolvida de forma explícita na
estrutura do texto e que deve necessariamente ser levada em consideração na interpretação.
Portanto, o texto é escrito para “mostrar e fazer compreender as produções desta causa”, a
saber, a própria doutrina do filósofo. As causas do texto platônico é o próprio platonismo;
as do aristotélico o próprio aristotelismo. Ambos construídos e desenvolvidos num tempo
lógico. Consequentemente, Aristóteles não poderia, em hipótese alguma, construir a
filosofia de outro filósofo que não ele mesmo em seus textos: as causas estão em sua
doutrina e em seu método em ato, ambos construídos e explicitados na estrutura de seus
textos.
A doutrina do filósofo e seu método constituem seu sistema filosófico. Os textos
desenvolvem tanto sua doutrina quanto seu método. Ao ler um texto filosófico precisamos
“restituir a unidade indissolúvel desse pensamento que inventa teses, praticando um
método”. Esse método nada mais é do que os movimentos do texto em ato, as sucessivas
teses ligadas umas às outras por razões.
Mesmo que um filósofo tenha teorizado sobre seu método (Platão, por exemplo,
sobre a Dialética no Fedro ou na República), não devemos considerar essas exposições
teóricas do método como normas separadas das teses e dos dogmas. Encontraremos, em
vez disso, no próprio corpo dos Diálogos, em sua forma e na exposição de suas teses, o
método dialético em ato; poderemos através da própria leitura do texto enxergar as teses e
dogmas possibilitados tão somente a partir desse método, mas não tomar as regras gerais
que foram expostas na República ou no Fedro de forma teórica como um manual para a
leitura dos demais diálogos platônicos: seu único manual são os movimentos num tempo
lógico, a própria progressão das teses na estrutura do texto: a doutrina e o método em ato.
“Assim, para compreender uma doutrina, não é suficiente não
separar a léxis da crença, a regra, de sua prática; é preciso, após o
autor, refazer os movimentos concretos, aplicando as regras e
chegando a resultados que, não por causa de seu conteúdo material,
mas em razão desses movimentos, se pretendem verdadeiros. Ora,
esses movimentos se nos apresentam na obra escrita.”
(GOLDSCHMIDT, 1963, p. 142)
Não devemos também cometer o erro de pensar que uma doutrina existe
previamente à sua escrita. Que o filósofo, a partir de um súbito insight inexplicável, uma
inspiração divina, como as pítias dos oráculos gregos, concebe torrencialmente uma
doutrina pronta e acabada em bloco. Pelo contrário, como dito anteriormente, essa doutrina
será construída quando for encadeada por um raciocínio. A articulação entre o pensamento
de um filósofo e sua escrita desenvolve, por meio dos textos, teses e dogmas que
constituem uma estrutura. Essa estrutura é construída e explicitada pelo próprio filósofo,
nos textos, cabendo ao interprete reconstruí-la “fazendo corpo com o próprio texto do
autor”.
Essa estrutura é concebida como “as articulações do método em ato”. Não se trata
de “estruturas” ao longo de um texto. Na realidade, essa estrutura será constituída pelas
sucessivas teses e dogmas, pela progressão metódica, constituindo toda a obra. Como em
um edifício, tanto as bases mais fundamentais quanto as próximas ao topo constituem sua
estrutura mesma, única e una consigo mesma. Essa progressão que constitui a estrutura,
esses movimentos internos de um texto, são o “tempo lógico” do texto.
“O pensamento racional se estabelecerá num tempo de total não-
vida, recusando o vital. Que a vida, por seu lado, se desenvolva e
traga suas necessidades, é, sem dúvida, uma fatalidade corporal.
Mas isso não suprime a possibilidade de retirar-se do tempo vivido,
para encadear pensamentos numa ordem de uma nova
temporalidade”. Esta “temporalidade está contida, como
cristalizada, na estrutura da obra, como o tempo musical na
partitura.” (GOLDSCHMIDT. 1963, p. 143)
Assim, refazer, após o autor, o movimento interno de seu texto, de acordo com sua
intenção –– à luz de suas teses e de sua doutrina ––, é “repor em movimento a estrutura e,
desse modo, situar-se num tempo lógico”. Isso significa que se deve levar em consideração
as razões da leitura, como mostrado anteriormente, não as causas, que dizem respeito a um
tempo histórico. Apesar de indispensável ao entendimento de um autor, o tempo histórico é
não-filosófico, portanto implica na leitura histórica deste texto, situando-o em seu tempo
histórico. Para lê-lo filosoficamente, contudo, precisamos, antes de qualquer coisa, situá-lo
em seu tempo lógico, abstraí-lo de suas causas genéticas, de suas leituras dogmáticas, para
reconstituí-lo segundo o tempo lógico do texto, a intenção do autor e segundo seu próprio
sentido, de modo objetivo.
“Objetividade que consiste na reconstituição explícita do
movimento do pensamento do autor, refazendo seus mesmos
caminhos de argumentação e descoberta, segundo seus diversos
níveis, respeitando todas as suas articulações estruturais,
reescrevendo, por assim dizer, segundo a ordem das razões, a sua
obra, sem nada ajuntar, entretanto, que o filósofo não pudesse e não
devesse assumir explicitamente como seu.” (GOLDSCHMIDT,
1963, p. 7)
Por fim, pudemos perceber que a filosofia é explicitação e discurso, na medida em
que a estrutura de um texto é seu método em ato, construído pelo encadeamento de um
raciocínio de modo a comunicar uma filosofia progressivamente ao longo de e por meio de
textos. Esse método produz teses e dogmas que são desenvolvidos e, eventualmente,
ultrapassados ao longo do sistema. Tudo isso se cumpre em um tempo próprio, a saber, em
um tempo lógico. Por isso a verdade de um texto não é apresentada em bloco, de uma vez
só; não está na conclusão, nos últimos parágrafos, nem no ponto alto do texto, em seu
“clímax”; antes disso, é apresentada “sucessivamente e progressivamente, isto é, em
tempos e em níveis diferentes”. Não podemos jamais separar uma tese do movimento do
qual ela foi gerada: não faz o menor sentido filosoficamente interpretar uma tese separada
tanto da doutrina quanto do método de um filósofo.
