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Sal f o i s e m p r e o teatro- da m i n h a existência.

As memórias
d o sol d e s c a r a d o a c a m i n h o d e T e r r a B o a e P o ç o V e r d e
c o m o b a r r i l , único b r i n q u e d o a sério a q u e tive d i r e i t o , as
in\estidas d o v e n t o e n d i a j j r a d o , e m r e d e m o i n h o , (jue ía/ia
dançar a p o e i r a , m a q u i l h a n d o o m e u r o s t o p r e n s a d o d e
d i f i c u l d a d e s , o sal d a m a r e s i a q u e da\ g o s t o à m i n h a p e l e
o m a r q u e e n c h i a m e u s o l h o s e o céu d a i l h a , p o r o n d e os
m e u s s o n h o s alados i n v a d i a m o i n f i n i t o , f o r a m m e u s com-
p a n h e i r o s p o r t o d a a v i d a . C o m eles construí o m e u des-
t i n o p o r q u e não sabia d e o u t r o s c a m i n h o s .
A m i n h a infância f o i cercada de situações grotescas, de mistc
rios n u n c a des\endados, de i n t r i g a n t e s a c o n t e c i m e n t o s , de
gentes semianalfabetas q u e mais p a r e c i a m peças d e u m a
e n g e n h a i ia m a l acabada. C o n t u d o , divertia-me i m e n s o ,
apesar dos castigos sc\eros da m i n h a mãe e da censura d a
sociedade. F u i feliz e n q u a n t o p u d e . Poucas crianças de hoje
sabem o q u e é m o n t a r u m p o r c o b u l h e n t o . ser p e r s e g u i d o
p o r u m bêbado e n d e m o i l i n h a r l o . o u m e s m o c o r r e r atrás de
u m c a r r o e p e n d u r a r iií) pár<i-chocjues. I^i i i u ar de ^<mãos-a<
alto», o u perseguir u m marcha-cacaia.
EVEL ROCHA

J u l h o 2010
mãe S^^/rí/:(/^ytjiáe^e axi nirit^ m^mx^i^/>el

F i c h a Técnica

© 2010 Evel Rocha

J u l h o de 2010

T i r a g e m : 1.000 exemplares

Capa: Paulo Tomar

Paginação: Paulo Tomar

Impressão e A c a b a m e n t o : Gráfica da Praia


o oposto de amor
não é ódio mas
indiferença
ELIE WIESEL

A linha que separa o bem do mal não atravessa estados,


rwmpartidmpolâims, passa bem mmeb do coração íuamno
ALEXANDRE SOLJENITSINE
EVEL ROCHA

Quando o vi descer a escada da praça de Preguiça, arrastando


os pés num andar pesado e inseguro, equilibrando-se no corrimão,
julguei tratar-se de um doente mental. De aparência espigada, olhou
para mim, rodeado de uma aura estranha e hostil, balbuciou algu-
mas palavras entremeadas com uma tosse seca qu£ se desprendia do
estômago, sumido num casaco de algodão emporcalhado. Percebi
qu£ estava a falar comigo. Ao reconhecer Sérgio Pitboy, senti uma
onda de tristeza e indignação ao ver nele a fragilidade humana, a
absoluta incerteza e a vulnerabilidade da vida. O que fiqje nos atrai
amanhã poderá ser um manto de retalhos de recordações amargas,
terminando no desejo intenso depor termo à vida. Custou-meperceber
o que Sérgio queria de mim. No início, pensei que estivesse à espera
que lhe desse algum dinheiro, que lhe desse de comer ou de vestir,
mas, embora estivesse a necessitar, não acatou qualquer ajuda.
Sérgio desenvolvera uma capacidade indescritível de sofrimento, soube
ao longo da sua curta vida criar um conceito genial para encarar
uma enunciação de que tudo o que somos provém da natureza: se
sofremos, se nascemos pobres, se seguimos um determinado estilo de
vida, é porque a natureza nos escolheu para desempenharmos este
papel. Sérgio recusava ser tratado como mendigo. Orgulhava-se da
sua vida e desprezava o resto: apontava o dedo e odiava os políti-
cos, chamando-os de causadores de todos os males que enfermam a
sociedade, desprezava o mundo que se acomodava às autoridades de
uma forma passiva. A solidão de Sérgio Pitboy mostra-nos que os que
vivem sós são aqueles que pensam mais nos outros.
Sérgio nasceu na ilha do Sal, em mil novecentos e setenta
e sete. Foi um dos jovens mais talentosos que conheci em toda a
minha vida, mas o facto de ser oriundo de uma família pobre e as
circunstâncias que a envolviam condicionaram o seu desenvolvi-
mento intelectual e social. As páginas deste livro são relatos da sua

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MARGINAIS • EVEL ROCHA

vida, reflexões feitas no leito da enfermidade, nos momentos mais - Gostaria que o senhor lesse este documento e o guardasse
difíceis em que perdera toda a esperança de sobreviver à doença que por mim. Não sei se alguém mais quererá ler isso, mas para mim
o atormentava. Fomos colegas no Liceu Olavo Moniz, o Externato tem um valor inestimável. Nestas páginas consegui afogar muita
para os mais antigos, mas, por imposição do Destino, como fazia mágoa e se não morri antes foi por estar com a mente ocupada
questão de salientar, tivemos sortes diferentes. nestas anotações. Por algum tempo, consegui anestesiar a angús-
Embora a minha vivência com ele tivesse sido limitada aos muros tia que me engole, desgraçadamente. Aqui, procuro descrever os
do liceu e, raras vezes, aos encontros recreativos de Espargos, eu reconhecia dois mundos onde vivi comprimido: o mundo da pobreza e o dos
nele uma inteligência que as vicissitudes da vida não puderam apagar abastados, como alguns o chamam, mas para mim são o mundo
Como uma boaparte das crianças daperiferia, cresceu na rua e a suei dos exploradores e o dos explorados. O senhor é a única pessoa
personalidadefoi cinzelada pelas leis estereotipadas da sociedade. Tomou-se que me pode ajudar. Se achar que vale a pena publicá-las, faça-
um revoltada, um marginal, conslruindo-se a si própno contra tudo o -0, senão, rasgue-as ou queime-as. Há muito tempo que desejava
que é convencimal, rejeitando a censura e exaltando o ódio, negando os encontrar-me consigo para conversarmos, mas como o senhor
preceitos da religião efomentando o seu próprio isolamento contra tudo engenheiro é um homem muito ocupado, fui escrevendo essas
o que é normalmente acate pela sociedade. A sua condição de marginal anotações que agora lhe entrego. Por favor, senhor, gostaria que
roubou-lhe afaculdade de desenvolver novas afeições. desse uma vista de olhos nesses manuscritos. - Tentei várias vezes
No nosso primeiro contacto, quis que se sentisse à vontade e dissiudi-lo para que não me chamasse de senhor, mas ele apenas
estava na disposição de ajudá-lo em tudo o que fosse necessário. sorria, desajeitadamente, e continuava a falar
Sérgio apenas queria que eu fosse com ele ao lugar onde dormia Sérgio tinha o rosto salpicado de svxyre respirava com dificuldades.
porque tinha algo de importante para me mostrar, mas as minhas Este é o livro que muitos jovens deste país gostariam de ter
ocupações não me deixavam tempo. escrito. A caligrafia perfeita, as frases construídas de uma forma
O que de importante um jovem doente, andrajoso e solitário, escorreita reflectem uma certa intimidade que Sérgio tinha com
um marginalizado poderia ter para me mostrar? a escrita. A princípio, pensei em publicá-lo como estava, porém,
Acicatado pela sua contumácia, apressei-me em atender o devido à linguagem, à abundância de calão e termos que pode-
seu pedido. Adiei alguns compromissos para estar com ele no seu riam chocar os mais refinados, tomei a iniciativa de substituir
quarto e, provavelmente, não teria mais oportunidades, pois, o seu algumas passagens de modo a não perder o sentido das frases.
estado de saúde inspirava cuidado e poderia a qualquer momento Alguns trechos foram suprimidos por serem demasiado realistas
cair morto nas ruas de Espargos. e por descreverem factos que poderiam pôr em causa a dignidade
O seu quario, um compartimento mofo, com cheiro forte efétido de muitas pessoas da ilha.
de nicotina, de paredes com nódoas de fumo, que cobriam grande Os apontamentos deste jovem fazem-me lembrar a atitude
parte de um desenho tosco de uma folha deganja, e cortes de revistas religiosa expressa de forma errónea por muitos devotos ao culto
amarelecidas, tinha uma cama e um mocho que servia de banquinha, da própria personalidade, que se escondem atrás do manto da
uma boba de viagem e um caixote de onde tirou uma pilha de papas fé para satisfazerem seus caprichos, confundem a benevolência
engordurados, escritos à mão e enumerados. Tive dificuldades em e a compaixão com afecto e se desprendem do acto de pensar
entender o que dizia, na sua voz submersa pelo guinchar tuberculoso em nome da quietude da mente infinita. Enquanto o homem,
que lhe subia do estômago, dificultando a minha percepção. Mas, cheio de intenções, obcecado pelo desejo de realização própria,
aos poucos, entendemo-nos. insistirem confundir o interesse próprio com os da colectividade,

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MARGINAIS . ^ .

apregoando-os como sendo a vontade do povo, enveredando pelos


métodos enganadores, apresentando-se como o sábio e realizador,
o salvador dos fracos e oprimidos, continuaremos a ter «sérgios»
marginais e marginalizados em toda a parte.
Se estes manuscritos tivessem chegado ás mãos de outra pessoa,
que não conhecesse o Sérgio, tê-los-ia ignorado. Se não conhecesse um
pouco da história dos bairros da ilha, se não tivesse uma vivência
com os chamados «marginais», todo o conteúdo destas páginas não
passaria de um simples desabafo de mais um revoltado pelo sistema
MARGINAIS
social imposto aos ilhéus deste país. Quanto à veracidade destes
manuscritos, não cabe a mim julgá-la, contudo, devo afirmar que,
APONTAMENTOS D E UM VAGABUNDO
depois de os ler, o meu conceito de humanidade teve uma pn'ofunda
mudança. Hoje, penso e vivo mais pelos outros.
Este livro reflecte a psicose social, a paranóica justeza das leis
que regem o nosso destino que, paradoxalmente, só estão ao alcance de
uma minoria. Não me parece ser importante saber da exacção dessas
páginas ou se representam umu tentativa de atribuirás males sociais às
forças que regem a sociedade, porém, deve-se ter em conta que existe uma
diferença abismal quefaz com que aquele que vive na pobreza ou perto
Tente certificar-se de que a criança que você foi
dela se sinta num inferno e aquele que tem uma vida economicamente
não se envergonharia do adulto que é agora
estável veja nos chamados marginais um fardo para a sociedade.
JESUS HERMIDA
As incompreensões de algumas partes deste livro podem suscitar
na mente do leitor uma certa confusão, mas deixo a apreciação por
conta de cada um. Aqueles que viveram ou que vivem em bairros como
Chã de Fraqueza, Alto de Saco, Africa Setenta, ou mesmo nos becos
esquecidos de Espargos e Santa Maria, que passaram por privações
semelhantes ou que, por algum período de vida, foram vítimas das
circunstâncias e vicissitudes, saberão compreender o Destino de Sérgio.
Que cada um encontre nesta porção escrita algo que lhe toque como
parte dessa sociedade manipulada por interesses e circunstâncias, por
crenças e valores que mais se ajustam ao seu modus vivendi.
Ao ler estas páginas, caro leitor, espero que compreenda este
livro não como algo que conduz à destruição mas, antes, como
algo que conduz ã redenção. Cabe a cada um de nós, membro desta
sociedade, encontrar a solução para ajudarmos a nós mesmos e
àqueles que passam por momentos mais difíceis.

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EVEL ROCHA

N a r u e l a p o e i r e n t a e m o n ó t o n a , c o m os pés ruços
e descalços, descansávamos d e u m a e x t e n u a n t e p a r t i d a
d e f u t e b o l sob o sol a b r a s a d o r d o m e i o - d i a . M e u d e d ã o
d o pé d i r e i t o e s t o r t e g a d o p a r e c i a não r e s p o n d e r à v o n -
t a d e d e c o r r e r u m p o u c o m a i s atrás d a b o l a . T o d o s os
dias, d u r a n t e t o d a a m i n h a infância, servíamo-nos d a t r a n -
q u i l i d a d e d a r u a p a r a d a r vazão ao imaginário d o nosso
p e q u e n o m u n d o . E n t r e b r i g a s e gracejos, m o r d e n d o a
p o e i r a , e n t r e vaias e aplausos, e s f o l a n d o a p e l e a c o b r e a d a ,
e n f i m , conseguíamos e m p u r r a r a b o l a p a r a d e n t r o d a baliza
d e p e d r a s . Batíamos c o m o autêndcos heróis. O m o m e n t o
mais sublime d o j o g o era sempre i n t e r r o m p i d o c o m o
b r a d o d a m a m ã e a c h a m a r - m e p a r a os afazeres de casa.
A p e s a r dos r e s m u n g o s e p r o t e s t o s , lá i a e u r e s p o n d e r à
c h a m a d a . M e u irmão m a i s v e l h o t r a b a l h a v a c o m o a j u d a n t e
d e m e c â n i c o e e u estudava à t a r d e n a escola primária d a
E s c o l a N o v a . A n t e s d o s j o g o s , t i n h a d e a j u d a r e m casa,
e s t u d a r e l i m p a r o c h i q u e i r o e só d e p o i s estaria l i b e r a d o
p a r a a l i m e n t a r o m e u s o n h o d e ser u m a g r a n d e estrela d e
f u t e b o l . E u não e r a m e n i n o d e u m s o n h o mas d e m u i t o s
s o n h o s . M a m ã e t i n h a seu s o n h o também: q u e r i a q u e e u
fosse a d v o g a d o p a r a m e t e r m e u p a i n a c a d e i a e casar c o m
a f i l h a d o d o u t o r A p o l i n á r i o . E r a difícil p a r a m i m c o n j u -
gar estes d o i s s o n h o s , o d e estrela d e f u t e b o l e a d v o g a d o ,
p o r isso tinha d e c a p r i c h a r nos d r i b l e s e d e m e p e n d u r a r
n o s l i v r o s . D e pés descalços, c o m os calções r e m e n d a d o s ,
g r o s s e i r a m e n t e , e u m a c a m i s o l a , q u e só d e s p i a q u a n d o

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MARGINAIS
EVEL ROCHA

estivesse s o l a p a d a d e s u o r e t e r r a , e u farejava a b o l a o n d e d e s e g u n d a e m e t i a d e n t r o d a p a n e l a u m p e d a ç o d e osso


ela estivesse. M e u p a i e r a p e d r e i r o d o t i p o q u e só voltava ao d e vaca q u e g u a r d a v a só p a r a d a r g o s t o à c o m i d a . E r a
t r a b a l h o d e p o i s d e gastar o último c e n t a v o . Q u a n d o t i n h a difícil p a r a m i m e n g o l i r aqueles grãos. V a i fazer a l g u m
d i n h e i r o n o bolso, chutava t u d o o que lhe aparecia pela m a n d a d o n a casa d e N h a C a c i l d a o u a j u n t a r o l i x o d a l o j a
f r e n t e , m a n d a v a bocas e d e s a p a r e c i a p o r u n s dias, p o r é m , d e T i F r a n c o , eles s e m p r e te dão a l g u m a coisa d e c o m e r .
q u a n d o regressava à casa, v i n h a c o m a q u e l a cara d e órfão E u cá m e a r r a n j o , d i z i a m a m ã e , r e s i g n a d a à p o b r e z a .
d e s c o n s o l a d o , e s m o l a n d o a compaixão d a m i n h a mãe q u e A r u a o n d e nasci e cresci e r a d e t e r r a solta e f e r r o s
l h e satisfazia todas as suas v o n t a d e s . Mamãe ganhava a v i d a v e l h o s , crateras o n d e se a m o n t o a v a m l i x o s v a r r i d o s p e l o
c o m o l a v a d e i r a . As pessoas t r a z i a m suas t r o u x a s a c o m p a n - v e n t o e poças d e água d e e s f r e g a d u r a m i s t u r a d a c o m u r i n a
hadas d e u m a lista c o m o n o m e d e cada peça d e r o u p a e, q u e as m u l h e r e s despejavam n a c a l a d a d a n o i t e . P o r f a l a r
e n q u a n t o m a m ã e lavava, e u p e n d u r a v a - a s n o e s t e n d a l o u e m água p o d r e , l e m b r o - m e d e u m a discussão e n t r e u m a
secava-as n o chão d e cascalho atrás d a casa. N o fim d o d i a , d o n a d e casa e u m v i a n d a n t e q u e l e v o u c o m u m b a l d e d e
recolhíamos as r o u p a s e averiguávamos peça p o r peça p a r a água suja e m c i m a e este c h a m o u d e p o r c a à m u l h e r , q u e
ver se não faltava n a d a , antes d e entregá-las ao d o n o . E l a se d e s c u l p o u , d i z e n d o q u e a água e r a l i m p i n h a , l i m p i n h a .
m a l sabia l e r e escrever. E u t i n h a d e s o l e t r a r o n o m e das Pois, se é tão l i m p i n h a p o r q u e é q u e não a deitaste n o
m u d a s d e r o u p a e, e m compensação, e l a tecia-me rasga- pote?, r e t r u c o u o e s t o u v a d o . E u m o r a v a n a r u a d e f r e n t e
dos elogios, É assim m e s m o , m e u d o u t o r z i n h o , a g o r a v a i e só a g o r a v i m a saber q u e se c h a m a v a R u a São João. E l a
e s t u d a r u m p o u c o , e n q u a n t o e n t r e g o essa t r o u x a . E l a saía e r a o nosso c a m p o d e f u t e b o l e, à n o i t e , transformava-se
p e l a p o r t a d e f r e n t e e e u escapulia-me p e l o portão p a r a n o p a r q u e i n f a n t i l dos m e n i n o s d a z o n a : brincávamos d e
jogar f u t e b o l . Jogar é m u i t o mais prazeroso que estudar e r o d a , d e f e r r o - q u e n t e , de t r i n t a - e - u m e de casamento-inglês.
os craques g a n h a m mais! As sovas q u e levava não m e doíam U m p o u c o mais ã f r e n t e , ficava o f u n d o d e C a t r a p i l , u m a
t a n t o q u a n t o o c h o r o d a m a m ã e ao l a m e n t a r as desilusões espécie d e u m u n i v e r s o ã p a r t e : a l i se c o n c e n t r a v a o l i x o
da vida, a frustrante tarefa de lavadeira m a l r e m u n e r a d a e d e t o d o s os b a i r r o s v i z i n h o s . Ouvíamos d i z e r q u e o l i x o
sem t e m p o p a r a assentar o fogão. Q u a n d o não havia r o u p a era p r e j u d i c i a l à saúde, q u e t i n h a doenças infecciosas, mas
p a r a lavar, e l a v e n d i a botijas d e água ã vizinhança. M a m ã e era nesse f u n d o q u e encontrávamos os nossos b r i n q u e d o s .
lavava r o u p a d e g e n t e fina e, n a h o r a d a e n t r e g a , r e c e b i a Para nós, f u n d o d e C a t r a p i l e r a u m p a r q u e d e diversões.
o d i n h e i r o , a j u n t a v a as sobras d e c o m i d a e levava p a r a Q u a l q u e r pedaço de m a d e i r a o u a p a r e l h o avariado trans-
casa. C a l h a v a - m e u m a p e r n a d e f r a n g o quase d e s n u d a d a , formava-se n u m a invenção extraordinária. A l i x e i r a tinha
e n c h i a as mãos d e batatas fritas frias e encordçadas, u m múltiplas u t i l i d a d e s . A o contrário d o s m e n i n o s d e L o m b a
p e d a ç o d e b i f e m e i o m a s t i g a d o , pães d o r m i d o s ( m e s m o B r a n c a e d o M o r r o C u r r a l , os nossos b r i n q u e d o s não e r a m
cansados d e d o r m i r ! ) , cocorotas d e a r r o z t e m p e r a d o e fazía- c o l o r i d o s , não tinham luzes e n ã o e r a m t e l e c o m a n d a d o s ,
m o s a nossa festa c o m o se fosse a celebração d a s e g u n d a mas isso não representava n a d a d i a n t e d a nossa imaginação:
v i n d a de Cristo! u m p e d a ç o d e p a u f l u t u a n d o nas poças d e água escura
R e l e m b r a r os m o m e n t o s d e d i f i c u l d a d e s p r o v o c a - m e transformava-se n u m extraordinário c r u z e i r o s i n g r a n d o o
u m nó n a garganta. N a verdade, e u n u n c a d o b r e i o cabo i m e n s o a z u l d o o c e a n o , u m c a b i d e q u e b r a d o p o d e r i a ser
das t o r m e n t a s . M a m ã e c h e g o u ao p o n t o d e f e r v e r m i l h o u m a e s p i n g a r d a d e caça o u u m v o l a n t e d e u m a m o t a alta-

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- EVEL ROCHA
MARGINAIS -

é a única f o r m a d e te a j u d a r a t e r m i n a r os estudos. Hás-de


m e n t e m o d e r n i z a d a , os m o n t e s d e latas velhas, caixotes e
ser u m g r a n d e a d v o g a d o , u m h o m e m de r e s p e i t o c o m o o
garrafas e r a m prédios q u e c e d i a m à força das granadas das
d o u t o r A p o l i n á r i o . N ã o m e i m p o r t o d e esfolar os j o e l h o s
nossas armas, q u e n a r e a l i d a d e e r a m pedras q u e atirávamos
n a casa dos o u t r o s p a r a te fazer u m h o m e m de amanhã!,
p a r a p e r s e g u i r as ratazanas, os extraterrestres q u e i n v a d i a m
disse-me. As suas palavras húmidas revelavam as espessas
a t e r r a e ameaçavam t r a n s f o r m a r - n o s e m vegetais. T i n h a m
névoas d e s o f r i m e n t o , u m areal de angústias e desassossego
d e ser destruídos. T e i m o s a m e n t e , s o u b e m o s sobreviver à
q u e c o r r o i a m a sua a l m a . M a m ã e e r a j o v e m , o c o r p o seco
d e s i g u a l d a d e q u e h a v i a e n t r e nós e os f i l h o s d e pais abas-
e o s s u d o a p a r e n t a v a o d o b r o d a i d a d e q u e tinha. C o m o
t a d o s , c o n t u d o , n a nossa adolescência e j u v e n t u d e não
q u e r i a f a l a r p a r a ela não se i n c o m o d a r ! N o f u t u r o h a v e r i a
s o u b e m o s s u p e r a r essa m e s m a d e s i g u a l d a d e .
de l h e d a r t u d o o q u e não teve d i r e i t o , havia de l h e e n c h e r
Todos os dias, e u t i n h a de levantar cedo para i r à padaria
d e coisas l i n d a s e caras, seria u m g r a n d e f u t e b o l i s t a e u m
d e L o j a Nova, e colocar-me n a l o n g a fila p a r a c o m p r a r dez
i l u s t r e a d v o g a d o , c o m p r a r i a u m casarão só p a r a ela e c o l o -
pães de t r i g o . Às vezes, q u a n d o conseguia s u b t r a i r algumas
c a r i a m e u p a i n u m a cadeia d e p r a t a !
moedas d a carteira d o m e u irmão, c o m p r a v a doze e c o m i a os
Papai d e i x o u - n o s p o u c o antes d o m e u sétimo
dois p e l o c a m i n h o , pois, o almoço era i n c e r t o . N h a L u d e v i n a
aniversário. M a m ã e g o s t a v a m u i t o d e l e . E r a capaz d e
costumava chamar-me para varrer-lhe a varanda e lavar pratos
q u a l q u e r sacrifício p a r a s e g u r a r o h o m e m d a sua v i d a ,
e m t r o c a de u m apetitoso p r a t o de c a c h u p a guisada. E u fazia
c o n t u d o , m e u p a i , u m m u l h e r e n g o d e bolsos r o t o s e pé
os trabalhos c o m a m a i o r satisfação e, p o r vezes, ela enc]:iia-me
d e g r o g u e i n v e t e r a d o , u m b o é m i o a t e m p o i n t e i r o , não
os bolsos de rebuçados. U m d i a , e x p u l s o u - m e de vez d a sua
e r a d e se c o n t e n t a r c o m a v i d a sedentária. E l a ia buscá-lo
casa ao d e s c o b r i r q u e e u andava a f u r t a r os ovos de manhã
nos b o t e q u i n s , arrastava-o p e l o c o l a r i n h o , b a t i a à p o r t a d a
e, à t a r d e , batia-lhe ã p o r t a p a r a lhos vender. E u achava q u e
casa das a m a n t e s p a r a arrancá-lo d o divã d a i n f i d e l i d a d e ,
N h a L u d e v i n a t i n h a sido injusta c o m i g o pois, n u m a capoeira
a c e n d i a velas a S a n t o A n t ó n i o n a esperança d e c o n s e g u i r
c o m cerca de v i n t e ovos, e u apenas furtava três o u q u a t r o .
a v e n t u r a d o c a s a m e n t o , mas n a d a l h e saía de feição. N h a
Desaforado c o m o e u era, passei a f u r t a r e a v e n d e r os ovos
M a r i a d o M o n t e , u m a c u r i o s a lá d o b a i r r o , e n s i n o u - l h e u m
t o d o s n a loja de T i F r a n c o .
t r u q u e p a r a a m a r r a r m a r i d o : m a m ã e d e s p i u as cuecas e o
U m a vez, passei cerca de duas horas e m e i a agachado ã
s o u t i e n , meteu-os n u m a p a n e l a c o m água a ferver, p e g o u
espera q u e u m a g a l i n h a de pescoço p e l a d o pusesse u m ovo.
e m algumas barbas de m i l h o , esfregou-as i n t e n s a m e n t e n o
F o i o partomais l o n g o q u e p r e s e n c i e i n a m i n h a infância. E u
sovaco e e n t r e as p e r n a s , n a sua i n t i m i d a d e , e colocou-as
precisava d o ovo, p o i s tinha passado a manhã i n t e i r a sem
n a p a n e l a . D e p o i s d e u m b o m ferver, dás ao D a d e j o este
c o m e r n a d a e a estúpida d a g a l i n h a p r o l o n g a v a a m i n h a
chá m i l a g r o s o , disse N h a M a r i a . E r a necessário esperar dois
desgraça. O a l m o ç o s a i r i a p o r v o l t a das três d a t a r d e e,
meses, mas d o i s meses r e p r e s e n t a v a m u m a e t e r n i d a d e e
quase s e m p r e , e r a u m a r r o z b r a n c o disfarçado c o m a l g u n s
m a m ã e teve d e s u p l i c a r à c o m a d r e q u e l h e desse a l g o q u e
grãos d e feijão o u u m a canja c o m s u m o de g a l i n h a . Petisco
fosse mais rápido.
e r a coisa d e g e n t e r i c a .
N ã o te preocupes. Rosário, disse N h a M a r i a d o M o n t e ,
M a m ã e a n d a v a à p r o c u r a d e alguém p a r a p r e e n c h e r
Sei d e u m a coisa q u e vai deixar-te c o m a b o c a aberta. E d a r
a l g u n s d o c u m e n t o s q u e r e c e b e r a d o e s t r a n g e i r o : Sérgio,
e pegar: tira essa mixórdia q u e tens vestido, t o m a u m b a n h o
e s t o u p e n s a n d o e m e m i g r a r p a r a Itália. Á v i d a está difícil e

21
MARGINAIS ^ EVEL ROCHA

de p e r f u m e para p u r i f i c a r o c o r p o , traz u m a fotografia de


corpo inteiro c o m tua i m a g e m e a do Dadejo e u m tubo
d e l i n h a . Vais t e r d e r e c i t a r esta oração d e São T r u c u l e n t o
II
trezentas e t r i n t a e três vezes. N ã o sabes l e r d i r e i t o , mas
Sérgio sabe, p o r t a n t o , ele v a i ajudar-te. E n q u a n t o rezas,
vais e n r o l a n d o a l i n h a ã v o l t a d a f o t o g r a f i a c o n s u m a n d o
a vossa união. A n t e s d e dizeres « a m é n » , D a d e j o estará à
tua frente a chamar-te de m e u amor.
M a m ã e fez t u d o d i r e i t o . Rezava e e n r o l a v a a l i n h a ,
m a s s e m p r e c o m os o l h o s espertos n u m a dança frenédca E u t i n h a p r e s s a e m c r e s c e r , m a s os d i a s p a r e -
e n t r e a p o r t a , o s a n t o e a f o t o g r a f i a . A n t e s d e d i z e r amén, c i a m não t e r f i m . N o desejo de m e t o r n a r u m h o m e m
p a p a i e n t r o u e disse: o i , a m o r ! , o l h o u p a r a ela, n u a e f e i t o , r a s p a v a os p e l o s d a c a r a c o m b o c a d o s d e v i d r o
p e r f u m a d a , m e n e o u a cabeça: m u l h e r e s ! Rosário, v o u - m e e l â m i n a s v e l h a s , saía c o m os m a i s v e l h o s , a g i t a n d o as
e m b o r a c o m Virgínia p a r a B o a V i s t a . C u i d a d o p a r a não insípidas n o i t e s d a R i b e i r a . A o s d o z e a n o s , f u m e i m e u
apanhares u m resfriado. p r i m e i r o c i g a r r o f e i t o c o m folhas de j o r n a l e n r o l a d a s
Desde a q u e l e d i a mamãe p a r e c i a t e r a c u m u l a d o t o d o e f i z s e x o a sério. M e u s a m i g o s r e j u b i l a r a m c o m o f e i t o
o ó d i o deste e d e o u t r o m u n d o p o r a q u e l e i n g r a t o , mas, e passaram a p r e s t a r m a i s atenção e m t u d o o q u e fazia.
apesar de t u d o e p o r l o n g o s meses, e l a i a t o d o s os fins-de- N o d i a s e g u i n t e , o E x t e r n a t o i n t e i r o já sabia que eu
-semana p a r a a p r a i a d e S h e l l fazer o r e m é d i o q u e a c u r i o s a e r a u m h o m e m a s é r i o . As m e n i n a s o l h a v a m - m e c o m
l h e tinha e n s i n a d o : Q u a n d o c h e g a r e s à p r a i a d e m a r , j o g a o l h o s de desejo, mas m e u g r a n d e a m o r chamava-se
três p u n h a d o s d e sal e, a cada p u n h a d o q u e botares, ficas a I z i l d a , m i n h a p r o f e s s o r a de Ciências N a t u r a i s . C o m o
observar a t e n t a m e n t e o sal a desfazer-se n a água, e n q u a n t o era l i n d a ! T i n h a u m rosto p e r f e i t o , de olhos a m e n -
dizes: «Assim c o m o o sal se d e s m a n c h a n a água, o a m o r doados, era alta e o c o r p o parecia ter sido esculpido
d e D a d e j o e d e Virgínia se desmanchará!» Se o a m o r dos p o r u m g r a n d e artista. Q u a n d o s o r r i a ficava c o m a
d o i s a c a b o u não sei, mas o c e r t o é q u e n u n c a m a i s o u v i sensação d e e s t a r n a p r e s e n ç a d e u m ser a n g e l i c a l .
falar de papai. Ela t i n h a t e r m i n a d o o curso c o m p l e m e n t a r e fora
c o n v i d a d a p a r a ser p r o f e s s o r a n o E x t e r n a t o . E r a m
r a r a s as n o i t e s e m q u e n ã o s o n h a v a c o m a q u e l e c o r p o
escultural nos meus sonhos m o l h a d o s . Penso que o
q u e m e a m a r r a v a n a q u e l a moça não era apenas a sua
beleza mas o j e i t o c o m o m e a b o r d a v a . Para m i m , o
m u n d o chamava-se I z i l d a Valadares.
M a m ã e c o n t i n u a v a o b c e c a d a c o m a v i a g e m q u e tar-
dava e m a c o n t e c e r , e c o n o m i z a n d o cada tostão a p o n t o d e
passar dias e m q u e nos alimentávamos apenas c o m chá
d e f o l h a d e l o u r o e pão. As vezes, a f o m e e s c u r e c i a m e u s
MARGINAIS . . ^ —— EVEL ROCHA

o l h o s , massacrava a m i n h a m e n t e e só pensava e m f u r t a r f o i d i r e c t o à casa d o c a r p i n t e i r o N h ô R a m i n h o , f a b r i c a n t e


p a r a e n c h e r o e s t ô m a g o . Essa i l h a próspera a i n d a t e m d e caixões, p a r a q u e se preparasse p o r q u a n t o Sérgio f o i
g e n t e a passar f o m e . m o r r e r n o h o s p i t a l . Só não m o r r i p o r q u e o d e s t i n o t i n h a
M e u irmão, passou a c o m e r f o r a e só v o l t a v a à n o i t e a l g o p i o r p r e p a r a d o p a r a m i m . Passei q u a t r o h o r a s n a
p a r a d o r m i r . A c h a v a q u e a c o m i d a d a casa não t i n h a subs- p e q u e n a sala d e urgência ã e s p e r a d e u m m é d i c o q u e
tância. M i n h a mãe teve seis f i l h o s , d o i s rapazes e q u a t r o d e m o r a v a e m levantar-se d a cama. N o d i a s e g u i n t e , mamãe
m e n i n a s . Três delas m o r r e r a m d e m o r t e d e s c o n h e c i d a , e N h ô R a m i n h o t i v e r a m u m a t r e m e n d a discussão, p o i s
a i n d a e m t e n r a idade. N u n c a consegui apagar da l e m - este q u e r i a r e c e b e r o d i n h e i r o d o caixão. Se o m e n i n o
brança a i m a g e m dos p e q u e n o s caixões d e m a d e i r a c r u a não m o r r e u a c u l p a não é m i n h a , fiz o caixão, está a q u i .
f o r r a d o s d e b r a n c o n o m e i o d a sala. L e m b r o - m e d e mamãe A g o r a desenrasca! O u pagas o u v o u à polícia.
c h o r a n d o desoladamente de u m lado para o u t r o , invo- Mas o q u e e u v o u fazer c o m este caixãozinho, N h ô
c a n d o a Nossa S e n h o r a d o L i v r a m e n t o p a r a q u e a livrasse Raminho?
d o s o f r i m e n t o de ter que e n t e r r a r mais u m f i l h o . Mamãe Desenrasca. T e n h o l o j a p a r a p a g a r e f i l h o s p a r a criar.
a b r i a a p o r t a d a f r e n t e p a r a as almas saírem e assim per- Está b e m , d o u - l h e o d i n h e i r o , m a s , p e l o a m o r d e
m a n e c i a d u r a n t e sete dias seguidos. N h a M a r i a d o M o n t e Deus, leva essa coisa d a q u i , i m p l o r o u . N h ô R a m i n h o c o f i o u
passava o t e m p o atrás d e l a c o m u m p a n o p a r a l i m p a r as o f a r t o b i g o d e c o m os d e n t e s i n f e r i o r e s , pôs o p e q u e n o
lágrimas d e m a m ã e , e v i t a n d o assim q u e elas m o l h a s s e m caixão d e b a i x o d o braço e s u m i u .
as asas dos a n j i n h o s . C o m as asas m o l h a d a s não p o d e r ã o Cidália, a m a i s v e l h a d e t o d o s nós, v i v i a (e a i n d a
v o a r p a r a o céu, d i z i a . E u não e n t e n d i a c o m o p o d e r i a m v i v e ) e m H o r t e l ã c o m seus d o i s f i l h o s g e r a d o s a i n d a
os m o r t o s f i c a r esticados e imóveis, f e c h a d o s n u m caixão n a a d o l e s c ê n c i a . E l a e m a m ã e v i v i a m e m desavenças,
e d e p o i s s e r e m e n t e r r a d o s s e m p o d e r e m respirar. A m o r t e c u l p a n d o - s e m u t u a m e n t e pelas desgraças q u e a v i d a n o s
era u m mistério q u e m e x i a c o m a m i n h a m e n t e de m e n i n o . i m p u n h a , c u s p i n d o obscenidades de m o d o a compensar
N u n c a m e a c o s t u m e i c o m ela. O u t r a coisa q u e até h o j e o desejo d a violência. A n t ó n i o amaldiçoava o v e n t r e q u e
não s u p o r t o é a l u z e o c h e i r o das velas. F a z e m - m e l e m - o t r o u x e a o m u n d o p a r a s o f r e r v e r g o n h a e ameaçava
b r a r os três r o s t i n h o s pálidos das m i n h a s saudosas irmãs m a t a r a irmã se n ã o parasse c o m o p o u c o r e s p e i t o d e
e o c h e i r o f r i o d a m o r t e p e l o s c a n t o s d a casa; t r a z e m - m e l e v a n t a r a saia p a r a e n f u n a r o r a b o à m a m ã e . Cidália,
ã m e m ó r i a a m i n h a mãe n u m c a n t o a c h o r a r a sua s o r t e , c o m a p e n a s dezasseis a n o s , e r a m ã e p e l a s e g u n d a vez.
as suas mãos húmidas e frias n o m e u r o s t o , forçando-me A n t ó n i o c o n s e g u i u u m t r a b a l h o d e m o t o r i s t a n o alar-
a m i r a r as f i g u r a s lúgubres vestidas d e anjos c o m algodão g a m e n t o d a pista d o A e r o p o r t o e ganhava b e m , mas,
e n t e r r a d o nas n a r i n a s e nos o u v i d o s . Q u i n z e dias d e p o i s d a i n f e l i z m e n t e , n ã o d a v a n a d a e m casa. H a v i a m o m e n t o s
m o r t e d a última, e m p l e n a m a d r u g a d a , f u i a p a n h a d o p o r q u e o m e u e s t ô m a g o contraía d e l a z e i r a , n u m t r o v e j a r
u m a f e b r e súbita q u e m e l e v o u à p o r t a d a m o r t e . M a m ã e , i n t e r v a l a d o e, p a r a e s c a p a r à f o m e , c o m o q u e a b r i n -
d e s e s p e r a d a p e l a lembrança a i n d a viva das três p e q u e n a s car, a r r e b a t a v a o l a n c h e aos m e u s c o l e g a s d a escola. E u
q u e m o r r e r a m , saiu a c o r r e r c o m i g o p a r a o h o s p i t a l n o estava c o n v e n c i d o q u e a p r o f e s s o r a I z i l d a t i n h a a l g u m
m e i o d a n o i t e e m a n d o u A n t ó n i o q u e avisasse a vizinhança afecto p o r m i m . Sempre q u e ia à c a n t i n a , oferecia-me
d o m e u estado crítico. Mas ele, n o seu raciocínio l e r d o , u m a sanduíche d e q u e i j o e u m c o p o d e s u m o .
MARGINAIS^ — EVEL ROCHA

Q u a n d o a sineta tocava à h o r a de saída, corríamos de- p e l a n o i t e c o m o cães vadios, apoderávamo-nos dos c a r r o s


s a b r i d a m e n t e p a r a casa. P o r é m , u m d i a , r e p a r e i q u e Fusco estacionados à p o r t a d o c i n e m a , surripiávamos t u d o o q u e
se desviava e ficava e s c o n d i d o atrás d o E x t e r n a t o . I n t r i g a d o estivesse m a l g u a r d a d o e, aos p o u c o s , o nosso g r u p o f o i
c o m o c o m p o r t a m e n t o d e l e , f u i espreitá-lo e r e p a r e i q u e e n g r o s s a n d o até sermos dez rapazes adolescentes a q u e m
ele t r a z i a a pasta c h e i a d e l i v r o s d e b a n d a d e s e n h a d a e as pessoas passaram a c h a m a r d e Pitboys. Precisávamos d e
ficava l e n d o até t a r d e . Pedi-lhe q u e m e emprestasse a l g u n s mais g e n t e p a r a f o r m a r u m a e q u i p a de f u t e b o l i m e não
e c o n v i d o u - m e p a r a ficar. Quase t o d o s os dias, e u chegava f o i difícil e n c o n t r a r rapazes desejosos d e fazer p a r t e dos
a altas h o r a s d a n o i t e a casa e c o m o m a m ã e a n d a v a m u i t o m e l h o r e s j o g a d o r e s d a r e d o n d e z a . A p e s a r d e gostar dos
o c u p a d a c o m a e x p e c t a t i v a d a v i a g e m não dava p e l a m i n h a Pitboys, os rapazes b r i g u e n t o s , d e v e r n o g r u p o a o p o r t u n i -
falta. Fusco e e u tornámo-nos a m i g o s inseparáveis. N u m a d a d e de d e s e n v o l v e r as m i n h a s p o t e n c i a l i d a d e s n o d r i b l e
ocasião, ele a p a r e c e u c o m duas revistas d e p o r n o g r a f i a e e d e s o n h a r e m ser u m f u t e b o l i s t a p r o f i s s i o n a l , não p o d i a
f o i u m a festa d e risos e n d i a b r a d o s , u m v e n d a v a l d e gar- d e f o r m a n e n h u m a f r u s t r a r a m i n h a mãe. E u t i n h a q u e
g a l h a d a s v e r os c o r p o s n u s o s t e n t a n d o a i n d m i d a d e d e ser d o u t o r a d v o g a d o p a r a l h e e n c h e r d e coisas l i n d a s e
todas as f o r m a s imaginárias. E u não cansava d e f o l h e a r as preciosas e c o l o c a r o m e u p a i n u m a c a d e i a d e p r a t a mas,
revistas, e n q u a n t o não sentisse as calças húmidas. U m d i a p a r a isso acontecer, t i n h a d e c a p r i c h a r nos estudos.
p e d i u - m e q u e o penetrasse, mas disse-lhe p r o n t a m e n t e q u e O s Pitboys tiveram u m a influência m u i t o g r a n d e n a
não, a q u i l o e r a p e c a d o sem p e r d ã o . L e v a n t e i - m e sobres- m i n h a adolescência. F o i n o g r u p o q u e a p r e n d i os detalhes
saltado c o m o coração s a c u d i d o d e susto e disse-lhe q u e sórdidos sobre ávida d e b a i x o de u m lençol, o n d e soube das
e u i a e m b o r a antes q u e mamãe desse p e l a m i n h a ausência. m i l e u m a u t i l i d a d e s d a c a m i s i n h a e passei a c o n h e c e r a lista
A n t e s de i r m o r a r e m Chã de Fraqueza, Fusco vivia e m dos h o m e n s e das m u l h e r e s mais c o r n u d o s d a i l h a . B e t o
A l t o São João n u m a b a r r a c a f e i t a d e chapas de bidões, for- contava de olhos fechados as horas e os dias e m q u e os pares
r a d a n o i n t e r i o r c o m papelão e f o l h a s d e j o r n a i s e revistas. se f u n d i a m e m abraços l i b i d i n o s o s , sabia a h o r a e m q u e as
O chão e r a d e t e r r a b a t i d a e o casebre t i n h a apenas duas marias e r a m desvirginadas, o delicioso instante e m q u e os
divisões o n d e f a z i a m d e t u d o . M a i s t a r d e , v i m a d e s c o b r i r rapazes p u l a v a m a cerca dos currais de A l t o Santa C r u z p a r a
q u e ele passava a m a i o r p a r t e d o d i a n a r u a . N a g e n e r a l i - os e n c o n t r o s prazerosos c o m as alimárias e m reboliço. N ã o
d a d e , as crianças d a p e r i f e r i a i n i c i a m a v i d a s e x u a l m u i t o via p e c a d o n e n h u m nessas p r o m i s c u i d a d e s , pois, as risadas
c e d o c o m seis, sete anos. Fusco d o r m i a c o m os pais e m a i s maldosas dos adolescentes projectavam-se n a v o n t a d e de se
seis irmãos n o m e s m o q u a r t o . Divertia-se a c o n t a r - n o s as t r a n c a r n u m a cabra, n u m a besta o u n u m a vaca sonolenta.
peripécias dos pais n a h o r a d o «vamos v e r » . A p r i m e i r a A razão p a r a t a n t a desavergonhice era sempre a mesma: Sal
vez q u e os v i u a f a z e r e m coisa-que-não^ode-ser, t i n h a ele t e m poucas m u l h e r e s . . . os h o m e n s são p a r o d i e n t o s e não
q u a t r o a n o s e d e s a t o u aos b e r r o s q u e Papá está a d a r lhes dão atenção... é m e l h o r pôr-se n u m a besta d o q u e se
mamã d e p o r r a d a ! Q u a n d o não h a v i a d e c o m e r e m casa, a v e n t u r a r nas m e n i n a s de v i d a infestadas de doenças...
Fusco r e v i r a v a os c o n t e n t o r e s o u f u r t a v a n o p e l o u r i n h o . E r a tradição os h o m e n s i r e m p a r a São N i c o l a u p r o c u -
M a m ã e b r i g o u c o m i g o p o r o t e r l e v a d o a l g u m a s vezes a r a r n o i v a . D e regresso, ao d e s c e r e m d o avião n o a e r o p o r t o ,
nossa casa p a r a d i v i d i r o p o u c o q u e nós tínhamos c o m ele. h a v i a s e m p r e os b i s b i l h o t e i r o s p a r a a v a l i a r e m a aparência
D e resto, Fusco e r a u m b o m p a r t i d o . Embrenhávamo-nos d a m u l h e r d e c a d a u m e a p r o v e i t a v a m p a r a p e d i r aos

na 9 7
MARGINAIS, . —
EVEL ROCHA

o u t r o s , q u e i a m viajar, p a r a se l e m b r a r e m d e d a r u m b o m
e x p e d i e n t e e não e s q u e c e s s e m d o s q u e f i c a v a m e q u e
n e c e s s i t a v a m d e u m a n o i v a p r e n d a d a . N h ô César, p o r
III
e x e m p l o , casou s e m c o n h e c e r a n o i v a . F o i u m c a s a m e n t o
p o r procuração q u e quase acabava n o p r i m e i r o e n c o n t r o .
Q u a n d o J u l i a n a , v i n d a d e São N i c o l a u , e n t r o u n a sala d e
d e s e m b a r q u e , desejosa d e c o n h e c e r o m a r i d o , c a i u d e
costas ao ver q u e N h ô César e r a f e i o , d e s e n x a b i d o e. A i n d a
p o r c i m a , a n d a a a t i r a r c o m u m a p e r n a ! , e x c l a m o u ao
a c o r d a r d o d e s m a i o . A f o r t u n a d a m e n t e , a i n d a h o j e estão P e r t e n c e r aos Pitboys e r a o m e s m o q u e r e c e b e r u m
casados, felizes e sem c h i f r e s p e l o m e i o . c e r t i f i c a d o de emancipação à repressão dos pais e dos a d u l -
T a l c o m o N h ô César, p a p a i f o i b u s c a r n o i v a e m São tos q u e n o s r o d e a v a m ; era u m a f o r m a d e d e f e n d e r a nossa
N i c o l a u . M a m ã e c r e s c e u a c a t a r l e n h a nas m o n t a n h a s i n t e g r i d a d e , o n d e expúnhamos a nossa cólera sem m e d o
d e São N i c o l a u e c o m apenas dezassete anos amigou-se dos o u t r o s , o n d e enunciávamos t o d a a nossa c r u e l d a d e
c o m p a p a i , e n t u s i a s m a d a c o m a i d e i a d e v i r m o r a r n o Sal de m o d o a n o s v i n g a r m o s d a rejeição social. T o d a a nossa
e f o r m a r a sua p r ó p r i a família c o m o a c o n t e c i a c o m as r e v o l t a t i n h a apenas u m alvo: a intolerância. N o seio d o
m e n i n a s d a sua i d a d e . E l a o u v i a d i z e r q u e a I l h a d o Sal g r u p o o m e d o ficava d e f o r a . N i n g u é m , e n q u a n t o estivesse
e r a a H o l a n d i n h a das i l h a s , t e r r a d e t r a b a l h o e d e s a b u r a . n o g r u p o , d e v e r i a d e m o n s t r a r q u a l q u e r s i n a l d e fraqueza.
N a a l t u r a , v i v i a c o m a mãe e m a i s d o z e irmãos. M e u avô O c h o r o , a submissão e o m e d o e r a m sinais d e f r a q u e z a
p a t e r n o m o r r e u d e icterícia, mas, m u i t o s anos antes, f o r a e n e n h u m d e nós estava n a disposição d e passar p o r t a l
d a d o p o r inútil ao d e s p e n c a r c o m u m a m u l a m o n t e a b a i x o a f r o n t a . E r a necessário e n c a r a r o p e r i g o c o m d e s p r e z o e
a c a m i n h o de C o v o a d a . M a m ã e não teve a sorte de J u l i a n a . c u s p i r n a cara d o m e d o , era necessário d e m o n s t r a r r e v o l t a
E l a t i n h a f e i t o t u d o p a r a s e g u r a r o seu h o m e m , t r a b a l h a v a p o r t u d o o q u e fosse r e g r a e b o m c o m p o r t a m e n t o , p o i s , as
p a r a l h e s u s t e n t a r os vícios, fazia j o g o d e c i n t u r a , c o r t a v a pessoas o l h a v a m - n o s c o m d e s p r e z o e devíamos r e t r i b u i r -
o m e i o p a r a fazer p o n t a , l o m b a v a d e sol a sol c o m o u m a Ihes desprezo também. U m a das p r i m e i r a s m e d i d a s f o i q u e
escrava, r e c o r r i a aos c u r i o s o s , f a z i a s a l a m a l e q u e s , m a s c a d a u m elegesse u m í d o l o q u e reflectisse o s e n t i m e n t o
nada serviu para convencer Dadejo, m e u pai. Ela olhava d o g r u p o . U m g r u p o é u m a t r i b o m o d e r n a c o m rituais
p a r a p a p a i c o m o l h o s d e u m a criança m i r a n d o u m d o c e . b e m d e l i n e a d o s . R a s p a d e i r a f o i e x p u l s o dos Pitboys p o r t e r
A m a n e i r a c o m o falava d e l e fazia-me l e m b r a r os c o n t o s d e s u g e r i d o q u e tomássemos C r i s t o c o m o nosso í d o l o . E r a
fada n a sua voz m e l i f i c a d a de paixão. Mamãe levava p o r r a d a d e u m a l e v i a n d a d e indescritível p e n s a r u m a coisa dessas.
e, e m silêncio, o u v i a d e s c o m p o s t u r a s dele, q u a n d o e n t r a v a Para m i m , C h e G u e v a r a s i m b o l i z a v a t u d o . A sua revolução
c o m o n u m pé-de-vento q u e b r a n d o t u d o o q u e e n c o n t r a v a e r a c o n t r a as classes d o m i n a n t e s , c o n t r a o i m p e r i a l i s m o
p e l a f r e n t e sem q u a l q u e r m o t i v o . E l a c h o r a v a c o m o u m a e a d o m i n a ç ã o . A m e u ver, a i l h a d o Sal está i n f e s t a d a d e
criança, mas l o g o e n x u g a v a os o l h o s e fazia t u d o c o m u m sanguessugas, coronéis q u e só p e n s a m n o v i l m e t a l e c u l -
e n t u s i a s m o indescritível p a r a a g r a d a r ao seu h o m e m . t u a m o desprezo pelos m a r g i n a l i z a d o s . A i l h a precisa de u m
l i b e r t a d o r , não de u m actor religioso q u e se d e i x a c r u c i f i c a r

28 9Q
MARGINAIS

p a s s i v a m e n t e , o u u m vendilhão d e m i l a g r e s e esperanças e a a u l a t r a n s f o r m a v a - s e n u m a balbúrdia. Q u a n d o m e


descartáveis. P r e c i s a m o s d e u m h e r ó i q u e conheça b e m a e x p u l s a v a m d a sala, a p r o v e i t a v a o t e m p o p a r a i r e s p r e i -
miséria e a f o m e , q u e esteja n a disposição d e d e s t r o n a r a t a r a p r o f e s s o r a I z i l d a a l e c c i o n a r nas o u t r a s t u r m a s . A
d i t a d u r a dos o p e r a d o r e s turísticos e g o v e r n o s c o r r u p t o s . distância, c o n t e m p l a v a - a d e l o n g e os gestos graciosos e o
C h e é o m e u í d o l o ! S e m p r e f o i . C o n h e ç o b e m a sua história seu a n d a r g r a c i o s o , d e s e j a n d o ser o chão q u e e l a pisava.
e t e m o s m u i t a coisa e m c o m u m , p o r e x e m p l o , C h e nasceu E l a não se cansava d e m e m a n d a r d e v o l t a p a r a a t u r m a ,
e m Rosário e e u sou f i l h o de u m a m u l h e r c h a m a d a Rosário, mas m e u coração e m festa p e d i a - m e p a r a ficar m a i s p a r a
C h e teve u m a infância difícil c o m o e u e, e m a d u l t o , d e u d e s f r u t a r d a q u e l a i m a g e m d i v i n a l . As aulas d a p r o f e s s o r a
a sua v i d a p a r a d e f e n d e r e a j u d a r os fracos e o p r i m i d o s . I z i l d a e r a m sagradas. E u t i n h a de a p r o v e i t a r cada s e g u n d o
C h e G u e v a r a disse: «Se v o c ê t r e m e d e indignação p e r a n t e p a r a c o n t e m p l a r cada m o v i m e n t o , cada gesto, cada palavra
a injustiça c o m e t i d a a q u a l q u e r pessoa e m q u a l q u e r l u g a r q u e ecoava d e n t r o d e m i m c o m o u m a canção d e a m o r .
d o m u n d o , então somos c o m p a n h e i r o s » - G r a n d e C h e ! A i d a q u e l e q u e tentasse p e r t u r b a r o s a g r a d o m o m e n t o
Esta frase revelava o desejo d e r e v o l t a q u e se i n f l a m a v a e m q u e a b r i a a q u e l e l i n d o e m a r a v i l h o s o p a r d e lábios
n o m e u i n t e r i o r , ela r e a c e n d i a os laivos d e a n a r q u i a q u e p a r a e x p o r a matéria! E u esganava q u a l q u e r u m . Escrevia
i l u m i n a v a m os m e u s o l h o s e c o r r i a m nas m i n h a s veias. T a l p e q u e n o s versos de a m o r n u m a das e x t r e m i d a d e s d a p r o v a
c o m o o h o m e m d a b o i n a p r e t a e u t i n h a u m i d e a l . IMeu d e ciências n a t u r a i s e e m t r o c a c o m p e n s a v a - m e c o m u m
s o n h o não se l i m i t a v a aos estádios d e f u t e b o l ; atravessava l a r g o s o r r i s o q u e a l i m e n t a v a a m i n h a f a n t a s i a ao c h a m a r -
as f r o n t e i r a s d a glória p a r a d a r voz aos i n d i g e n t e s c o m o m e de «aboborinha».
Adalgisa, Paula, A s t r o g i l d o , Élton e tantos o u t r o s q u e f o r a m E s t i v e à b e i r a d e r e p r o v a r p o r faltas e, graças a o
r a p t a d o s p o r v e n d e d o r e s de órgãos h u m a n o s q u e f a c t u r a m e m p e n h o d a m i n h a p r o f e s s o r a p r e f e r i d a , c o n s e g u i salvar
m i l h a r e s d e c o n t o s nos b a n c o s d e órgãos p a r a a c i d e n t a d o s o a n o e passar d e classe p a r a desgosto dos o u t r o s p r o f e s -
n o e s t r a n g e i r o . E u h a v e r i a d e p r o v a r ao m u n d o q u e não sores. E l a d e u - m e d e p r e s e n t e u m p a r d e sapatilhas, talvez
n a s c e m o s apenas p a r a c o n s t a r das estatísticas e ser m a r - tivesse c o n d o í d o d o s m e u s c h i n e l o s cansados e r e m e n d a -
g i n a i s , os pára-raios d a maldição h u m a n a , e acabar n u m a dos. Calcei p e l a p r i m e i r a vez, t i n h a e u o n z e anos e ia e n t r a r
cova s e m n o m e . S o m o s m a l t r a t a d o s p e l a l e i , d u p l a m e n t e n o c i c l o preparatório. E r a u m p a r d e sandálias de plástico,
m a l t r a t a d o s p e l a miserável c o n d i ç ã o de v i d a q u e levamos. a famosa chupa-caca d e v i d o ao b a r u l h o característico. N o s
p r i m e i r o s dias andava c o m o gato p e a d o , mas l o g o h a b i t u e i -
Para m i m a escola e r a I z i l d a . Nas o u t r a s aulas, se não -me a elas. I z i l d a gostava d e m i m e isso fazia-me s e n t i r b e m .
estivesse a l e r q u a d r a d i n h o s o u a r e m a r d e s o n o , a r r a n j a v a
q u a l q u e r coisa p a r a d i v e r t i r os colegas: fazia pasta, dese-
n h a v a c a r i c a t u r a s dos professores, fazia p e r g u n t a s tolas,
c o l o c a v a i n s e c t o s e l a g a r t o s n a gaveta d a secretária o u
i n v e n t a v a u m a m e n t i r a das grossas p a r a l e v a n t a r a tensão
dos professores q u e m e p a r e c i a m s o n o l e n t o s , tristes e
i n f e l i z e s c o m a profissão q u e e x e r c i a m . N a m a i o r i a das
vezes, a tensão dos professores s u b i a m a i s d o q u e d e v i a

30 31
EVEL ROCHA

M a m ã e teve u m a crise depressiva e d e i x o u de lavar


r o u p a s p o r causa d a tensão, p a s s a n d o a v e n d e r pastéis d e
m i l h o e doces ã p o r t a d o c i n e m a . M e s m o c o m a saúde fra-
g i l i z a d a e o r d e m expressa p a r a o b s e r v a r a convalescença,
ela não d e i x a v a d e l u t a r p a r a r e a l i z a r o s o n h o d e ver seu
f i l h o c o m o d i p l o m a d e a d v o g a d o . N u m a n o i t e , ao e n t r a r
c o m p e z i n h o s d e lã e m casa d e m o d o a não acordá-la,
encontrei-a sentada n a cama c h o r a n d o silenciosamente.
S e n t i u m n ó n a g a r g a n t a ao v e r seu estado miserável d e
m u l h e r s o f r e d o r a e, sem d i z e r n a d a , o f e r e c i - l h e u m c o p o
d e água. M o m e n t o s d e p o i s , o l h o u p a r a m i m . C o m o p o d e s
ser tão c r u e l c o m a t u a mãe?, p e r g u n t o u - m e , a m a r g a m e n t e .
Seus o l h o s m o l h a d o s m a g o a r a m - m e p r o f u n d a m e n t e . H o j e
c h a m a r a m - m e à E s q u a d r a d a polícia p o r causa d e a l g u m a s
q u e i x a s dos c o m e r c i a n t e s q u e andas a f u r t a r . Q u e se passa
c o n t i g o , Sérgio? Q u e r e s acabar a p o d r e c e n d o n a cadeia, ser
u m escravo q u e i m a n d o ao sol p a r a g a n h a r mixórdias c o m o
o t e u pai? M a i o r é D e u s . N ã o c r i e i f i l h o p a r a ser b a n d i d o !
N ã o m e i m p o r t o d e m o r r e r p a r a te fazer alguém n a v i d a .
M a i s vale c o m e r m i l h o alheado c o m h o n r a d o q u e bife c o m
d e s o n e s t i d a d e ! O D e u s , paciência! A s s i m , matas-me antes
que a m i n h a h o r a chegue!
F i q u e i c a l a d o a escutar as suas palavras afogadas e m
lágrimas. J u r e i a t o d o s os santos q u e m e v i e r a m a cabeça
e a m i m m e s m o q u e n u n c a mais j o g a r i a f u t e b o l ; j u r e i a
m i m m e s m o q u e i a q u e i m a r a capela dos o l h o s p a r a ser u m
h o m e m d e b e m , i r i a esforçar-me p a r a ser u m h o m e m d e

33
MARGINAIS , , . EVEL ROCHA

v a l o r e l e v a n t a r o n o m e d a família, J u r o p e l a m i n h a v i d a , -me i m e n s o , apesar d o s castigos severos d a m i n h a mãe e


j u r o p o r t u d o q u a n t o é sagrado! Mamãe p a r e c i a tão frágil e d a c e n s u r a d a sociedade. F u i feliz e n q u a n t o p u d e . Poucas
massacrada p e l o s desgostos q u e e u não i m a g i n a v a q u e ela crianças de hoje sabem o q u e é m o n t a r u m p o r c o b u l h e n t o ,
fosse capaz d e l e v a n t a r d a q u e l a c a m a e d a r - m e u m a sova ser p e r s e g u i d o p o r u m bêbado e n d e m o n i n h a d o , o u m e s m o
tão f o r t e , mas tão f o r t e , q u e tive v e r g o n h a d e sair à r u a , n o c o r r e r atrás d e u m c a r r o e p e n d u r a r n o pára-choques,
d i a s e g u i n t e ! M i n h a s costas p a r e c i a m u m m a p a d e estradas b r i n c a r d e «mãos-ao-alto», o u p e r s e g u i r u m marcha-cacaia.
c o m m a n c h a s escuras d e sangue tatuadas pelas c h i c o t a d a s F u i o m e n i n o d a R i b e i r a F u n d a q u e mais t r a b a l h o
d e fio d e e l e c t r i c i d a d e . N o s p r i m e i r o s dias, d e p o i s d a sova, d e u aos a d u l t o s . C o n h e c i a t o d o s os cantos o n d e as galinhas
saía ã r u a c o m u m pullover que m e tapava o pescoço e c o b r i a p o e d e i r a s e s c o n d i a m seus n i n h o s , sabia todas as m a n h a s
os braços até a o p u l s o . E u sabia q u e m a m ã e m e p e r d o a r i a , d e c o m o t i r a r o sorvete das o u t r a s crianças, sabia d e c o r o
p o i s , j o g a r f u t e b o l e r a o q u e e u m a i s q u e r i a nesta v i d a e n o m e dos actores famosos e e r a capaz d e falsificar ingres-
e l a não i r i a levar e m c o n t a a m i n h a p r o m e s s a aos santos, sos p a r a e n t r a r n o c i n e m a . C l a r o q u e não m e o r g u l h o
p o i s e u t i n h a o coração n o b i c o d o s pés. E u t i n h a m e d o dessas façanhas, mas a j u d a r a m - m e a a l i v i a r a d o r d e ser
d o s açoites d e l a . P r e f e r i a q u e m e desse u m p o n t a p é , u m p o b r e , c o m p e n s a v a m as privações q u e o d e s t i n o m e i m p u -
bofetão, o u q u e m e atirasse u m a c a n e c a d a à cabeça c o m o n h a . N a m i n h a m e n t e adolescente a palavra «bondoso»
c o s t u m a v a fazer. Q u a l q u e r coisa seria m e n o s d o l o r o s a q u e não t i n h a c a b i m e n t o . Q u a n d o m e esforçava p a r a ser u m
os fios d e e l e c t r i c i d a d e q u e m e d e i x a v a m o c o r p o t a t u a d o b o m m e n i n o não a c r e d i t a v a m e m m i m o u s i m p l e s m e n t e
p o r m a i s d e u m a s e m a n a . M a m ã e a c h a v a q u e os filhos desprezavam-me. U m b o m e x e m p l o deste facto a c o n t e c e u
d e v i a m ser e d u c a d o s c o m o n o s e u t e m p o : c o m t r a b a l h o e u m d i a e m q u e estava a d o r m i r n u m a t a r d e d e sábado à
p o r r a d a . H o j e , eles q u e r e m m a n d a r nos pais e, a c o n t i n u a r s o m b r a d e u m a acácia - d o r m i r e r a u m a f o r m a d e a d i a r
assim, não sei o n d e este m u n d o v a i p a r a r , d i z i a . a estupora da f o m e ! - sonhava que o d o u t o r Apolinário
Sal f o i s e m p r e o t e a t r o d a m i n h a e x i s t ê n c i a . A s estava n a v a r a n d a d a casa b e b e n d o cerveja e l e n d o j o r n a l .
memórias d o sol descarado a c a m i n h o de T e r r a Boa C o l o c o u o j o r n a l s o b r e a mesa p a r a a b r i r u m a lata de sar-
e P o ç o V e r d e c o m o b a r r i l , ú n i c o b r i n q u e d o a sério a d i n h a . O v e n t o q u e soprava c o m a l g u m a i n t e n s i d a d e fez
q u e t i v e d i r e i t o , as i n v e s t i d a s d o v e n t o e n d i a b r a d o , e m v o a r o semanário. C o r r i p a r a a p a n h a r o j o r n a l e v o l t e i ,
r e d e m o i n h o , q u e fazia dançar a p o e i r a , m a q u i l h a n d o e n t u s i a s m a d o c o m o u m a t l e t a a l a r d e a n d o o troféu, p a r a
o m e u r o s t o p r e n s a d o d e d i f i c u l d a d e s , o sal d a m a r e s i a devolvê-lo ao digníssimo a d v o g a d o q u e saboreava m i u d a -
que dava gosto à m i n h a pele, o m a r q u e e n c h i a meus m e n t e a sua s a r d i n h a e n l a t a d a , S e n h o r d o u t o r , c o n s e g u i .
o l h o s e o céu d a i l h a , p o r o n d e os m e u s s o n h o s a l a d o s C o n s e g u i ! D e r e p e n t e , a sua p e l e e s c u r a c o m e ç o u a ficar
invadiam o i n f i n i t o , f o r a m meus companheiros p o r toda r o x a e húmida, os o l h o s r e v i r a r a m - s e , o c o r p o t r e m i a c o n -
a v i d a . C o m eles c o n s t r u í o m e u d e s t i n o p o r q u e n ã o v u l s i v a m e n t e até q u e c a i u n o chão p e s a d a m e n t e , ficando
sabia de o u t r o s c a m i n h o s . r e t e s a d o e d u r o . G r i t e i d e s a t i n a d o p o r a j u d a e, e m p o u c o s
A m i n h a infância f o i c e r c a d a d e situações grotescas, s e g u n d o s , u m a multidão a j u n t o u - s e . A l g u é m disse q u e a
d e mistérios n u n c a d e s v e n d a d o s , d e i n t r i g a n t e s a c o n t e - l a t a d e s a r d i n h a estava e n v e n e n a d a . Amália, a filha única
cimentos, de gentes semianalfabetas q u e mais p a r e c i a m d o d o u t o r A p o l i n á r i o , desesperada e c h o r o s a , e n v o l v e u -
peças d e u m a e n g e n h a r i a m a l acabada. C o n t u d o , d i v e r t i a - -me n u m abraço q u e fez d e s p e r t a r e m m i m u m a paixão

34
MARGINAIS . EVEL ROCHA

a r r e b a t a d o r a . A q u e l e m o m e n t o d e tragédia e d e l u t o Intrigava-me o n o j o q u e o a d v o g a d o tinha p o r pessoas


t r a n s f o r m o u - s e e m p r a z e r . E n v o l v e m o - n o s n u m abraço pobres. Aos sábados, d i a de esmola, colocava u m a das e m p r e -
f o g o s o , a sua língua a c o l c h o a d a entrelaçava à m i n h a até gadas à p o r t a d a v a r a n d a p a r a b l o q u e a r a aproximação dos
q u e u m g a n i d o m e a c o r d o u : f u i d e s p e r t o p o r u m cão pedintes. As esmolas e r a m dadas ao portão d o q u i n t a l . Para
q u e m e l a m b i a o r o s t o . O s rapazes Pitboys e s p a l h a r a m p o r ele, as crianças e os adolescentes c o m o e u , f i l h o s de pais
t o d o s os c a n t o s d e Espargos q u e e u estava a n a m o r a r u m carenciados, e r a m as bactérias, os vermes d a sociedade. As
c a c h o r r o . E n q u a n t o t e n t a v a j u s d f i c a r a patética c e n a das empregadas d a casa d e v i a m t o m a r b a n h o e desinfectar-se e m
ensalivadas l a m b i d e l a s d e c a c h o r r o , r e p a r e i q u e o d o u t o r álcool antes d e começarem a trabalhar, q u e m não quisesse
A p o l i n á r i o estava n a v a r a n d a d a casa l e n d o u m j o r n a l . seguir as regras devia p r o c u r a r t r a b a l h o n o u t r a freguesia.
C o m o n o s o n h o , m e u c o r p o g e l o u , as m i n h a s mãos t i r i t a - O i t o o u n o v e meses d e p o i s , f o i n o t i c i a d o p e l a rádio
v a m e, a l h e i o às piadas d o s c o m p a n h e i r o s , saí a c o r r e r aos q u e o d o u t o r A p o l i n á r i o r e c e b e r a u m a indemnização d e
g r i t o s , p e d i n d o - l h e q u e segurasse o j o r n a l senão o v e n t o não sei q u a n t o s m i l h a r e s d e c o n t o s d a fábrica d e conservas
o levava. V a i l i m p a r o n a r i z , b a n d a l h o ! , disse-me, n o seu sedeada e m P o r t u g a l p o r causa d a l a t a d e s a r d i n h a .
j e i t o arrogante. Tal c o m o n o sonho, o vento levou o j o r n a l ,
e n q u a n t o ele a b r i a a l a t a d e s a r d i n h a . M e u coração b a d a , O s Pitboys tinham u m c e r t o r e s p e i t o p o r R i c a r d o , o
d e s c o m p a s s a d a m e n t e , N ã o posso esperar q u e ele c o m a a Pianista, p o r ser a r r o j a d o e s o b r e t u d o perverso. A i m a g e m
s a r d i n h a . Nha mãe, nha mãe, o d o u t o r v a i m o r r e r , ele v a i q u e tínhamos dele era de u m rapaz q u e não tinha noção dos
m o r r e r ! Saltei para c i m a dele e arremessei a lata de sardi- p r o b l e m a s q u e causava aos o u t r o s . U m v e r d a d e i r o c a c h o r r o
n h a p a r a o m e i o d a estrada. d e g u e r r a . D e u u m a t r e m e n d a sova ao C r i s t a l i n o , p o r achar
« O l h a o q u e fizeste, f i l h o d a m i n h o t a ! Q u e r e s q u e te q u e o m e n i n o era mais feio q u e o d i a b o , e pô-lo a dançar n u
dê u m a sova? Vais p a g a r p o r isso». Assustado c o m a reac- à p o r t a d o c i n e m a . C r i s t a l i n o não é n o m e d e h o m e m e a i n d a
ção d o a d v o g a d o , f u i - m e a f a s t a n d o d e costas à p r o c u r a p o r c i m a és mais feio q u e o g r e l o d o c u de N h ô R a i m u n d o ! ,
d e u m m e i o p a r a f u g i r à sua fúria. A r u i d o s a l a m b i s q u i c e desabafou. Q u e c u l p a tinha ele p o r ser tão feio?
d a p e q u e n a m u l t i d ã o f o i e n s o m b r a d a p o r u m silêncio T i F r a n c o esteve i n t e r n a d o n o h o s p i t a l e m estado d e
i n c ó m o d o q u a n d o o cão, q u e c o m i a as s a r d i n h a s , c a i u n o c h o q u e q u a n d o P i a n i s t a se v e s t i u d e n o i v a cadáver e inva-
c h ã o e m esdcões, e s p u m a n d o p e l a b o c a até f i c a r imóvel. d i u a sua l o j a , a altas h o r a s d a n o i t e , p a r a l h e m e t e r m e d o
E u esperava q u e ele m e agradecesse p o r t e r salvo a sua e f u r t a r os míseros c o b r e s d e u m d i a d e v e n d a . G a n h o u a
v i d a , q u e tivesse u m p o u c o d e consideração e m saber q u e , a l c u n h a d e P i a n i s t a graças aos seus d e d o s hábeis n a tarefa
e m vez d o c a c h o r r o p o d e r i a t e r s i d o ele a vítima, m a s , d e d e f u r t a r aos o u t r o s . N a R i b e i r a F u n d a t o d o s d i z i a m q u e
lá d e c i m a d o pináculo d e o r g u l h o , ele r u g i u . A g o r a vai» a única aritmética q u e R i c a r d o c o n h e c i a e r a subtracção -
t e r d e e n t e r r a r o a n i m a l , seu i d i o t a ! subtraía t u d o o q u e estivesse à vista. E u t i n h a m e d o d e l e ,
D e s o l a d o s , e u e os P i t b o y s arrastámos o c a c h o r r o mas p r o c u r a v a s e m p r e u m a f o r m a d e disfarçar. N ã o e r a
p e l o r a b o e levámo-lo a e n t e r r a r . Para ele, não éramos m e d o , m e d o ! , mas r e c e i o d o q u e ele e r a capaz d e fazer.
crianças, é r a m o s larápios. D e v i a tê-lo d e i x a d o c o m e r o R i c a r d o e r a imprevisível e o b s t i n a d o e não b r i g a v a c o m as
veneno, pelo m e n o s Amália viria c h o r a r n o m e u o m b r o mãos; as mãos s e r v i a m p a r a «tocar p i a n o » . N u m a b r i g a ,
como no sonho. ele p r e f e r i a m u n i r - s e c o m duas bocas d e g a r r a f a a r r o g a n -
MARGINAIS . . EVEL ROCHA

tes, u m a n a v a l h a , o u duas pilas d e p e d r a s e, s e m p r e q u e m o n t e a c i m a p a r a d e f e c a r ao a r l i v r e sob a vigilância d a


a ocasião l h e fosse favorável, r e c o r r i a d a sua q u e i x a d a d e l u a p r a t e a d a e r i s o n h a , s e n t i n d o a b r i s a fresca, p a r a d e p o i s
f e r r o p r e n h a d e d e n t e s afiados p a r a d e r r o t a r o seu adver- l i m p a r a p o l p a c o m as p e d r a s roliças c u i d a d o s a m e n t e
sário. Palavrões e r a m música n o seu o u v i d o . A única f o r m a escolhidas. E r a u m r i t u a l q u e dava g o z o , m e s m o q u a n d o
d e amedrontá-lo e r a ameaçar denunciá-lo ã E s q u a d r a d a alguém, i n u s i t a d a m e n t e , se b o r r a v a .
Polícia. E l e t i n h a m e d o d a polícia q u e se pelava d e v i d o N u m a ébria n o i t e d e l u a c h e i a , andava e u e os Pitboys,
aos castigos d e s u m a n o s q u e i m p i n g i a m aos adolescentes. rapazes d e doze a q u i n z e anos, e s p r a i a n d o desaforos depois
Mas s o b r e isso f a l a r e i mais a d i a n t e . d e u m a d i s p u t a v i t o r i o s a n u m a p a r t i d a d e f u t e b o l , che-
A casa o n d e nasci ficava n a travessa d a sentina m u n i c i p a l . gámos à r u a d e Motor-in e f o m o s c o n f r o n t a d o s p o r C h i c o
D e d e n t r o d a casa, e u escutava a balbúrdia, os gracejos, as quei- Pé-de-cabra, m e m b r o d a comissão dos m o r a d o r e s d a zona,
xas e, forçosamente, p a r t i l h a v a d o m a u c h e i r o a d v i n d o das p a r a q u e parássemos c o m o b a r u l h o , Já é t a r d e e as pessoas
fossas e os murmúrios revoltantes das fezes c o r r e n d o nos tubos p r e c i s a m descansar, disse.
d e esgoto. Isso, p a r a não falar d a c a n t a r o l a de N h a T c h i t c h a Só g a l i n h a é q u e d o r m e a esta h o r a , b u f o - r e s p o n d e u
Calita a p r e g o a n d o a m o r a l aos desocupados e l i n g u a r u d o s . Pianista, p u x a n d o o beiço. N h ô Francisco Pé-de-cabra retor-
A i m a c u l a d a voz d a verdade e d a inconveniência, t e m p e r a d a q u i u . B u f o é t u a mãe, ladrãozinho d o caneco! F i l h o sem p a i .
de g r o g u e e má fé, revelava os mais sórdidos segredos d e i n f i - E p u x o u p a r a a violência. A i n d a hoje, c o n t i n u o a pensar q u e
d e l i d a d e . Nessa travessa a p r e n d e m o s q u e c h i f r e não é coisa não havia necessidade d e espancar aquele chefe d e família
apenas d e cabra e d e b o i , h o m e n s d e b o m - n o m e também de f o r m a c o m o o espancámos e u r i n a r n o seu rosto.
c a r r e g a m chifres e dos grandes. Nessa esquina a p r e n d e m o s N o d i a seguinte, b e m cedinho, fomos intimados a
q u e a v i d a é u m a autêntica t o u r a d a ! Essa m a l d i t a travessa c o m p a r e c e r n a E s q u a d r a d o M o r r o C u r r a l . Passámos o d i a
c o n t a c o m a língua afiada de Josina, a cega q u e e n x e r g a c o m i n t e i r o e m j e j u m n a q u e l e l u g a r à espera q u e n o s dessem
as mãos e o n a r i z , c o n t a c o m as predicações d e T o i N i n h a e a l g u m a coisa d e c o m e r . F o i u m autêntico martírio v e r as
não sei q u a n t o s bêbados desempregados q u e , q u a n d o não horas arrastando pesadamente. A o cair d a n o i t e , o b r i g a r a m -
estão n a P r a c i n h a d e Q u e b r ô d a j o g a r u r i l e bisca, estão n a n o s a l i m p a r as r e t r e t e s obstruídas d e imundícies e a lavar
p o n t a d a e s q u i n a rindo às custas d a p o u c a v e r g o n h a dos as p a r e d e s das celas vazias r u b r i c a d a s d e palavrões. N u m a
o u t r o s . Dessa famosa s e n t i n a nasceram os apelidos c o m q u e cela, quase j u n t o a o t e c t o , estava e s c r i t o B E M - V I N D O A O
até hoje somos conhecidos. C h a m a r d e Pianista ao Ricardo, o u I N F E R N O . A frase f o r a e s c r i t a c o m as mãos e a t i n t a , d e
de Pé-de-cabra a N h ô Francisco, o u d e P e r u a à Presidente d a u m c a s t a n h o sujo e r e p u l s i v o , e r a m e r d a p u r a ! Voltámos
Câmara, era u m a f o r m a de enfatizar as virtudes e os defeitos d e satisfeitos p o r não t e r m o s s i d o s u b m e t i d o s às t o r t u r a n t e s
cada u m . J o r g i n h o era c o n h e c i d o c o m o Comida-de-tchuque^ p a l m a t o a d a s e... e n f i m , é m e l h o r n ã o d i z e r m a i s .
p o r m o t i v o s q u e não vale a p e n a justificar. A frase ameaçadora, porém sugestiva, daquela cela m a l -
A p e s a r d e t e r m o s a s e n t i n a b e m p e r t o , a m a l t a gos- d i t a d e s p e r t o u e m nós a febre artística, d e i x a n d o as nossas
tava m e s m o e r a d e d a r u m a polpada? n o a l t o d a r o c h a . marcas nas ruas d e Espargos. A m a l t a Pitboys era m e s m o fixe,
Juntávamos e m u m g r u p o d e o i t o a dez rapazes e subíamos u m a f o n t e inesgotável d e c r i a t i v i d a d e : imprimíamos nas
1 Comida de porco.
paredes verdadeiras obras d e arte depois d e defecarmos. A
2 Fazer necessidade fisiológica. Defecar. h a b i l i d a d e dos dedos das mãos t o m a v a m c o n t o r n o s de u m
MARGINAIS . EVEL ROCHA

pénis msijestoso, a boca d e u m c a n t o r d e rap se c o n f u n d i a c o m um buraco negro nos olhos de Deus


o sexo ameaçador d a m u l h e r , disposto a e n g o l i r o m u n d o à Eu sei do meu final
sua volta. O g r a f i s m o n a p a r e d e parecia t e r vida. Pichávamos quando eu morrer
as paredes dos h o m e n s grandes, dos coronéis, e as impressões todos dirão: menos um marginal
ficavam lá, pois, ninguém p o d i a m a n d a r - n o s ficar calados.
Já não e r a necessário r o e r as u n h a s o u coçar a cabeça p a r a Quem inventou as grades não sabe o que é sofrer
aliviar a emoção glandular. Se estivesse d e p r i m i d o , dava u m a não experimentou o veneno das ruas na penumbra
cacada d e p e d r a à m o n t r a d e u m a loja e fugia. H á m e l h o r nem o gosto do pão que o diabo amassou!
t e r a p i a d o q u e q u e b r a r os v i d r o s d e u m a m o n t r a n u m país Quem inventou a lei não precisa dela
o n d e os filhos dos p o b r e s são excluídos e a discriminação é tem sifrão E barriga cheia
estimulada? E necessário vandalizar os interesses d a burga, por isso luto pra sobreviver
que e n r i q u e c e f a c i l m e n t e , p a r a q u e o estado possa o l h a r para Eu sei do meu final
nós, os m a r g i n a l i z a d o s ; é necessário vandalizar o património quando eu morrer
dos coronéis d a i l h a , c o n q u i s t a d o ã custa dos fracos, p a r a todos dirão: menos um marginal.
q u e c h o r e m d e raiva c o m o nós chorámos p o r u m pedaço d e
pão e pelos nossos d i r e i t o s . As paredes das casas f o r a m feitas M a n u e l A n t ó n i o c o s t u m a v a d i z e r q u e p r e f e r i a nascer
p a r a q u e pudéssemos desabafar a d o r q u e nos a t o r m e n t a v a m o r t o n a A m é r i c a a t e r d e viver n a penúria dos dias d e
a a l m a ; m o s t r a r t o d a a nossa arte c o m desenhos e palavrões miséria nestas i l h a s . Miséria é u m a p a l a v r a m u i t o f o r t e e
aos d o n o s d a i l h a q u e c o n d u z e m o nosso destino, p a r a q u e i n c o m o d a m u i t a g e n t e , p o r é m , n ã o existe t e r m o m e l h o r
sintam o nosso desprezo pelas suas leis e a violência endémica p a r a c a r a c t e r i z a r o d o l o r o s o r i t u a l dos rapazes, d e a m b u -
q u e n o s afectavam atrás dos seus olhares safados. V e n d e r l a n d o pelas r u a s d e E s p a r g o s , d e s d e Chã d e F r a q u e z a ,
charros, ser m o ç o d e brigas, u m Pitboy d o s maus, ladrão d e p a s s a n d o p o r H o r t e l ã e A l t o d e Saco, S a n t a C r u z até
f r u t a . . . é m u i t a m a l d a d e , mas u m a m a l d a d e necessária, u m a A l t o São João, p r o c u r a n d o u m m e i o d e s u s t e n t o . M a n u e l
m a l d a d e d e sobrevivência. A n t ó n i o , c o m o das o u t r a s vezes, t i n h a i d o catar b a g i n h a ' '
p a r a a l i m e n t a r a estúpida vaca d o seu p a i . E l e t r e p a v a às
Eu sei do meu final acácias c o m o u m m a c a c o o b s t i n a d o e, e n q u a n t o c o l h i a as
quando eu morrer b a g i n h a s , s a l t a n d o d e g a l h o e m g a l h o até e n c h e r o saco,
todos dirão: menos um marinai! c h u p a v a as m a i s r e c h o n c h u d a s , a m a r e l a d a s e p i n t a l g a d a s
d e caca d e m o s c a d e vareja. A f o m e e r a t a n t a q u e ele e n g o -
um golpe de sorte
l i a a casca e as s e m e n t e s até o d i a e m q u e l h e p r o v o c a r a m
pra engordar a triste estatística
u m a obstrução i n t e s t i n a l . M a n u e l A n t ó n i o não c o n s e g u i a
não sou filho de burguês
desovar. D e r a m - l h e chá d e seno, p u r g a n t e , l a x a n t e e, c o m o
criado com leite E energia moral
não p o d i a a l i v i a r o v e n t r e i n c h a d o e l u z i d i o , v o m i t a v a t u d o
escola particular, universidade d 'europa
o q u e i n g e r i a . A n t e s d e ele ser e v a c u a d o p a r a P o r t u g a l ,
sou apenas um vagabundo
é r a m o s a c o r d a d o s p e l o s seus g r i t o s d e d o r e a g o n i a .
sou um vira-lata d ^olhos raiados
com ódio nos poros 3 Baginha: diminutivo de vagem, fruto da acácia.