Deste modo, não se pode exigir de um sistema uma linearidade intemporal dos
dogmas e das teses. Em outras palavras, as teses e os dogmas são desenvolvidos
progressivamente ao longo do sistema. Esse “tempo lógico” não é “eterno”, já que é
desenvolvido progressivamente. Assim, as teses e dogmas defendidos em um momento
nessa progressão poderão diferir, poderão desenvolver-se, poderão transformar-se. Com
efeito, considerados tão somente por seu conteúdo material, encontraremos contradições e
falsos problemas de leitura em filósofos, já que um conceito poderá aparecer de um modo
em um momento do desenvolvimento de tal texto e de outro completamente diferente em
outro momento diferente no mesmo movimento de desenvolvimento. Na verdade, não
deveríamos medir a coerência de um texto ou sistema “pela concordância, efetuada num
presente eterno, dos dogmas que o compõem, e realizar o esforço filosófico por uma
intuição única e total, estabelecendo-se, também ela, na eternidade”. Cada momento desse
tempo lógico precisa ser considerado em sua especificidade, à luz do tempo lógico que o
produziu, de um sentido “global”.
Isso significa que “toda filosofia é uma totalidade, onde se juntam,
indissoluvelmente, as teses e os movimentos”. As notas, os textos, as teses encontradas em
tal e tal momento, não devem ser utilizadas para forçar uma coesão artificial aos diferentes
momentos do tempo lógico de um texto. Platão, por exemplo, pode estar falando das
Formas, das Ideias, em determinado momento de um texto. Entretanto, as notas e as
definições de Formas e Ideias, retiradas de outros momentos dos textos de Platão, de
dicionários de filosofia, etc., não podem ser “forçadas” neste determinado momento. Fica
evidente que o intérprete e historiador da filosofia não é “crítico, médico, diretor de
consciência; ele é quem deve aceitar ser dirigido, e isso, consentindo em colocar-se nesse
tempo lógico, de que pertence ao filósofo a iniciativa”. Devemos interpretar um texto à luz
de seu sentido, não buscar a verdade de um texto, corrigindo as possíveis lacunas que
encontrarmos ao enxertar definições e conceitos nelas, ignorando seu tempo lógico e os
movimentos internos que o constitui.
Com efeito, o leitor precisa despir-se de seus preconceitos, de suas teses, de
dicionários de filosofia, de contexto histórico, etc., para pensar de acordo com “a cabeça do
autor”, ser levado pelos movimentos internos, inserido nesse tempo lógico. Considerar
cada momento em sua especificidade e abstrair todos a uma unidade cujo sentido será o
sentido do texto, do sistema: a doutrina. Como diria Oswaldo Porchat Pereira, trata-se do
“esquecimento metodológico de si próprio”.
“É certo que tal atitude, própria a quem não quer julgar um autor,
mas compreendê-lo, exige um esforço penetrante de inteligência,
uma rigorosa disciplina intelectual, a ausência de todo preconceito
e dogmatismo. Exige que o intérprete se faça discípulo — ainda
que provisoriamente — e discípulo fiel.” (GOLDSCHMIDT. 1963,
p. 7)
Ler filosoficamente um texto, ler um texto estruturalmente, portanto, proporciona
“um primeiro passo indispensável para qualquer apreensão do significado e escopo de um
sistema filosófico”. Como toda metodologia científica, trata-se de a aplicação das
ferramentas disponíveis a um campo do saber sobre um objeto delimitado de trabalho.
Nesse caso, o campo do saber é a história da filosofia; seu objeto, os sistemas filosóficos e
os textos dos filósofos. Evidentemente, recorrer à história, à sociologia, à economia, à arte,
etc., é fundamental para ter um entendimento global de um processo de desenvolvimento
da cultura ocidental. Entretanto, este empreendimento transdisciplinar e tão enriquecedor
para a filosofia necessita ser feito apenas e tão somente após a leitura e interpretação dos
textos filosoficamente.
Indicações de leitura:
Goldschmidt, V. (1963). Tempo histórico e tempo lógico na interpretação dos sistemas
filosóficos. In: A religião de Platão. São Paulo, Difel, 1963, p. 139–147.
Guéroult, M (1968). O problema da legitimidade da história da filosofia. Revista de
História, v. 19, n. 75, p. 189–211.
Porchat Pereira, O. (2010). Discurso aos estudantes de filosofia da USP sobre a pesquisa
em filosofia. Fundamento, v. 1, n. 1- set-dez. 2010, p. 18–33 (Texto originalmente
publicado em Dissenso, n. 2, p. 131–140).
Vieira Neto, P. (2006). O que é análise de texto. In: Seis filósofos na sala de aula. Maria
Isabel de Magalhães Papaterra Limongi et al. São Paulo, Berlendis & Vertecchia.
Porta, M. A. G. (2014). O Texto. In: A filosofia a partir de seus problemas: didática e
metodologia do estudo filosófico. São Paulo, Loyola.
Saunders, C. et al. (2009). Como estudar filosofia. Trad. Vinicius Figueira. Porto Alegre,
Artmed.
Severino, A. J. (2008). Como ler um texto de filosofia. São Paulo, Paulus.
Folscheid, D; Wunenburger, J.J. (2006). Metodologia filosófica. São Paulo, Martins
Fontes, trad. Paulo Neves.

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