A H
MARGINAIS ^ • ^ EVEL ROCHA

pénis majestoso, a boca de u m cantor de rap se c o n f u n d i a c o m um buraco negro nos olhos de Deus
o sexo ameaçador d a m u l h e r , disposto a e n g o l i r o m u n d o à Eu sei do meu final
sua volta. O grafismo n a p a r e d e parecia ter vida. Pichávamos quando eu morrer
as paredes dos h o m e n s grandes, dos coronéis, e as impressões todos dirão: menos um marginal
ficavam lá, pois, ninguém p o d i a m a n d a r - n o s ficar calados.
Já não e r a necessário r o e r as u n h a s o u coçar a cabeça p a r a Quem inventou as grades não sabe o que é sofrer
aliviar a emoção glandular. Se estivesse d e p r i m i d o , dava u m a não experimentou o veneno das ruas na penumbra
cacada d e p e d r a à m o n t r a d e u m a loja e fugia. H á m e l h o r nem o gosto do pão que o diabo amassou!
t e r a p i a d o q u e q u e b r a r os v i d r o s d e u m a m o n t r a n u m país Quem inventou a lei não precisa dela
o n d e os filhos dos pobres são excluídos e a discriminação é tem sifrão E barriga cheia
estimulada? É necessário vandalizar os interesses d a burga, por isso luto pra sobreviver
que enriquece facilmente, p a r a q u e o estado possa o l h a r para Eu sei do meu final
nós, os marginalizados; é necessário vandalizar o património quando eu morrer
dos coronéis d a i l h a , c o n q u i s t a d o à custa dos fracos, p a r a todos dirão: menos um marginal.
q u e c h o r e m d e raiva c o m o nós chorámos p o r u m pedaço d e
pão e pelos nossos direitos. As paredes das casas f o r a m feitas M a n u e l A n t ó n i o c o s t u m a v a d i z e r q u e p r e f e r i a nascer
p a r a q u e pudéssemos desabafar a d o r q u e nos a t o r m e n t a v a m o r t o n a A m é r i c a a t e r d e viver n a penúria dos dias d e
a a l m a ; m o s t r a r t o d a a nossa arte c o m desenhos e palavrões miséria nestas i l h a s . Miséria é u m a p a l a v r a m u i t o f o r t e e
aos d o n o s d a i l h a q u e c o n d u z e m o nosso destino, p a r a q u e i n c o m o d a m u i t a g e n t e , p o r é m , não existe t e r m o m e l h o r
sintam o nosso desprezo pelas suas leis e a violência endémica p a r a c a r a c t e r i z a r o d o l o r o s o r i t u a l d o s rapazes, d e a m b u -
q u e n o s afectavam atrás d o s seus olhares safados. V e n d e r l a n d o pelas r u a s d e E s p a r g o s , d e s d e Chã d e F r a q u e z a ,
charros, ser m o ç o d e brigas, u m Pitboy dos maus, ladrão d e p a s s a n d o p o r H o r t e l ã e A l t o d e Saco, S a n t a C r u z até
f r u t a . . . é m u i t a m a l d a d e , mas u m a m a l d a d e necessária, u m a A l t o São João, p r o c u r a n d o u m m e i o d e s u s t e n t o . M a n u e l
m a l d a d e d e sobrevivência. A n t ó n i o , c o m o das o u t r a s vezes, tinha i d o catar b a g i n h a ' '
p a r a a l i m e n t a r a estúpida vaca d o seu p a i . Ele t r e p a v a às
Eu sei do meu final acácias c o m o u m m a c a c o o b s t i n a d o e, e n q u a n t o c o l h i a as
quando eu morrer b a g i n h a s , s a l t a n d o d e g a l h o e m g a l h o até e n c h e r o saco,
todos dirão: menos um marginal! c h u p a v a as m a i s r e c h o n c h u d a s , a m a r e l a d a s e p i n t a l g a d a s
um golpe de sorte de caca d e m o s c a d e vareja. A f o m e e r a t a n t a q u e ele e n g o -
pra engordar a triste estatística l i a a casca e as s e m e n t e s até o d i a e m q u e l h e p r o v o c a r a m
não sou filho de burguês u m a obstrução i n t e s t i n a l . M a n u e l A n t ó n i o não c o n s e g u i a
criado com leite E energia moral desovar. D e r a m - l h e chá d e seno, p u r g a n t e , l a x a n t e e, c o m o
escola particular, universidade d 'europa não p o d i a aliviar o v e n t r e i n c h a d o e l u z i d i o , v o m i t a v a t u d o
sou apenas um vagabundo o q u e i n g e r i a . A n t e s d e ele ser e v a c u a d o p a r a P o r t u g a l ,
sou um vira-lata d ^olhos raiados é r a m o s a c o r d a d o s p e l o s seus g r i t o s d e d o r e a g o n i a .
com ódio nos poros 3 Baginha: diminutivo de vagem, Fruto da acácia.
MARGINAIS EVEL ROCHA

Passados d o i s meses, r e g r e s s o u à t e r r a c u r a d o d o m a l das ter que engolir poeira e ar seco, engolir o desprezo dos olhares
b a g i n h a s e, n u m português fastidioso, descrevia as m a r a v i - desconfiados e acusadores, recalcados de ódios, ter que adiar
lhas lusitanas, o s t e n t a n d o u m sorriso l a r g o q u e contrastava o p l a n o de assaltar a loja d o vizinho e n q u a n t o o estômago grita
c o m o seu a n d a r p e n i t e n t e e r e q u e b r a d o pelos efeitos dos p o r comida. As pessoas especulavam que tínhamos u m esconde-
m e d i c a m e n t o s e d a operação a n a l . R a p i d a m e n t e , passou a rijo o n d e guardávamos o p r o d u t o dos roubos. Era t u d o falso,
ser c o n h e c i d o p o r M a n é B a g i n h a . D e p o i s d e se r e c u p e r a r roubávamos para matar a f o m e n o m o m e n t o .
d o p r o b l e m a , Mané B a g i n h a resolveu dar u m a demons- B e t o ficou c e g o d e u m o l h o p o r t e r e s c o n d i d o u m a
tração d e q u e estava c o m p l e t a m e n t e c u r a d o . E p a r a q u e maçã d e b a i x o d a camisa. A p r o v e i t a n d o a confusão d a h o r a
t o d o s os m o r a d o r e s d a Preguiça não tivessem dúvida, s u b i u d e p o n t a de u m m i n i m e r c a d o , ele desceu a mão n o caixote
à t o r r e d a i g r e j a d e S a n t o A n t ó n i o e a r r i o u as calças. N u m d e f r u t a s e e s c o n d e u u m a maçã d e b a i x o d a c a m i s o l a . A o
i n s t a n t e , o p a d o d a i g r e j a f e r v i l h a v a d e pessoas q u e p a r e - sair p e l a p o r t a a p i n h a d a d e g e n t e , tropeçou n o c a i x a e a
c i a m divertir-se c o m o p r e s u n t o c a i n d o d o céu. maçã r o l o u p e l o chão. O e m p r e g a d o d a l o j a s a l t o u p a r a
C h a m e m N h ô padre! Mané Baginha está a cagar d a t o r r e ! c i m a d e l e , e n c h e u - o d e p o r r a d a ; d e u - l h e u m a trochada d e
N o d i z e r d e L e i a , D e u s c r i o u o m u n d o e n o sétimo soco n o o l h o e s q u e r d o e a r r a s t o u - o p a r a a r u a , x i n g a n d o
d i a descansou. N o oitavo d i a c r i o u o i n f e r n o . E n q u a n t o a sua mãe. B e t o l e v o u , mas não d e u u m s u s p i r o de d o r ,
criava o i n f e r n o , a l g u m a s fagulhas caíram n a t e r r a e d e r a m a g u e n t o u a a f r o n t a d o c a i x e i r o desalmado e das pessoas q u e
o r i g e m a estas i l h a s p e r d i d a s n o m a r . c u s p i a m n e l e os seus o l h a r e s d e d e s p r e z o . D e s c a m b a d o ,
N a escola o u e m q u a l q u e r lugar tínhamos u m tratamento ajudei-o a e n d i r e i t a r - s e . D e s p i u a c a m i s o l a p a r a e n x u g a r o
diferenciado e m relação aos filhos dos engomados que exer- o l h o e n s a n g u e n t a d o e i n c h a d o f e i t o u m t a m b o r . Passámos
c i a m cargos de destaque n a zona d o A e r o p o r t o . N o f i n a l d o a t a r d e i n t e i r a n o b a n c o d e urgências e não d e u e m n a d a .
a n o tínhamos as notas mais baixas. Nós nascíamos c o m a m a r c a O e n f e r m e i r o de serviço, sem o l h a r p a r a nós, r o s n o u . Sem
d a besta, carregando a sina d o fracasso n a escola. Não faltava p a p e l d e polícia não e n t r a s a q u i . T e r p a p e l de polícia sig-
alguém para nos l e m b r a r d a nossa condição e, b e m cedo, co- n i f i c a v a mais t o r m e n t o . B e t o p r e f e r i a m o r r e r a t e r de se
mecei a odiar todos aqueles q u e f e r i a m a m i n h a integridade. a b e i r a r d a E s q u a d r a . O seu r o s t o p a r e c i a u m a b e x i g a d e
A escola, o tão apregoado c e n t r o de c o n t i n u i d a d e d o processo p o r c o i n c h a d a , vazando sangue e lágrimas. D e s o r i e n t a d o e
d a socialização, não passa de u m centro autoritário, u m c a m p o só, sem o c o n s o l o d e alguém dá família, ele passou a n o i t e
de concentração que exerce a violência selectiva sobre os desfa- ao r e l e n t o , a n d a n d o às a p a l p a d e l a s , c h o r a n d o p e l a mãe,
vorecidos e esquece que cada d i a nas nossas vidas é u m m a r c o c u r t i n d o a d o r e desejando a m o r t e .
de sobrevivência. A escola ensinou-me que sou u m indivíduo
incapaz e predestinado a ser r u i m . Os professores não fezem ideia
d o que é i r à escola de estômago vazio, de ter q u e aturar cinco
aulas de bombardeamento de inutilidades, enquanto o estômago
troveja, de ter que enfrentar u m a t u r m a de preconceituosos e
b e m comportados e de lutar c o n t r a o próprio pensamento q u e
insiste e m planear u m furto para enganar a fome. O m u n d o não
sabe o que é passar à frente de u m a m o n t r a c o l o r i d a de doces e
EVEL ROCHA

B e t o t i n h a d i t o q u e o p a i m o r r e r a n a estiva c o m a
cabeça e s m a g a d a p o r u m c o n t e n t o r , q u e se d e s p r e n d e r a
d e u m g u i n d a s t e , e q u e a mãe m o r r e r a d e m o r t e esquisita.
Ele e r a u m m e s t r e n o c h o r o , t i n h a as lágrimas n o c a n t o d o
o l h o . A f o r m a c o m o c o n t a v a a história c o m o v i a q u a l q u e r
u m . O ú n i c o o l h o q u e f u n c i o n a v a sobressaía d o r o s t o
c o m o u m a b o l a d e b e r l i n d e r a i a d o d e sangue, a cabeça
d e c o t o n e t e e as o r e l h a s d e b o r b o l e t a f a z i a m l e m b r a r
as c a r i c a t u r a s d o s j o r n a i s . E l e c h e g o u à i l h a d o Sal n u m
ferry-boat, v i n d o d e São V i c e n t e , d o r m i a n u m a casa m a l
acabada e sem tecto, q u e havia anos fora a b a n d o n a d a
p e l o d o n o q u e e m i g r a r a . Metia-se n u m bidão e cobria-se
c o m sacos d e nylon p a r a se p r o t e g e r d a acérrima g e a d a d e
m a d r u g a d a . O l u g a r o n d e ele p e r n o i t a v a estava c h e i o d e
correspondências rasgadas. Através dos selos e u p o d i a ver
q u e e r a m cartas v i n d a s d e quase t o d o s os cantos d o m u n d o
e n e n h u m a delas e r a e n d e r e ç a d a p a r a ele.
Bi, Beto, estas cartas não são para tí!, exclamei, alarmado.
B e t o g r i l i u o o l h o , mas l o g o se d e s c o n t r a i u e, n u m
j e i t o m a l a n d r o , r e t o r q u i u , Adê, p r i m o , não sabes q u e p a r a
safares n a v i d a tens q u e d a r e x p e d i e n t e s ? E u v o u aos cor-
reios e digo: « ó senhora, f u l a n a m a n d o u - m e v i r t o m a r
a q u e l a carta», o u então, d e i x o q u e façam a c h a m a d a e
q u a n d o n i n g u é m r e s p o n d e , d i g o «dá-me ele li» e p r o n t o .
D e p o i s , c h e g o cá, vejo se t e m d i n h e i r o e rasgo-a de seguida.
M e i o a t a r a n t a d o , a j u d e i - o a r e c o l h e r aquelas cartas e a
queimá-las, antes q u e u m o l h a r i n d i s c r e t o as visse e disse-
MARGINAIS, — • • .. EVEL ROCHA

- l h e q u e tivesse m a i s c u i d a d o d a próxima. Sal é p e q u e n o , f u n d o . As q u e não caíssem l o g o n o s o n o arrancava-lhes a


t a r d e o u c e d o vão a p a n h a r - t e . E u s o f r i a p o r saber q u e os cabeça n u m a má-criação d e l i b e r a d a . E m gestos largos d e
m e u s m e l h o r e s a m i g o s e r a m miseráveis. Q u a n d o i a p a r a u m p r e g a d o r . B e t o falava-nos d a sua v i d a e m São V i c e n t e e
o E x t e r n a t o , passava p o r B e t o c o m o o l h o t o r t o , q u e se c o n t a v a histórias fantásticas d e barcos c h e i o s d e o u r o q u e
d i v e r d a e m lançar p i r o p o s aos o u t r o s , e e u ficava sem saber atracavam n o Porto G r a n d e e m a r i n h e i r o s d o t a m a n h o
se ele o l h a v a p a r a a d i r e i t a o u p a r a a e s q u e r d a . R e s i g n a d o d e u m a casa; c o n t a v a histórias d a Baía das Gatas o n d e as
à sua sina, tocava a v i d a p a r a f r e n t e c o m o p o d i a , a p a n h a v a pessoas não c o n s e g u i a m t o m a r b a n h o p o r causa das gatas
d o s a d u l t o s s e m p r e q u e se a p r o x i m a v a d e u m a l a n c h o - q u e i n v a d i a m a p r a i a . As gatas d e s a p a r e c e r a m d a p r a i a ,
n e t t e , mas não faltava alguém q u e l h e desse u m pão o u m a s a g o r a t e m o s o u t r a s gatas, p r i m o , aquelas m e n i n a s
u m a r a c h a d e b o l o . N o seu j e i t o d e m e n i n o d e Sôncente p o l p u d a s d e fazer u m h o m e m p e r d e r o j u í z o . Falava d e
c h a m a v a a t o d o s d e p r i m o . O p r i m o , dá-me dez escudos! R i b e i r a B o t e q u e tinha u m a r i b e i r a d e água c o r r e n t e tão
Se alguém passasse d i a n t e d e l e m a s t i g a n d o q u a l q u e r coisa, f o r t e q u e , p a r a passar de u m l a d o p a r a o u t r o , era necessário
p e d i a u m a t r i n c h a . P r i m a , dá-me u m a t r i n c h i n h a d a t u a a l u g a r u m b o t e . N ã o é c o m o essa R i b e i r a F u n d a , q u e não
coisa! A l g u m a s moças, as mais amofinadas, r e s p o n d i a m - l h e . é f u n d a e n u n c a v i u u m p i n g o d e água a r o l a r p o r ela. Bi,
V a i t o m a r u m a t r i n c h i n h a d a coisa d a t u a mãe, ordinário! se essa r i b e i r a t i n h a t a n t a água p o r q u e não a p r e n d e s t e a
Beto d e i x o u de j o g a r f u t e b o l . T i n h a dificuldades e m n a d a r , p r i m o ? P e r g u n t o u - l h e o Fusco. Adê, p r i m o , é q u e
e n c a r a r d e f r e n t e a b o l a . A n t e s , passou ao l u g a r d e guardar R i b e i r a B o t e é c h e i a d e camarão, p i r a n h a e... Ó , p r i m o ,
redes, mas e r a u m a lástima vê-lo g a t i n h a n d o e t a c t e a n d o vai-te catar! Já c o n t a s t e essa história m a i s d e m i l vezes e
p a r a segurar a b o l a q u e e n t r a v a p e l o l a d o contrário: « U a h , sempre de u m a f o r m a diferente.
m ê . . . ! U m f r a n g o d o d i a b o ! P a r a a g a r r a r a b o l a tens d e T o d o s os dias, m a m ã e c o l o c a v a v e n e n o p a r a m a t a r
c a i r d e véspera, sorna». Teve d e se c o n t e n t a r e m v e r os ratos n o s b u r a c o s d a casa; as h o r d a s d e r a t o s c h e g a v a m a
j o g o s d a b a n c a d a , e s c o n d e n d o as mágoas atrás de chacotas m e t e r m e d o . T i F r a n c o colocava o arsenal de ratoeiras e u m
e i n s u l t o s c a d a vez q u e alguém p e r d i a a b o l a . T o r n o u - s e exército d e gatos p a r a a f u g e n t a r os m a l d i t o s r o e d o r e s d a
u m especialista e m a n e d o t a s , dava p a l p i t e s e sabia t u d o sua loja e os ratos, n u m a zaragata dos diabos, refugiavam-se
s o b r e a v i d a dos o u t r o s . O q u e p e r d e u n a visão g a n h o u e m n a vizinhança. A l g u n s v i n h a m esconder-se n a nossa casa,
gracejos e n a malícia. Nas farras n u n c a f a l t o u p e t i s c o . E r a t r a n s f o r m a n d o - a n u m c a m p o d e r e f u g i a d o s . C o m o não
u m especialista e m r o u b a r g a l i n h a s . E n t r a v a e m q u a l q u e r h a v i a m e i o d e expulsá-los, mamãe i a d o r m i r n a casa d a sua
c a p o e i r a , sabia d i s t r a i r os cães d e g u a r d a , e m g o l p e s a t i - c o m a d r e J o a n a e e u a p r o v e i t a v a p a r a fazer cabeça r i j a n o
l a d o s , a g a r r a v a as g a l i n h a s p e l o pescoço sem d a r e m u m i m p é r i o d a n o i t e . Todas as n o i t e s , n a h o r a d e d o r m i r , u m
p i o e, n u m a assentada, t r a z i a q u a t r o o u c i n c o d e b a i x o dos r a t i n h o minúsculo v i n h a e s p r e i t a r - m e à cabeceira. F u i - m e
braços. Antes de as m a n d a r p a r a a p a n e l a , ele d i r i g i a o ritual a c o s t u m a n d o c o m a presença d a q u e l e sonso, c o n t u d o , e u
q u e c h a m a v a d e « o s o n o d e anjos». Esta e r a a sua p a r t e só d o r m i a descansado d e p o i s d e l h e e n c h e r o estômago
p r e f e r i d a , d e m o n s t r a r a t o d o s a sua mágica: fazer d o r m i r p a r a não t e r q u e r o e r as m i n h a s o r e l h a s d u r a n t e o s o n o .
as g a l i n h a s . Deitava-as d e p e r n a p a r a o a r e, s u a v e m e n t e , D e manhã, s u b i a s o b r e a m e s a p a r a c o m e r as m i g a l h a s
fazia d e s l i z a r as suas mãos s o b r e a c r i s t a , alisava-lhes as e n q u a n t o t o m a v a o p e q u e n o - a l m o ç o e à n o i t i n h a ficava
p e n a s até o u v i r o r o n r o n a r das g a l i n h a s n u m s o n o p r o - à m i n h a espera s o b r e a c a n t o n e i r a . Tornámo-nos a m i g o s

4fi 47
MARGINAIS . . . _ _ EVEL ROCHA

e b a p t i z e i - l h e c o m o n o m e d e zizi, u m a h o m e n a g e m à sala a u m a v e l o c i d a d e relâmpago ao d e p a r a r c o m os o l h o s


m i n h a b e l a e q u e r i d a professora I z i l d a . Zizi crescia de n o i t e b r i l h a n t e s d a r a t a , q u e n o m o m e n t o s a l t o u d a gaveta.
p a r a o d i a . Dava-lhe r e m é d i o p a r a não p a r i r e a estouvada A l g u n s a l u n o s j u r a r a m q u e a p r o f e s s o r a saiu v o a n d o p e l a
t o r n o u - s e u m a espécie d e guardiã d a casa. T o r n o u - s e tão p o r t a e o u t r o s q u e tinha e s c a p a d o p e l a j a n e l a n u m salto
g r a n d e e f o r t e q u e a f u g e n t a v a os o u t r o s ratos, i n v e s t i n d o m o r t a l , o c e r t o é q u e t u d o a c o n t e c e r a n u m piscar de o l h o .
g o l p e s m o r t a i s nas suas presas q u e se retesavam e f o i assim Zizi c o r r i a d e s o r i e n t a d a d e n t r o d a sala e as m e n i n a s , e m
q u e os ratos d a l o j a d e T i F r a n c o d e i x a r a m d e se r e f u g i a r h i s t e r i a g e r a l , c o r r i a m aos encontrões à p r o c u r a d a p o r t a
lá e m casa. Dava-lhe l e i t e n u m p i r e s , f u n g a v a i m p a c i e n t e - d e saída. T o d o o alvoroço l e m b r a v a - m e u m a c o m p a n h i a de
m e n t e p o r mais c o m i d a e desaparecia pela p o r t a p o r q u e dança de funaná, o c h o r o metálico das moças p u l u l a n t e s
os b u r a c o s i a m f i c a n d o p e q u e n o s p a r a o seu c o r p a n z i l . e r a a música d e u m a o r q u e s t r a e m b r i a g a d a . F i n a l m e n t e
Zizi t o r n o u - s e a m a s c o t e d o s Pitboys. D i v e r t i a a m a l t a c o m c o n s e g u i sair c o m a zizi d e b a i x o dos braços e a p r o f e s s o r a
h a b i l i d a d e s d e u m t r a p e z i s t a , bamboleava-se e assobiava L u c e l i n a e l e g e u - m e o h e r ó i d a sala p o r t e r c o n s e g u i d o
q u a n d o l h e dávamos a l g o p a r a c o m e r Desafiava os gatos d o m i n a r a f e r a p e r i g o s a . Os a l u n o s d a t u r m a s a b i a m q u e
d a r e d o n d e z a e dava saltos d e m e t r o e m e i o p a r a alcançar e u não e r a d e m e i a s m e d i d a s e se alguém abrisse a b o c a
u m p e d a ç o d e q u e i j o . Zizi v e i o t r a z e r s o r t e n o s desafios para m e d e n u n c i a r haveria de e n f r e n t a r a m i n h a i n d i g n a -
d e f u t e b o l . O s rapazes b e i j a v a m - l h e e m c a d a g o l o q u e se ção. M i r r e i l l e ficou i m p r e s s i o n a d a c o m a m i n h a c o r a g e m
m a r c a v a e ela c o m seus o l h o s vivos p a r e c i a a c o m p a n h a r as e ganhei nela u m a apaixonada.
j o g a d a s . Q u a n d o e u saía d a casa, n u m assobio, ela agada- N o fim d a a u l a , e n c o n t r e i o Fusco c o m o b o l s o c h e i o
n h a r p a r a os m e u s o m b r o s . D i z e m q u e a m e l h o r f o r m a d e de moedas de c i n c o escudos atrás d a escola n u m a c a n t a r o l a
c o m p r e e n d e r u m a n i m a l é e n t r a n d o n a sua m e n t e , mas ela d e s e n f r e a d a , f o l h e a n d o u m a r e v i s t a p o r n o e disse-me
é q u e e n t r o u n a nossa m e n t e , s o u b e c o n q u i s t a r os nossos q u e só p a r t i l h a v a c o m i g o as m o e d a s se e u l h e penetrasse.
corações adolescentes. A p n h e i m a i s u m susto d a q u e l e s , Já vens c o m essa coisa d e
N u m b e l o d i a . B e t o esquecera-se d e i r buscar a zizi em d o i d o . Sabes q u e não posso, é p e c a d o .
m i n h a casa e tive d e levá-la c o m i g o p a r a o E x t e r n a t o . P a r a Então d e i x a u m gajo tocar-te p u n h e t a . N u m riso
não ser a p a n h a d o , e s c o n d i a zizi n a gaveta d a secretária, a p a l e r m a d o e d e l i n q u e n t e , c o n t e m p l á m o s os p i n g o s d e
mas c i n c o h o r a s e r a t e m p o d e m a i s p a r a a r o e d o r a ficar e s p e r m a desaguados, e m e s g u i c h o , c o m o u m a g a r r a f a d e
s e m c o m e r , p o r isso, d e vez e m q u a n d o , e u i a à socapa e c h a m p a n h e nas festas d e c a s a m e n t o .
deitava-lhe q u a l q u e r coisa. D u r a n t e a a u l a d e língua p o r - E u tinha f o m e e Fusco t i n h a d i n h e i r o .
t u g u e s a , ela ficou tão a g i t a d a c o m o c h e i r o d o p e r f u m e F o m o s à casa d e Zefa M a n q u i n h a p a r a q u e i m a r as
r a b u g e n t o d a p r o f e s s o r a , q u e as suas investidas n o i n t e - p e q u e n a s m o e d a s d e c i n c o escudos; n o c a m i n h o , e n c o n -
r i o r d a gaveta se t o r n a r a m audíveis a t o d a a classe. D o n a t r a m o s o R i c a r d o , o B e t o e o J o r g i n h o , q u e se j u n t a r a m
L u c e l i n a R o d r i g u e s , a b o r r e c i d a c o m o ciciar i r r i t a n t e v i n d o a nós. A v e n d e d e i r a t i n h a apenas u m a p e r n a p o i s a o u t r a
d e não se sabe d e o n d e , apesar d a s u r d e z própria d a i d a d e , f o r a a m p u t a d a até aos j o e l h o s d e v i d o a u m a c i d e n t e . E l a
r e s o l v e u v e r i f i c a r o q u e causava o b a r u l h o e s t r a n h o . A b r i u passava o d i a r e c o s t a d a a u m a g r a n d e a l m o f a d a s o b r e
a gaveta e, não sei e x p l i c a r c o m o a q u e l a v e l h a s e n h o r a u m a esteira, r o d e a d a d e frascos d e rebuçados, refilões,
adoentada, esporeada pelo medo, conseguiu s u m i r da chupetas, doces de aranha, doces de leite, b o l i n h o s de

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MARGINAIS . EVEL ROCHA

a r e i a , f o r m i n h a s , pasteis, garrafas d e g r o g u e e p o n c h e , mas, p o r favor, não c o n t e m a n i n g u é m o u então deito-vos


t o r r e s m o s , cestos d e m a n c a r r a e o u t r a s t a n t a s f a t i o t a s . v e n e n o n o s doces, m e n i n o s d e t r a m p a . Espera aí N h a Zefa,
E l a e r a m e s m o g o r d a , d e s p r o p o s i t a d a m e n t e , g o r d a . Zefa nós não somos b u r r o s , disse-lhe n u m a cómica s e r i e d a d e ,
M a n q u i n h a tinha u m c r u c i f i x o n a p a r e d e e u m a b o n e c a p a r a ficarmos calados, bocê t e m d e nos d a r u m a g a r r a f a
de p a n o que, c u r i o s a m e n t e , também t i n h a a p e r n a d i r e i t a d e p o n c h e , também. T o m a , seu e s t u p o r d e i n f e r n o , filho-
d e c e p a d a , p a r a c o n s o l o d a v e n d e d e i r a . Se o m e n i n o t i n h a de-quarenta-pais-fora-passageiro e desapareçam-me deste
d i n h e i r o e r a u m a m o r d e g e n t e , se o m e n i n o entrasse s e m lugar. D i v e r t i m o - n o s a t a r d e i n t e i r a c o m as duas garrafas.
d i n h e i r o era u m infame que lhe queria roubar, u m b i c h o Esvaziámo-las n u m a autêntica f a r r a e d e p o i s f o i c o m o se
c a r p i n t e i r o q u e n ã o dá sossego, mas, n a q u e l e m o m e n t o , alguém tivesse a p a g a d o a l u z d a nossa memória: caímos
nós tínhamos d i n h e i r o e, l o g o , e s t e n d e u a q u e l e s o r r i s o n u m v a z i o e s c u r o e só v i r í a m o s a a c o r d a r n o h o s p i t a l
de o r e l h a a o r e l h a , enchendo-nos de m i m o s que d u r a r a m d a Preguiça, r o d e a d o s d e f a m i l i a r e s cientes q u e a m o r t e
até ao último tostão. A c a s i n h a e r a d e u m c o m p a r t i m e n t o c h e g a r i a a q u a l q u e r m o m e n t o . J u r e i à m i n h a mãe q u e
só, o n d e c o z i n h a v a , c o n f e c c i o n a v a as f a t i o t a s , v e n d i a e e r a a última vez q u e i n g e r i a b e b i d a alcoólica. D u r a n t e o
d o r m i a . L o g o q u e gastássemos a última m o e d a , tínhamos estado d e c o m a alcoólico. Pianista saltava de cama e m c a m a
de desaparecer o q u a n t o antes, sob p e n a de sairmos à para apanhar tartarugas n o tecto d o q u a r t o hospitalar; o
vassourada. Saíamos c o m os bolsos c h e i o s d e g u l o s e i m a s , L e i a , sonâmbulo, c h u p a v a o p o l e g a r d a m ã o d i r e i t a e o
às g a r g a l h a d a s , v e n d o o B ç t o a i m i t a r a v e n d e d e i r a c o m a o u t r o metia-o n o c u p r o c u r a n d o u m a n e l de noivado q u e ,
vassoura a e n x o t a r - n o s . R e p a r a r a m n o p i l a u q u e ela tem? s e g u n d o ele, t i n h a caído n o b u r a c o . B e t o Vesgo acenava
Perguntou Jorginho. J o r g i n h o ? M u l h e r não t e m p i l a u , aos b a r c o s q u e passavam sobre a cabeça d a e n f e r m e i r a e e u
p a r v o , r e s p o n d e u Pianista. Mas ela t e m u m e é b e m g r a n d e , beijava o travesseiro a l u c i n a d o e m j u r a s d e a m o r , j u l g a n d o
p ô . JJm pichinhogrânáel Q u e r e s apostar? M o o ç o ! , u m gajo ser a m i n h a b e l a e q u e r i d a p r o f e s s o r a I z i l d a . Porém, Fusco
o u v i a falar, mas não a c r e d i t a v a até v e r a q u e l e coisão. Se estava lúcido e passava o t e m p o a c o n t a r aos visitantes c o m o
estão c o m dúvida, v a m o s lá c e r t i f i c a r se é v e r d a d e . t u d o a c o n t e c e u , T o m á m o s g r o g u e e p o n c h e . L o g o assim
Ela escondia o i n s t r u m e n t o de prazer debaixo d o q u e e n t r a v a alguém, ele disparava a informação « b e b e m o s
»travesseiro. Podia-se v e r q u e e r a m e s m o a q u i l o . P i a n i s t a g r o g u e e p o n c h e . F a r t e i d e avisá-los, não b e b a m d e m a i s
e n t r o u s o r r a t e i r a m e n t e e m casa d a v e n d e d e i r a , a p r o v e i - q u e vocês vão passar m a l e não o u v i r a m . O l h a a g o r a n o
t a n d o o m o m e n t o e m q u e estava o c u p a d a a a t e n d e r q u e d e u ! » E l e estava h a b i t u a d o a o g r o g u e desde o d i a e m
a l g u m a s pessoas, f u r t o u o pichinho d e p a u e f o i u m a festa q u e a sua mãe n o t o u q u e ele t i n h a a b a r r i g a i n c h a d a d e
para o resto d o dia. A q u i l o parecia mais u m m a n d u c o lombrigas. N h a Iva p r o c u r o u N h a M a r i a d o M o n t e q u e
d e g u a r d a - n o c t u r n o . B e t o , seco d e r i s o , fez a l g u n s dispa- l h e r e c e i t o u g r o g u e p a r a a criança mas ela disse q u e n ã o
rates p e g a n d o - l h e o s t e n s i v a m e n t e e g r i t a v a p a r a q u e t o d o s c o n c o r d a v a . «Bi, c o m a d r e , não sabias q u e g r o g u e m a t a
vissem o m a r i d o d e Zefa M a n q u i n h a e c o m o era b e m parasitas? T u d o o q u e é v e r m e m o r r e ! Mas, c o m a d r e , o
a v a n t a j a d o . E r a necessário n e g o c i a r c o m ela, se quisesse E m a n u e l t e m apenas dois anos e m e i o , não achas que é u m
r e c e b e r d e v o l t a o i n s t r u m e n t o o u transformá-lo-íamos e m p e c a d o d a r g r o g u e a esse a n j o d e Cristo? P e c a d o é deixá-
p a u de l e n h a . Zefa r o g o u praga, cobriu-nos de obsceni- -lo ser c o m i d o p e l o s b i c h o s n a t u a b a r b a cara, m u l h e r d e
d a d e s até a c e i t a r trocá-lo p o r u m a g a r r a f a d e g r o g u e . nossenhar. N h a Iva passou a e n c h e r u m d e d a l d e g r o g u e e
MARGINAIS EVEL ROCHA

dava a o m e n i n o q u e p o r sua vez fincava n u m s o n o r u i d o s o irmã e é m e n o r , man. Se o m e u p a i te b o t a r a m ã o , estás


até se a c o s t u m a r c o m o g o s t o f o r t e d e a g u a r d e n t e . f o d i d o , man. O m i l i t a r afastou-se d e fininho, e n q u a n t o a
Zéfa M a n q u i n h a h a v e r i a d e r e c e b e r m u i t a s visitas moça c h o r a v a f e i t o u m a criança, p e d i n d o ao P i a n i s t a q u e
nossas. íamos lá p e l o m e n o s u m a vez p o r s e m a n a , q u a n d o a deixasse i r e m b o r a .
d e s c o b r i m o s q u e e l a t i n h a m e d o de ratos. T r e m i a - l h e o Q u a n d o ele c o m e t i a u m a l o u c u r a , s u m i a p o r u n s
c o r p o t o d o ao v e r zizi n o s m e u s o m b r o s e, p a r a disfarçar t e m p o s , passava u m a semana desaparecido e depois voltava
o t e r r o r nas e n t r a n h a s , n u m s o r r i s o d i s s i m u l a d o , c o n t a v a c o m u m a história d e s l a v a d a , p o r e x e m p l o , q u e estava
babosices, e n q u a n t o n o s e n c h i a os bolsos d e rebuçados. c o m u m a l i n d a t u r i s t a solitária n a v e g a n d o n u m iate n a
U m s u p o s t o c o m p a d r e d a v e n d e d e i r a a v i s o u ao polícia imensidão d o o c e a n o , c o r t a n d o o n d a s , c o m e n d o caviar
B o r j a q u e andávamos a a b u s a r d e l a e este r e s o l v e u ficar e b e b e n d o c h a m p a n h e . E r a a p r i m e i r a vez q u e e u o u v i a
d e plantão à p o r t a d a b a r r a c a p a r a n o s p r e n d e r . B o r j a falar e m caviar. Caviar é u m a f r u t a saborosa e cara v i n d o d a
e r a u m quarentão a l t o fe f o r t e , tinha b a r r i g a d e u r s o e o E u r o p a . Q u a l q u e r d i a t r a g o u m p a r a ti, disse-me, a r m a d o
flácido p e i t o descaído d e g o r d u r a . As p e r n a s c u r t a s e os e m esperto.
braços l o n g o s f a z i a m l e m b r a r u m g o r i l a d e s a j e i t a d o ; os U m d i a . Pianista a p a r e c e u e n v e r g a n d o u m a c a m i s o l a
o l h o s p i s c a v a m c o n s t a n t e m e n t e , as n a r i n a s p a r e c i a m as v e r m e l h a , n o v a , a i n d a c o m as l i n h a s das d o b r a s , estam-
ventas d e u m a vaca r e s f r i a d a sobre o f a r t o b i g o d e p i n t a l - p a d a c o m u m a g r a n d e águia d o u r a d a e disse-nos q u e u m
g a d o d e fios b r a n c o s , q u e l h e c o b r i a o lábio s u p e r i o r , e o t a l C a r l o s A l b e r t o tinha v i n d o d e P o r t u g a l p a r a observar
s u o r p e g a n h e n t o l u s t r a v a o r o s t o sorumbático. M e t e r - n o s j o v e n s futebolistas q u e pudessem ingressar n o glorioso
c o m u m polícia s i g n i f i c a v a castigo, p o r isso, d e s i s t i m o s d a c l u b e d o B e n f i c a . T e n h o a u l a à t a r d e , mas essa p o d e ser a
i d e i a , mas não s e m o c o b r i r d e palavrões. m i n h a g r a n d e o p o r t u n i d a d e , pensava. N ã o f o i difícil fintar
R i c a r d o , o Pianista, t i n h a u m a c o n t a p a r a ajustar mamãe e t a m p o u c o seria difícil d r i b l a r a m a l t a p a r a m o s t r a r
c o m a q u e l e s u j e i t o , m a s , s e g u n d o ele, a i n d a não e r a o m e u s d o t e s , m a r c a r g o l o s d e b i c i c l e t a e d e pé c o x i m . M e u
m o m e n t o c e r t o . E p r e c i s o esperar p e l o m o m e n t o c e r t o , pá, p r o b l e m a e r a calçar botas. N u n c a t i n h a j o g a d o c o m u m
disse, esse gajo há-de p a g a r p e l a p o r r a d a q u e d e u à m i n h a p a r d e botas. E se ele pedisse p a r a calçar botas? D i z i a - l h e
irmã. Esse filho d a p u t a deitou-se c o m ela, e m p r e n h o u - l h e q u e t i n h a e s q u e c i d o as botas. M e u s o n h o d e g r a n d e estrela
e não r e g i s t o u a criança, d i z e n d o q u e não e r a d e l e , man. d e f u t e b o l crescia a c a d a s e g u n d o : p i s a r i a a r e l v a v e r d e -
P o r r a , man, a i n d a p o r c i m a a criança é f e i a p a r a c a r a m b a . j a n t e d o Estádio d a L u z , a multidão e m holla m e x i c a n a ,
I g u a l z i n h o ao Borja: cara de u m , c u d o o u t r o ! Depois m e a p l a u d i r i a d e pé a g r i t a r Sérgio, Sérgio! A c a d a g o l o
d i z e m q u e é u m a a u t o r i d a d e . Man, a q u i l o não é criança q u e marcasse h a v i a d e b e i j a r a b a n d e i r a c r i o u l a e fazer
coisa n e n h u m a , p a r e c e c r i a t u r a d e o u t r o m u n d o , p u x o u u m s i n a l através das câmaras d e televisão q u e o g o l o e r a
a o p a i . N a q u e l a h o r a . P i a n i s t a estava tão i r r i t a d o q u e , para mamãe e t o d a a m a l t a d a Ribeira F u n d a . Havia de
q u a n d o v i u u m m i l i t a r colado a u m a moça n u m banco estudar - claro q u e havia de estudar! - Mamãe q u e r que
d a praça, tirou o c i n t o , a g a r r o u a m o ç a n u m a das mãos e e u seja u m a d v o g a d o , u m h o m e m d a l e i d e casaco e gra-
s u r r o u - l h e c o m t a n t a violência q u e ela g r i t a v a , desespera- vata! V o l t a r i a t o d o s os anos p a r a abraçar os m e u s a m i g o s ,
damente, p o r socorro. O recruta t e n t o u tirar-lhe o cinto, não p e r m i t i r i a q u e houvesse injustiça p a r a os mais fracos,
mas ele esquivava-se d i z e n d o : não te metas q u e é m i n h a l u t a r i a pelos d i r e i t o s d a q u e l e s q u e têm s i d o usados c o m o

C O
EVEL ROCHA
MARGINAIS.

combustíveis h u m a n o s p a r a f a z e r a n d a r o c o m b o i o d o
p r o g r e s s o . M o s t r a r i a os malefícios q u e o t u r i s m o v i n h a VI
t r a z e n d o e q u e , n a v e r d a d e , os mais ricos estavam cada vez
m a i s r i c o s , à custa dos operários escravizados m a l r e m u -
n e r a d o s , q u e os c o n s t r u t o r e s deste paraíso t r o p i c a l n a o se
p r e o c u p a m c o m o bem-estar físico e i n t e l e c t u a l d o p o v o .

F o i n u m a terça-feira, d i a e m que u m d o u t o r das letras,


v i n d o d o estrangeiro, nos visitava, q u e a p r e n d i u m a lição
inesquecível: a escola é o c e n t r o d a formação d o carácter de
u m h o m e m , mas é, a c i m a de t u d o , o l u g a r o n d e a p r e n d e -
mos o ódio, a desigualdade e passamos a c o m p r e e n d e r q u e
a p o b r e z a é u m a doença incurável. A professora d e língua
p o r t u g u e s a ia p r o c e d e r à eleição d o a l u n o q u e haveria de
r e p r e s e n t a r a t u r m a p a r a l e r u m discurso e n c o m e n d a d o
p a r a o visitante. A nossa professora, d e f e n s o r a d a d e m o -
cracia e d a i g u a l d a d e e n t r e os h o m e n s , q u e r i a passar p a r a
os seus p u p i l o s u m e x e m p l o d o q u e era u m dever cívico e
u m d i r e i t o e x e r c e r a c i d a d a n i a , C a b o V e r d e está a d a r os
seus p r i m e i r o s passos n o p l u r a l i s m o e, vocês, c o m o f u t u r o s
eleitores d e v e m começar desde c e d o a cultivar esta prática,
d e v e m saber a q u e m vão d i r i g i r o vosso voto, t e n d o e m c o n t a
as qualidades, as potencialidades e o carácter d o c a n d i d a t o
e m causa, disse-nos. M i r r e i l l e era, sem s o m b r a de dúvidas,
a m e l h o r a l u n a d a classe. F i l h a de u m c o o p e r a n t e francês
c o m m u i t o s anos n a i l h a , vestia-se c o m o a b o n e c a Barbbie,
o cabelo c o r de t r i g o e os o l h o s esmeralda c o m o o m a r de
Santa M a r i a l e m b r a v a m - m e as actrizes das novelas. Ela era
m u i t o l i n d a . Nós os dois formávamos o p a r ideal d o c o n t o de
fadas, A Bela e o Monstro. M i r r e i l l e concentrava-se nas aulas e
parecia b e b e r cada palavra q u e os professores e n u n c i a v a m ,
e n q u a n t o e u contava os m i n u t o s q u e faltavam p a r a q u e as
aulas terminassem. E u era o parvo, o i n d i s c i p l i n a d o , q u e só
sabia baboseiras, o estúpido o c u p a n t e d a carteira d o f u n d o .

RA RR
MARGINAIS • EVEL ROCHA

M i r r e i l l e era a estrela d a t u r m a , a mais l i n d a , a mais i n t e l i - Os c i n q u e n t a m i n u t o s d e a u l a , p o r vezes, e r a m sécu-


gente. A professora não se interessava p o r m i m p o r q u e ela los d e c a n s e i r a e e n f a d o . C l a r o q u e e u não e r a f l o r q u e se
n u n c a soube o q u e era i r à escola c o m f o m e . Afrontava-me cheirasse, mas, c a r a m b a ! , q u a l q u e r u m sente-se f e r i d o n a
a i d e i a de ser d i f e r e n t e d a esmagadora m a i o r i a d a classe. Se sua d i g n i d a d e , q u a n d o é d i s c r i m i n a d o d e u m a f o r m a ver-
alguém sentisse a l g u m c h e i r o d e chulé o u d e b u f o , t o d o s g o n h o s a c o m o a c o n t e c i a n o l i c e u . N a q u e l a segunda-feira,
espiavam p a r a m i m e mais u m p u n h a d o de infelizes, a p l e b e j u r o p o r t u d o q u a n t o é sagrado, e u tinha u m a indisposição
d a t u r m a ; se pintasse u m f u r t o n a sala, e u era o p r i m e i r o a ser d a n a d a e a f e b r e fazia tilintar m e u s d e n t e s . Passei a a u l a
revistado. Nos intervalos, e u vagueava p e l o pátio c o m o u m d e d o n a I s a u r a n u m p e n o s o r e m a n s o . Às tantas. Becas
p r e d a d o r à p r o c u r a de algo p a r a e n t e r r a r os dentes, coçar p e d i u licença p a r a i r fazer c h i c h i . E u também tinha c h i c h i
a gengiva e e n t r e t e r o estômago. C h e g u e i a c o m e r casca d e e, m e i o z o n z o , c a m b a l e e i até à secretária d a p r o f e s s o r a
b a n a n a q u e e n c o n t r e i n o cesto d e l i x o d a t u r m a . Casca d e p a r a p e d i r licença. E l a o l h o u - m e d e c i m a p a r a b a i x o e
b a n a n a t e m gosto d e m e l q u a n d o se t e m f o m e . b e r r o u , Senta-te! Mas, j& m o r a , j u r o p e l a m i n h a mãe q u e
Após a contagem dos votos, para decepção da professora, é v e r d a d e ; se f o r m e n t i r a q u e u m r a i o caia sobre a cabeça
e u g a n h e i a eleição. E l a o l h o u p a r a o r e s u l t a d o d a votação da senhora. Dou-lhe a m i n h a palavra de h o n r a . E n q u a n t o
e disse, M i r r e i l l e vai ser a r e p r e s e n t a n t e d a t u r m a . Mas e u ela esbracejava e s u b o r d i n a v a - m e , l e m b r e i - m e q u e , ao c o n -
t e n h o mais votos, disse-lhe d o f u n d o d a sala n u m a voz m e i o trário d o Becas, e u não t i n h a p a l a v r a d e h o n r a . S e n t a d o
s u m i d a c o m receio d e retaliação. S e m o l h a r p a r a m i m , ela n o f u n d o d a sala, e u a p e r t a v a as p e r n a s p a r a s e g u r a r a
d e c l a r o u q u e os votos atribuídos a o Sérgio d o Rosário não u r i n a e enroscava-me l a n g u i d a m e n t e p a r a aliviar a d o r
c o n t a v a m . N ã o faz s e n t i d o e l e g e r u m i n d i s c i p l i n a d o , u m d e cabeça. L e i a M a g r e z a , v e n d o o m e u estado, e s t e n d e u -
b a n d a l h o p a r a representar a t u r m a e, além d o mais, não sabe -me u m s a q u i n h o d e plástico e fez-me s i n a l p a r a u r i n a r .
ler. O m e n i n o Sérgio a n d o u a fazer c a m p a n h a de v o t o . Sem U r i n e i . Depois de o amarrar, coloquei-o n u m c a n t i n h o
saber o q u e significava «campanha d e v o t o » , dei-lhe a m i n h a d a c a r t e i r a . M i n u t o s d e p o i s , r e p a r e i q u e os colegas d o
palavra d e h o n r a q u e não tinha i n f l u e n c i a d o ninguém, mas f u n d o estavam secos d e riso. A professora ameaçou c o l o c a r
a professora m e disse q u e e u não t e n h o palavra d e h o n r a . t o d o s n a r u a , caso não parassem c o m a p o u c a v e r g o n h a
P o b r e não t e m palavra de h o n r a . d e p e r t u r b a r a a u l a . T i v e a sensação q u e o t e m p o p a r o u ,
A o s o i t o anos, e u j á s a b i a e s c r e v e r t o d o s os palavrões p o i s , a m i n h a v o n t a d e e r a m a n d a r t u d o p a r a o espaço e
usados n a m i n h a r i b e i r a , fazia c o n t a s d e q u a n t o s dias e r a m s u m i r d a q u e l e lugar. P o u c o d e p o i s , v i u m a m a n c h a escura
necessários p a r a q u e u m a g a l i n h a chocasse os ovos e sabia d e s l i z a n d o l e n t a m e n t e p e l o chão d a sala c o m o a s o m b r a
as h o r a s e m q u e d e s c a r r e g a v a m a m e r c a d o r i a à p o r t a d o d e u m f a n t a s m a e a t u r m a e x p l o d i u , a u m a só voz, n u m a
m e r c a d o . M i r r e i l l e sabia d e gramática e g e o m e t r i a , p o r é m , g a r g a l h a d a i n t e n s a . S e m q u e r e r , e u tinha p i s a d o a bolsa
e u sabia d a v i d a e d a sobrevivência. N ã o a p e r t e i a m ã o a o de u r i n a q u e se e s p a r r a m o u p e l a sala e isso c u s t o u - m e dois
tal d o d o u t o r estrangeiro, mas ajudei-o a substituir a r o d a dias d e suspensão.
f u r a d a d o c a r r o e n u m gesto d e a g r a d e c i m e n t o , e n c h e u
m e u s b o l s o s d e c a r a m e l o s . D e i x e i q u e ele arrancasse o
carro para i r e m b o r a e dei u m a r e t u m b a n t e gargalhada,
pois, t i n h a sido e u q u e m t i n h a f u r a d o a r o d a d o carro.

RPí 57
EVEL ROCHA

VII

Às q u a t r o d a t a r d e , éramos quase u m a c e n t e n a de ado-


lescentes n o v e l h o c a m p o de Chã de Matias esforçando-nos,
a f i n c a d a m e n t e , p a r a i m p r e s s i o n a r o português e sabíamos
q u e só os m e l h o r e s h a v i a m d e e n t r a r n o c a m p o . M i g u e l f o i
i n d i g i t a d o p a r a e s c o l h e r os v i n t e e dois m e l h o r e s . E n t r e
empurrões e a t r o p e l o s , cada u m g r i t a v a mais a l t o p a r a q u e
fosse e s c o l h i d o . J o r g i n h o f o i o p r i m e i r o . E u sabia q u e ele
ia t o r c e r p a r a q u e e u estivesse d o seu l a d o . M e u coração
b a t i a a c e l e r a d a m e n t e , t o d o o m e u c o r p o t r e m i a e suava
f r i o até o u v i r M i g u e l p r o n u n c i a r o m e u n o m e .
E r a o j o g o d a m i n h a vida. Os aplausos e os comentários
q u e v i n h a m d e f o r a das q u a t r o l i n h a s f a z i a m - m e s e n t i r
n u m estádio, a raça c o m q u e os eleitos se e n t r e g a v a m e m
cada lance dava-me a sensação d e q u e a t e r r a solta tivesse
t r a n s f o r m a d o e m relva d e u m v e r d e viçoso, as balizas d e
p e d r a fossem postes de f e r r o c o m redes, o suor e a t e r r a q u e
c o b r i a m m e u s pés fossem botas d e c o u r o . M e u e n t u s i a s m o
crescia à m e d i d a q u e o « o l h e i r o » m e a p l a u d i a . J o r g i n h o
fez u m passe d e m o r t e n a m i n h a direcção e, n o m o m e n t o
e m q u e l e v a n t e i o pé d i r e i t o p a r a m a r c a r g o l o , O r l a n d o ,
pé-de-pata, colocou-se ã f r e n t e d a b o l a e, sem t e m p o p a r a
m e esquivar, c h u t e i - l h e o pé. S e n t i u m a d o r aguda n o dedão
estortegado, p a r e c i a q u e o d e d o se tinha esfarelado de vez.
E n q u a n t o m e a j u d a v a m a sair d o c a m p o s e n t i q u e o m e u
s o n h o se d e s m o r o n a v a . C h o r e i a t a r d e i n t e i r a c o m o u m
p e r d i d o . P a r a m e c o n s o l a r , J o r g i n h o disse-me q u e o t a l
Carlos A l b e r t o i a levar boas indicações dos dois.
MARGINAIS ^ EVEL ROCHA

M e u s o n h o d e ser f u t e b o l i s t a e r a c o m o u m a m o n t a n h a até l h e tinha d e s p i d o p a r a abusar dela. F u i levado c o m o u m


russa c o m altos e baixos: crescia e atrofiava-se c o n f o r m e as cão sem d o n o p e l o polícia, i n d i f e r e n t e às m i n h a s súplicas;
circunstâncias. M e u ego necessitava sonhar e o m e u estômago f i q u e i c o m a impressão d e estar a ser levado p a r a a forca. N a
precisava d e c o m i d a . E u estava sentado ao pé d a p o r t a , zizi Esquadra havia u m polícia d e p i q u e t e c o m u m a p a r e l h o z i n h o
chiava i m p a c i e n t e m e n t e c o m o f o c i n h o c o l a d o ao chão e m r o n c e i r o c o l a d o ao o u v i d o e os pés sobre u m a p e q u e n a mesa
busca dos fanicos e o m e u estômago não parava de r e c l a m a r desengonçada, a l h e i o a t u d o à sua volta. B o r j a e m p u r r o u - m e
p o r não mais s u p o r t a r a m a l d i t a f o m e . C o l o q u e i a ratazana, p a r a d e n t r o d e u m q u a r t i n h o m a l cheiroso, e n g a n c h o u - m e
q u e mais p a r e c i a u m c o e l h o , n o o m b r o e r u m e i e m direcção o rosto c o m as mãos largas e húmidas e disse-me. Tentativa
da casa de Zefa M a n q u i n h a . A ideia era aproveitar o m o m e n t o d e violação e r o u b o , h e i n ! A g o r a v o u m o s t r a r - t e o q u e é
e m q u e ela tomava b a n h o p a r a l h e s u r r i p i a r a bolsa de d i n h e i - ser m a c h o . D e s a p e r t o u o c i n t o e a r r i o u - m e as calças. Nesse
r o . A p o r t a estava e n t r e a b e r t a , espreitei p a r a d e n t r o e ela lá preciso m o m e n t o , o g u a r d a c h a m o u - o p a r a i r a t e n d e r u m
estava n o seu b a n h o c o s t u m e i r o , sentada n o chão, esfregando t e l e f o n e m a e n u m riso t o r t o disse-me. Fica q u i e t o q u e vamos
o c o r p o c o m u m p a n o m o l h a d o . E r a tão g o r d a q u e e u não divertir-nos m u i t o esta n o i t e , vais ver o q u e é abusar d e m u l h e -
conseguia d i s t i n g u i r as m a m a s das d o b r a s d e g o r d u r a . M e u s res h o n r a d a s . V o l t o já. O u v i o ruído d e m o t o r , o l h e i através
o l h o s prenderam-se i n v o l u n t a r i a m e n t e n a p e r n a a m p u t a d a de u m a p e q u e n a j a n e l a q u e dava p a r a r u a e p e r c e b i q u e ele
até aos j o e l h o s e senti u m f r i o arrepiante. Feliz, n u m a l a d a i n h a tinha sido c h a m a d o d e urgência. Saltei a j a n e l a c o m o p u d e
imperceptível d e r e s m o n e i o s desafinados, m o l h a v a o p a n o e q u a n d o i a f u g i r pelas traseiras o u v i u m g e m i d o d e d o r
e esfregava-o nas grossas e n t r a n h a s g o r d u r o s a s e flácidas. v i n d o d o i n t e r i o r d a casa d e b a n h o . A p r o x i m e i - m e p a r a cer-
Descambei silenciosamente p e l o q u a r t o e, n o m o m e n t o e m tificar d o q u e se tratava, e d e p a r e i c o m u m polícia c h a m a d o
q u e c o l o q u e i a m ã o sobre a bolsa o n d e guardava o d i n h e i r o , R a u l a abusar s e x u a l m e n t e d e Pianista. Pianista tinha a b o c a
zizi saltou dos m e u s o m b r o s e c a i u n o regaço d a desgraçada amordaçada e o c o r p o encharcado de suor, mas m e s m o assim
q u e , e m gritos ensurdecedores, saiu a r r a s t a n d o as nádegas d e u p a r a p e r c e b e r o seu desespero a g r i t a r p e l a mãe. E u não
p a r a a m a , Ó p o v o , u m ladrão j á e n t r o u n a m i n h a casa! D e p o d i a sair e n e g a r ajuda a u m dos m e u s m e l h o r e s amigos.
esmola, v e n h a m ajudar-me q u e ele q u e r m a t a r - m e ! Pessoas O g u a r d a d e p i q u e t e estava e n t r e t i d o c o m o rádio
d e todas as travessas e becos d a Preguiça j u n t a r a m - s e p a r a c o l a d o a o o u v i d o , m a s se e u atravessasse a p o r t a a p a n -
v e r o q u e tinha a c o n t e c i d o . F i q u e i p r e g a d o n o chão s e m hava-me d e caras. E u t i n h a d e a r r i s c a r o u então não m e
saber o q u e fazer, pois todos os o l h o s c o n v e r g i a m e m m i m . chamava Sérgio Pitboy. D i v i d i d o e n t r e f u g i r pela p o r t a
Para cúmulo d o desespero, a p a r e c e u B o r j a n o seu a n d a r d o f u n d o e e n f r e n t a r o v i o l e n t a d o r d e Pianista, e s c o l h i a
sonâmbulo e n u m a voz a m a r f a n h a d a , Desta não m e escapas, s e g u n d a opção e i n s t i n t i v a m e n t e as m i n h a s mãos alcançou
ladrão. Senti a sua pesada mão presa n o m e u p u l s o a arrastar- o m a n d u c o d o polícia. A c e r t e i - l h e v i o l e n t a m e n t e a n u c a ,
-me e n t r e a multidão q u e , d e p u n h o s cerrados, j u b i l a v a p e l o d e i x a n d o - o i n c o n s c i e n t e c o m a cabeça p e n d i d a p a r a a
facto d e e u t e r sido a p a n h a d o , Esses m a l a n d r o s , esse b a n d o r e t r e t e . P i a n i s t a , c o m as calças e n s a n g u e n t a d a s , estava
d e demónios! É preciso castigá-los severamente p o r tirarem n u m estado lastimável. A j u d e i - o a vestir-se e escapámos
o sossego d e pessoas h o n r a d a s . pelos fundos.
A l g u n s d i z i a m q u e e u tinha i d o apenas p a r a c o m p r a r A q u e l a cena h o r r o r o s a a b r i u n a m i n h a a l m a u m a ferida
rebuçado, outros q u e e u tinha e n t r a d o p a r a abusar d a m u l h e r , q u e jamais haveria de sarar. Estávamos e m estado de choque.

Rn 61
MARfílNAIR ^ ^
EVEL ROCHA

Fomos para a m i n h a casa, contámos t u d o à m i n h a mãe e ela disse-


-nos que fôssemos ter c o m o d o u t o r Apolinário. Infelizmente, o
advogado recusou abrir-nos a p o r t a para não sujar a sua alcatifa
VIII
e disse à mamãe q u e fosse n o d i a seguinte apresentar queixa ao
j u i z . A o passar debaixo dajanela d a casa d o d o u t o r f i i i atingido
p o r u m escarro quente n o pescoço. O l h e i para c i m a e v i o seu
rosto cínico n u m riso amarelo e insultuoso a fechar as persianas.
Até hoje sinto u m a q u e i m a d u r a de repugnância n o pescoço p o r
aquele malvado. A cuspidela f o i u m a ferida aberta n a m i n h a
h o n r a q u e só haveria de curar c o m a vingança. A m i n h a revolta D u r a n t e alguns dias, assustada c o m os a c o n t e c i m e n t o s
contra a prepotência daquele h o m e m desalmado e m a l agra- da esquadra, mamãe reteve-me e m casa e avisou-me q u e , se
decido aumentava de u m a f o r m a assustadora. Aquele m o m e n t o necessário, amarrava-me à c a m a c o m o q u a n d o e u era mais
m a r c o u u m a viragem radical n a m i n h a vida. Passava horas e p e q u e n o . P o r u n s t e m p o s , c o n t e n t e i - m e e m ver o m u n d o
horas c o z i n h a n d o estratégias para m e vingar d a sua arrogância g i r a n d o a p a r t i r d a p o r t a d o q u i n t a l , e n q u a n t o esperava
e isso começou a abrir-me o apetite mórbido para delinquên- p o r zizi. V a s c u l h e i t o d o s os c a n t o s d a casa s i b i l a n d o p o r
cia. Mamãe apresentou queixa ao t r i b u n a l . Ela, de tempos e m ela, mas n a d a d e zizi.
tempos, aparecia n o t r i b u n a l e voltava sempre c o m a promessa Dias depois, B e t o c o n t o u - m e q u e a rata f o r a caçada e
de q u e t u d o se resolveria a favor das vítimas. Decididamente, despedaçada p o r u m cão naquela fatídica noite de violação. Os
isolei-me d o m u n d o e p r o c u r e i refógio entre os marginais. rapazes deram-lhe u m e n t e r r o d i g n o e c h o r a r a m a sua m o r t e .
Zízi d e i x o u u m vazio e m m i m . Todas as noites, q u a n d o
Borja, R a u l e mais alguns polícias f o r a m transferidos p r e p a r a v a - m e p a r a d e i t a r , a r a t a v i n h a ressabiada sobre o
para a Esquadra de Santa M a r i a . Para nós, aquela transferência lençol, mas l o g o , l o g o os seus o l h o s l a m p e j a v a m e l a m b i a -
f o i u m a f o r m a de e n c o b r i r as atrocidades cometidas pelos m e o rosto de alegria.
polícias, mas n e m e u n e m os rapazes haveríamos de esquecer R i c a r d o , o Pianista, estava cada d i a mais r e b e l d e e era
o q u e aconteceu. O t e m p o passou, as autoridades abafaram o difícil aguentá-lo nos m o m e n t o s d e crise. A b a n d o n a d o à
caso e n u n c a mais se o u v i u falar d o assunto. Mais tarde, Fusco sua d o r , m a r c a d o p e l a c r u e l d a d e d e u m polícia selvagem,
c o n f i d e n c i o u - n o s q u e era sistematicamente v i o l a d o p o r eles. passou a f u m a r ganja. O p r a z e r d o f u m o , o fascínio desta
L e m b r e i - m e de o t e r visto c o m o f u n d i l h o das calças c o m n o v a a v e n t u r a d e f u m a r u m poff era. tão g r a n d e , tão g r a n d e
pequenas m a n c h a s de sangue c o n t u d o ele não fazia caso. q u e passou a ser a sua b a n d e i r a d e l u t a p e l a sobrevivência.
Abusavam d e l e e depois e n c h i a m - l h e os bolsos de moedas. N u m b e l o d i a , d u r a n t e o i n t e r v a l o de aula, vi-o sentado
A m i n h a v i d a s e m p r e f o i u m r e t a l h o d e recordações, n o m u r o d o l i c e u c o m u m a m o c h i l a às costas, a l a r d e a n d o a
u m a c u m u l a r d e h o r r o r e s . Restava-me s o n h a r - insisto n a r o u p a nova e u m p a r de sapatilhas d e marca. C h a m o u - m e
p a l a v r a s o n h o p o r q u e s e m e l a não s o b r e v i v e r i a . Se a l e i e, depois d e u m a saudação à m a n e i r a , o l h o u p a r a o relógio
não f u n c i o n a v a p a r a os desvalidos, caberia-nos a nós fazer n o v i n h o e m f o l h a , disse-me q u e trabalhava para u m i t a l i a n o
a justiça c o m as próprias mãos e c o n t i n u a r a s o n h a r . e m Santa M a r i a . Q u a n d o é q u e largas este c h i q u e i r o , man?,
perguntou-me.
MARGINAIS EVEL ROCHA

R e s p o n d i - I h e s e r i a m e n t e q u e E x t e r n a t o não é c h i - vezes, b r i g a v a m e q u e b r a v a m os p o u c o s enfeites q u e a casa


q u e i r o . A p e s a r d e não ser u m l i c e u pesado, t e m contribuído t i n h a . M a i s t a r d e , u n s rapazes m a i s graúdos d i s s e r a m - m e
p a r a formação d e g r a n d e s h o m e n s : M i n i s t r o s , d e p u t a d o s , q u e se os deixasse j o g a r lá e m casa p a g a v a m d e z escudos
p o e t a s , e n g e n h e i r o s , a d v o g a d o s . . . estás à f r e n t e d e u m p o r c a d a p a r t i d a . S o m o s g r a n d e s e não g o s t a m o s d e b a r u -
f u t u r o grande h o m e m ! O f u t u r o craque dos relvados, l h o . V e n d o o interesse deles, r e g a t e e i , Deixo-vos j o g a r se
o advogado dos pobres! Juro-te que v o u g a n h a r m u i t o m e d e r e m v i n t e escudos p o r c a d a p a r t i d a . Vocês j o g a m
d i n h e i r o e e n c h e r a b a r r i g a dessa g e n t e c o i t a d a ! tchintchôm'^ e tchintchôm d e m o r a m u i t o a acabar.
D e i x a dessas parvoíces e p õ e os pés n o chão, man, As vezes, e u fazia t r e z e n t o s a q u a t r o c e n t o s escudos
p o b r e só e n c h e a b a r r i g a q u a n d o m o r r e a f o g a d o , r e p l i c o u . n u m d i a . E u q u e i m a v a quase t o d o o d i n h e i r o nos intervalos
R i m o s r u i d o s a m e n t e e seguiu-se u m silêncio c o n f r a n - das aulas e sobrava p o u c o p a r a gastar à n o i t e . L e n a , u m a
gedor. Ele i n c l i n o u a cabeça p a r a b a i x o n u m o l h a r pensativo m o ç a dos seus v i n t e anos e b e m feitos, j o g a v a b a t o t a c o m
e d e p o i s c o l o c o u - m e u m a n o t a d e m i l escudos n o bolso d a os rapazes e g u a r d a v a d i n h e i r o d e n t r o d o s o u t i e n e nas
camisa. N ã o e r a necessário interrogá-lo p a r a saber d e o n d e cuecas. E l a r e p a r o u q u e s e m p r e q u e a f r o u x a v a as cuecas
v i n h a t a n t o d i n h e i r o . Pela p r i m e i r a vez receei p o r ele. p a r a tirar a massa e u esticava o pescoço p a r a v e r a f l o r e s t a
Move d e B o b , man\, e n t u s i a s t i c a m e n t e . d e p i n t e l h o s d o u r a d o s q u e c o b r i a a sua i n t i m i d a d e e diver-
P i a n i s t a estava b e m d i s p o s t o . T i n h a os bolsos c h e i o s tia-se c o m a m i n h a c u r i o s i d a d e . Gostas d e v e r p i n t e l h o ? ,
e as m e n i n a s p a r e c i a m abelhas desejosas d e p o u s a r n a sua p e r g u n t o u - m e n o seu j e i t o d e espassarada, então o l h a e
f l o r . T i n h a as feições grossas, o dreadlock c o r d e f e r r u g e m , vê se d e i x a s essa m a n i a d e espiar o n d e n ã o és c h a m a d o .
as ilhas sombreadas d a b a r b a p e l o r o s t o p o r fazer, as r o u p a s
de marca que trazia vestido, a corrente exageradamente T i F r a n c o , o v e l h o c o m e r c i a n t e , c o l o c o u u m a lista d e
g r a n d e q u e t r a z i a ã v o l t a d o pescoço c o m u m m e d a l h ã o c a l o t e i r o s n a m o n t r a d a l o j a e f o i u m escândalo p a r a os
d e suástica c o n f e r i a - l h e o e s t a t u t o d e h o m e m apesar d o s m o r a d o r e s d a R i b e i r a F u n d a . U m a lista d e duas f o l h a s d e
seus verdes dezassete anos. B e m c e d o a l u g a r i a u m q u a r t o p a p e l almaço e s t a m p a n d o a q u a n t i a dos d e v e d o r e s e seus
e s a i r i a d a p o r c a miséria q u e o m a r t i r i z a v a d e s d e o nasci- respectivos n o m e s . N a q u e l e s dias não se falava e m o u t r a
m e n t o . R i c a r d o era o r e t r a t o p e r f e i t o dos m e n i n o s de r u a coisa senão nos c a l o t e i r o s . O s e n h o r V i e i r a tinha f e i t o o
e, m e s m o c o m t o d a a abastança, c o n t i n u a v a a c o m p o r t a r - s e m e s m o e m t e m p o s i d o s c o m as pessoas q u e i a m ao seu
c o m o u m d e l i n q u e n t e , a sua m a l u q u e i r a i r r i t a v a o i t a l i a n o estúdio p a r a s e r e m f o t o g r a f a d o s e n u n c a m a i s a p a r e c i a m
que o despedia n u m dia e o a d m i t i a n o u t r o . p a r a l e v a n t a r as e n c o m e n d a s . E l e p u n h a as fotos de cabeça
M a m ã e , f a r t a d e e s p e r a r o d i a d e viajar p a r a Itália, p a r a b a i x o n a m o n t r a e n o d i a s e g u i n t e os d o n o s , e m f i l a ,
c o n s e g u i r a u m e m p r e g o n o H o t e l Atlântico. T r a b a l h a v a a p a r e c i a m p a r a s a l d a r a dívida.
quase t o d o o d i a l i m p a n d o os q u a r t o s e v o l t a v a à t a r d i n h a . N o início a c h e i graça à i n i c i a t i v a d e T i F r a n c o , mas, ao
A p r o v e i t a n d o a sua ausência, n a p a r t e d e manhã, c h e g u e i d e s c o b r i r o n o m e d a mamãe n a lista, f i q u e i chateadíssimo,
a u m a c o r d o c o m a l g u n s rapazes p a r a j o g a r e m b a t o t a e m sentí-me t e n t a d o a e n t r a r n a l o j a e b a t e r a cabeça d a q u e l e
casa e c o b r a v a c i n c o escudos p o r c a d a p a r t i d a . D e v i d o os d e s a l m a d o n a p a r e d e até esvair e m sangue. Se mamãe não
r u m o r e s d a vizinhança q u e a polícia andava p o r p e r t o , tive p a g o u f o i p o r f a l t a d e m e i o s . A q u e l e mão-de-vaca v e n d i a
q u e s u s p e n d e r o n e g ó c i o , p o i s , f a z i a m m u i t o b a r u l h o e, às 4 Modalidade do jogo de cartas.

R/1 Ç\R
MARGINAIS . EVEL ROCHA

c a r o , i n s i s t i a p a r a q u e e l a tomasse f i a d o , C o m f a i i n h a s R e s p o n d i , N ã o e r a d i n h e i r o q u e bocê queria? A g o r a faça o


m a n s a s , bocê falava-lhe a t r e v i m e n t o , q u e r e n d o deitar-se f a v o r d e r i s c a r o n o m e d a mamãe d a lista d e dívida.
c o m e l a c o m o p a g a m e n t o d a dívida, e a g o r a l h e c h a m a M a m ã e q u i s saber o n d e e n c o n t r e i o d i n h e i r o e
d e c a l o t e i r a . Ladrão d e s c a r a d o ! M a c a c o v e l h o ! Parece q u e d a q u e l a vez c o n t e i a v e r d a d e . E l a estava d i v i d i d a , n ã o
N h a C a c i l d a n ã o l h e satisfaz. sabia se m e dava u m a sova d e fio d e e l e c t r i c i d a d e o u se
M a m ã e sentia-se e n v e r g o n h a d a , mas não t i n h a c o m o m e abraçava d e c o n t e n t a m e n t o . J u r e i q u e n u n c a mais fazia
pagar. P e d i u a T i F r a n c o p a r a tirar o s e u n o m e d a lista e d a nossa casa u m c o v i l d e b a t o t e i r o s , mas ao p e n s a r n o s
q u e fazia q u a l q u e r sacrifício p a r a l h e p a g a r a dívida o m a i s p i n t e l h o s d e L e n a , l e m b r e i - m e q u e as m i n h a s j u r a s n ã o
t a r d a r até o f i m d o mês, p o r é m , ele insistia e m levá-la p a r a e r a m p a r a s e r e m levadas a sério. L e n a manuseava as cartas
c a m a o u então n a d a f e i t o . N i n g u é m c o n s e g u e i m a g i n a r c o m o n i n g u é m ; c o n h e c i a t o d o s os t r u q u e s d o tchintchôm
o q u e passa p e l a cabeça d e u m a d o l e s c e n t e , q u a n d o des- e se descobrisse q u e alguém estava a r o u b a r n o j o g o não
c o b r e q u e alguém q u e r a b u s a r d a s u a mãe. T i F r a n c o e r a hesitava e m d e s e m b a i n h a r a n a v a l h a o u e s m u r r a r a cara d o
u m jurássico c o m e r c i a n t e q u e estava n o n e g ó c i o m a i s p o r b a t o t e i r o . Usava r o u p a s m a s c u l i n a s c o n s p u r c a d a s d e suor,
vício q u e p o r necessidade. O seu r o s t o tinha m a i s franjas tinha o r o s t o d e l i c a d o d e m u l h e r , m a s os p u n h o s largos e
d o que u m a c o r t i n a m u n g i d a e era atrevido demais para os o l h o s desafiantes, desencorajava q u a l q u e r m a l i n t e n c i o -
o m e u gosto. Seria m e l h o r se tivesse m o r r i d o , q u a n d o d e u n a d o . L e n a , q u a n d o n ã o estava a j o g a r b a t o t a , t r a b a l h a v a
f a n i q u i t o p e l o susto q u e P i a n i s t a l h e a p l i c o u . Percebe-se c o m o a j u d a n t e d e p e d r e i r o , pescava n o s fins-de-semana
p o r q u e d i z e m q u e o d i a b o não m o r r e . e, n o d o m i n g o à t a r d e , i a ao Estádio M a r c e l o Leitão v e r
E u p o d i a j o g a r tchintchôm c o m os b a t o t e i r o s e e m f u t e b o l . E l a c h e g o u à conclusão q u e g a n h a v a m a i s a j o g a r
p o u c o t e m p o pagava a dívida, m a s os j o g a d o r e s e r a m astu- cartas d o q u e e s b o d e g a n d o n o t r a b a l h o forçado. F u m a v a
tos e m a n h o s o s . O p t e i p o r e s p e r a r p e l a r e n d a e e m d u a s t u d o o q u e e r a erva, b e b i a cerveja d e s a f i a n d o os h o m e n s
semanas c o n s e g u i j u n t a r a q u a n t i a necessária p a r a p a g a r c o m a sua l i n g u a g e m ordinária, p o r é m r i c a e m o b s c e n i -
a dívida. C o n v e n c i os rapazes q u e i a m j o g a r cartas lá e m d a d e . Sentava-se c o m o h o m e m , tirava a b l u s a , a l e g a n d o
casa q u e , p o r razões «estruturais» e a s u b i d a d o p r e ç o d e calor, e d e i x a v a à m o s t r a o s o u t i e n a v o l u m a d o pelos f a r t o s
combustível, a v i d a estava m u i t o c a r a e p o r t a n t o t e r i a m e a r r e d o n d a d o s seios, d e p o i s destratava a mãe d a q u e l e s
d e p a g a r u m p o u c o m a i s p o r c a d a p a r t i d a d e tchintchôm. q u e l h o s o b s e r v a v a m . P e d i - l h e c o m b o n s m o d o s p a r a não
Fiz questão d e i r pessoalmente à loja d e T i F r a n c o saldar f u m a r p o r q u e o c h e i r o f o r t e d o c i g a r r o p o d i a trazer-me
a c o n t a d a mamãe. A q u e l e safardana o l h o u - m e p o r c i m a dos problemas c o m mamãe, ela mostrou-se o f e n d i d a e p o r
óculos, n o seu j e i t o d e sapo molengão, p e r g u n t o u - m e o q u e p o u c o esfolava-me v i v o ! C o m o se n a d a tivesse a c o n t e c i d o ,
q u e r i a e respondi-lhe q u e tinha i d o pagar a dívida d a mamãe. e l a a f r o u x o u as cuecas e o r d e n o u - m e q u e metesse a m ã o
São c i n c o m i l , d u z e n t o s e q u a r e n t a e três escudos. p a r a a p a n h a r d i n h e i r o e c o m p r a r cerveja. A o m e t e r a mão,
D e s p e j e i as m o e d a s d e v i n t e e c i n q u e n t a e s c u d o s s e n t i o roçar h ú m i d o e q u e n t e d o s pêlos e n c a r a c o l a d o s e
s o b r e o balcão, T i F r a n c o , n u m silêncio d e m o r t e , c o n t o u o m e u c o r p o e s t r e m e c e u . F e c h e i os o l h o s p o r i n s t a n t e s ,
as m o e d a s e d e p o i s r o s n o u os números. N u m r e s m u n g o mas a g a r g a l h a d a i n s i n u a n t e dos presentes a c o r d o u - m e d a
atiçado e asmático, o l h a n d o - m e p o r c i m a dos óculos r e m e n - fantasia e saí c o r r e n d o d e b a i x o d o s o l h a r e s trocistas d o s
dados, p e r g u n t o u , P o r q u ê Rosário não v e i o pessoalmente? b a t o t e i r o s . Q u a n d o v o l t e i , L e n a , e m silêncio, b o t a v a f o g o

fifi
MARGINAIS EVEL ROCHA

pelas ventas, e s p i a n d o s e m p r e p a r a o l a d o d i r e i t o o n d e I n i c i a l m e n t e , f o i u m martírio h a b i t u a r - m e , mas aos p o u c o s


estava Zé Carlos. A l g u m a coisa estava e r r a d a , adivinhava-se f u i a p a n h a n d o o g o s t o p e l a coisa. E u saía à p r o c u r a d e u m
u m quebra-pau. O l h e i de lado, n u m o l h a r de galo vigi- l u g a r o n d e houvesse miúdos e u m a b o l a . J o g a r f u t e b o l
l a n t e p a r a a sua m ã o e v i s l u m b r e i apenas p a l h a s e u m o u e r a u m a missão, u m d e s t i n o q u e e u tinha d e c u m p r i r , e r a
o u t r o n a i p e d e a l g u m valor. P e r d e u a p r i m e i r a p a r t i d a , t o d a a razão d a m i n h a existência e n a d a p o d i a fazer-me
b a r a l h o u e d e u cartas d e n o v o . D e s t a vez não a g u e n t a n d o p a r a r . A p ó s p e r d e r o d i r e i t o à escola, restava-me d a r n o
a situação q u e só e l a v i a , levantou-se n u m ápice e a t i r o u d u r o atrás d a b o l a . L e v a v a p o r r a d a d o s m a i s crescidos,
u m a g a r r a f a d e cerveja n a c a r a d e Zé Carlos q u e e m vão mas não m e i m p o r t a v a . As m i n h a s canelas estampadas d e
t e n t o u esquivar-se. L e n a a g a r r o u - l h e p e l o pescoço e, não cicatrizes, o m e u d e d ã o e s t o r t e g a d o d o pé d i r e i t o doía-me
f o r a a intervenção d o s o u t r o s j o g a d o r e s , h a v i a m o r t e n a até à a l m a , mas e u e r a c o m p e n s a d o p e l a admiração d o s
c e r t a , Q u e r e s r o u b a r , né? Escolheste a pessoa e r r a d a , manl o u t r o s . « Q u a n d o e u f o r u m a e s t r e l a d e f u t e b o l e passar
S o u m u l h e r mas s o u macha, filho da... E u m a t o a c o b r a e pelas r u a s d e Espargos, as a n d o r i n h a s hão-de v o a r e m a r c o
m o s t r o o p a u , pá. n a dança d a c h u v a ; haverá festa n o fontanário d e T i G o i ,
L e n a t i r o u - l h e d o b o l s o duas cartas falseadas e m e t e u - d e v o l v e r e i o r i s o l a v a d o aos m e u s a m i g o s q u e não t i v e r a m
-Ihas n a b o c a , Q u e r e s c o m e r à c u s t a d o s o u t r o s ? Então t e m p o de ser crianças; s e p u l t a r e i a m i n h a raiva pelos velhos
c o m e , ladrão d e m e r d a . N u n c a mais te metas c o m i g o o u s e n h o r e s d a terra!»
te q u e b r o ao m e i o ! Zé Carlos, t r e m e n d o , f u g i u c o m o r a b o
e n t r e as p e r n a s , n u m a r e a l d e risadas e chacotas.
Passados d o i s m e s e s , a casa t r a n s f o r m a r a - s e n u m
c a s i n o c l a n d e s t i n o d e m a r g i n a i s . H a v i a pessoas a j o g a r n a
cozinha, n o q u i n t a l , n o q u a r t o d a mamãe e n o m e u , n a
sala, e n f i m , o n d e houvesse espaço h a v i a q u a t r o j o g a d o r e s
d e cócoras. E u estava tão o c u p a d o q u e chegava às aulas
atrasado. A d i r e c t o r a m a n d a v a b i l h e t e s p a r a mamãe, mas
e u n u n c a os e n t r e g a v a . A p r o f e s s o r a I z i l d a c h a m o u - i p e a
atenção q u e a q u a l q u e r m o m e n t o p o d e r i a r e p r o v a r p o r
excesso d e faltas, mas não fiz caso das suas recomendações.
A c o n t e c e u o inevitável: p e r d i o a n o p o r faltas. E u
tinha dezasseis anos m a l acabados. S e n t i c o m o se o m u n d o
desabasse s o b r e m i m . M e u s o n h o d e ser u m g r a n d e advo-
gado d e s m o r o n o u . Mamãe n u n c a soube que e u t i n h a
r e p r o v a d o p o r faltas. N a h o r a d a escola, p r e p a r a v a - m e
c o m o d e c o s t u m e p a r a i r à escola e n o l u g a r dos l i v r o s ,
colocava n a m o c h i l a u m a camisola e u m par de botas
que c o m p r e i c o m o d i n h e i r o dos j o g o s de batota. Ter
u m p a r d e botas e r a i m p o r t a n t e p o r q u e dava nas vistas.

69
EVEL ROCHA

A n t ó n i o a n d a v a e x a c e r b a d o c o m a i d e i a d e ser p a i .
N a altura, namorava c o m u m a m e n i n a natural da ilha
d o Fogo, de nariz c o m p r i d o , pele cor de canela, olhos
esgazeados d e b o i e n s o n a d o , v i d r a d o s e tímidos, e o cabelo
liso e c o m p r i d o q u e l h e c o b r i a as o r e l h a s d e b o r b o l e t a .
Chamava-se L a u r a . E l a tinha e n t r a d o n o p e r í o d o d e p a r t o
e a q u a l q u e r h o r a p o d e r i a ser mãe. A n t ó n i o levou-a a casa
p a r a ser apresentada à mamãe, q u e a e s t u d o u c o m os olhos,
d e m o r a d a m e n t e , e, d e p o i s d e u m a conversa inquisitória,
d e u a sua aprovação c o m o s e n d o u m a m e n i n a d e b e m .
F i c o u d e c i d i d o q u e L a u r a ficaria n a nossa casa, pois ela não
t i n h a n e n h u m p a r e n t e n a i l h a e A n t ó n i o estava d e c i d i d o
e m fazer dela a sua m u l h e r Verguei-me c o m o se tivesse sido
a t i n g i d o p o r u m m u r r o invisível n o estômago. A presença
d e L a u r a n a q u e l a casa significava q u e A n t ó n i o v o l t a r i a a
m o r a r c o n n o s c o , s i g n i f i c a v a o fim d o s j o g o s d e b a t o t a ;
significava q u e n u n c a m a i s e u h a v e r i a de r e c e b e r a r e n d a
p o r j o g o , n e m v e r os p i n t e l h o s d o u r a d o s atrás das cuecas
c o l o r i d a s d e L e n a . E m c o n t r a p a r t i d a , as n o i t e s s e r i a m a p i -
m e n t a d a s p e l o s b e r r o s d e u m bebé - p i o r a i n d a : d e duas
bebés r e f i l o n a s . E l a p a r i u u m p a r d e gémeas.
A n t ó n i o fez u m a festa de a r r o m b a p a r a a n o i t e de sete.
C o n v i d o u os a m i g o s e passaram a n o i t e b a n h a n d o - s e n o
g r o g u e e n a cerveja e e n t u p i n d o - s e de mariscos. Às tantas
d a n o i t e , A n t ó n i o p e d i u aos convivas q u e o escutassem, pois
q u e r i a fazer u m discurso. E m o c i o n a d o e m e i o grogue, sin-
g r a n d o as turvas águas da embriaguês, subiu a u m b a n q u i n h o .
MARGINAIS EVEL ROCHA

e n q u a n t o as pessoas se abeiravam d e l e e, d e o l h o s fixos nas C o m a c h e g a d a d e L a u r a e as duas gémeas, a c a b o u o


duas criaturas q u e p a r e c i a m vindas d e o u t r o p l a n e t a p a r a u m r i c o d i n h e i r i n h o d e r e n d a dos j o g o s d e b a t o t a , a c a b o u a
m u n d o d e loucos, disse. Sabem graças a q u e m estão a beber, b o a v i d a d e d e i t a r e l e v a n t a r q u a n d o e u quisesse. E u t i n h a
h e i n (hic!)? D i s t o ! - T i r o u f o r a o sexo m u r c h o c o m o u m de i r buscar água n o fontanário, lavar p r a t o s e, r e s u m i n d o ,
c h a r u t o m o l h a d o e e x i b i u - o p a r a todos q u e , n u m a explosão passei a ser o c r i a d o d a casa.
de risos, o a p l a u d i r a m . - H o j e é u m d i a feliz p a r a m i m e... F i n a l m e n t e , mamãe r e c e b e r a o tão desejado d o c u -
( h i c ! ) talvez todos q u e i r a m saber o n o m e das m i n h a s lindas m e n t o q u e l h e a b r i a as p o r t a s d a Itália. Já não precisava
bonecas. T i v e m o s sete dias p a r a escolher os n o m e s e não t r a b a l h a r c o m o u m a escrava e, d e n t r o d e dias, estaria n a
f o i fácil. L a u r a e e u . . . d e s c u l p e m - m e essas lágrimas, estou E u r o p a , ao largo, g a n h a n d o a vida h o n r a d a m e n t e . Ela
e m o c i o n a d o ( h i c ! ) , resolvemos chamá-las d e Eutanásia e não se cansava d e m e p e d i r p a r a não a b a n d o n a r a escola:
Cesariana. H o u v e u m silêncio e n s u r d e c e d o r , mas l o g o os « L e m b r a - t e , filho, q u e m não t e m e s t u d o s acaba t r a b a -
aplausos ruidosos carregados de i r o n i a abafaram a p e r p l e x i - l h a n d o nas o b r a s ; p r o m e t o q u e t o d o s os meses m a n d o - t e
dade dos presentes. O m e u m a n o tinha visto os n o m e s n u m a u m d i n h e i r i n h o p a r a pagares escola, c o m p r a r l i v r o e cader-
revista médica e n a sua inteligência a c h o u q u e e r a m n o m e s n o , e n f i m t u d o o q u e precisares. E assim, m e u filho. D e u s
q u e se a d e q u a v a m às duas m e n i n a s . dá-te c o r a g e m e força p a r a seres u m h o m e m d o a m a n h ã » .
A h o r a d e r e g i s t a r as m e n i n a s f o i u m a h i l a r i a n t e des- L a u r a , s a b e d o r a das coisas, escutava a conversa atrás d a
o r d e m q u e só t e r m i n o u c o m a intervenção d a responsável p o r t a e não d e m o r o u e m d e s c o b r i r q u e e u tinha p e r d i d o
d o Registo C i v i l , A c a l m a - t e , A n t ó n i o . T u d o vai resolver e m o a n o p o r faltas. F o i o c o m e ç o das c h a n t a g e n s : passei a
b e m . V e m cá p a r a a m i n h a sala q u e resolvemos isso l o g o . lavar as f r a l d a s b o r r a d a s e a satisfazer os c a p r i c h o s d e l a
Se não f o r e m registadas c o m os n o m e s q u e e u q u e r o , p a r a assegurar a sua língua m a l i c i o s a q u e ameaçava c o n t a r
não registo as meninas e não há l e i que m e vai obrigar a m u d a r t u d o p a r a mamãe.
d e ideias, b e r r o u A n t ó n i o c h o v e n d o saliva sobre a secretária. Mamãe v i a j o u e a m i n h a v i d a p i o r o u . E m t r o c a d e u m
N u m a p s i c o l o g i a b u r i l a d a , a s e n h o r a disse-lhe, T e n s p r a t o d e c o m i d a , e u l i m p a v a a casa e e n g o l i a os desaforos
razão, m e u b o m r a p a z , v a m o s r e g i s t a r as m e n i n a s c o m o da m i n h a cunhada que, para me humilhar, obrigou-me a
disseste. O s n o m e s serão r e g i s t a d o s c o m o dizes só q u e lavar as suas próprias cuecas sujas d e não sei quê p a r e c i d o
v a m o s t e r d e fazer u m a correcçãozinha nos n o m e s delas. c o m m a r m e l a d a , o u então contava t u d o ao T o n i . L a u r a não
N ã o se d i z Eutanásia mas Atanásia e n e m se d i z cesariana e r a f l o r q u e se cheirasse. Se e u não estivesse e m casa à h o r a
mas C e s a r i n a . Deves t e r e m p o l g a d o c o m os l i n d o s n o m e s d o a l m o ç o passava o d i a e m j e j u m ; se não chegasse antes
e, além d o m a i s , a mudança d e u m a l e t r i n h a o u o u t r a não das o i t o não m e d e i x a v a e n t r a r ; se desaparecesse a l g u m a
faz a diferença. coisa, as c u l p a s caíam s o b r e m i m ; se a c o m i d a queimasse,
A c e i t o q u e seja assim, mas m u d a r os n o m e s , n u n c a ! , o u se as m e n i n a s c h o r a s s e m é p o r q u e e u não prestava. Se
e x c l a m o u A n t ó n i o , U m a l e t r i n h a o u o u t r a está b e m , mas o céu trovejasse, a c u l p a e r a d o Sérgio! E u e r a o c u l p a d o
a s e n h o r a deve avisar àqueles funcionários d e n a r i z e m p i - d e todas as desgraças e m e r d a r i a s deste e d e o u t r o m u n d o .
n a d o p a r a n ã o b o t a r e m d e f e i t o n o n o m e das m i n h a s A n t ó n i o b e b i a demais, fazia as suas asneiras, v o m i t a v a a casa
t o d a , d e i x a n d o u m c h e i r o dos d i a b o s d e v ó m i t o e n j o a t i v o
meninas.
e p e g a j o s o p e l a casa e n t r e guisas e c a n t i l e n a s , l a m b i a o

7Q
MARGINAIS . - • EVEL ROCHA

vómito c o m a b o c a c o l a d a ao chão p a r a desespero de L a u r a a c o n t a r p a r t i d a s , v i o E x t e r n a t o ao l o n g e q u e p a r e c i a


e p a r a a m i n h a desgraça, j á q u e t o d a a c u l p a e r a m i n h a : u m a n u v e m q u e se desvanecia c o m o t e m p o , v i o d o u t o r
t e u irmão b e b e p o r t u a causa. N ã o t r a b a l h a s e a i n d a vives Apolinário ensimesmado à p o r t a d a v a r a n d a l e n d o o j o r n a l ,
à custa d o seu sacrifício! v i m e u i m p é r i o d e s o n h o s e m b a c i a d o a cair c o m o u m cas-
A n t ó n i o e r a d o i d o p o r g e m a d a . T o d o s os dias, d e p o i s t e l o d e a r e i a e c h o r e i a m i n h a condição d e adolescente
d o almoço, L a u r a presenteava-o c o m u m a tigelada de a b a n d o n a d o à s o r t e . Talvez fosse m e l h o r assim d o q u e
g e m a d a p o r q u e h o m e m d e l o m b a t e m d e se a l i m e n t a r viver l a v a n d o fraldas e cuecas sujas d e m u l h e r E m p o u c o
d i r e i t o . T u t u , a q u i está a t u a sobremesa p r e f e r i d a ! E u ficava t e m p o , h a b i t u e i - m e à m i n h a n o v a condição. D u r a n t e o d i a ,
às voltas f e i t o cão d e Lázaro à espera q u e ele m e molhasse saía c o m a m a l t a e, às tantas d a m a d r u g a d a , a n d a v a de u m
a b o c a c o m u m a c o l h e r a d a d a sua sobremesa, mas ele e r a l a d o p a r a o u t r o c o m o c a c h o r r o sem d o n o pelas ruas d a
m a n h e n t o d e m a i s . Escarrava d e n t r o d o p r a t o d e g e m a d a R i b e i r a , f a r e j a n d o u m c a n t o p a r a d o r m i r , mas, antes, fazia
p a r a m e enojar e depois sorvia a b a t i d a de ovo e escarro questão d e c e r t i f i c a r q u e q u e a r u a estivesse vazia p a r a t e r
p a c h o r r e n t a m e n t e n u m a risada triunfante. a certeza q u e ninguém i a d e s c o b r i r q u e t i n h a sido e x p u l s o
A nossa relação p i o r a v a dia-a-dia. N o p r i m e i r o d a casa. Q u a l q u e r l u g a r q u e ficasse l o n g e d o s o l h a r e s
d o m i n g o d o c a m p e o n a t o j u v e n i l d e f u t e b o l , os Pitboys críticos dos m o r a d o r e s servia p a r a d o r m i r . U m b u r a c o ,
i a m j o g a r e m P e d r a d e L u m e . L e v a n t e i b e m c e d o e, c o m o u m a v a r a n d a d e u m a casa e m construção, u m a c i s t e r n a
o t e m p o estava f r i o , vesti o blusão d o A n t ó n i o . Q u a n d o a b a n d o n a d a , q u a l q u e r espaço servia. A m i n h a l u t a a seguir
regressei a casa e n c o n t r e i as m i n h a s r o u p a s n u m saco d e seria c o n t r a as minúsculas c r i a t u r a s d a n o i t e . E n q u a n t o
plástico atrás d a p o r t a . A n t ó n i o p a r e c i a t e r i n c o r p o r a d o t e n t a v a d o r m i r , e u t i n h a q u e m e p r o t e g e r das pulgas, dos
t o d o s os d e m ó n i o s deste m u n d o , q u a n d o m e v i u c o m c a r r a p a t o s , dos percevejos, das c e n t o p e i a s , d a fastidiosa
o blusão. N u m a r e n g o c a r r e g a d o d e ó d i o e c r u e l d a d e , serenata dos m o s q u i t o s , q u e p a r e c i a m ter-se j u n t a d o p a r a
disse-me cobras e l a g a r t o s , d e s p i u - m e o blusão, r e g o u - o m e t r a m a r , e d o c h e i r o p o d r e d o chão h ú m i d o d e u r i n a
c o m p e t r ó l e o e q u e i m o u - o . N u n c a m a i s q u e r o ver-te ao a c u m u l a d a . E u acordava c o m os p r i m e i r o s m o v i m e n t o s d o
pé desta casa. D o u - t e d e c o m e r , abusas d a m i n h a m u l h e r d i a . C o m e r não constituía p r o b l e m a , p o i s , q u a l q u e r coisa
e estragas as m i n h a s r o u p a s . Se te a p a n h o ao pé desta casa servia p a r a e n g a n a r o estômago r e s i g n a d o à miséria. U m a
q u e b r o - t e as duas p e r n a s . A l é m d o m a i s , irmão não t e m visita i n u s i t a d a a u m a m i g o à h o r a d o almoço, o u u m f u r t o
d e v e r n e n h u m c o m irmão. i n o c e n t e dava p a r a v e n c e r o d i a . O m o m e n t o m a i s difícil
Dava-me d e c o m e r ? G e r a l m e n t e sobrava p a r a m i m a q u e passei d u r a n t e a q u e l e p e r í o d o f o i q u a n d o , a r r a s t a d o
raspa d a panela, senão t e r i a de c o n t e n t a r c o m a d i e t a de pão p e l a f o m e , a r r o m b e i o c o f r e de esmolas d a i g r e j a de Nossa
e p a p a de t r i g o . T e n t e i resistir, mas l o g o senti q u e se ficasse S e n h o r a das D o r e s . C o n v e r s e i c o m Nossa S e n h o r a e fiz-lhe
mais u m m i n u t o n a q u e l a casa aconteceria u m a desgraça. saber q u e e r a m apenas u m a s p o u c a s m o e d a s q u e não i a m
C o m u m a bolsa d e r o u p a s n a mão e u m coração d e i x a r f a l t a e além d o mais e u e r a u m c a r e n c i a d o . Já não
d e s t r o ç a d o , e u estava e n t r e g u e à m i n h a s o r t e . P a r e c i a dava p a r a e s c o n d e r a m i n h a situação aos p i t b o y s e m b o r a
o fim d o m u n d o . N u n c a t i n h a d e s e j a d o t a n t o a m o r t e desconfiasse q u e t o d o s s a b i a m o q u e estava a a c o n t e c e r
c o m o n a q u e l e m o m e n t o . V i os rapazes j o g a n d o cartas n a D e c i d i q u e n o d i a s e g u i n t e c o n t a v a t u d o . A i n d a não tinha
P r a c i n h a d e Q u e b r ô d , v i os h o m e n s à p o r t a d a S e n t i n a e n c o n t r a d o u m p o u s o fixo p a r a d o r m i r T i n h a d e r o d e a r a

7R
MARGINAIS_ — EVEL ROCHA

Ribeira F u n d a inteira p r o c u r a n d o u m aconchego para me p a l m a d a m ã o e s q u e r d a , misturámos o nosso sangue n u m


p r o t e g e r d a terrível geada q u e m e doía até aos ossos e v e r c o m p r o m i s s o d e h o n r a p a r a a j u d a r u n s aos o u t r o s c o m o
se acalmava a tosse d e c a c h o r r o q u e fazia d o e r o estômago. a c o n t e c i a nos filmes. Fusco tinha a b a n d o n a d o a escola e a
Já s e m forças, p e l a f e b r e q u e m e c o n s u m i a , a j u n t e i m e u s casa havia d o i s meses. O seu p a i t i n h a sido preso p o r v i o l a r
ossos n u m sítio q u a l q u e r a própria filha d e d o z e anos. Fusco estava c h a t e a d o c o m a
A c o r d e i c o m o sol d e s c a r a d o d o m e i o - d i a . M e u c o r p o situação d a família q u e passava m o m e n t o s d e a p e r t o visto
estava m o l h a d o e f e d o r e n t o , p o i s , o l u g a r o n d e tinha per- q u e o p a i e r a o único q u e t r a b a l h a v a .
n o i t a d o e r a o n d e os bêbados u r i n a v a m . D e v i a m t e r - m e O t r i b u n a l c o l o c o u - o n a c a d e i a e d e i x o u - n o s a passar
r e g a d o a n o i t e t o d a . C o m o se não bastasse, o chão estava f o m e , l a m e n t a v a Fusco.
c o m m e i a dúzia de baratas esborrachadas. N o i t e d e m e r d a , Este caso e x p l o d i u c o m o u m b a r r i l de pólvora e serviu
p ô ! Se e u p e g o u m d i a b o q u e m e u r i n o u . . . p a r a c r i s t a l i z a r a figura d o D o u t o r A p o l i n á r i o q u e advo-
S e n t i u m a c o c e i r a desesperada p e l o c o r p o , p r o c u r e i g o u o caso e m f a v o r d a vítima. Tantas vezes esta história
o B e t o Vesgo q u e , s e n t a d o d e cócoras c o m u m espeto d e f o i c o n t a d a q u e a c a b o u p o r ser g u a r d a d a n o coração das
p a u n u m a minudência cirúrgica, m e a r r a n c a v a os p e r c e - g e n t e s c o m o u m péssimo e x e m p l o d o tigre q u e c o m e sua
vejos e c a r r a p a t o s q u e p o n t i l h a v a m o m e u c o r p o , lacrados própria cria. F o i assim q u e n o t r i b u n a l a história t e r m i n o u :
c o m o l a p a . E n q u a n t o e x p u r g a v a os m a l d i t o s insectos, e u O D o u t o r Apolinário, a d v o g a d o d e defesa d a m e n i n a
contava-lhe o q u e t i n h a a c o n t e c i d o c o m i g o , e n t r e m e a n d o d e d o z e anos, o l h o u p a r a o a c u s a d o s o b r a n c e i r a m e n t e e,
a conversa c o m u m palavrão q u a n d o m e espetava o espeto d o a l t o d a sua b a t i n a p r e t a , i n t e r r o g o u - o , Então, s e n h o r
p a r a d e s a n i n h a r as parasitas. f u l a n o , c o m o t u d o aconteceu?
B e t o Vesgo e r a l i x e i r o a s s u m i d o . C o m p r o u u m car- B e m , s e n h o r d o u t o r j u i z . . . , m u r m u r o u o desgraçado.
r i n h o d e m ã o a prestações, a d a p t o u - l h e u m c o n t e n t o r e Eu...
p a s s o u a r e c o l h e r o l i x o n o b a i r r o d a Pretória e m casa Espera, c o r r i g i u - o o a d v o g a d o , O j u i z é aquele s e n h o r
dos « p r i m o s » . N o fim d o mês, os m o r a d o r e s p a g a v a m - l h e q u e está à sua f r e n t e .
e m d i n h e i r o e vestuários. P o r ser u m r a p a z e x p a n s i v o e S i m , s e n h o r C o m o e u i a d i z e n d o , e u apenas v e r i f i q u e i .
brincalhão, g a n h o u a s i m p a t i a das pessoas d o b a i r r o q u e O senhor verificou?
l h e d a v a m os restos d e c o m i d a e m bolsas d e plástico q u e Q u e r o dizer, apalpei-lhe c o m o ovo, desculpe, testículo.
trazia p a r a casa. Para nós, os restos d e c o m i d a e r a m m o t i v o O réu a p a l p o u - l h e !
d e a l e g r i a , assim poupávamos o p o u c o q u e ganhávamos. S i m , m i n h a intenção e r a v e r i f i c a r se ela e r a v i r g e m .
V e r i f i c a r ! Ó i m e n s i d ã o d o s céus! Ó i n f i n i d a d e d e
C o m quase dezasseis anos, e u estava e n t r e g u e a m i m p u r e z a ! , o s e n h o r f u l a n o só v e r i f i c o u ! O s e n h o r f u l a n o t e m
m e s m o . Pensei e m p r o c u r a r P i a n i s t a p a r a m e ajudar, mas o d e s c a r a m e n t o d e c h a m a r «verificar» à violência r e p e t i d a
n ã o e r a a q u e l a a v i d a q u e e u q u e r i a . Só d e p e n s a r e m vezes s e m c o n t a c o n t r a a sua própria filha. Este energú-
v e n d e r d r o g a m e u coração descompassava. F u i m o r a r n u m m e n o p a i , este p e r v e r s o e x e m p l a r d e figura p a t e r n a l , este
p a r d i e i r o o n d e B e t o e Fusco v i v i a m . L e i a v i v i a c o m a mãe, vómito da mais baixa natureza h u m a n a t e m a coragem
mas passava a m a i o r p a r t e d o t e m p o c o n n o s c o . F i z e m o s d e c h a m a r «verificar» à i g n o m í n i a violação s e x u a l a q u e
u m p a c t o d e i r m a n d a d e . C o m u m c o r t e d e lâmina n a s u b m e t e u a sua própria filha p o r várias vezes.

7R 7 7
MARGINAIS ' EVEL ROCHA

O d i s c u r s o i n f l a m a d o d o s e n h o r A p o l i n á r i o fez c o m e fiquei g e l a d o d e v e r g o n h a . T e n t e i disfarçar-me, p o r é m ,


q u e o a c u s a d o se i r r i t a s s e , g r i t a n d o d e s c o n t r o l a d a m e n t e . e l a o l h o u - m e f r i a m e n t e e c o n t i n u o u o c a m i n h o c o m o se
S e r v i d e l a , s i m ! S e r v i p o r q u e e u não estava a c r i a r p i n t o não m e conhecesse, É m e l h o r q u e seja assim. A q u e l e não é
p a r a pássaro c o m e r ! p i t o p a r a o t e u c a n h o t o , man, tentava consolar-me o Fusco,
Desde p e q u e n o , sabíamos q u e Fusco era d i f e r e n t e de t o c a n d o sacana. Move de p o b r e z a . Yah, man, ninguém gosta
nós. Havia m o m e n t o s e m que ele ficava d e p r i m i d o , fechava-«e d e nós, m a r i m b a - t e n e l a o u então estás f o d i d o . D e s c o n t r a i ,
d e n t r o de si e m devaneios, f i i m a v a demais, pintava o cabelo man. Essa diaba a i n d a te c o m e nas mãos, p ô .
c o m cores enervantes, cortava as mangas às camisolas e vestia S e n t i u m vazio n o p e i t o , u m a azia e x t e n u a n t e q u e
calcinhas de m u l h e r . Fusco f o i a p r i m e i r a pessoa que e u v i c o m f e r i a m e u o r g u l h o . T r a b a l h e i o resto d o d i a , e m p r e g a n d o
objectos de m e t a l enfiados e m lugares proibidos c o m o a h n g u a todas as m i n h a s forças p a r a t e n t a r e s q u e c e r a I z i l d a , mas
e o m a m i l o . Apesar d o seuj e i t o a m u l h e r a d o , ele era destemido m e u coração e m b a l a v a - m e e m desatinos, m e r g u l h a d o n o
e trabalhador; ajudava a descarregar as carrinhas de mercadoria s o f r i m e n t o d e u m a m o r platónico e j u v e n i l .
e conseguia sempre um jd) para os amigos chegados, que não Fusco gostava de t o m a r b a n h o c o m as moças p a r a soltar
e r a m m u i t o s . íamos ao p o r t o d a Palmeira, c o m o ajudantes, seu l a d o f e m i n i n o e e x p a n d i r o seu j e i t o e f e m i n a d o , p a r a
buscar mercadorias e, n o c a m i n h o de volta, atirávamos algu- vestir as r o u p a s d e m u l h e r e achar-se e n t r e as mais gostosas.
mas caixas de leite, de s u m o e de outros alimentos pela b o r d a Ele fazia questão de l e m b r a r a todos q u e era u m a m u l h e r
f o r a para ser r e c o l h i d o depois e v e n d i d o nas lojas. E u n u n c a n u m c o r p o de h o m e m . Segredou-me q u e andava a d o r m i r
fiii ladrão, furtava p a r a adiar a f o m e , m e n t i a p o r u m p u n h a d o c o m os h o m e n s mais ricos d a ilha. D e pulso caído, desabafava.
de nada, mas não p a r a p r e j u d i c a r ninguém. Fusco aparecia E s t o u f a r t o desses coronéis a r m a d o s e m finórios! Armam-se
sempre c o m d i n h e i r o . N u n c a nos dizia o n d e encontrava tanta e m finórios, f a l a m d e b o n s m o d o s e, n o escuro p r a t i c a m as
massa, c o n t u d o não era difícil adivinhar a o r i g e m . Ele sempre piores barbaridades. D i z e m q u e sou mais boa do q u e essas
f o i u m rapaz de expediente. Por o n d e fosse, t i n h a sempre n o m u l h e r e z i n h a s e m p i r i q u i t a d a s de c a r i n h a margosa, disse-me,
b o k o três bolinhas de b e r l i n d e pois, era u m exímio j o g a d o r de o s t e n t a n d o as finas e p e l u d a s p e r n a s entrelaçadas. F i q u e i
«matas» e fartava-se de pelar os rapazes n o j o g o . N o Externato, embasbacado c o m a sua c o r a g e m e m assumir a sua h o m o s -
e m todos os intervalos, nos fiiros e nas aulas q u e pancava, lá sexualidade mais cedo d o q u e e u imaginava. Ele sonhava c o m
estava ele j o g a n d o pelada. Fusco t i n h a u m t i r o certeiro e sabia o d i a e m q u e havia de se t r a n s f o r m a r e m m u l h e r , de fazer
enguiçar os adversários de m o d o a ganhar as apostas. Antes de operação plástica e de ter u m p a r de mamões a r r e d o n d a d o s ;
d o r m i r , ele lavava as três bolinhas de v i d r o c o m saliva e engolia- havia d e acabar c o m as curvas masculinas d a coxa e os m a l -
os. Estômago é lugar seguro, dizia. N o d i a seguinte, depois de ditos pelos q u e ameaçavam c o b r i r - l h e o rosto. Fusco gostava
defecar, apanhava as bolinhas e metia-os n o bolso. d e h o m e n s altos e musculosos, q u e r i a ter u m só pára ele e,
E l e s u g e r i u q u e alugássemos u m q u a r t o p a r a os três depois dos m o m e n t o s d e gozo, deitar-se n o p e i t o c a b e l u d o
e saíssemos d a q u e l a casa s e m t e c t o o n d e B e t o d o r m i a . e d o r m i r o sono dos justos.
A l u g á m o s u m q u a r t o q u e tinha u m a casa d e b a n h o e u m a Assim q u e o d o u t o r Melício soube d a condição f e m i -
p e q u e n a v a r a n d a e baptizámo-lo c o m o n o m e d e g u e t o . n i n a de Fusco, disse q u e era capaz de reabilitá-lo. O médico
N u m a f a s t i d i o s a t a r d e , e n q u a n t o e u descarregava a m a r c o u - l h e o p r i m e i r o e n c o n t r o n o seu consultório e depois
c a r r i n h a d e N h ô T e o d o r o , d e p a r e i c o m a professora I z i l d a de u m a conversa amistosa e f l o r i d a , o médico disse-lhe q u e o

7R 7Q
MARGINAIS - EVEL ROCHA

t r a t a m e n t o era u m a terapia p a r a i n i b i r o desejo homossexual.


Parece u m t a n t o o u q u a n t o c o m p l i c a d o , mas é m u i t o simples. X
A t e r a p i a exige força d e v o n t a d e e e m p o u c o t e m p o estarás
desfrutando o gozo d e ter n q t e u o m b r o o c h e i r o d o p e r f u m e
das m o c i n h a s d e Espargos. É verdade, E m a n u e l . Fusco inter-
r o m p e u o d o u t o r Melício e disse, P o r favor, s e n h o r d o u t o r ,
c h a m a - m e d e Fusco, gosto mais deste n o m e .
S i m , Fusco, e u sei. N ã o sabes d o g o z o q u e é t e r u m a
crioulinha n o peito. O Emanuel é u m jovem...
P o r favor, s e n h o r d o u t o r , t r a t a - m e p o r Fusco! G o s t o L e m b r o - m e c o m o se fosse h o j e , a manhã e m q u e
q u e m e c h a m e m d e Fusco. C a d a u m é o q u e é, p ô . J o r g i n h o b a t e u à p o r t a d o gueto, f r e n e t i c a m e n t e , p a r a m e
Pois, então, Fusco, vais ficar neste q u a r t o f o l h e a n d o d a r a notícia q u e ele e e u tínhamos sido escolhidos p a r a
esta revista pornográfica e l o g o assim q u e sentires v o n t a d e , fazer u m e x a m e m é d i c o e, se t u d o corresse b e m , iríamos
j á sabes, despe as calças, põe-te e m posição e c h a m a p o r j o g a r n o escalão j u v e n i l d o Belenenses, e m P o r t u g a l , e mais
m i m . Fusco não estava a e n t e n d e r n a d a , c o n t u d o a c e i t o u a tarde, q u e m sabe, daríamos o salto p a r a a e q u i p a dos nossos
p r o p o s t a d o médico p a r a ver c o m o t u d o acabaria. Será q u e sonhos. E r a a m i n h a g r a n d e o p o r t u n i d a d e d e realizar m e u
o d o u t o r m e q u e r comer? Ele, m e i o e n c a b u l a d o , começou s o n h o d e ser estrela dos relvados. E u sabia q u e tinha t u d o
a achar graça n a q u e l a cena. A l g u m a s páginas depois, Fusco, p a r a v i n g a r n o f u t e b o l e, se m e e s c o l h e r a m , e r a u m sinal
c o m o c o r p o e m brasas, c h a m o u p e l o médico. Sem p e r d e r q u e r e c o n h e c i a m as m i n h a s p o t e n c i a l i d a d e s . Chegámos à
t e m p o , o d o u t o r Melício e n t r o u n o q u a r t o e a p l i c o u u m tre- Policlínica e m c o r r e r i a e lá estava o português Carlos A l b e r t o
m e n d o c h o q u e eléctrico n a p o l p a e n f u n a d a d e Fusco q u e , e o médico q u e havia d e nos e x a m i n a r E u f u i o p r i m e i r o a
aos u r r o s , saltou d e d o r e desespero. F u l o q u e n e m u m b o i fazer os testes físicos: despi a r o u p a , fiz alguns exercícios sob
de t o u r a d a . Fusco c o r r i a às voltas c o m as mãos a p e r t a n d o a a orientação d o português, o m é d i c o m e d i u - m e a tensão,
p o l p a e m brasas, c u s p i n d o desaforos. Saltou ao pescoço d o m a n d o u - m e e n c h e r os pulmões d e ar, a p a l p o u - m e dos pés à
médico p a r a o esfolar vivo, salivando cobras e lagartos. cabeça, m a n d o u - m e q u e subisse a u m a balança, ligou-me a u m
D e i x a - m e e x p l i c a r : i s t o é t e r a p i a p o r aversão, i n i b e a e m a r a n h a d o d e fios e, n o fim, p e d i u - m e q u e esperasse lá fora.
v o n t a d e , d e s e n c o r a j a e a j u d a a p e r d e r o hábito. D e p o i s f o i a vez de J o r g i n h o . D u r a n t e o m o m e n t o d a espera,
As explicações d o d o u t o r n ã o o c o n v e n c e r a m , m a s e u antecipava o f u t u r o : sonhava c o m a f a m a nos relvados d o
p e l o m e n o s a m o l e c e u a s u a i r a : H á b i t o d e u m bidene, m u n d o . O u v i a o g r i t o n o estádio, as bandeiras d r a p e j a n d o ,
e s t u p o r d e i n f e r n o ! Q u e m l h e disse q u e q u e r o p e r d e r as faixas chapadas c o m m e u n o m e . . . E u tinha e m m e n t e
v o n t a d e ? V o c ê q u e r i a m a t a r - m e , não é? F i l h o d a m i n h o t a ! q u e , l o g o assim q u e e u estivesse c o m o passaporte n a mão, a
Godemol - Fusco a t i r o u d e rajada o seu arsenal d e palavrões. p r i m e i r a coisa q u e fazia era dizer ao d o u t o r Apolinário que, a
Q u e r i a l i x a r - m e , pá! C a d a u m é o q u e é. O d o u t o r gosta p a r t i r d a q u e l e m o m e n t o , q u e se contentasse e m ver-me p e l a
d e q u e i j o e e u g o s t o d e d o c e , o d o u t o r gosta d e m u l h e r e s televisão, mas u m d i a havia d e v o l t a r p a r a ajustar contas c o m
e e u g o s t o d e h o m e n s , marú, e x c l a m a v a Fusco a i n d a m e i o ele. M e u coração p u l a v a d e t a n t a emoção, q u e não prestei
a t a r a n t a d o , c a d a u m é o q u e é! atenção ao qúe se passou d u r a n t e os exames.

m 81
MARGINAIS EVEL ROCHA

Disseram-nos p a r a v o l t a r n o d i a s e g u i n t e p a r a r e c e b e r M e u c h o r o f o i tão f o r t e q u e a multidão e x p e c t a n t e q u e


os r e s u l t a d o s . A notícia e s p a l h o u c o m o f a r e l o ao v e n t o . estava n o e x t e r i o r d a policlínica fez u m silêncio d e e n t e r r o .
B e t o fazia d e repórter. E l e dava r e l a t o dos j o g o s e e n g r a n - E u m o r r i a n a q u e l e m o m e n t o ! N ã o sei o q u e a c o n t e c e u
d e c i a as j o g a d a s imaginárias q u e a c a b a v a m s e m p r e c o m d e p o i s . F i q u e i imóvel e x t r a v a s a n d o a m i n h a d o r : n a q u e l e
g o l o s d e « a n t a l o g i a » , a r r a n c a n d o aplausos d a q u e l e s q u e a n o , quase f u i v i o l a d o p o r u m polícia, p e r d i a zizi, p e r d i
nos encorajavam a prosseguir, fazendo votos para q u e o d i r e i t o à escola, v i a m i n h a mãe v i a j a n d o p a r a a t e r r a
pudéssemos e n g r a n d e c e r o n o m e d a R i b e i r a F u n d a . F o i l o n g e , m e u irmão e x p u l s o u - m e d e casa, a professora I z i l d a
u m d i a d e glória. h u m i l h o u - m e à f r e n t e d e t o d o s e, p a r a cúmulo das desgra-
N ã o p r e g u e i os o l h o s d u r a n t e a n o i t e . M e u s o n h o ças, r e c e b i a notícia q u e não t i n h a f u t u r o c o m o j o g a d o r d e
estava m a i s p e r t o d o q u e n u n c a . V o u ser u m j o g a d o r d e futebol. M e u c o r p o era p e q u e n o demais para caber tanta
verdade e ninguém poderá r o u b a r o m e u s o n h o . Vejo-me angústia e s o f r i m e n t o .
a s u b i r os d e g r a u s d o túnel d o s estádios ao r u b r o , p i s o a N a q u e l a t a r d e , i s o l a d o e a f o g a d o nos meus pensa-
r e l v a , as objectivas c o n v e r g e m - s e n a m i n h a direcção. O m e n t o s , saí p e l a s r u a s d e E s p a r g o s . M e u s o l h o s h ú m i d o s
j o g o começa, m e u coração a c e l e r a d o bate ao r i t m o d o s d e lágrimas d a v a m - m e a visão d e u m m u n d o t u r v o e
aplausos dos adeptos, q u e a u m a voz g r i t a m o m e u n o m e . . . o p a c o e t o d a s as m i n h a s m e m ó r i a s t i n h a m a r o u p a g e m
N o d i a s e g u i n t e , lá estávamos nós, J o r g i n h o e e u , mais d a miséria e d o d e s g o s t o , s e n t i a q u e e r a u m p e s o p a r a a
u m a multidão d e c u r i o s o s . O português p e d i u - n o s p a r a s o c i e d a d e , f a r t a d a m i n h a presença. Saí a n d a n d o à t o a .
e n t r a r D e s f i o u - m e u m rosário d e p r o b l e m a s q u e e u - t i n h a , A l g o m e puxava p a r a o m e i o d a estrada e meus ouvidos
mas s e m p r e c r i a n d o e m m i m a esperança d e q u e e u e r a e r a m c o m o u m a sala c h e i a d e vozes, q u e m e a c u s a v a m
u m e l e i t o . M e u coração b a t i a f e i t o u m l o u c o a l u c i n a d o , e m e m o s t r a v a m q u e a única c o i s a q u e m e restava e r a
e n q u a n t o o o l h e i r o m e sentenciava, Gostei i m e n s o dos teus a t i r a r - m e p a r a b a i x o d e u m c a r r o . As r o d a s d o c a m i ã o
d r i b l e s , t u tens u m p o t e n c i a l i n v u l g a r p a r a u m p u t o d o que v i n h a desabrido seria o remédio para t r i t u r a r a
t e u t a m a n h o , tens estaleca d e c r a q u e , p o r é m estás m u i t o angústia q u e assolava a m i n h a a l m a , p a r a s u f o c a r a d o r
a b a i x o d o p e s o , o d e d ã o d o p é d i r e i t o está f r a g m e n t a d o , q u e a t o r m e n t a v a os m e u s s e n t i d o s e, n a c e r t a , q u e n a
tens a l g u m a s m a n c h a s n o p u l m ã o e r e c e i o q u e venhas a c a l ç a d a d e P r e g u i ç a f i c a r i a m e u c o r p o e s m a g a d o , as
p a r a r d e j o g a r , p o r isso vais t e r d e f i c a r até o p r ó x i m o a n o m a r c a s d e s a n g u e i m p r e s s a s n o asfalto t e s t e m u n h a r i a m a
- t e m p o suficiente para recuperares. - O Jorge vai comigo. m i n h a sina e todos h a v e r i a m de l a m e n t a r o m e u destino.
A q u e l a s palavras z u n i r a m nos m e u s o u v i d o s c o m o cor- A t i r e i - m e c e g a m e n t e p a r a b a i x o d o camião p a r a p ô r fim
rentes de f e r r o q u e m e p r e n d e r i a m para sempre naquele à m i n h a desgraça, p o r é m , o c o n d u t o r t r a v o u a t e m p o d e
l u g a n S e n t i q u e m e t i r a v a m o m e u único r e c u r s o capaz d e evitar a m i n h a m o r t e . O choque d o carro provocou-me
m e l i v r a r d a miséria q u e m e cercava e o « p r ó x i m o a n o » a l g u n s e s f o l a m e n t o s , m a s n a d a q u e m e i m p e d i s s e d e sair
significava n u n c a mais. c o r r e n d o a s s u s t a d o , N e m a m o r t e m e q u e r ! Restava-me
P o r favor, s e n h o r português, não m e tire a única espe- resignar à m i n h a condição de m a r g i n a l e viver c o m o
rança q u e m e resta d e ser g e n t e ! N ã o faça isso c o m i g o , não. Deus queria. Ensopei a m i n h a tristeza c o m grogue e
P r o m e t o q u e f a r e i t u d o p a r a c u r a r esse d e d o e s t o r t e g a d o e passei a a c r e d i t a r n a f o r ç a d a d r o g a c o m o o c a m i n h o
essas m a n c h a s d e não-sei-quê m a s leve-me c o m o s e n h o r ! d a r e d e n ç ã o . F u i u m b o m m e n i n o até o n d e as m i n h a s

8?
MARGINAIS .
. EVEL ROCHA

Disseram-nos p a r a v o l t a r n o d i a seguinte p a r a r e c e b e r M e u c h o r o f o i tão f o r t e q u e a multidão e x p e c t a n t e q u e


os r e s u l t a d o s . A notícia e s p a l h o u c o m o f a r e l o ao v e n t o . estava n o e x t e r i o r d a policlínica fez u m silêncio d e e n t e r r o .
B e t o fazia d e repórter. E l e dava r e l a t o dos j o g o s e e n g r a n - E u m o r r i a n a q u e l e m o m e n t o ! N ã o sei o q u e a c o n t e c e u
d e c i a as j o g a d a s imaginárias q u e a c a b a v a m s e m p r e c o m d e p o i s . F i q u e i imóvel e x t r a v a s a n d o a m i n h a d o r : n a q u e l e
g o l o s d e « a n t a l o g i a » , a r r a n c a n d o aplausos d a q u e l e s q u e a n o , quase f u i v i o l a d o p o r u m polícia, p e r d i a zizi, p e r d i
nos encorajavam a prosseguir, fazendo votos para q u e o d i r e i t o à escola, v i a m i n h a mãe v i a j a n d o p a r a a t e r r a
pudéssemos e n g r a n d e c e r o n o m e d a R i b e i r a F u n d a . F o i l o n g e , m e u irmão e x p u l s o u - m e d e casa, a professora I z i l d a
u m d i a d e glória. h u m i l h o u - m e á f r e n t e d e t o d o s e, p a r a cúmulo das desgra-
N ã o p r e g u e i os o l h o s d u r a n t e a n o i t e . M e u s o n h o ças, r e c e b i a notícia q u e não t i n h a f u t u r o c o m o j o g a d o r d e
estava m a i s p e r t o d o q u e n u n c a . V o u ser u m j o g a d o r d e futebol. M e u c o r p o era p e q u e n o demais p a r a caber tanta
verdade e ninguém poderá r o u b a r o m e u s o n h o . Vejo-me angústia e s o f r i m e n t o .
a s u b i r os d e g r a u s d o túnel d o s estádios ao r u b r o , p i s o a N a q u e l a tarde, isolado e afogado nos meus pensa-
r e l v a , as objectivas c o n v e r g e m - s e n a m i n h a direcção. O m e n t o s , saí pelas r u a s d e E s p a r g o s . M e u s o l h o s h ú m i d o s
j o g o começa, m e u coração a c e l e r a d o b a t e a o r i t m o d o s d e lágrimas d a v a m - m e a visão d e u m m u n d o t u r v o e
aplausos d o s adeptos, q u e a u m a voz g r i t a m o m e u n o m e . . . o p a c o e t o d a s as m i n h a s m e m ó r i a s t i n h a m a r o u p a g e m
N o d i a s e g u i n t e , lá estávamos nós, J o r g i n h o e e u , mais d a miséria e d o d e s g o s t o , s e n t i a q u e e r a u m p e s o p a r a a
u m a multidão d e c u r i o s o s . O português p e d i u - n o s p a r a s o c i e d a d e , f a r t a d a m i n h a presença. Saí a n d a n d o á t o a .
e n t r a r D e s f i o u - m e u m rosário d e p r o b l e m a s q u e e u - t i n h a , A l g o m e puxava para o m e i o d a estrada e meus ouvidos
mas s e m p r e c r i a n d o e m m i m a esperança d e q u e e u e r a e r a m c o m o u m a sala c h e i a d e vozes, q u e m e a c u s a v a m
u m e l e i t o . M e u coração b a t i a f e i t o u m l o u c o a l u c i n a d o , e m e m o s t r a v a m q u e a única c o i s a q u e m e r e s t a v a e r a
e n q u a n t o o o l h e i r o m e sentenciava. Gostei i m e n s o dos teus atirar-me p a r a b a i x o de u m c a r r o . As rodas d o camião
d r i b l e s , t u tens u m p o t e n c i a l i n v u l g a r p a r a u m p u t o d o q u e v i n h a desabrido seria o remédio p a r a t r i t u r a r a
t e u t a m a n h o , tens estaleca d e c r a q u e , p o r é m estás m u i t o angústia q u e assolava a m i n h a a l m a , p a r a s u f o c a r a d o r
a b a i x o d o p e s o , o d e d ã o d o p é d i r e i t o está f r a g m e n t a d o , q u e a t o r m e n t a v a os m e u s s e n t i d o s e, n a c e r t a , q u e n a
tens a l g u m a s m a n c h a s n o p u l m ã o e r e c e i o q u e v e n h a s a calçada d e P r e g u i ç a ficaria m e u c o r p o e s m a g a d o , as
p a r a r d e j o g a r , p o r isso vais t e r d e ficar até o p r ó x i m o a n o m a r c a s d e s a n g u e i m p r e s s a s n o asfalto t e s t e m u n h a r i a m a
- t e m p o suficiente para recuperares. - O Jorge vai comigo. m i n h a sina e todos haveriam de l a m e n t a r o m e u destino.
A q u e l a s palavras z u n i r a m n o s m e u s o u v i d o s c o m o cor- A t i r e i - m e c e g a m e n t e p a r a b a i x o d o c a m i ã o p a r a p ô r fim
rentes de f e r r o q u e m e p r e n d e r i a m para sempre naquele à m i n h a desgraça, p o r é m , o c o n d u t o r t r a v o u a t e m p o d e
l u g a r S e n t i q u e m e t i r a v a m o m e u único r e c u r s o capaz d e evitar a m i n h a m o r t e . O choque d o carro provocou-me
m e l i v r a r d a miséria q u e m e cercava e o « p r ó x i m o a n o » alguns esfolamentos, mas n a d a q u e m e impedisse de sair
significava n u n c a mais. c o r r e n d o assustado. N e m a m o r t e m e q u e r ! Restava-me
P o r favor, s e n h o r português, n ã o m e tire a única espe- resignar à m i n h a condição de m a r g i n a l e viver c o m o
rança q u e m e resta d e ser g e n t e ! N ã o faça isso c o m i g o , não. Deus queria. E n s o p e i a m i n h a tristeza c o m grogue e
P r o m e t o q u e f a r e i t u d o p a r a c u r a r esse d e d o e s t o r t e g a d o e passei a a c r e d i t a r n a f o r ç a d a d r o g a c o m o o c a m i n h o
essas m a n c h a s d e não-sei-quê m a s leve-me c o m o s e n h o r ! d a r e d e n ç ã o . F u i u m b o m m e n i n o até o n d e as m i n h a s

8?
MARGINAIS .

forças m e l e v a r a m , d e i x e i d e a c r e d i t a r n o f u t u r o , d e i x e i endoidecidas e nós ríamos n u m riso p r o v o c a n t e , e n q u a n t o


d e a c r e d i t a r nas pessoas e l e v a n t e i n o m e u í n t i m o u m lhes beliscava as ancas e m p a n d e i r a d a s . M a s deu-se m a l ao
altar inexpugnável para m i m m e s m o o n d e e u era o r e i , i n s u l t a r o E m b a l a d o . E m b a l a d o era o bêbado mais desati-
o único capaz de m u d a r o m e u próprio d e s t i n o . n a d o d e t o d a a r e d o n d e z a . Q u a n d o a m a l a n d r a g e m troçava
C o m a i d a d e J o r g i n h o p a r a P o r t u g a l e c o m a desi- dele, e r a l o g o u m pé-de-vento: arremessava pedras e m todas
lusão d o m e u d e d o d i r e i t o e s t o r t e g a d o , r e s o l v i não j o g a r as direcções e quebrava t u d o à sua volta. G a n h o u o título d e
mais. A e q u i p a d e f u t e b o l d o s Pitboys d e s a p a r e c e u , mas E m b a l a d o p o r q u e c o r r i a desgovernado e só parava depois
continuámos a ser u m g r u p o imbatível p o r o n d e passás- d e se esbarrar c o n t r a q u a l q u e r coisa. Desta vez, e s b a r r o u
semos, fosse à p o r t a d e u m bar, n o c i n e m a o u e m q u a l q u e r c o n t r a B e t o Vesgo e a multidão parecia divertir-se c o m isso.
b e c o d e Espargos, falíamos j u s ao n o m e d e b r i g u e n t o s , A g r i t a r i a d a multidão afiançou-lhe q u e o h o m e m n ã o estava
derrubávamos q u a l q u e r u m q u e n o s aparecesse ã f r e n t e . p a r a meias medidas. E m b a l a d o arrancou-lhe d o chão p e l a
Andávamos a r m a d o s c o m pedaços d e c o r r e n t e s , p a u s e g o l a d a camisa, q u e se esfarrapava p e l a violência, e a t i r o u - o
navalhas afiadas; B e t o a b r i a garrafas d e cerveja c o m seus ao chão d e c i d i d o e m arrancar-lhe o o l h o rijo às dentadas,
d e n t e s aguçados. P i a n i s t a sabia forçar u m a p o r t a p a r a p o r é m , s u b i t a m e n t e , m u d o u d e ideias e l e v a n t o u c o m as
r o u b a r galinhas, A d i l s o n não e r a i n t e l i g e n t e , mas t i n h a duas mãos u m p e n e d o d e p e d r a d o t a m a n h o d e u m a b o l a
a cabeça mais d u r a q u e u m a r o c h a , p a r e c i a ser d e betão de f u t e b o l p a r a esmagar a cara d o infeliz preso e n t r e as suas
a r m a d o - vxma testada d e l e fazia m a i s estragos q u e u m pernas ossudas. I n s t i n t i v a m e n t e , atirei-me sobre o bêbado
m a r t e l o ; Fusco, m e s m o n o s e u j e i t o a m u l h e r a d o , sabia a t e m p o d e desviar a direcção d a p e d r a que se despedaçou
m a n e j a r u m a navalha mais q u e ninguém. m e s m o ao l a d o d a cabeça d e Beto. Beto levantou-se c o m o
N a nossa v i d a escrava e n e g r a d e p o b r e havia sempre u m r a i o e desapareceu n a n u v e m d e poeira, d e i x a n d o u m
u m a trégua p a r a r o m a r i a s . A festa d e São P e d r o e m Hortelã rastro d e u r i n a p e l o c a m i n h o . Encontrámo-lo n o g u e t o c o m
t i n h a m u i t a rifa q u e e r a m autênticos calotes para os ingénuos, o coração aos p u l o s , a g r a d e c e n d o a São P e d r o p o r t e r salvo
mas, e m compensação, os t a b u l e i r o s das fatiotas, dos t o r - a sua vida. São P e d r o coisa n e n h u m a , devias era agradecer-
resmos, d o p e i x e f r i t o e das cachupadas, a c o m p a n h a d o s d e -me a m i m p o r ter desviado aquele t o r p e d o de c i m a d a t u a
v i n h o , d e cerveja e d e gi^ogue « m e r d ã o » , a n i m a v a m a g e n t e cabeça! Vesgo, n u m o l h a r t o r t o e choroso, e m e n d o u : f o i São
q u e v i n h a d e t o d a a p a r t e . O clímax d a festa centrava-se n a P e d r o q u e te m a n d o u , p r i m o !
d i s p u t a e n t r e os t a m b o r e i r o s d e Santo Antão e São N i c o l a u .
Cada g r u p o achava q u e a sua b a t i d a e r a mais ritmada e mais N o d i a e m q u e e u c o m p l e t a v a dezassete anos,
sofisticada q u e a o u t r a e o resultado era u m caos. Para mostrar a m a l t a o r g a n i z o u u m a j a n t a r a d a n o gueto s ó p a r a
genica e compasso, b a t i a m os paus n o s t a m b o r e s n u m r i t m o as pessoas m a i s c h e g a d a s . F u s c o d e c i d i u c u i d a r d o s
e n s a n d e c i d o até à exaustão. Mas, n o fim, t u d o acabava e m p r e p a r a t i v o s e disse—nos q u e n a q u e l a n o i t e a p r e s e n -
b e m , d e i x a n d o o tira-teimas p a r a o a n o q u e v e m . Pianista t a r i a o seu n a m o r a d o à m a l t a , acabando de vez c o m
encarregava-se d e esvaziar os bolsos dos bêbados q u e mer- o mistério de q u e m e r a o seu parceiro. B e t o Vesgo
g u l h a v a m n o p r o f u n d o s o n o d e p e d r a , rodeados de moscas fez a p r o m e s s a q u e t o d a a g a l i n h a que h a v í a m o s d e
fazendo festa à baba q u e escorria. Beto Vesgo botava defeito às g r e l h a r seria p o r sua « c o n t a » e Pianista p r o n t i f i c o u - s e
m u l h e r e s desenxabidas q u e se rebolavam ao s o m das rabecas e m custear a bebida.
MARGINAIS : ^ ^ EVEL ROCHA

M i m a f o i a p r i m e i r a convidada a chegar ao gueto. T r o u x e c o m o t o d o o b o m cristão, f u i ao seu f u n e r a l . E l a estava tão


u m b o l o d e ananás q u e dizia ser a m a i o r surpresa d a n o i t e , gorda que tiveram de quebrar u m a parte da parede para
mas a curiosidade de todos e m saber q u e m era o n a m o r a d o de e n t r a r c o m o caixão q u e a p a r e n t a v a u m a m a l a a m e r i c a n a .
Fusco relegou a surpresa para segundo plano. Finalmente, apa- D u r a n t e o n o j o , os rapazes m a n h o s o s não d e i x a v a m a casa
r e c e u Fusco d e mãos dadas c o m o professor R u f i n o l F o i u m a d a d e f u n t a , e n q u a n t o não esvaziassem a última g a r r a f a
festa d e riso e surpresa. E n v e r g o n h a d o c o m t o d o o espavento d e g r o g u e . O único p a r e n t e d a f a l e c i d a p r e s e n t e e r a u m
d o seu parceiro, R u f i n o refiigiou-se n o grogue e, e m p o u c o h o m e n z i n h o de j e i t o a p a l e r m a d o e c o r p o de m e n i n o , que
t e m p o , s o l t o u a f r a n g a e p u l o u a n o i t e toda. tinha c h e g a d o h a v i a d u a s semanas d e São N i c o l a u p a r a
M i m a d e s p i u a blusa sob o p r e t e x t o q u e estava m u i t o t o m a r c o n t a d a tia. Usava u m a g r a v a t a escura e ensebada
calor, d e i x a n d o à mostra as duas laranjas fiilgurantes. Fizemos o q u e l h e descaía p e l o s j o e l h o s , u m a s calças t i p o meia-canela
mesmo. Aos poucosjá não havia mais nada para tirar. Estávamos d e o n d e d e s p o n t a v a u m p a r d e pernas finas e secas e os pés
todos c o m o viemos para este m u n d o e, c o m a ajuda d o b o m espalmados p a r e c i a m ser revestidos d e escamas. N a sua voz
grogue e d a cerveja gelada, esquecemo-nos dos preconceitos. f a n h o s a , t r o c a n d o os erres p e l o s guês, e n q u a n t o c h o r a v a ,
M i m a e e u dançámos agarradinhos c o m o se fossemos u m só. n u m c h o r o c o l o q u i a l , passava o t e m p o t o d o a assoar-se e
Sentir aquele c o r p o suado c o l a d o ao m e u dava-me a sensação a m a n d a r recados p a r a o além n u m a guisa desbotada, mas
de estar n o paraíso e e u desejava q u e o t e m p o parasse, porém, s e m p r e a t e n t o p a r a q u e não faltasse g r o g u e nos copos. O
M i m a , espassarada, q u e b r o u o encanto: c r u c i f i x o d e p e r n a q u e b r a d a c o n t i n u a v a n o m e s m o sítio
Se é p a r a dançar deste j e i t o p o r q u e não m e comes logo? e m b o r a o C r i s t o estivesse s e m cabeça. D i s s e r a m q u e C r i s t o
A g a r g a l h a d a s o o u m a i s f o r t e q u e a música. p e r d e r a a cabeça n o d i a e m q u e a r a t a zizi l u t a v a c o m o
C h e g o u a h o r a d e a b r i r o b o l o d e ananás. M i r n a cão n u m a a l g a z a r r a i n f e r n a l . N i n g u é m sabia o n o m e d o
t i n h a r e c o m e n d a d o q u e seria a última coisa q u e devíamos h o m e n z i n h o . B e t o Vesgo m i r o u - o d a cabeça aos pés e, n o
fazer. P e g u e i a faca p a r a c o r t a r a p r i m e i r a f a t i a , mas e l a seu j e i t o r e q u e b r a d o e d e n g o s o , e x c l a m o u , O p a l e r m a ,
m e a c a u t e l o u q u e seria m a i s e n g r a ç a d o a b r i r o b o l o c o m b o t a mais g r o g u e !
as mãos. A o a b r i r o b o l o , s a l t o u d e d e n t r o u m a p i l h a d e O n a n i c o d e h o m e m d e u u m salto e b r a d o u : palegma
c a m i s i n h a s q u e se e s p a l h a r a m sobre a mesa. F o i u m a n o i t e não. Senhogpalegmàl N ã o s o m o s colegas. A p a r t i r d a q u e l e
inesquecível. M i r n a t i n h a u m a m e n t e v a g i n a l . d i a ficou a ser c o n h e c i d o c o m o s e n h o r P a l e r m a . O seu
desejo e r a q u e t o d o s o c h a m a s s e m d e s e n h o r , o resto não
N a véspera d e N o s s a S e n h o r a d e P i e d a d e , c h e g o u interessava. A p e s a r d o seu r o s t o e n r u g a d o d e vovô, d i z i a
a notícia d a m o r t e d e Zéfa M a n q u i n h a . D i z i a m as más- sentir-se j o v e m e q u e N h ô e r a coisa d e v e l h o s e d e g e n t e
línguas q u e e l a m o r r e u d e angústia d e v i d o ao pénis d e p o b r e , p o r t a n t o , c h a m e m - m e d e senhog Palegma! Ele era,
b o r r a c h a q u e se q u e i m o u . A p e s a r das m i n d a d e s , t o d o s digamos, u m i d i o t a e d u c a d o . E r a t o l o , mas não i n c o m o d a v a
s e n t i m o s a sua m o r t e , tínhamos u m c e r t o afecto p o r ela. n e m a m o s c a q u e l h e b o i a v a n a sopa. V o l t e i p a r a B e t o e
Os seus doces e r a m a a l e g r i a d a criançada, o seu g r o g u e disse-lhe q u e P a l e r m a t i n h a razão, Se estás a f a l a r c o m a
d e São N i c o l a u e r a o m a i s p u r o e a p e t e c i d o . Só d e l e m b r a r P r e s i d e n t e d a Câmara, t u dizes s e n h o r a p r e s i d e n t e , mas,
q u e p o r sua causa zizi m o r r e u , s e n t i a u m a c e r t a satisfação se se t r a t a d o j a r d i n e i r o , t u dizes N h ô A n t ô n e Canja. Estás
p o r e l a ter-se d e s e n c u r v a d o p a r a o u t r o m u n d o , c o n t u d o . a ver? N h ô é coisa d e g e n t e p o b r e .

« 7
MARGINAIS -

Sal é h o j e , p o r e x c e l ê n c i a , a i l h a d o t u r i s m o . E m desgraça. A o s treze anos, c o m o p a i n a cadeia e a mãe a


p o u c o t e m p o . Santa M a r i a passou d e d e s e r t o a paraíso d o t r a b a l h a r d e r a b i d a n t e , teve q u e p r o c u r a r seu próprio sus-
sol e d a p r a i a . T o d o s os dias, nasce mais u m r e s t a u r a n t e o u t e n t o . Deitava-se c o m os h o m e n s p a r a não m o r r e r de f o m e ,
u m h o t e l , lojas d e souvenirs ou bares, u m a casa d e diversão até c o n h e c e r o s e n h o r G i o v a n n i . As pessoas riam-se dela, ao
n o c t u r n a o u u m a agência c o m u m a a v a l a n c h e de pessoas vê-la a passear d e mãos dadas c o m o vovô i t a l i a n o , p o r é m ,
e m b u s c a d o seu p r i m e i r o e m p r e g o . e l a não se i m p o r t a v a p o r q u e e r a m e l h o r q u e estar a a b r i r
P o r vezes, as coisas a c o n t e c e m sem d a r m o s razão. F o i as p e r n a s a q u a l q u e r u m t a r a d o e, além d o mais, G i g i tinha
assim q u e M a r g a r e t e d e s a p a r e c e u s e m d e i x a r r a s t r o . E l a b o m coração e era u m h o m e m d i r e i t o . M a r g a r e t e desapa-
c o n h e c e u u m i t a l i a n o de meia-idade p o r q u e m se a p a i x o n o u r e c e u d o cenário d a v i d a c o m o e n t r o u : l e v a n d o s e m p r e as
p e l o seu j e i t o de fazer esparguete, de p i n t a r r e t r a t o s e fazer marcas d a c r u e l d a d e e d a tristeza prensadas n o seu viver.
elogios à n u d e z . A casa d o i t a l i a n o p a r e c i a u m m u s e u d e O e m p r e g o a u m e n t a v a , p o r é m , os filhos d a t e r r a d i f i -
p o r n o g r a f i a c o m r e t r a t o s d e m u l h e r e s nuas, o s t e n t a n d o a c i l m e n t e c o n s e g u i a m u m b o m t r a b a l h o . Dizia-se q u e Sal
i n t i m i d a d e de todas as f o r m a s . O i t a l i a n o andava p e l a casa era b o a madrasta, mas u m a péssima mãe. M u i t o s tinham de
n u e d i z i a q u e e r a a d e p t o d e t u d o o q u e é naturale. o q u e vender a alma para conseguir u m emprego remunerado,
c o m i a o u b e b i a devia ser n a t u r a l . O s d o i s saíram p a r a o a l t o mas, e m o u t r o s casos, faltava ambição p o r q u e deixámos de
m a r p a r a p i n t a r a n u d e z d o l i n d o pôr-do-sol d o último d i a a c r e d i t a r n o s o u t r o s e e m nós m e s m o s , acomodámo-nos
d o mês de N o v e m b r o e n u n c a mais v o l t a r a m . A história d e à nossa condição d e g e n t e s e m e i r a n e m b e i r a , n o nosso
M a r g a r e t e é u m a das m a i s tristes q u e e u conheço. Q u a n d o casulo d o c o n f o r m i s m o e n a nossa s i n a de filhos de um deus
ela tinha dez anos a n d a v a c o m d i f i c u l d a d e s , não c o n s e g u i a menor. Tornámo-nos i n d o l e n t e s , enveredámos p e l a c u l t u r a
sentar-se e queixava-se d e d o r i n t e n s a n a p a r t e i n f e r i o r d a dos miseráveis, aceitámos o c r e d o i m p o s t o q u e o m e l h o r
b a r r i g a . Sua professora d o p r i m e i r o a n o levou-a à c o n s u l t a a e r a l u t a r p e l o pão d e c a d a d i a e, se não houvesse, b e n z e r a
u m a médica e esta d e s c o b r i u q u e ela tinha u m a v e r r u g a d o b o c a antes d e d o r m i r . P o r é m , e u , nós, os d a geração rasca,
t a m a n h o de u m a m o e d a de c i n q u e n t a escudos n o seu órgão os m a r g i n a l i z a d o s d a p e r i f e r i a , rejeitamos e m a b s o l u t o essa
f e m i n i n o . E r a u m a infecção q u e só p o d e r i a ser t r a n s m i t i d a condição a q u e os nossos pais f o r a m r e l e g a d o s e somos for-
através d o acto sexual e e r a c o n h e c i d a c o m o doença-de- çados a e n v e r e d a r p a r a u m c a m i n h o t o t a l m e n t e contrário,
- m u l h e r - d e - v i d a . M a r g a r e t e t e r i a d e ser s u b m e t i d a a u m a p o r é m a r r i s c a d o e p e r v e r s o : o c a m i n h o d a delinquência.
intervenção cirúrgica u r g e n t e . O p i o r d a história f o i q u a n d o
ela r e v e l o u q u e o v i o l a d o r e r a o irmão de q u i n z e anos d e Através das janelas nuas, M i m a observava as m e n i n a s
i d a d e q u e a v i o l e n t a v a n a ausência dos pais. O p a i , h o m e m q u e saíam ao anoitecer e m direcção à Preguiça para depois
alegre, sociável e dinâmico, fechou-se c o m o u m a c o n c h a . m m a r e m à v i l a d e Santa M a r i a , aventurando-se pelos boites,
D e i x o u d e falar c o m aqueles q u e se a b e i r a v a m dele, d e i x o u bares e pensões d u r a n t e a n o i t e c o m os turistas. E l a resolveu
d e c o m e r , pasmando-se c o m os o l h o s cravados n u m vazio a b a n d o n a r a escola p o r q u e estava f a r t a d e passar f o m e e
q u e só ele p o d i a enxergar. A l g u m a s semanas depois, o irmão só pensava n a h o r a de e n g o l i r o pão b a r r a d o de m a n t e i g a
mais v e l h o f o i e n c o n t r a d o m o r t o c o m o r o s t o amassado e p u ó l e o e sorver a caneca de chá de f o l h a de l o u r o . Pesou
d e s f i g u r a d o à p e d r a d a . O p a i entregou-se à polícia c o m o também o facto d e ter sido h u m i l h a d a e m p l e n a aula p o r u m a
a u t o r confesso d o c r i m e . G u e t e p a r e c i a trazer n o r o s t o a rabidante. estávamos n a a u l a d e inglês d e d o n a B e r n a r d e t t e e.
MARGINAIS EVEL ROCHA

d e r e p e n t e , a rabidante enXiou n u m a algazarra, e m p u r r a n d o p a r a m i m e s o r r i u , E m p r e g o c o m o este não será difícil


t u d o o q u e l h e aparecia à f r e n t e , i n d o d i r e c t a m e n t e o n d e d e e n c o n t r a r . O safado d o patrão q u e r i a q u e e u fosse
estava sentada a M i m a , d e s p i n d o - l h e a blusa e m p l e n a aula, p a r a c a m a c o m ele c o m o p a g a p o r t e r - m e a p a n h a d o e m
daí, e n t r e arranhões e puxões de cabelo, r o l a r a m p e l o chão f l a g r a n t e a c o m e r o t a l p e d a ç o d e b i f e . É isso q u e a c o n -
ao ritmo e n s u r d e c e d o r das gargalhadas d a t u r m a de o l h o s tece n u m a b o a p a r t e d o s r e s t a u r a n t e s e casas n o c t u r n a s
focados nas partes i n d m a s das duas c o n t e n d o r a s . desta i l h a , disse M i r n a c o m os o l h o s i n c h a d o s d e p o r r a d a
O u pagas o q u e m e deves o u vais n u a para casa, l a d r o n a e a f o g a d o s n u m m a r d e lágrimas. A c h a s q u e e u m e i a d a r
safada!, exclamava a rabidante com os o l h o s g r i l i d o s de raiva. ao d e s f r u t e d e d o r m i r m a i s u m a vez c o m a q u e l e p i n t a d o ?
L a d r o n a é t u a mãe e t o m a m a i s isso, sua c a b r a ! E u m p i n t a d o s i m ! Seu c o r p o é c o b e r t o d e t a t u a g e n s d e
Sem c o m p r e e n d e r nada, a professora t r e m i a de t o d a s as c o r e s até n o r a b o . T r a b a l h a m o s c o m o escravas,
e s p a n t o , c o m a m ã o n a b o c a , p e r p l e x a c o m a situação. mas o a u m e n t o d o salário o u p a g a , p o r e x e m p l o , d e u m
A v e n d e d e i r a a m b u l a n t e disse q u e não a r r e d a v a o p é , copo quebrado, inadvertidamente, é sempre discutido
e n q u a n t o não recebesse o q u e M i r n a l h e d e v i a p o r m a i s e m c i m a d a c a m a . Se q u i s e r e s g a n h a r m a i s , tens d e a b r i r
d e q u a t r o meses. as p e r n a s aos filhos d a mãe e fazer-lhes f e s t i n h a s . T o d o
Este é u m caso d e polícia, m i n h a s e n h o r a . G o s t a r i a o patrão gosta d e f e s t i n h a s .
q u e as duas fossem e n c a m i n h a d a s p a r a o m e u g a b i n e t e , C e r t a vez, ela f o i c o l o c a d a n a r u a p e l o patrão i n f a m e ,
aliás, c h a m e m a polícia p a r a p ô r t e r m o a este escândalo, u m i t a l i a n o d e q u e i x o q u a d r a d o e rezingão, d e i x a n d o - a
disse a professora B e r n a r d e t t e , q u e também e r a a d i r e c t o r a só d e c a l c i n h a s e c o m o c o r p o c o b e r t o d e n ó d o a s p o r
d o l i c e u . A j u d e i a despegá-las d a q u e l e pé-de-vento ines- causa d o d e s a p a r e c i m e n t o d e u m a n o t a de d o i s m i l escu-
perado, segurando a M i r n a pela cintura. A aula acabou dos. E l e r e v i s t o u - a até n a s u a i n t i m i d a d e . O R e s t a u r a n t e
e m festa p a r a os a l u n o s q u e se d i v e r t i a m c o m as descrições A v e n i d a e r a u m a t r e m e n d a m a s c a r a d a . T i n h a t o d o s os
e x a g e r a d a s dos dotes das duas. a p e t r e c h o s d e u m a casa d e p a s t o , mas e r a f r e q u e n t a d o
M i r n a g a n h o u a consciência d o m u n d o e m q u e vivia: p o r m e i a dúzia d e i t a l i a n o s e franceses a c o m p a n h a d o s
os q u e t i n h a m e os q u e n ã o t i n h a m . E l a , c o m o t a n t a s d e m e n i n a s d e v i d a . A q u i l o não e r a u m r e s t a u r a n t e , e r a
o u t r a s moças, endividava-se o u dava e x p e d i e n t e s n a n o i t e u m a lavandaria - p a r a lavagem de d i n h e i r o sujo, c l a r o . O
p a r a se vestir a p r e c e i t o . Aos q u i n z e anos de i d a d e , saiu e m l u g a r e r a u m a n t r o d e d r o g a , t a t u a g e n s e piercing. F u s c o
busca d o seu p r i m e i r o e m p r e g o . O calvário d e l a começou, p e d i u ao i t a l i a n o q u e l h e colocasse u m piercing nos m a m i -
q u a n d o o g e r e n t e d e u m snack-barlhe disse q u e c o m u m los, m a s o n e g ó c i o s a i u f u r a d o p o r q u e só e s t r a n g e i r o s
c o r p o b o n i t o c o m o o d e l a p o d i a g a n h a r m u i t o . Servia p o d i a m e n t r a r lá - i n f e l i z m e n t e , não t i n h a m f e r r a m e n t a s
os c l i e n t e s d e top less, levava p a l m a d i n h a s nas nádegas e, apropriadas para pretos.
c o m o o salário e r a i n s i g n i f i c a n t e , saía c o m a l g u n s q u e a D e p o i s de u m a n o i t e de histórias de anedóticos desen-
p r e s e n t e a v a m c o m r o u p a s caras. T o r n á m o - n o s a m i g o s ganos, M i r n a e e u d o r m i m o s j u n t o s p e l a p r i m e i r a vez,
c h e g a d o s n o R e s t a u r a n t e A v e n i d a . N a ocasião, e l a estava n a q u e l a n o i t e . F o i u m c o n t o interessante.
a r e c e b e r a notícia d e d e s p e d i m e n t o , d e p o i s d e u m a D e manhã, f u i c o m ela p a r a Chã de F r a q u e z a e h a v i a
b r i g a f e i a c o m o g e r e n t e p o r causa d e u m b i f e d e i x a d o o m a i o r a l a r d e à p o r t a d a sua casa. N h a M a r i a d o M o n t e
n o p r a t o p o r u m c l i e n t e . E l a e n c o l h e u os o m b r o s , o l h o u e m p u n h a v a u m a p e d r a e m cada mão, ameaçando o m a r i d o

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MARGI NAIS _ — EVEL ROCHA

q u e , se ele tentasse e n t r a r p e l a p o r t a a d e n t r o , quebrava-lhe Q u a n d o b r i g a v a c o m u m a , buscava c o n s o l o n u m a o u t r a


a cara e se quisesse satisfazer seus c a p r i c h o s q u e fosse d e i t a r e j u r a v a a m o r e t e r n o a todas. H a v i a d o i s anos q u e N h a
c o m aquelas bestas d a sua laia q u e p a r i a m q u e n e m coelhos. M a r i a e Custódio não b r i n c a v a m d e m a r i d o e m u l h e r
Besta és t u , sua t r o u x a . Se tivesses s e r v e n t i a ele não te Para ela, sexo e r a r e p r o d u z i r . E l a tinha f e i t o o j u r a m e n t o
d e i x a v a p a r a d o r m i r c o m i g o e c o m as o u t r a s , r e s p o n d e u d e não p a r i r m a i s d e p o i s d e ficar s e m o b i c o d a m a m a
B e n v i n d a , e m p u r r a n d o o Custódio p a r a p r o v a r q u e e r a esquerda. N h a M a r i a , d u r a n t e o período de aleitamento
h o m e m m a c h o . As pessoas, sedentas de ver u m a briga, atiça- d o último r e b e n t o , e r a m a i s p r o d u t i v a q u e u m a vaca l e i -
v a m o f o g o , f a z e n d o insinuações até q u e Custódio resolveu t e i r a . A m a n h e c i a c o m os seios i n c h a d o s s e r i n g a n d o l e i t e
m o s t r a r à sua a m a n t e e aos o u t r o s q u e e r a h o m e m - m a c h o . e e r a necessário c o l o c a r u m c a c h o r r i n h o p a r a m a m a r o
T o m o u f r e n t e , arregaçou as m a n g a s , e s c a r r o u n o chão, e x c e d e n t e q u e Célia deixava. O c a c h o r r i n h o m a m a v a até
s u b i u as calças e p a r t i u p a r a a b r i g a p a r a c o l o c a r a m u l h e r i n c h a r c o m o u m balão. A l g u é m teve a i n f e l i z i d e i a d e l h e
n o seu d e v i d o l u g a r mas m i s e r a v e l m e n t e ele v o l t o u c o m a r r a n j a r u m c a b r i t o p a r a l h e c h u p a r as fartas e leiteiras
o rosto ensanguentado. N h a M a r i a d o M o n t e acertou-lhe m a m a s , p o r é m , o d a n a d o , nas suas i n v e s t i d a s , a c a b o u
u m a p e d r a d a n a testa e c o r r e u p a r a d e n t r o d e s o r i e n t a d a , p o r l h e a r r a n c a r o b i c o d a m a m a . F o i u m deus-nos-acuda
c o n v e n c i d a q u e m a t a r a o p a i dos seus filhos. E n q u a n t o a n a q u e l a casa.
a m a n t e e m e i o m u n d o l h e s o c o r r i a . Custódio p a r e c i a não A f o m e faz c o m q u e m u l h e r e s , q u e não t i v e r a m a
estar i n c o m o d a d o c o m o sangue d e l i r a n t e q u e l h e c o b r i a a o p o r t u n i d a d e d e estudar, q u e v i v e r a m a v i d a i n t e i r a subor-
. testa. Levar de u m a m u l h e r não o i n c o m o d a v a , pois ele não d i n a d a s ao c u l t o d o m a c h o , se e n t r e g u e m ao c u i d a d o d e
e r a l u t a d o r e não h a v i a r i x a e n t r e h o m e m e m u l h e r q u e u m h o m e m q u e seja t r a b a l h a d o r p a r a sustentá-las, m e s m o
não pudesse ser r e s o l v i d a n o rectângulo c o n j u g a l . M i r n a q u e esse h o m e m viva c o m o u t r a , c o n t a n t o q u e não d e i x e
estava d i v i d i d a : não sabia se ajudava o p a i m e i o z o n z o e faltar pão sobre a mesa e r o u p a p a r a os filhos. As três a m a n -
e n s a n g u e n t a d o o u se c o n s o l a v a a mãe e m r e s m u n g o s , t r e - tes de Custódio, q u e somadas o t i n h a m p r e s e n t e a d o c o m
m e n d o q u e n e m v a r a v e r d e , a r r e p e n d i d a p e l o q u e fez. A d e z o i t o filhos, p a r e c i a m felizes e satisfeitas c o m a v i d a . Já
m o ç a t i n h a razões suficientes p a r a sentir-se r e v o l t a d a c o m s a b i a m q u a l o d i a d e s e m a n a q u e lhes tocava e p a r a isso
o p a i e, m e s m o assim, falava d e l e c o m a m i z a d e e t e r n u r a . c a p r i c h a v a m p a r a r e c e b e r seu « b e m - q u e r e r » . N u m a i l h a
Custódio, nas h o r a s d e r a i v a e b e b e d e i r a , p r o p a l a v a q u e o n d e a presença f e m i n i n a e r a m i n g u a d a . Custódio e r a
M i r n a não e r a sua filha, p o i s , e l a t i n h a a p e l e c l a r a , t i n h a c o n h e c i d o c o m o u m garanhão de sorte. Q u a n t o mais
os o l h o s esverdeados, e m s u m a , os seus traços físicos e r a m m u l h e r e s tiveres, m a i s elas te d e s e j a m !
d e g e n t e de f o r a . N h a M a r i a d o M o n t e e r a p r e t a t i s n a d a Q u e m não c h o r a não m a m a .
e g o r d a , e n q u a n t o q u e o Custódio, m e i o c o r c u n d a e d e
M i r n a c o n t i n u a r i a a p r o c u r a r o m e u quarto sempre
braços a l o n g a d o s d e e s t i v a d o r , p a r e c i a u m p r i m a t a n o
q u e os patrões a d e s p e d i a m . E l a h a v i a d e assistir a m u i t a s
andar e no jeito.
cenas d e ciúmes e n t r e as rivais d o seu p a i , submeter-se-ia
Custódio era u m h o m e m t r a b a l h a d o r , c o n t u d o o ven- à sua condição d e m u l h e r m a l t r a t a d a , c o n t i n u a r i a a sua
c i m e n t o m a l chegava p a r a sustentar as m u i t a s famílias q u e v i a g e m nesse c o m b o i o d e a m a r g u r a s p o r q u e c a d a u m
tinha: p a r a além d e N h a M a r i a d o M o n t e e d a B e n v i n d a , tinha d e c u m p r i r o seu d e s t i n o . A t é q u a n d o ? Só o t e m p o
e l e t i n h a m a i s três m u l h e r e s , u m a e m c a d a p o v o a ç ã o . poderá responder.

no
MARGINAIS . . EVEL ROCHA

T e r u m a mãe q u e b a t i a c o m fios d e e l e c t r i c i d a d e o u g u e r r a p e r m a n e n t e , p e l o m e n o s a q u i e s t o u l i v r e d e levar


q u e dava bofetão e r a u m a sorte das g r a n d e s , d i a n t e d a vio- u m a cacada d e p e d r a n a cabeça. Larga-me d a mão, m u l h e r
lência doméstica q u e se p r e s e n c i a t o d o s os dias nas fraldas d e D e u s . Bocê devia, estar a c u i d a r d e N h ô C h i c o q u e está a
d a v i l a o n d e se vive e m condições s u b - h u m a n a s e ausência m o r r e r d e p o n t i n h a n o h o s p i t a l , e m vez d e estar a m e t e r
d e d i g n i d a d e . N h a M a r i a d o M o n t e a n d a v a c o m os n e r v o s n a v i d o dos o u t r o s .
a f l o r a d o s . C o n v e n c i d a d a sua l e g i t i m i d a d e c o n f e r i d a p e l a A p r i m e i r a vez q u e ela u s o u erva, r e c e b e u u m c o r o
i g r e j a , ela n u n c a se c o n f o r m o u c o m a existência d e c o m - d e troça p e l a f a l t a d e j e i t o . Pegava a g a n j a c o m o se fosse
borça e n t r e os d o i s , Já não t e n h o i d a d e p a r a essas coisas. cigarro e expelia o f u m o de i m e d i a t o . Depois de ver c o m o
N ã o dás c o n t a d o r e c a d o e m casa q u a n t o m a i s r o d e a d o d e e u i n a l a v a o f u m o até c h e g a r à g a r g a n t a e s a b o r e a r o
m u l h e r e s d e v i d a . A p a r t i r d e h o j e não e n t r a s nessa casa. g o z o q u e n t e d a m o r e n i n h a , ninguém c o n s e g u i u segurá-la,
T o m a , desgraçado d o i n f e r n o ! - N h a M a r i a a t i r o u - l h e a t o r n a n d o - s e n u m ás d a ganja. Ríamos d a sua f a l t a d e j e i t o ,
t r o u x a d e r o u p a d a j a n e l a p a r a f o r a , l e v a n t o u a saia e disse, ríamos d a f a c i l i d a d e c o m o a p r e n d e u a f u m a r , ríamos d o
A q u i j á não pões m a i s , v e l h a c o ! p r a z e r q u e a e r v a l h e dava, n u m r i s o d e b o c h a d o e sem
Custódio m i r o u - l h e dos pés à cabeça depois d e u - l h e p u d o r M i r n a r i a até s e n t i r o estômago d o e r . Bastava u m
costas e desabafou. H á mais de dois anos q u e não m e deixas gesto p a r a q u e risse s a c u d i n d o os o m b r o s , a c i n t o s a m e n t e .
fazer nada e, c o m o h o m e m que sou, t e n h o de p r o c u r a r outras. O riso dava l u g a r a u m c h o r o incontrolável, mas aos p o u c o s
N h a M a r i a , n u m ataque d e raiva, g r i t o u . M e n t i r a , seu desgra- passou a d o m i n a r o c i r c o d e q u e t o d o s nós fazíamos p a r t e .
çado! Então aquela data d e filhos f o r a m feitos e m dois anos?
Ela a t i r o u - l h e u m a l a m p a r i n a acesa q u e p o r infortúnio
se e s b a r r o u n o p e i t o d a filha de o i t o anos, a t e a n d o u m f o g o
q u e p r o v o c o u graves q u e i m a d u r a s n o c o r p o d a p e q u e n a ,
d e i x a n d o n o a m b i e n t e u m c h e i r o de carne de gente
chamuscada. N h a Maria parecia u m a e n d e m o n i n h a d a
q u a n d o e n t r a v a n u m a b r i g a . A n o s atrás, M i r n a saiu a g r i t a r
p o r s o c o r r o , q u a n d o a mãe a g a r r o u u m dos irmãos p e l o
pescoço p o r t e r a p a n h a d o o último p u n h a d o d e açúcar,
B i , G e r s o n , c o m o tiveste c o r a g e m d e e n g o l i r o açúcar q u e
e r a p a r a adoçar a p a p a d e t r i g o d o M i l t o n ? M a i o r é D e u s !
Esse é u m d e s e s p e r o .
Dias d e p o i s d e a b a n d o n a r a escola, ela f o i s u r p r e e n -
d i d a p o r u m a v i z i n h a f u m a n d o poff c o n n o s c o atrás d a
s e n t i n a . A m u l h e r a r r a n j o u u m escândalo de o u t r o m u n d o
e m a n d o u - l h e q u e levantasse d a q u e l a v i d a d e i n f e r n o e
fosse p a r a casa. H á p i o r i n f e r n o q u e a m i n h a casa?, per-
g u n t o u - l h e M i r n a n u m a r descontraído. - A m i n h a casa é
u m autêntico i n f e r n o , m e u s pais v i v e m c o m o cães n u m a

QA
EVEL ROCHA

XI

Dez meses após o n a s c i m e n t o das gémeas Atanásia e


Cesarina, nasceu Analgésio. Apesar da mudança dos nomes das
gémeas, para A n t ó n i o seriam s e m p r e Eutanásia e Cesariana.
A n t ó n i o estava r a d i a n t e p o r q u e o m e n i n o n a s c e u
d e o l h o s a b e r t o s e tinha a cabeça u m p o u c o m a i o r q u e o
n o r m a l . Este v a i ser d o u t o r ! O l h e m p a r a a cabeça d e l e : v a i
ser u m d o u t o r ! , r e j u b i l a v a o m e u m a n o , abraçando t o d o s
os q u e e n c o n t r a v a n a r u a n o m e i o d a m a d r u g a d a .
D u r a n t e o t r a b a l h o d e p a r t o , A n t ó n i o estava m u i t o
nervoso e p r e o c u p a d o . L a u r a não conseguia e m p u r r a r a c r i -
ança p a r a f o r a . Apercebendo-se d a inquietação d e António,
engolindo grogue e ftimo, compulsivamente, a parteira
o r d e n o u - l h e q u e fosse buscar u m a l g u i d a r c o m água p a r a
não a t r a p a l h a r mais as coisas, mas, depois s u m i u e ninguém
soube o n d e se m e t e r a . F i n a l m e n t e , a criança nasceu - q u e
seja u m d o u t o r ! - Após u m a l o u c a e estafante busca p o r todos
os bares d a r e d o n d e z a para l h e d a r e m a n o v i d a d e , António
f o i e n c o n t r a d o desmaiado atrás d o p o t e d e água n o q u i n t a l .
R e a n i m a r a m - n o c o m u m algodão e m b e b i d o e m álcool e,
depois d e l h e d a r e m a n o v i d a d e q u e e r a p a i d e u m « l i n d o »
rapaz, c a i u d e n o v o e m desmaio.
L a u r a passou cerca de o i t o horas a t e n t a r trazer a
criança a o n i u n d o . E s g o e l a v a d e s a l m a d a m e n t e e, c o m
m e d o d e m o r r e r , confessava as suas m a l d a d e s e m busca
d e p e r d ã o p a r a os seus p e c a d o s p a r a n ã o c a i r n o i n f e r n o .
C h a m e m o Sérgio. Q u e r o p e d i r - l h e p e r d ã o p o r t e r escon-
d i d o as cartas q u e N h a Rosário l h e escreve.

97
MARGINAIS
EVEL ROCHA

E l a r e v e l o u q u e i a aos c o r r e i o s b u s c a r as cartas q u e
mamãe m e escrevia, t i r a v a o d i n h e i r o e enviava-o aos f a m i l i -
ares n a i l h a d o F o g o . A n t ó n i o r o g o u - m e q u e perdoasse à
XII
sua m u l h e r e estava d i s p o s t o a p a g a r - m e t o d o o prejuízo,
tostão p o r tostão. N ã o h a v i a d e s c u l p a s capazes d e p a g a r a
humilhação d e ser e x p u l s o d a casa q u e m a m ã e construíra
c o m sacrifício. E os m o m e n t o s d e privação e f o m e q u e
passei? I m p l o r o u - m e q u e voltasse p a r a casa, q u e o m e u
c a n t i n h o estava lá à m i n h a espera, q u e Analgésio, o f u t u r o
d o u t o r d a família, parecia-se c o m i g o e seria m e u s o b r i n h o Fusco e e u saímos d e b a i x o d e u m s o l e s t u r r a d o pelas
e a f i l h a d o . E u t i n h a os m e u s c a p r i c h o s c o m o q u a l q u e r f i l h o chãs d e P a l m e i r a à p r o c u r a d e duas caixas d e l e i t e e m p ó
d e p a r i d a . N ã o v o l t e i p a r a a casa. P e d i - l h e q u e esquecesse q u e roubáramos d a c a r r i n h a d e N h ô T e o d o r o . A o s u b i r
a nossa i r m a n d a d e e e u não estava i n t e r e s s a d o e m ser t i o e u m a l o m b a , v i a professora Izilda n u m carro desabrido.
p a d r i n h o d o seu f i l h o , a i n d a mais u m m e n i n o c o m n o m e C o r r i c o m o o d i a b o c o r r e n d o d a c r u z p a r a não ser r e c o -
d e r e m é d i o e, q u a n t o ao d i n h e i r o , haveríamos d e a n d a r n h e c i d o . P a r e i u m p o u c o p a r a l i m p a r o s u o r d a testa e
c a m i n h o l o n g e se não m o devolvesse. c o n t i n u e i a c o r r e r . N a q u e l e m o m e n t o não m e l e m b r e i
D e vez e m q u a n d o , r e a c e n d i a e m m i m a esperança d e m a i s d e Fusco. E u c o r r i a mas não sabia porquê. Talvez c o m
u m d i a v i r a ser u m a e s t r e l a d e f u t e b o l , p o r é m , o p e d r e g a l v e r g o n h a d e ser v i s t o n o m e i o d a q u e l e d e s c a m p a d o , n a
d e frustração q u e caíra s o b r e m i m , l e v o u - m e aos l i m i t e s h o r a m i n g u a d a , talvez p o r s e n t i r v e r g o n h a d e m i m m e s m o ,
d a m i n h a força d e v o n t a d e . B e t o e e u f o m o s a u m a i g r e j a o u p o r ser estúpido a p o n t o d e c o n t i n u a r a p a i x o n a d o
e v a n g é l i c a o n d e a p r e g o a v a m q u e D e u s estava a f a z e r p o r alguém q u e j á n e m se l e m b r a v a d a m i n h a existência.
g r a n d e s m i l a g r e s . Passei a f r e q u e n t a r a q u e l a i g r e j a , p o i s , S e n t i - m e t e n t a d o a e s q u e c e r os caixotes d e l e i t e e c o r r e r
p a r a c u r a r m e u d e d o e s t o r t e g a d o n ã o e r a necessário u m e m direcção d a m i n h a a d o r a d a , confessar-lhe o m e u a m o r ,
g r a n d e m i l a g r e , mas apenas u m t o q u e z i n h o d o T o d o - dizer-lhe q u e p o r ela era capaz de d e i x a r t u d o p a r a agradar-
Poderoso, apenas u m a m i g a l h a d a sua b o n d a d e . Vivia -Ihe e q u e q u e r i a ser a sua « a b o b o r i n h a » p a r a s e m p r e .
horas de c o m p l e t a agonia esperando a cura para o m e u
E se e l a disser q u e n ã o m e c o n h e c e ? E se m e c h a m a r
d e d o e s t o r t e g a d o . H a v i a m o m e n t o s e m q u e os m e u s o l h o s d e ladrão?
e r a m duas calhas p o r o n d e j o r r a v a m t o r r e n t e s d e lágrimas
Passei o r e s t o d o d i a p e r d i d o e m c o n j e c t u r a s , c o n -
d e desespero. D i s s e r a m - m e q u e d e v i a t e r m a i s fé, mas e u
t e m p l a n d o a m i n h a v i d a n a t e l a das recordações q u e se
q u e r i a e r a o m e u d e d o c u r a d o . P a r e c e q u e D e u s não f o i
desvanecia e n t r e as n u v e n s d e lã e os braços d o u r a d o s d o
c o m a m i n h a c a r a e não m e c u r o u . E r a d a sua v o n t a d e q u e
sol, f i n a n d o - s e n o seu último s u s p i r o atrás d o h o r i z o n t e .
e u continuasse c o m o d e d o esfarelado. D e u s q u i s q u e assim
U m a zabilinha voava e m círculos e p o r i n s t a n t e s p a i -
fosse, q u e A p o l i n á r i o fosse r i c o e n o s odiasse, q u e ele e os
rava n o a r D e p o i s d e u m v o o r a s a n t e d e s a p a r e c e u n o céu,
o u t r o s m a n d a s s e m e m nós, q u e n o s m a r g i n a l i z a s s e m e q u e
l e v a n d o nas g a r r a s q u a l q u e r coisa q u e m e p a r e c e u u m
eu continuasse c o m o dedão estortegado. Estou p e r d i d o
p e q u e n o rato, A q u i l o que n o m o m e n t o m e aparentava
n e s t a c o n g r e g a ç ã o d e ilusão.
ser u m i n s t i n t o d e m o r t e e c r u e l d a d e n ã o e r a senão u m

98
MARGINAIS
. — -_ . EVEL ROCHA
i n s t i n t o d e sobrevivência. C u m p r i a - s e a l e i d a n a t u r e z a :
o u simplesmente entregue a u m estranho. M i r n a chorava,
nesta v i d a é m a t a r o u m o r r e r ! N e s t a selva, os m a i s f o r t e s
mas n o m e u í n t i m o e u t i n h a a certeza q u e seria m e l h o r
a l i m e n t a m - s e d o s m a i s fracos, a m o r t e p a r a u n s é a sobre-
p a r a a p e q u e n a Jerusa. E l a i r i a t e r u m a b o a educação, vive-
vivência p a r a o u t r o s . E u t i n h a m e d o d e ser a p a n h a d o p e l a
r i a l o n g e dessa l o d o s a miséria d i s s i m u l a d a . M e u l a m e n t o
polícia q u a n d o f u r t a v a ; v i v i a e m p e r m a n e n t e sobressalto
é p a r a aqueles q u e ficaram p a r a trás. H a v i a r u m o r e s q u e
p o r q u a l q u e r m o v i r n e n t o à m i n h a v o l t a c o m o u m a ave
os e s t r a n g e i r o s r a p t a v a m o u c o m p r a v a m crianças p a r a
f e r i d a , p e r s e g u i d a p o r caçadores o b s t i n a d o s , t r a n s p i r a v a
extraírem órfãos e f a z i a m f o r t u n a s ao vendê-los n a E u r o p a .
u m s u o r f r i o c h e i r a n d o a b i c h o m o r t o . As h o r a s e s c o r r i a m
N ã o m e i m p o r t a v a de vender u m dos meus rins e m troca
l e v e m e n t e e e u , d e i t a d o n o chão c o m as mãos d e b a i x o d a
d e u m a p e q u e n a f o r t u n a . D i z e m q u e há u m m é d i c o q u e
n u c a feitas travesseiro, c o n t e m p l a v a a dança das estrelas
v e m d e vez e m q u a n d o e o f e r e c e u m passaporte e u r o p e u
q u e p a r e c i a m insectos l u m i n o s o s . E u i m a g i n a v a q u e e n t r e
a q u e m d o a r u m r i m . E l a o l h o u - m e d e l a d o e disse. N ã o
elas h a v i a u m m u n d o o n d e t u d o o q u e e u pensava a c o n t e -
sei se f a r i a isso. T e n h o m e d o q u e as coisas d ê e m p a r a o
cia, o n d e os nossos desejos se t r a n s f o r m a v a m e m r e a l i d a d e ,
t o r t o . Eduíno f o i i n t e r n a d o n o h o s p i t a l c o m u m a f e r i d a
o n d e I z i l d a e r a a m i n h a a m a d a , o n d e e u e r a u m a estrela d e p o d r e n u m l a d o d a b a r r i g a , Eles t i r a m - t e o r i m e d e i x a m -
f u t e b o l , a p o b r e z a e r a u m a v i r t u d e e os m a u s e r a m transfor- te ao D e u s dará.
m a d o s e m chapéus-de-bruxa^. C o m o e u q u e r i a e n c o n t r a r
V i v e r nesse m u n d o é p e r i g o s o . V i v e r é u m a e s t u p i d e z
o m e u paraíso e ser f e l i z e t e r n a m e n t e ! F i q u e i d e i t a d o
e v i v e r p o b r e é u m c r i m e imperdoável.
n o chão d e t e r r a e b r i t a d u r a n t e m u i t a s h o r a s e s q u e c i d o
n o m u n d o . C a n s a d o d e c o n t e m p l a r as estrelas d i s t a n t e s , M i r n a tirava m a c a q u i n h o s d o n a r i z e p a r e c i a a l h e i a
às m i n h a s e s t r a n h a s reflexões. Pensar e r a u m e x e r c í c i o
passei a r e c o r d a r t o d o o t i p o d e palavrões q u e c o n h e c i a
a r r i s c a d o p a r a ela. Se estivesse a m e x e r e r e m e x e r n o n a r i z
c o m o f o r m a d e m e d i s t r a i r . A lista e r a i n f i n i t a , mas tinha
e r a u m s i n a l d e q u e necessitava d e atenção e c a r i n h o p a r a
t o d o o t e m p o d o m u n d o . N i n g u é m esperava p o r m i m e m
mais u m c o n t o .
l u g a r n e n h u m . A n o i t e estava m a i s e s c u r a q u e n u n c a . As
estrelas d e u m b r i l h o i n t e n s o f o r m a v a m a i m a g e m d e u m
g r a n d e cadeirão l u m i n o s o . U m d i a , q u a n d o c h e g a r o fim
d o m u n d o , e s t a r e i s e n t a d o n u m cadeirão c o m o a q u e l e ,
c o n t e m p l a n d o o espectáculo ã distância!
V o l t e i p a r a casa e e n c o n t r e i M i r n a sentada n a m i n h a
c a m a a c h o r a r P r o v a v e l m e n t e , o p a i t o r c e u o pescoço a
N h a M a r i a d o M o n t e c o m o havia p r o m e t i d o , falei para
os m e u s b o t õ e s . N a v e r d a d e , a situação e r a b e m p i o r :
N h a M a r i a d o M o n t e v e n d e r a a filhinha d e d o i s anos a
u m casal d e t u r i s t a s alemães p a r a p o d e r p a g a r o c u r a t i v o
d a Célia q u e c o n t i n u a v a i n t e r n a d a e m estado grave pelas
q u e i m a d u r a s . E l a não e r a a p r i m e i r a criança a ser v e n d i d a
5 Cogumelos.

•4 r \
EVEL ROCHA

XIII

Se c o m os Pitboys eu e n c o n t r a v a u m espaço p a r a sacu-


d i r a crónica a p a t i a d a penúria e miséria, n a c o m p a n h i a
de L e i a divertía-me c o m suas ideias extravagantes. Q u a n d o
se s e n t a v a e m silêncio p a r a p e n s a r a o j e i t o d a estátua
d e R o d i n , o b o m senso r e c o m e n d a v a distância, m a s nós
adorávamos as suas m a l u q u i c e s . N o s dias d e meninência,
íamos à P a l m e i r a c o m p r a r p e i x e e o d a n a d o desafiava-nos
c o m as suas t r a q u i n i c e s q u e n o s p u n h a m c o m o coração
nas mãos. A p r i m e i r a a v e n t u r a q u e v i v i n a sua c o m p a n h i a
c u s t o u - m e c a r o : disse-me q u e e r a fácil a n d a r n o f u n d o d o
m a r , bastava a m a r r a r c h u m b o n a c i n t u r a , descer ao f u n d o
c o m u m pedaço de t u b o n a boca para respirar e p r o n t o .
E u seria o p r i m e i r o m e r g u l h a d o r a d e s c o b r i r os t e s o u r o s
das p r o f u n d e z a s d o m a r d a P a l m e i r a , a a n d a r e n t r e os
p e i x e s , a d e s v e n d a r os mistérios das g r u t a s m e d o n h a s e,
talvez, a b e i j a r u m a sereia d e c a b e l e i r a v e r m e l h a . F i z t u d o
c o m o ele m e e n s i n o u , p o r é m , ao s e n t i r o m a r c o b r i n d o a
m i n h a cabeça, e n t r e i e m p â n i c o ! E u v i a m o r t e à m i n h a
f r e n t e . C o m a b a r r i g a i n c h a d a d e t a n t o e n g o l i r água sal-
g a d a , e u esbracejava e g r i t a v a q u e n e m u m c o n d e n a d o
p a r a q u e a l g u é m m e acudisse.
L e i a f r a c t u r o u u m a p e r n a ao t e n t a r v o a r d o terraço
d a casa dos pais a g a r r a d o a u m g u a r d a - c h u v a . E u a c h a v a
fantásticas as suas ideias. A n t e s d e se lançar n o v o o des-
m i o l a d o , l e v a d o pelas suas palavras, i m a g i n a v a - o a g a r r a d o
a o g u a r d a - c h u v a , d e s a p a r e c e n d o e n t r e as n u v e n s c o m o
u m minúsculo p o n t o f i n a l , g a l g a n d o o céu, d e s a f i a n d o a
MARGINAIS EVEL ROCHA

g r a v i d a d e , mas os b e r r o s d e s a f o r a d o s d e L e i a n a u f r a g a d o pessoas q u e precisavam d e u m t r a t a m e n t o , pois. H á m u i t a s


e m lágrimas e r a n h o s não d e i x a v a m dúvidas d e q u e o v o o crianças e g e n t e g r a n d e q u e v i v e m d e p r i m i d a s . As pessoas
Unha sido mais c u r t o q u e e u imaginava. estão a m o r r e r d e stress e paranóia, d i z i a c o m u m ar m u i t o
L e i a t i n h a u m a c a p a c i d a d e incrível d e e n g a n a r aos sério. Escreve o q u e v o u te d i z e r : a m i n h a m a i o r p r o e z a
q u e v i v i a m à sua v o l t a - e r a u m m e n t i r o s o c o m p u l s i v o . será a j u d a r ao d i a b o a p e r d e r o m e d o d a c r u z .
C e r t o dia, r o u b o u u m a garrafa de l i t r o e m e i o c o m u m E l e e r a tão m a g r o q u e n o s d i z i a q u e , q u a n d o m o r -
líquido d e u m c h e i r o r a b u g e n t o a u m r a b i d a n t e e vendeu-o resse, q u e r i a q u e , n o l u g a r d e u m caixão, fosse l e v a d o a
ao j a r d i n e i r o d a praça c o m o s e n d o u m a i n s e c t i c i d a capaz e n t e r r a r n u m c a n u d o . N a escola era c o n h e c i d o c o m o
d e a c a b a r c o m t o d a a espécie d e b i c h o s q u e c o m e m as M a g r e z a . T o d o s os a t r i b u t o s assentavam-lhe n a perfeição.
p l a n t a s . A l é m d o m a i s , e m três dias, terás as f l o r e s m a i s Dizia-se q u e tinha t r i p a d e c o r v o e a p e t i t e d e e l e f a n t e .
belas e p e r f u m a d a s d a i l h a . O p r e ç o é c a r o , mas os r e s u l - A história q u e ninguém esquece f o i o d u e l o p o r c o e
tados não têm p r e ç o ! selvagem q u e ele travou c o m Russo. Russo era u m e m i g r a n t e ,
Dias d e p o i s , o j a r d i n e i r o , f u r i o s o , c o r r e u atrás d e l e c o z i n h e i r o d e u m b a r c o g r e g o , a l t o , pançudo, c o m a p e l e
c o m u m a c a t a n a e m p u n h o p a r a l h e c o r t a r o pescoço p e l o l u s t r a d a d e suor, pesava cerca d e c e n t o e setenta q u i l o s ,
prejuízo c a u s a d o . P a r a a l é m d e l h e t e r destruído t o d o p a r e c i a u m armário a m b u l a n t e e tinha f a m a de comilão.
o viveiro de plantas, o p r o d u t o p r o v o c o u u m a praga de Passava a v i d a a desafiar os o u t r o s : apostava n u m braço d e
pulgões e m t o d o s os c a n t e i r o s o n d e p u l v e r i z a r a o l í q u i d o . f e r r o , gabava-se q u e e r a capaz d e a b r i r v i n t e e q u a t r o gar-
F i l h o d e g e n t e abastada. L e i a M a g r e z a a b d i c o u das m o r - rafas d e cerveja c o m os d e n t e s e m u m m i n u t o , l e v a n t a v a a
d o m i a s d a casa p a r a v i v e r c o m o m e n i n o d e r u a . D i z i a q u e traseira de u m automóvel, quebrava vidraças c o m a testa e m
não t i n h a cabeça p a r a escola, Ganha-se m a i s v e n d e n d o t r o c a d e aplausos. Russo e r a d o tipo q u e não p o d i a viver
d r o g a d o q u e c o m u m c u r s o d e d o u t o r E u só f r e q u e n t e i s e m os e l o g i o s d o s o u t r o s , e r a u m a f o r m a d e c o m p e n s a r a
a escola p o r q u e m e u p a i m e o b r i g a v a . Fiz t u d o p o r t u d o sua fealdade. A o o u v i r d i z e r q u e M a g r e z a era m u i t o mais
p a r a r e p r o v a r n o l i c e u , mas o sistema não p e r m i t e , disse-me c o m i l ã o q u e ele. Russo, n u m a t r o v e j a n t e g a r g a l h a d a , se
n u m a g a r g a l h a d a festiva. Para teres i d e i a , f a l t e i às aulas, aos apressou e m desafiá-lo p a r a u m a m a r a t o n a de b o l i n h o s d e
testes, e m b i r r e i c o m os professores, mas a p a r e c i a s e m p r e m e l e cerveja. C o m e r era o seu f o r t e e não via estofo n a q u e l e
u m professorinho p a r a d a r g r a x a à m i n h a mãe e m t r o c a d e m a g r i c e l a p a r a o d e f r o n t a r L e i a M a g r e z a a c e i t o u o desafio
u m a g o r j e t a e fazer-me passar d e classe. d o e m i g r a n t e c o m a condição de l h e oferecer u m bacio p a r a
A polícia apanhava-o n o m e i o d a m a d r u g a d a e levava- defecar e n q u a n t o c o m i a . O d u e l o a t r a i u u m a multidão d e
curiosos dispostos a c o b r i r a aposta d o m a g r i c e l a . Russo fez
-o p a r a casa. A sua mãe, c h o r a n d o , p r o m e t i a - l h e m u n d o s
u m a cara d e o f e n d i d o p e l o a t r e v i m e n t o d o moço-espeto e m
e f u n d o s p a r a d e i x a r a v i d a d e delinquência, mas n a d a o
aceitar o desafio e não se fez r o g a d o e m custear t u d o c o m a
d e m o v i a d a sua e s c o l h a e m q u e r e r ser l i v r e c o m o u m pas-
seguinte condição. Se ganhares d o u - t e u m a b i c i c l e t a n o v a e
s a r i n h o e v i v e r d o seu j e i t o .
se p e r d e r e s vais t e r d e m e lavar a sola dos pés c o m a língua.
L e i a i m i t a v a as c e n a s d o s f i l m e s i n d i a n o s , f a z i a
acrobacias e dançava, e n q u a n t o e u c a n t a v a e m t r o c a d e E r a u m a n o i t e d e sábado, véspera de f e r i a d o . E hábito,
sanduíches, s u m o s , f r u t a s , b o l o s e m o e d a s . L e i a M a g r e z a d e s d e s e m p r e , os b a r e s s e r e m os p r i n c i p a i s p o n t o s d e
q u e r i a ser p s i q u i a t r a e actor. C o m o p s i q u i a t r a , a j u d a r i a as atracção, t a n t o p a r a os j o v e n s c o m o p a r a os velhos, n o s

-I nr
MARGINAIS EVEL ROCHA

fins-de-semana. Os b a i r r o s d o s subúrbios têm p o u c a i l u - multidão e desespero d o grandalhão, o ossudo adversário


minação e, e m c o n t r a p a r t i d a , p o r e s t a r e m l o c a l i z a d o s e m tinha e n g o l i d o o seu último b o l o , esvaziado a última garrafa
ruas m a l i l u m i n a d a s , os bares p a r e c e m estrelas n o m e i o d a e despejado o q u i n t o bacio de caca.
n o i t e . D i s p o s t o s a m a i s u m a n o i t e d e diversão, as pessoas E m e l h o r p a r a r m o s , pá, disse M a g r e z a c o m a m e n i n a
fervilhavam na varanda do clube O d e r f para presenciarem dos o l h o s dançando n a órbita r a i a d a de sangue. O pançudo
a g u l a dos d o i s a p o s t a d o r e s . e m i g r a n t e i n t e r p r e t o u a frase c o m o u m sinal de fraqueza e,
Roguei ao Leia Magreza q u e não aceitasse a aposta. Russo o l h a n d o p a r a o estado deplorável d o m a n c e b o , descalçou
era u m desalmado q u e gostava de se d i v e r t i r c o m a fraqueza os sapatos p a r a r e c e b e r as l a m b i d a s . Estás d o i d o ? E u n u n c a
dos outros. Ele q u e r é humilhar-te, disse-lhe, tentando dissuadir- l a m b e r e i as tuas patas n o j e n t a s . M a n d a b u s c a r mais c e n t o
Ihe. Sossega-te, man!, r e t r u c o u L e i a , este h o m e m não sabe e c i n q u e n t a q u e te m o s t r o !
q u e o m e u a p a r e l h o d i g e s t i v o t e m ligação d i r e c t a : e n t r a Começaram t u d o de n o v o . A m a l t a g o s t o u d a ideia. E
p e l a b o c a e sai p e l o c u . N ã o é à t o a q u e m e c h a m a m d e era diversão e m d o b r o . Desta vez Russo p a r o u nos c e n t o e
tripa-de-corvo. d e z o i t o b o l i n h o s , b e b e u as v i n t e e q u a t r o cervejas q u e l h e
O b a r d e O d e r f ficava a o pé d a p r a c i n h a d e Q u e b r ô d tocavam e refastelou-se m e i o zonzo p a r a c o n t e m p l a r o d r a m a
e não faltava q u e m desse u m a m ã o p a r a levar a d i a n t e o d o m a n c e b o e m p o r c a l h a d o . O s rapazes f a z i a m a m e l h o r
desafio. Talvez seja necessário o L e i a passar p o r t a m a n h a algazarra, f u r a n d o n o m e i o d o p o v i n h o p a r a despejarem o
humilhação p a r a se c o l o c a r n o seu lugar, pensava e u . Russo pestilento conteúdo d o p e n i c o . C o m e c e i a ficar p r e o c u p a d o
p e d i u que colocassem c e n t o e c i n q u e n t a b o l i n h o s de m e l c o m Leia, p a r e c i a q u e não aguentava mais, mas, de r e p e n t e ,
e u m a c a i x a d e cerveja p a r a c a d a u m . A i d e i a d o matulão m e i o cambado, levantou-se d a bacia e b r a d o u n u m t o m aflau-
era i n t i m i d a r o m i r r a d o c o m p e t i d o r n u m sorriso m a l i c i o s o t a d o e g u t u r a l q u e fazia v i b r a r a p o n t i a g u d a maçã-de-adão:
e o p o r t u n i s t a . E se M a g r e z a n ã o l h e lambesse a sola dos Vá, todos! C o n t e m e n q u a n t o c o m o p a r a ver se Russo acorda.
pés r e s s u m a d o s d e chulé a z e d o e r e p u l s i v o ? A u m a só voz, a multidão c o n t a v a . C e n t o e q u a r e n t a e
L e i a a r r i o u as calças, sentou-se n o bacio e c a l m a m e n t e seis... c e n t o e q u a r e n t a e sete... (as pausas e r a m precedidas
começou a e m p a n t u r r a r o estômago c o m b o l i n h o s d e m e l , de arrotos repulsivos) cento e q u a r e n t a e o i t o . . . cento e
e m p u r r a n d o - o s c o m cerveja e m arrotos ruidosos, n o s e u j e i t o quarenta e nove, cento e cinquenta!
trocista e m a r o t o q u e l h e era característico. Russo tinha pressa O b a r e x p l o d i u e m aplausos e gritos efusivos. E u avisei-
e m esvaziar o cesto d e b o l i n h o s e as garrafas de cerveja p a r a -te q u e o m e u i n t e s t i n o t e m ligação d i r e c t a ! E u avisei-te!,
d e p o i s se d e l i c i a r c o m o s o f r i m e n t o d o seu adversário. L e i a c u s p i u e n t r e os d e n t e s p a r a d e p o i s escancarar a b o c a até
não tinha pressa. Parecia u m c a n o d e esgoto, mastigava e às orelhas, p o n d o à m o s t r a as gengivas e m p a p a d a s de b o l o ,
e n g o l i a a massa u n t a d a c o m cerveja e p o u c o depois ouvia-se P ô . . . ! T r e z e n t o s b o l o s d e m e l e q u a r e n t a e o i t o cervejas!
a detonação dos p e i d o s e c o c ó n o bacio, r o m p e n d o a atmos- Russo não c h e g o u a o u v i r o b r a d o de Magreza p o r q u e
fera de gazes nauseantes. Russo, r u b o r i z a d o p e l a sua proeza, estava n u m pesado ressonar. F i c o u m a r e a d o pelos b o l i n h o s de
a p l a u d i u i r o n i c a m e n t e a c o r a g e m d e M a g r e z a q u e tinha m e l e p o r m u i t o t e m p o não quereria saber d a fatiota. F o i a p i o r
e n g o l i d o o seu centésimo b o l o . F a l t a m «apenas» c i n q u e n t a . das humilhações q u e ele passou e m t o d a a sua vida. Mais tarde.
T o d o s apostavam q u e a vitória seria de Russo e q u e t a r d e o u L e i a Magreza explicou-me que os olhos esgazeados f o r a m u m a
c e d o L e i a havia de desistir N o e n t a n t o , p a r a a surpresa d a simulação p a r a a n i m a r o c o z i n h e i r o a apostar mais.
EVEL ROCHA

XIV

Q u a t r o anos passaram-se desde a s o m b r i a n o i t e e m


q u e e n c o n t r e i o polícia a v i o l a r Pianista. D u r a n t e t o d o esse
t e m p o , e u v i n h a p l a n e a n d o u m a f o r m a d e vingança. E r a
necessário a g i r s e m a s s o m b r o . Fusco v e n d i a o c o r p o c o m o
m u l h e r d e v i d a aos turistas e m t r o c a d e d i n h e i r o e r o u p a s .
Pianista tornara-se n u m exímio passador. B e t o Vesgo escon-
d i a a sua solitária o r f a n d a d e atrás d e c o p o s d e g r o g u e e
d o seu c a r r i n h o d e l i x o e L e i a M a g r e z a t r a n s f o r m o u - s e n o
palhaço d o s bares, o a c t o r a feijões e m t r o c a d e míseras
r e c o m p e n s a s e aplausos p a r a levar a v i d a . L e i a n e m tinha
necessidade d e se m e t e r n a v i d a d e m a r g i n a l , p o i s , o seu
pai era e m i g r a n t e de l o n g a data e a mãe u m a m u l h e r
m u i t o r e l i g i o s a e respeitada. E u f u i s e m p r e o insatisfeito d a
m a l t a , tinha o d e m ó n i o d a consciência atazanando a m i n h a
v i d a , r e p r e e n d i a o C r i a d o r p o r t e r c r i a d o pessoas c o m o
nós, combustíveis h u m a n o s , j o g u e t e s q u e a n d a m d e m ã o
e m m ã o , o p e n i c o d e escarro d a s o c i e d a d e . M e u coração
t r a n s f o r m o u - s e n u m l e i t o d e u m a r i b e i r a seca, a e s t i a g e m
s u g o u a última g o t a d e b o n d a d e q u e fluía e m m i m .
A n d a r p o r aí a d e n u n c i a r os polícias q u e v i o l a m m e n o -
res é o m e s m o q u e a s s u m i r q u e «andamos a d a r p o l p a » .
Desaprendi a amar
Os rapazes sentiam-se sublevados p e l o passado, p o r é m
n ã o f a z i a m caso; d i z i a m q u e o passado e r a o passado e
ficavam b o r r a d o s d e m e d o c o m o m e u desejo d e vingança.
T u d o a c o n t e c e u n a n o i t e e m q u e saímos n o c a r r o d o patrão
d e Pianista. S e m lhes d i z e r n a d a , p r o m e t i a m i m m e s m o
MARGINAIS EVEL ROCHA

q u e a q u e l a s e r i a a m i n h a n o i t e d e vingança. T o m e i o A c a m i n h o d e Espargos, p a i r a v a n o ar a questão: e se


v o l a n t e d o c a r r o e rumámos p a r a os lados d e P a l h a V e r d e , o seu c a r r o tivesse e s b a r r a d o c o n t r a nós? - B o m , se o m e u
c o m P i a n i s t a s e m p r e r o g a n d o p a r a q u e n ã o fizesse u m a avô n ã o m o r r e s s e , estava v i v o !
asneira, Se o patrão n o t a r u m r i s q u i n h o desse tamanhinho, O d o u t o r A p o l i n á r i o f r a c t u r o u u m a p e r n a e tinha
ele esfola-me v i v o . E sério, man, n ã o e s t o u a b r i n c a r ! a l g u m a s escoriações, p o r é m , n a d a q u e pudesse a p l a c a r a
Chegámos a u m a l o m b a d a , estacionei o carro n a sua v a i d a d e e i m p e d i r o seu propósito d e i n f e r n i z a r a v i d a
' contra-mão, a p a g u e i as luzes. T o d o s estavam d e m a s i a d o dos o u t r o s . O c a r r o ficou c o m p l e t a m e n t e destruído. N ã o
bêbados p a r a r a c i o c i n a r e a c h a r a m graça n a m i n h a i d e i a d e e r a m i n h a intenção matá-lo, m a s apenas fazê-lo s e n t i r u m
estacionar o c a r r o n a contra-mão, n a q u e l e deserto d e b a i x o p o u c o o sabor a m a r g o d o s o f r i m e n t o . N e s t e s e n t i d o , c o n -
d e u m b r e u m e d o n h o e u m silêncio d e c o r t a r a respiração. segui o q u e q u e r i a . Para L e i a , filme q u e não tivesse sangue
A l h e i o às pieguices e ao c o n c u r s o d e p e i d o q u e p r o m o v e r a m n ã o prestava. M a s n a q u e l e m o m e n t o , L e i a teve m e d o d e
p a r a passar o t e m p o , m e u s o l h o s estavam fixos n o troço sair d o c a r r o p a r a e n c a r a r a r e a l i d a d e . D o i s meses d e p o i s ,
d e estrada à m i n h a f r e n t e . A q u e l a e r a a h o r a e m q u e o D r o a d v o g a d o j á estava s e n t a d o à v a r a n d a d o seu palacete d e
A p o l i n á r i o regressava a casa. P o u c o d e p o i s , o u v i o r u í d o n a r i z e m p i n a d o , l e n d o u m j o r n a l , c o m u m descapotável,
d o c a r r o q u e v i n h a d i s t a n t e , os faróis acesos não d e i x a v a m último m o d e l o , e s t a c i o n a d o à p o r t a d a casa. O i n c i d e n t e
dúvida d e q u e se tratava d o c a r r o d o advogado. Lá v i n h a ele n ã o m e fez s e n t i r v i n g a d o d e t o d o , p o r é m , s e r v i u p a r a
n a nossa direcção. O c a r r o v i n h a e m excesso d e v e l o c i d a d e l e v a n t a r o m e u ego, o s u f i c i e n t e p a r a s u p o r t a r a presença
e, ao aproximar-se d o l u g a r o n d e estávamos, a c e n d i os faróis d a q u e l e d e s a f o r a d o , d e g u s t a n d o os m a n j a r e s d o s deuses,
n o máximo encandeando-o e m cheio. D o u t o r Apolinário e n q u a n t o a miséria desfilava à sua v o l t a .
despistou-se c o m o c a r r o p e l a ribanceira às cambalhotas. Os
rapazes g r i t a r a m assustados e e u g r i t e i d e c o n t e n t a m e n t o . A m u l h e r d e A n t ó n i o estava grávida p e l a t e r c e i r a
H o u v e u m silêncio c o n f r a n g e d o r e depois todos começaram vez. O m é d i c o disse-lhe q u e i a ser p a i d e três g é m e o s .
a g r i t a r a o m e s m o t e m p o . Já mataste a q u e l e h o m e m ! E n q u a n t o L a u r a c h o r a v a a sua desgraça d e e m três anos
D i s t a n t e , n o s m e u s p e n s a m e n t o s e m turbilhões, ser m ã e d e seis filhos, m e u i r m ã o a n d a v a e n t u s i a s m a d o
r e c o r d a v a as cenas d e injustiça e d e s p r e z o p e r p e t r a d a s c o m a sua v i r i l i d a d e , D a p r ó x i m a serão q u a t r o ! L o l o c a ,
p o r e l e . As mãos trémulas d e P i a n i s t a v i e r a m c o n f i r m a r - i m a g i n a a f a m a q u e vamos g a n h a r ! Os j o r n a i s d o m u n d o
-me q u e e u era mais corajoso d o q u e ele. Resolvi i r d a r i n t e i r o vão t r a z e r a m i n h a f o t o g r a f i a e s t a m p a d a : o único
u m a e s p r e i t a d e l a p a r a c e r t i f i c a r se o d e s a l m a d o estava h o m e m d a T e r r a c o m u m , d o i s , três, q u a t r o g é m e o s ! N a
m e s m o m o r t o . V e n d o a c o v a r d i a e s t a m p a d a n o s seus p r i m e i r a b a r r i g a d a , d u a s filhas; n a s e g u n d a b a r r i g a d a ,
r o s t o s , disse-lhes. A s meninas p o d e m ficar a q u i d e n t r o u m doutoii N a t e r c e i r a b a r r i g a d a , três filhas! N a q u a r t a
c h o r a m i n g a n d o ; v o u checar se o d i a b o m o r r e u . b a r r i g a d a q u a t r o . . . V i r a essa b o c a p a r a lá, seu d e s a l m a d o !
O carro teria capotado umas três o u q u a t r o vezes e estava M e s m o q u e e u quisesse v o l t a r p a r a casa n ã o o f a r i a .
a cerca d e q u a r e n t a metros f o r a d a estrada c o m as rodas p e l o Seria difícil viver n u m infantário d i r i g i d o p o r u m l o u c o e
ar, os faróis acesos n u m b u z i n a r ensurdecedor Para o alívio dos u m a b r u x a . A n t ó n i o g a n h a v a b e m , mas gastava a c i m a das
q u a t r o medrosos, ele estava vivo e gritava p o r socorro. Saímos suas p o s s i b i l i d a d e s . A v i d a n a q u e l a casa e r a u m a e t e r n a
d o local o mais depressa possível p a r a não sermos apanhados. f a r r a e n q u a n t o houvesse d i n h e i r o . E l e andava s e m p r e

111
MARGINAIS EVEL ROCHA

r o d e a d o d e a m i g o s e a única pessoa q u e p e r t u r b a v a a sua


a l e g r i a e r a e u p o r q u e as pessoas d i z i a m q u e Analgésio e r a
a m i n h a cara escarrado e cuspido. António, perseguido
XV
p o r u m ciúme d o e n t i o , achava q u e e u tivesse a b u s a d o d a
sua m u l h e r , e n g r a v i d a n d o - a . P r e f e r i a ser c a s t r a d o a t e r d e
m e e n v o l v e r c o m a q u e l a víbora. E l a e r a r u i m d e m a i s p a r a
ser g e n t e . Só u m ser p e r v e r s o e r a capaz d e e n g r a v i d a r d e
três crianças n u m a b a r r i g a d a .
As trigémeas n a s c e r a m e t i v e r a m d e e s p e r a r c e r c a d e
três meses p o r u m n o m e : L a u r a d e r m e Sofia, Colíria Sofia M i r n a continuava n o desemprego, n o entanto, nada
e P e n i c i l i n a Sofia. S i n c e r a m e n t e ! A este r i t m o , terás u m a l h e t i r a v a a a l e g r i a d e viver. O s e u l i n d o c o r p o d a v a - l h e
farmácia c o m p l e t a e m casa!, e x c l a m o u a responsável d o s o r t e ; r e c e b i a c o n v i t e s p a r a festas, g a n h a v a p r e s e n t e s d o s
r e g i s t o c i v i l . O l h a , os d o i s p r i m e i r o s n o m e s são l i n d o s , mas h o m e n s casados e n ã o l h e f a l t a v a u m a b o a p r o p o s t a d e
o t e r c e i r o . . . até q u e p o d i a s c o r t a r o « p e n i » e d e i x a r apenas casamento. N h a M a r i a d o M o n t e era u m espelho real
« c e l i n a » . A c h o q u e a mãe d a L a u r a v a i ficar c o n t e n t e e m d a q u i l o q u e os h o m e n s f a z i a m às m u l h e r e s e e l a n ã o
saber q u e u m a das suas n e t i n h a s t e m o seu n o m e . Q u e estava n a disposição d e se a p e g a r a u m s u j e i t o q u a l q u e r
achas? D o n a M a n u e l a t i n h a s e m p r e u m j e i t o d e c o n t o r n a r c o m o a c o n t e c e r a c o m a mãe. E l a disse-me q u e , se u m d i a
os embaraços. tivesse d e casar, s e r i a c o m i g o , só q u e e u n ã o t i n h a o n d e
Só p o r isso é q u e m u d o o n o m e , disse António coçando c a i r m o r t o . Essas p a l a v r a s a t i n g i r a m - m e d o l o r o s a m e n t e
a cabeça, p o d e m não gostar dos n o m e s , mas as filhas são o f u n d o da alma, mas era a mais p u r a verdade. E u t i n h a
m i n h a s ! Q u e m a n i a d e i m p l i c a r c o m os n o m e s das m i n h a s e n t r a d o nos m e u s v i n t e e u m anos de i d a d e e não t i n h a
filhas. T o d a s as vezes q u e c h e g o cá é m e s m a m e . . . n e m u m cento de alfinete. Partilhava o q u a r t o c o m u m
Laura foi laqueada contra a vontade do m a r i d o entu- gay e u m c h a n f r a d o d e o l h o t o r t o q u e v i v i a a r e c o l h e r
siasmado c o m a i d e i a d e v i r a ser o p r i m e i r o c a b o - v e r d i a n o l i x o dos e n g o m a d o s d a Pretória. N ã o m e e n v e r g o n h o
p a i d e q u a t r o g é m e o s . A g o r a q u e r e s ser p a i d e q u a t r o , d e d i z e r q u e p o r vezes t i n h a d e s u b t r a i r o q u e e r a d o s
d e p o i s , quererás ser d e c i n c o ! E e u , p o r v e n t u r a t e n h o c a r a o u t r o s p a r a s o b r e v i v e r - subtraía, n ã o r o u b a v a ! P a r a
d e p o r c a p a r i d e i r a ? E x p e r i m e n t a cagar u m c o c o e saberás pessoas c o m o e u , e n c o n t r a r u m e m p r e g o dava u m t r a b a -
o que é parir, desabafou Laura. l h ã o . J o r g i n h o estava a f a z e r sucesso e m P o r t u g a l c o m o
f u t e b o l i s t a e e u n ã o c o n s e g u i a fintar a p o b r e z a , n ã o
c o n s e g u i a s e q u e r m a r c a r u m g o l o d e esperança nesse
estádio d e miséria q u e o d e s t i n o m e r e s e r v o u . P i a n i s t a
p r o m e t e u c o n v e n c e r o seu patrão p a r a m e a c e i t a r c o m o
m u l a , m a s este n u n c a h a v e r i a d e a c e i t a r p o r q u e t i n h a
ciúmes d o m e u r e l a c i o n a m e n t o c o m F u s c o . F i n a l m e n t e ,
consegui u m trabalho de m u l a para u m italiano, d o n o
d e u m a l o j a d e s u r f . P a g a v a - m e b e m . E r a só t o m a r a

112 -1 n
MARGINAIS EVEL ROCHA

d r o g a e l e v a r p a r a os c l i e n t e s . A p r i n c í p i o t i v e m e d o , Abastecer-me d e cocaína e r a m o l e z a . A p r e n d i r a p i d a -
n o e n t a n t o , aos p o u c o s , f u i h a b i t u a n d o - m e a o m u n d o m e n t e os t r u q u e s d e c o m o l i d a r c o m as pessoas envolvidas
s e c r e t o das d r o g a s . E m p o u c o t e m p o , t o r n e i - m e u m n o n e g ó c i o . A p r i m e i r a lição a c o n t e c e u n u m a lanchonette
vendedor ambulante. e m Santa IVIaria: R i c a r d o Pianista p e d i u dois hambúrgueres
Se n ã o v e n d e s s e d r o g a , a c a b a r i a c o m o N h i p s e b r a n c o s . D u r a n t e o t e m p o d e espera, fiquei a i m a g i n a r o
P a l e r m a , v i v e n d o d e favores, o u t e r i a d e o p t a r p o r r e c o l h e r q u e seria u m « h a m b ú r g u e r b r a n c o » : D e v e ser u m h a m -
l i x o n a casa dos abastados, mas m e u o r g u l h o e r a g r a n d e búrguer m e s m o cool, d o tipo q u e e n c h e a pança e d e i x a o
demais, a m i n h a vaidade gelatinosa não c o m b i n a v a c o m cliente a chorar p o r mais!
as l i x e i r a s . O q u e h a v i a d e d i z e r a o H u m b e r t o , q u a n d o F i n a l m e n t e , o i t a l i a n o a p a r e c e u c o m os d o i s h a m -
ele voltasse d o curso? C o m o h a v e r i a d e e n c a r a r J o r g i n h o búrgueres b r a n c o s r e c h o n c h u d o s e e u não v i a a h o r a d e
q u a n d o ele voltzisse à terra? C o m o p o d e r i a c o n q u i s t a r o atravessar a e s q u i n a e e n t e r r a r os d e n t e s n a q u e l a coisa.
coração d e I z i l d a ? N ã o , m i l vezes n ã o ! N e m pensar, boyl, e s p a n e j o u Pianista, Achas q u e se quisesse
Adélia f o i á m i n h a p r i m e i r a n a m o r a d a n o limiar c o m e r ia e n c h e r o estômago dessa p r e c i o s i d a d e ? E l e a b r i u
d a m i n h a a d o l e s c ê n c i a . F o i c o m e l a q u e g a n h e i o esta- o p ã o e lá d e n t r o estava e n t u p i d o d e doses d e cocaína!
t u t o d e h o m e m n o s n o s s o s e n c o n t r o s íntimos. D e u m a E r a apenas u m a das m i l m a n e i r a s d e r e c e b e r o p r o d u t o .
f o r m a inexplicável, ela desapareceu d o nosso convívio. A p r a i a d e S a n t a M a r i a passou a ser o m e u m u n d o .
Falava-se a b o c a p e q u e n a q u e e l a t i n h a s i d o m a n d a d o D o r m i c o m m u l h e r e s d e p e l e r o s a d a , d e o l h o s azuis, p a r -
d e v o l t a p a r a a casa d o s p a i s n a i l h a d a B o a V i s t a . Q u a s e ticipava das o r g i a s e das n o i t a d a s d e P o n t a Preta, a p r e n d i
d e z a n o s d e p o i s , e l a r e g r e s s o u a o Sal c o m u m a f i l h a , a a a n d a r n u c o m os b a n h i s t a s , n a p r a i a , sob a l u a c h e i a q u e
G e r t r u d e s , e o m a r i d o q u e s o f r i a d e a s m a . E l a estava m a i s p a r e c i a u m s o l p r a t e a d o . T i n h a m u i t a s vezes d e m e
m a i s l i n d a d o q u e n u n c a . N ã o p e r d e u o s e u j e i t o aca- m i s t u r a r c o m h o m o s s e x u a i s , casais d e hábitos e s t r a n h o s ,
n h a d o e o o l h a r t e r n o d o s d i a s d a s u a infância. A d é l i a j o v e n s turistas esquisitos e paranóicos, m u l h e r e s ricas sepa-
c u m p r i m e n t o u - m e u m a vez, m a s d e p o i s p a s s o u a e v i t a r - radas o u c a r e n t e s , infiéis e viúvas, mas a m a i o r d i f i c u l d a d e
- m e n a r u a . C e r t a vez, o m a r i d o , u m j o v e m e s f o r ç a d o e e r a t e r q u e e m p u n h a r u m a n a v a l h a p a r a e n f r e n t a r os
m u i t o e d u c a d o , teve u m a t a q u e d e asma n o snack-bar i m i g r a n t e s d a costa o c i d e n t a l a f r i c a n a q u e p o n t i l h a v a m a
Bom Dia. E r a a p r i m e i r a vez q u e isso a c o n t e c i a d e p o i s p r a i a c o m o p r a g a d e g a f a n h o t o s f a m i n t o s q u e p a r e c i a m ter
d e t e r e m c h e g a d o à i l h a d o Sal. N e n é , o g e r e n t e d o Bom d e s p r e z o p e l a v i d a . Eles e r a m m a i s astutos q u e nós e, p e l o
Dia, s e m s a b e r o q u e fazer, m a n d o u q u e as pessoas se v i l m e t a l , v e n d i a m a a l m a d a própria mãe. A p r a i a é u m a
afastassem, E l e p r e c i s a d e a r e a s s i m vocês n ã o estão a m i n a d e o u r o p a r a o o p e r a d o r turístico, u m c a n t i n h o d o
ajudar. Adélia c o l o c o u - l h e u m a b o m b a de asma n a boca paraíso b o r d a d o d e a r e i a fina e d o u r a d a , b a n h a d o d e água
e p o u c o d e p o i s o r a p a z l e v a n t o u - s e . T e n t e i ajudá-lo, tépida e e s m e r a l d a p a r a os a m a n t e s d o s o l e d o m a r , mas
mas ela disse-me r i s p i d a m e n t e q u e não a p r o x i m a s s e d o p a r a nós e r a u m c a m p o d e b a t a l h a . É m a i s fácil e n c o n t r a r
seu m a r i d o e d a sua filha. O m a r i d o era r e v e n d e d o r de d r o g a n a vila d o que areia n a praia d o m a r
lagosta, percebes e peixes d a sua i l h a n a t a l . A p r o s p e r i - A l g u n s imigrantes d a costa d a Africa d o m i n a m o negócio
d a d e e a f e l i c i d a d e r e i n a v a m n a q u e l e lar. d e v e n c k d a d r o g a e d a prostituição. Isso não é p r e c o n c e i t o ,
é a mais p u r a verdade. As suas m u l h e r e s t r a n s f o r m a r a m a

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MARGINAIS EVEL ROCHA

p u r e z a d a areia n u m i m e n s o lençol de prostituição. A cada q u e m e despedi dele, p e l a última vez, p e d i u - m e encarecida-


passo há u m a n e g r a a z u l a d a i n t e r r o m p e n d o u m b r a n c o m e n t e q u e não o deixasse o u m o r r e r i a , p o i s e u e r a o único
rosado, e s t e n d i d o à mercê dos raios solares n u m b r o n z e a r ser h u m a n o q u e o c o m p r e e n d i a . E l e d e u - m e u m a c a r t a
q u e mais parecia o g r e l h a r de u m f r a n g o . E m b r u l h a d a s e m p a r a e n t r e g a r a o seu p a i e fez-me j u r a r q u e l h o e n t r e g a v a
toalhas, elas b a m b o l e i a m n a areia escaldante e m busca d e n o d i a seguinte, b e m cedo.
fregueses. N a p r i m e i r a o p o r t u n i d a d e , d e i x a m cair a t o a l h a Pela manhã, a v i l a d e Santa M a r i a f o i a c o r d a d a c o m o
p a r a o s t e n t a r e m os seus a b u n d a n t e s dotes f e m i n i n o s aos a l a r d e d a m o r t e d e V a l d o m i r o n u m d o s b a n c o s d a praça.
turistas vesgos d e admiração p e l o e x o t i s m o . O s e u r o p e u s E l e teve u m a t a q u e cardíaco f u l m i n a n t e p r o v o c a d o p o r
não se i m p o r t a m d e se p r o m i s c u i r e m c o m elas n a areia p a r a u m a overdose. Q u a n d o r e c e b i a notícia, l e m b r e i - m e d a
depois, n o buffetáo h o t e l , c o n t a r a experiência e m gargalha- c a r t a e f u i a p r e s s a d a m e n t e a casa d e n h ô C h i q u i n h o p a r a
das t r i u n f a n t e s . l h a e n t r e g a r P e d i u - m e q u e l h e lesse a c a r t a p o r q u e a vista
I n e v i t a v e l m e n t e , tive a m i n h a p r i m e i r a experiência estava escura. F o m o s p a r a u m q u a r t i n h o d o f u n d o , p o i s
h o m o s s e x u a l c o m V a l d o m i r o . N o início, e u sentia-me a casa estava a p i n h a d a d e g e n t e a c h o r a r A c a r t a , c o m
embaraçado p o r ter de pegar n a mão de u m p a n d e i r o , e n o r m e s nódoas d e lágrimas, d i z i a o s e g u i n t e :
panasco coleando c o m o u m a lagarta de feijoeiro, fazendo
b e i c i n h o s , mas aos p o u c o s f u i - m e a c o s t u m a n d o e acabei Carta ao meu pai
p o r t e r u m c o n t o c o m ele. O m e u e n v o l v i m e n t o c o m Pai, a minha vida está no fim. Mas antes de morrer,
V a l d o m i r o f o i m a i s p o r c o m p a i x ã o , d e p o i s d e saber q u e eu qu£ria dizer você que tenho a consciência qu£ nunca fui
ele tinha s i d o a b u s a d o p o r u m g r u p o d e d e l i n q u e n t e s . aquilo qu£ esperavas de mim. Estou calmo e consciente do
Q u i s ajudá-lo e p e r c e b e r m e l h o r o q u e levava u m h o m e m que eu escrevo. Nunca gostaste de mim pelo meu jeito e das
a e s c o l h e r esse c a m i n h o . N ã o e r a fácil fazer o m u n d o c o m - coisas qu£ eu gosto efaço. Tudo o qu£ eu quis desta vida era
p r e e n d e r a razão d e ser m a r i c a s , m o s t r a r a c r u e l d a d e d a viver tranquilamente, ter um lugar para morar e ser feliz
própria n a t u r e z a c o n t r a u m h o m e m p r e d e s t i n a d o a ser da minha maneira. Querias que eu tivesse uma família,
m u l h e r T o d a vez q u e a c o n t e c i a a l g o e n t r e nós, e u t o m a v a uma mulher mas o facto de eu ser diferente incomodava-te
u m b a n h o d e sabão potassa e d e íeéj&oípara tirar o s u o r d e atiea todos os meus irmãos. A princípio eu ficava doente
h o m e m e o bafo m a s c u l i n o d a m i n h a pele que, m e s m o com esta situação, eu odiava a minha forma de vida por
após u m d e m o r a d o b a n h o , e u s e n t i a u m a c o c e i r a 4 o s saber que eu estava a envergonhar você que sempre quis
diabos. M i r i n h a vivia sufocado p o r u m a angústia e p o r vezes que eu fosse um homem masculino. Antes de largar a casa,
tinha a impressão q u e a q u a l q u e r h o r a m o r r e r i a a f o g a d o eu passava a vida a afogar meus sentimentos por Gabriel,
nas próprias lágrimas d e d e s e s p e r o . T a l c o m o F u s c o , e l e vivia deprimido e brigava com meu corpo-de-homem porque
encontrava-se n a d u r a b a t a l h a d e c o n v e n c e r os o u t r o s d a ele não era como os outros. Eu massacrava meu corpo toda
sua n a t u r e z a q u e n ã o éra n e m d e h o m e m n e m d e m u l h e r vez que formigava por carícias e desejava que um homem
E u não a m a v a M i r i n h a c o m o j a m a i s a m a r i a n i n g u é m . me tocasse para acalmar meus desejos de mulher. Isto me
T i n h a c h e g a d o o m o m e n t o d e p ô r u m p o n t o final diminuía como ser vivente por saber que meu pai não era
n a q u e l e r e l a c i o n a m e n t o e n a v i d a d e passador d e d r o g a feliz por saber que um dos seus filhos era o contrário de todo
nos restaurantes e n a p r a i a de Santa M a r i a . N a n o i t e e m o mundo, um maricas. Que vergonha!
MARGINAIS
EVEL ROCHA
Sou homensexual, a sujeira qu£ entrou na sua casa
p a r a a prosperidade e ninguém mais havia de m e segurar
mas não sei viver de outra maneira. Quero que saibas que
nessa n o v a c a m i n h a d a r u m o à f e l i c i d a d e . E n g e n d r e i u m a
eu não virei homensexual, nasci assim. Por isso, meu pai,
f o r m a d e r o u b a r e n e r g i a eléctrica d u m p o s t e d e l u z q u e
para que não sintas mais humilhação e porque não sei viver
ficava m e s m o e m f r e n t e d a casa, d e m o d o q u e tinha l u z ,
de outra maneira, vou matar a cabeça. Talvez num outro
p e r m a n e n t e m e n t e , sem p a g a r u m tostão.
mundo eu possa ser mais compreendido tal como sou. Sou
M a g r e z a , m o ç o d e espírito a b e r t o e engraçado, tinha
capaz de aguentar as troças, a fofoca da vizinhança, mas
s e m p r e sugestões p a r a m e l h o r a r o a s t r a l d a q u e l e s q u e
não posso viver sem a tua bênção! Perdoa-me por ter nascido
v i v i a m ao seu l a d o . S u g e r i u - m e q u e montasse u m a c o z i n h a
gay. Adeus para sempre.
d e ganjada, B r o t h e r , tens a q u i u m a o p o r t u n i d a d e d e o u r o
p a r a fazer sucesso v e n d e n d o salada d e ganja, chá d e ganja,
Valdomiro Ferreira
sopa d e ganja, ganjaburguere o u t r a s variedades. Verás a t u a
f o r t u n a multíplicar-se c o m o a r e i a n o m a r - disse-me. C a d a
N ã o f u i ao f u n e r a l . N ã o senti a m o r t e de M i r i n h a ; ele n o i t e e r a u m festival d e a l e g r i a e d e p r a z e r N a casa d e
era u m desgraçado c o m o q u a l q u e r o u t r o : H o j e , é M i r i n h a e b a n h o , L e i a teve a insólita i d e i a d e c o l a r u m a u t o c o l a n t e
amanhã sou e u . Até breve, m e u camarada. Havemos d e nos c o m a c a r a d o d r . A p o l i n á r i o n o f u n d o d a sanita, Sabes,
e n c o n t r a r n o a n d a r d e c i m a . P r e f e r i ficar e m casa, n o v e l h o é q u e vai dar-me sempre o prazer de descarregar meus
g[ueto, d e o n d e p a r t i r a p a r a Santa M a r i a , o u v i n d o música desarranjos d e b a r r i g a s o b r e a q u e l a c a r a safada q u e m a i s
d u r a n t e o d i a e a pensar e m c o m o safar l o n g e d a c o r r e r i a p a r e c e u m t i r o d e bosta. U r i n a r o u d a r u m a p o l p a d a sobre
d a q u e l a p r a i a . B e t o Vesgo c o n t i n u a v a a viver d o l i x o e não se o r o s t o d a q u e l e h o m e m , a i n d a q u e fosse u m a f o t o g r a f i a ,
i m p o r t a v a q u e e u ocupasse o m e u l u g a r n o q u a r t o : p r i m o , t u d a v a u m p r a z e r indescritível.
sabes q u e o m e u g u e t o está s e m p r e à t u a disposição.
Fiz u m a p e q u e n a f o r t u n a passando d r o g a , mas o
d i n h e i r o deslizava d a m i n h a m ã o c o m o sabão m o l h a d o ,
p o r isso, tive d e a r r a n j a r u m a p e q u e n a h o r t a d e g a n j a n o s
esgotos d e F o r t i m . T o d o s os dias, à t a r d i n h a , i a c u i d a r das
m i n h a s p l a n t i n h a s viçosas q u e se m u l t i p l i c a v a m r a p i d a -
m e n t e . N ã o faltava q u e m quisesse f u m a r u m «padjinha» o u
t i r a r u m simples c h a p o p o r q u e a m i n h a erva era boa e era
tratada c o m m u i t o c a r i n h o . Ganja é u m a droga inocente.
N u m mês, g a n h a v a o s u f i c i e n t e p a r a s u s t e n t a r os m e u s
c a p r i c h o s e c h a f u r d a r n o s prazeres d a cerveja. C o m p r e i
u m t e r r e n o nas imediações d a R i b e r a d'Oze^ e construí u m
rés-dcKzhão t i p o p a r d i e i r o . N ã o e r a a casa dos m e u s s o n h o s
m a s e r a c ó m o d o , u m g u e t o só p a r a m i m . A q u e l a casa
r e p r e s e n t a v a o início d e u m a n o v a v i d a , o p o n t o de p a r t i d a
6 Ribeira dos Asnos
EVEL ROCHA

XVI

M i r i n h a e Fusco e r a m paneleiros assumidos já o


A l c i n d o f o i u m f e n ó m e n o d a n a t u r e z a q u e até h o j e n i n -
g u é m c o n s e g u i u e x p l i c a r A c o r escura e as feições grossas
g r a n j e a r a m - l h e o cínico a p e l i d o d e « l o i r o » e, p a r a d o x a l -
m e n t e , ele tinha n a m o r a d a s aos cachos. C o m o p o d e r i a
u m a «coisa» esquisita ser tão p o p u l a r e n t r e as m u l h e r e s ?
N i n g u é m sabe. P r o v a v e l m e n t e o a m o r é m e s m o c e g o .
Cidália n a m o r o u c o m ele d u r a n t e o i t o meses e d i z i a q u e
era m e s m o dos bons, u m pão! Para c o m p l i c a r mais as coisas,
a q u e l e m a l - a c a b a d o q u e n u n c a t r a b a l h o u tinha u m a v i d a
de l o r d e , pois as moças davam-lhe t u d o . N a h o r a d o «vamos
v e r » , ele só se s e n t i a b e m às escuras, a r g u m e n t a n d o m a i o r
d e s e m p e n h o e concentração. A j o g a r f u t e b o l A l c i n d o e r a
u m autêntico p e r n a - d e - p a u , c o n t u d o , e r a graças a ele q u e
h a v i a a l g u m público f e m i n i n o nas peladas. L o i r o tinha
u m a s tiradas q u e f a z i a m as m e n i n a s d e r r e t e r e m - s e p o r
ele. N ã o sei d e o n d e a p r e n d i a os xavecos, mas t e n h o d e
r e c o n h e c e r q u e ele e r a imbatível n a matéria d e conquistas.
N u m a festa, t e n t e i c h a m a r a atenção d e u m a moça j e i t o s a ,
fiz.mil e u m a tentativas, m a s n a d a p a r e c i a d a r c e r t o . A o
L o i r o b a s t o u u m a p i s c a d e l a p a r a d e p o i s disparar. Jóia, se
b e l e z a fosse c r i m e , apanhavas prisão perpétua!
A s s i m q u e L o i r o s e n t i u q u e a m e n i n a se interessava
p o r ele, n u m r e m a t e t r i u n f a n t e , s e g r e d o u - l h e ao o u v i d o .
T u n ã o és a «ave-maria» mas és «cheia d e graça»! A q u e l a
c e n a a r r a s o u a concorrência. F u i p a r a a casa d e b a n h o ,
o l h e i p a r a o espelho, m i r e i o m e u rosto e i n t e r r o g u e i a m i m
MARGINAIS — • • EVEL ROCHA

m e s m o , O q u e é q u e o A l c i n d o t e m q u e e u não t e n h o ? S o u a resposta à g r a v i d e z d a «Branca d e N e v e » : Será q u e ele se


m a i s b o n i t o q u e ele, s o u m a i s h a b i l i d o s o e, n o e n t a n t o , as d e s v i r g i n o u a si próprio? C o m o terá r e a g i d o o l a d o mas-
m e n i n a s g o s t a m mais d e l e d o q u e e u . c u l i n o ao v e r q u e o l a d o f e m i n i n o estava a sobrepor-se ao
A sua p o p u l a r i d a d e e n t r e a massa f e m i n i n a i r r i t a v a a seu d o m í n i o d e h o m e m m a c h o ? C o m o é f o r n i c a r c o n s i g o
t o d o s . O l h a p a r a as m i n h a s u n h a s , pá. Já viste coisa i g u a l ? , mesmo? A l c i n d o e r a u m casal tipo «dois e m u m » c o m o n o s
p e r g u n t o u - m e , Q u a n d o q u e r o a p a n h a r u m a g a t a , é só p r o d u t o s d o m e r c a d o e m promoção? A N a t u r e z a , n a sua
e s t e n d e r as mãos d e m o d o q u e as u n h a s f a l e m p o r m i m ; i n f i n i t a perfeição c r i o u o h i p o p ó t a m o , o a n i m a l m a i s f e i o
m u l h e r n e n h u m a c o n s e g u e resistir a t a n t o c h a r m e , disse- d o m u n d o . Por que haveria de criar u m A l c i n d o , perfeito
m e , o s t e n t a n d o o seu l a r g o sorriso de m a r f i m . e x e m p l o d e f e i u r a q u e não e r a n e m h o m e m n e m m u l h e r ,
D e p o i s das p e l a d a s d e f u t e b o l , saíamos à p r o c u r a u m l e g í t i m o r e p r e s e n t a n t e d o s d o i s sexos?
das c i s t e r n a s das casas e m construção e d o s b i d õ e s d e «Branca d e N e v e » tinha todos os traços de u m h o m e m .
água p a r a l a v a r m o s d a p o e i r a d o s c a m p o s d e t e r r a s o l t a e A sua voz r o b u s t a , a b a r b a c a r a p i n h a , os o m b r o s espadaú-
escalavrada. N a h o r a d o b a n h o , ele n ã o d e s p i a os calções, d o s , as p e r n a s p e l u d a s d e t a r z a n n ã o d e i x a v a m dúvida
a l e g a n d o q u e o s e u i n s t r u m e n t o m a s c u l i n o e r a p a r a ser d a sua m a s c u l i n i d a d e . N ã o a d i a n t o u r e c o r r e r à a b o r t e i r a
p a r t i l h a d o c o m as m u l h e r e s . O « l o i r o » e r a u m v e r d a d e i r o p a r a a n i q u i l a r o f e t o , n ã o a d i a n t o u as preces aos alás, às
p l a y b o y d e p é r a p a d o , u m x a v e q u e i r o d a p r i m e i r a água, nossa-senhoras e aos santos m i l a g r e i r o s p o r q u e o m u n d o
até o d i a e m q u e f o m o s s u r p r e e n d i d o s c o m a notícia q u e i n t e i r o tinha os o l h o s sobre ela.
dava c o n t a q u e ele, o u m e l h o r , e l a estava grávida. «Branca d e N e v e » fez t u d o p a r a v o l t a r a ser h o m e m ,
Impossível! Isso só p o d e ser coisa d a q u e l e H o m e m mas n a d a q u e fizesse p o d e r i a apagar a i m a g e m d a c r i a t u r a
pelo-sinal-de-santa c r u z ! , esconjuravam, O « l o i r o » t e m d e barbas c o m u m a b a r r i g a p r e n h a . H o j e , p a r a se v i n g a r
m u l h e r e s aos cachos, deve ser m a i s u m a dessas bocas m a l - d o d e s t i n o , a e s c r o q u e é c o v e i r a d o cemitério p a r a p o d e r
dosas e afiadas. r i r das desgraças d o s o u t r o s . C a d a pazada d e t e r r a s o b r e
A o s p o u c o s , a b a r r i g a f o i c r e s c e n d o , d i s s i p a n d o todas u m defunto é a c o m p a n h a d a de u m a gargalhada vingativa
as dúvidas: A l c i n d o estava m e s m o grávido. A t é h o j e , não e alienada.
c o n s i g o p a r a r d e r i r a o l e m b r a r desta insólita e patética
história. A l c i n d o , o « l o i r o » m u l h e r e n g o , passou a ser c o n h e -
c i d o c o m o «Branca d e N e v e » ! A situação ficou esclarecida
q u a n d o d e s c o b r i r a m q u e ele e r a m a c h o e fêmea. C l a r o
que ninguém t e m n a d a a ver c o m a vida de ninguém, mas
u m h o m e m de barbas, encasquetado c o m o era, de bar-
r i g a p r e n h a , e r a m o t i v o d e troça e comentários d e t o d a a
espécie. E l e j u r o u p o r t u d o q u a n t o é s a g r a d o q u e n u n c a
t i n h a d o r m i d o c o m h o m e m n e n h u m , p o r t a n t o , a resposta
p a r a a g r a v i d e z e r a só u m a : e l a e n g r a v i d o u a si m e s m a .
P o s s i v e l m e n t e , n o s m o m e n t o s d e excitação terá u s a d o os
d o i s sexos p a r a se satisfazer L e v a n t a r a m - s e hipóteses p a r a

19?
EVEL ROCHA

XVII

N u m a t a r d e e n s o l a r a d a , estava e u a p r e p a r a r - m e p a r a
i r a o F o r d m o n d e e u tinha a m i n h a plantação d e ganja,
nas águas d e esgoto, q u a n d o d e p a r e i c o m Silvestre, m a r i d o
d e Adélia, a t a c a d o d e asma, caído ao p é d a p o r t a d o m e u
p a r d i e i r o . Silvestre respirava c o m d i f i c u l d a d e s , p a r e c i a q u e
o p e i t o i a a r r e b e n t a r a q u a l q u e r m o m e n t o e as palavras
saíam-lhe c o m o o r o n c o d e u m m o t o r v e l h o . P e d i u - m e
q u e l h e arranjasse flor d e b e r b i a c a , D i z e m q u e é b o a p a r a
asma. T e n t e i convencê-lo q u e m e u n e g ó c i o e r a ganja, mas
ele estava m u i t o d e s e s p e r a d o p a r a p e r c e b e r
O l h a , e s t o u d i s p o s t o a p e r c o r r e r as chãs d e T e r r a
B o a e m b u s c a d e flores d e b e r b i a c a p a r a te d e s e n t u p i r o
pulmão, mas, antes, e x p e r i m e n t a u m poff. D e i - l h e u m chapo
e d e p o i s d e estancar o p u l m ã o d e fiimo, ele c o m e ç o u a
r e s p i r a r m e l h o r - f o i c o m o se tivesse d e s e n t u p i d o u m cano.
E s t o u m u i t o a g r a d e c i d o . Se não fosse o t e u poff e u
estava m o r t o , d e s a b a f o u . Q u a n t o cobras p o r c a d a c h a r u -
tinho? O l h a , t e n h o d i n h e i r o n o b o l s o . A r r a n j a - m e m a i s ,
j u r o q u e não c o n t o a ninguém.
Fiz-lhe v e r q u e e u estava apenas a a j u d a r e d a q u e l e
d i a e m d i a n t e , passámos a t e r u m a relação d e a m i z a d e à
revelia d e Adélia q u e c o n t i n u a v a a a c h a r q u e e u era u m a má
influência p a r a o m a r i d o . V o l t a e m e i a , ele b a t i a à m i n h a
p o r t a p a r a l h e a r r a n j a r u m poff. Silvestre submetera-se a
vários t r a t a m e n t o s p a r a d i m i n u i r o p r o b l e m a d e asma,
usava t o d a a espécie d e b o m b a s p a r a desentupir-se, e n g o l i a
c o m p r i m i d o s e besuntava-se e m loções anti-asma, c o n t u d o
MARGINAIS •• EVEL ROCHA

S Ó flor d e b e r b i a c a e u m b o m c h a r r o l h e p r o p o r c i o n a v a m p a r a a n o s s a j u v e n t u d e . Os seus d r i b l e s e n c a n t a v a m a todos


o alívio necessário. As más-línguas começaram a e s p a l h a r e o n o m e d a Ribeira F u n d a v i n h a nos j o r n a i s d o m u n d o
p o r aí q u e ele n ã o e r a p a i d e G e r t r u d e s , p o r é m , a f o r m a e, confesso, q u e n o início s e n t i u m p o u c o d e i n v e j a , mas
c o m o t r a t a v a a m e n i n a d e m o n s t r a v a t o d o o seu c a r i n h o q u a n d o l i u m a entrevista o n d e ele dizia q u e havia u m rapaz
de p a i dedicado. c h a m a d o Sérgio P i t b o y q u e e r a m e l h o r q u e ele e q u e , i n f e -
O e s t a d o d e saúde d e Silvestre p i o r a v a a c a d a d i a . l i z m e n t e , p o r m o t i v o s d e saúde, p e r d e r a a esperança d e
Respirava c o m d i f i c u l d a d e s , a r r o t a v a as palavras n u m a voz j o g a r f u t e b o l , passei a ser seu a d m i r a d o r número u m . A i n d a
robótica e o seu riso t o r t o e r a d e u m v e l h o esclerosado. E l e h o j e g u a r d o d e b a i x o d o colchão o j o r n a l c o m a sua f o t o -
t i n h a apenas t r i n t a e u m anos e e r a u m d o s j o v e n s mais b e m g r a f i a f e s t e j a n d o u m g o l o . A l e g e n d a diz: Da Silva, o garoto
sucedidos q u e e u c o n h e c i a . I n f e l i z m e n t e , a asma c o n s u m i a - prodígio. Ser alguém n a v i d a é q u a l q u e r coisa. D e «Jorginho
-o l e n t a m e n t e . O b r i g a d o a a b a n d o n a r o n e g ó c i o . Silvestre C^mida-de-tchuque» p a s s o u a ser D a Silva, a p e l i d o q u e
passava as h o r a s s e n t a d o à v a r a n d a d a casa, o r a f u m a n d o h e r d o u d o p a i , q u e D e u s o t e n h a ! N a infância, fartámos
flor d e b e r b i a c a , o r a f u m a n d o p o f f p a r a aliviar os ataques. d e f u m a r c h a m t o s d e j o r n a l e n r o l a d o , brigávamos p o r u m
C a d a d i a q u e passava, a sua aparência e r a d e u m fantasma, t o c o d e c i g a r r o , apanhámos a p r i m e i r a b e b e d e i r a j u n t o s ,
u m ser mascavado e tísico, u m m o r t o - v i v o , u m v i v o - m o r t o , partilhámos a p r i m e i r a n a m o r a d a e n u n c a h o u v e brigas a
u m vegetal à espera d o f u n e r a l q u e não t a r d o u a a c o n t e c e r sério e n t r e nós. O s e u sucesso é o m e u sucesso. S i n t o - m e
Adélia c h o r a v a a sorte d e ser viúva e mãe d e u m a m e n i n a d e r e a l i z a d o através d e l e . C a d a g o l o q u e m a r c a é m o t i v o p a r a
o n z e anos s e m u m vintém. N o desejo d e a j u d a r o m a r i d o , u m a r o d a d e cerveja. Se há a l g u é m q u e m e r e c e s o r t e ,
ela esvaziou t o d a a e c o n o m i a a m e a - l h a d a d u r a n t e os seis p e l a v i d a q u e l e v o u , este alguém é o J o r g i n h o . C o m d o z e
anos d e a j u n t a m e n t o e sabia q u e , d a q u e l e d i a e m d i a n t e , anos apenas, e l e j a e r a o h o m e m d a casa: o p a i m o r r e u d e
t e r i a q u e t r a b a l h a r d e sol a sol p a r a sobreviver E l a estava tétano p o r causa d e u m a f e r i d a n a c a n e l a p r o v o c a d a p e l a
c o n v e n c i d a q u e a m i n h a erva l h e tinha r o u b a d o o m a r i d o m o r d e d u r a d e u m m a r r a s c o . Seu p a i e r a c a p a d o r , c r i a d o r
e dizia q u e e u era o d i a b o i n c a r n a d o q u e l h e aparecera n o e m a t a d o r d e p o r c o s . D e p o i s d a sua m o r t e , J o r g i n h o teve
c a m i n h o p a r a d e s t r u i r a sua f e l i c i d a d e . d e t o m a r c o n t a d o n e g ó c i o . A b a n d o n o u a escola n a q u i n t a
Certo dia, d e i algumas moedinhas à Gertrudes que classe p o r q u e tinha d e r e c o l h e r restos d e c o m i d a nas casas
v e n d i a pastéis d e m i l h o à p o r t a d o p e l o u r i n h o c o m a d e L o m b a B r a n c a , p o i s a família vivia d e e n g o r d a r p o r c o s
cabeça c h e i a d e lêndeas e p i o l h o s e, p o r p o u c o , a A d é l i a p a r a s e r e m v e n d i d o s m o r t o s o u vivos n o p e l o u r i n h o . E l e
e n g o l i a - m e v i v o . A m i n h a única intenção e r a a j u d a r U m e r a o m a i s v e l h o d o s seis irmãos. A sua mãe não r e g u l a v a
d i a , v e n d i pastéis d e m i l h o , a n d e i s u j o e descalço, tive b e m d a cabeça. S o f r e r a d e m e n i n g i t e n a infância e, às
a cabeça i n f e s t a d a d e p i o l h o s e l ê n d e a s e s a b i a o q u e vezes, e r a m a i s criança q u e os próprios filhos.
era estômago vazio. E u t i n h a u m c a r i n h o e s p e c i a l p o r A n t e s d e começar u m a p a r t i d a d e f u t e b o l , p o r vezes,
G e r t r u d e s . E l a l e m b r a v a - m e a A d é l i a q u a n d o t i n h a a sua ti'nhamos de esperar u m tempão p o r ele. Ele só aparecia para
i d a d e . Adélia e r a c a s m u r r a d e m a i s p a r a c o m p r e e n d e r q u e j o g a r d e p o i s d e fazer t o d a a r e c o l h a d e c o m i d a d e p o r c o d a
o q u e e u q u e r i a e r a apenas a j u d a r r e d o n d e z a . Trazia u m balde e m cada mão e o u t r a n a cabeça.
E m t o d a a i l h a n ã o se falava senão n o sucesso d e J o r g i n h o era esforçado. Nós riamos d a sua condição, porém,
J o r g i n h o n o f u t e b o l i n t e r n a c i o n a l . T o m o u - s e n u m símbolo ele n u n c a se s e n t i u h u m i l h a d o , q u a n d o l h e chamávamos

-I9R 1?7
MARGINAIS EVEL ROCHA

d e C " m i d a - d e - t c h u q u e . Se ele perdesse u m g o l o , aproveitá- d e v i d o a d i f i c u l d a d e s financeiras, tive d e v e n d e r a casa q u e


vamos p a r a l h e x i n g a r a mãe e c o b r i - l h e c o m os adjectivos construí c o m m u i t o esforço a o d e s b a r a t o e f u i o b r i g a d o a
e a t r i b u t o s mais feios d o dicionário d a m a l a n d r a g e m , mas v o l t a r à p r a i a d e Santa M a r i a . Pianista a j u d o u - m e a a r r a n j a r
não ligava aos d e b o c h e s e ofensas. R a p a z i n h o d i r e i t o e d e u m t r a b a l h o C o m o g u a r d a - n o c t u r n o n o H o t e l Pégaso. E u
e x p e d i e n t e ! Prestava p e q u e n o s serviços c o m o carregar água, d o r m i a de dia e trabalhava à noite a guardar equipamentos
lavar p r a t o s , c o c h i r m i l h o e m t r o c a d e c o m i d a d e p o r c o o u de surf. D u r a n t e a n o i t e , testemunhava todo o m o v i m e n t o
u m a refeição q u e fazia questão d e levar p a r a casa e p a r t i l h a r d e d e s e m b a r q u e d e caixas d e uísque, d e v i n h o s d e m a r c a ,
c o m a mãe e os irmãos. U m a das suas aventuras v i r o u rap. maços d e c i g a r r o , pacotes d e heroína, m a r i j u a n a e o u t r a s
d r o g a s dos iates, q u e a p o r t a m n a calada d a n o i t e e s o m e m
Toe, toe, toe. c o m o r a i a r d o d i a c o m o fantasmas n o h o r i z o n t e . D u r a n t e a
Quemé? n o i t e , há u m m o v i m e n t o s i n i s t r o nas silhuetas d e iates sem
Sou o Jorge! luzes q u e d e s l i z a m sob a l u z p r a t e a d a d o l u a r e s p e l h a d a
Q u a l Jorge? n o m a r . E n q u a n t o a polícia se d i s t r a i a p r e n d e r e t o r t u r a r
J o r g i n h o C"mida-de-tchuque. j o v e n s adolescentes q u e f u r t a m maçãs e m m i n i m e r c a d o s e a
O q u e é q u e t u queres? r a i a miúda q u e v e n d e c h a r r o s p a r a sobreviver, os coronéis,
D o s h m a n d o u - m e v i r lavar pratos. os s e n h o r e s d a i l h a , a p o s t a m f o r t u n a s d u r a n t e a n o i t e e m
Para quê? j o g o s d e azar, e n q u a n t o e s p e r a m a m e r c a d o r i a q u e v e m dos
Para bocê m e d a r u m b o c a d i n h o de cachupa oceanos. Esses p e q u e n o s i m p e r a d o r e s a p o s t a m f o r t u n a s
e café para m a t a r a f o m e p o r q u e lá e m casa não t e m nada. n o s j o g o s d e b a t o t a , j o g a m a h o n r a das filhas, a p o s t a m os
bens, c a i e m n o l o d o , mas l o g o , l o g o , levantam-se d a miséria
E u sabia q u e a polícia estava a o c o r r e n t e d e a l g u n s c o m as e n c o m e n d a s preciosas.
r u m o r e s sobre o m e u e n v o l v i m e n t o c o m a ganja e p r o -
curava o m o m e n t o certo para m e apanhar e m flagrante P i a n i s t a e e u tivemos a nossa p r i m e i r a desavença,
d e l i t o . P a r a m i m , g a n j a não e r a d r o g a , e r a u m r e m é d i o q u a n d o m e disse q u e tinha r e c e b i d o u m a b o a p r o p o s t a
c o m o a s p i r i n a o u q u a l q u e r o u t r o analgésico q u e acalmava p a r a r e c r u t a r rapazes e m e n i n a s adolescentes p a r a e n c o n -
a d o r e a frustração. t r o s d e fim-de-semana n o Rancho do Zé. O boy, eles p a g a m
D e S a n t i a g o tinha c h e g a d o a notícia q u e a polícia u m a b o a massa p o r c a d a m e n i n i n h a q u e e u t r o u x e r , man.
destruíra u m a plantação c o m m a i s d e q u a t r o t o n e l a d a s d e N ã o vejo razão p a r a te i n d i g n a r e s . Se não se d e i t a r e m c o m
ganja. S e n t i u m a o n d a d e r e c e i o i n u n d a n d o m e u íntimo. os t u r i s t a s , irão e n t r e g a r - s e a u m pé-de-chinelo q u a l q u e r
E u não e r a h o m e m d e f u g i r às m i n h a s intenções, m a s , o u e n t ã o a c a b a m nas mãos d e u m p a i t a r a d o . C o m os
n a q u e l a n o i t e , s o n h e i q u e estava a ser t o r t u r a d o p e l o advo- t u r i s t a s elas s a e m a g a n h a r c o m o b o l s o c h e i o , disse-me.
g a d o A p o l i n á r i o . A q u e l e h o m e m e r a capaz d e t u d o p a r a V a i lá n o l i c e u e vê c o m o elas a n d a m d e t e l e m ó v e l e
m e h u m i l h a r e t i n h a t o d o o p o d e r para o fazer I n t e r p r e t e i v e s t e m r o u p a s d e m o d a . V ê m até g o v e r n a n t e s d a P r a i a
o s o n h o c o m o u m aviso e r e s o l v i a c a b a r c o m o n e g ó c i o . p a r a c u r t i r u m a n o i t a d a c o m as m e n i n i n h a s ! Precisas
V o l t e i p a r a F o r t i m e q u e i m e i a plantação de ganja. D u r a n t e d e i x a r essa paranóia d e salvar o m u n d o ; t o m a c o n t a c t o
alguns meses, vivi d a q u i l o q u e a j u n t e i . P o u c o t e m p o depois. c o m a r e a l i d a d e , boy.

198
MARGINAIS ^ ^ . EVEL ROCHA

M o s t r e i ao P i a n i s t a q u e , se ele aceitasse a p r o p o s t a , p e n u m b r a das ruas m o r t a s . Pianista r e c o r d o u o d i a e m q u e


deixávamos d e ser a m i g o s . R e c o r d e i - l h e a execrável n o i t e tinha d a d o u m a sova a u m a m o ç a q u e estava n a m o r a n d o
e m q u e f o i d e s o n r a d o p o r u m polícia, fiz-lhe v e r as conse- c o m u m m i l i t a r n a praça de Preguiça e riu-se s o z i n h o . A c h o
quências d o a b u s o s e x u a l , os t r a u m a s q u e nós vivíamos, o q u e t o d o o m u n d o necessita levar p o r r a d a p a r a pôr j u í z o .
f u t u r o daqueles q u e s e r i a m e n t r e g u e s nas mãos de h o m e n s Passou u m a s e m a n a s u m i d o e q u a n d o a p a r e c e u f o i
desalmados e tarados, mas ele p a r e c i a o b c e c a d o p e l o l u c r o . c o m o se n a d a tivesse a c o n t e c i d o , d e u - m e u m a mãozada à
Se esses e n d i n h e i r a d o s q u e r e m divertir-se, q u e o façam m a n e i r a , d e s f i o u o seu rosário d e novidades e, p o r fim, disse-
c o m suas mães e suas filhas! Botaram-te água, pai E u não v o u -me q u e e u tinha razão, não i a líuiçar os i n o c e n t e s nas garras
p e r m i t i r q u e faças isso, se o fizeres, mato-te, p o r r a ! , b e r r e i daquelas feras compulsivas. Conversámos até ao a m a n h e c e r
encarniçado p e l a raiva e dor, p e l o ó d i o e pelas cicatrizes d e e n o fim j á e u tinha f e i t o o c o m p r o m i s s o d e a p r o v e i t a r as
u m passado r e c e n t e q u e m e roía p o r d e n t r o . noites de vigília c o m o guarda-nocturno para entregar algumas
Pianista g u a r d o u silêncio p o r u m m o m e n t o e «encomendas» aos turistas. T r a b a l h e i c o m o g u a r d a - n o c t u r n o
r e t o r q u i u . A i n d a n ã o te a c o s t u m a s t e c o m esta v i d a , marã d u r a n t e o i t o meses e m e i o e, p e l a amizade q u e g r a n j e e i c o m
D e s c o n t r a i - t e , d e f e n d e o t e u c u e d e i x a os o u t r o s v i v e r e m alguns funcionários, passei a fazer a e n t r e g a d a m e r c a d o r i a
c o m o q u e i r a m , man. E as d r o g a s q u e fartaste de v e n d e r , d i r e c t a m e n t e aos clientes nos hotéis. Pianista apresentou-me
não d e s t r o e m ? Foda-se, manl H o j e , o u matas o u m o r r e s . a u m g r u p o de rapazes de B o a Vista q u e tocava d u r a n t e a
Estavas a sair-te b e m , t i n h a s a t u a c a s i n h a , t e u p r ó p r i o n o i t e nos restaurantes e, depois de u m a c u r t a demonstração
negócio, eras r e s p e i t a d o , a g o r a , o l h a n o q u e acabaste, n u m vocal, convidaram-me p a r a ser o vocalista d a banda. E m p o u c o
g u a r d a - n o c t u r n o f o d i d o e m a l p a g o , v i v e n d o d e favores. t e m p o a m i n h a f a m a d e c a n t o r espalhou-se p o r t o d a a i l h a . As
A c o r d a p a r a a r e a l i d a d e , boyl A o n d e te l e v o u o s o n h o d e ser m i n h a s n o i t e s e r a m s e m p r e iguais: cantava n o Rancho do Zé,
u m g r a n d e f u t e b o l i s t a , d e ser u m a d v o g a d o , q u a n d o n e m n o Nha Terra e Restaurante Américos' e, s e g u i d a m e n t e , saía
consegues d e f e n d e r o t e u p e d a ç o , marQ N a escola eras u m c o m Pianista à p r o c u r a d e u m a f o r m a de d e r r e t e r as horas até
z e r o e n e m o t e u n o m e sabes escrever d i r e i t o . C a i n o r e a l , o alvor de u m n o v o dia. Pianista d e i x o u crescer o cabelo e o
man\ v i d a é assim, u n s c h o r a m o u t r o s v e n d e m lenços. b i g o d e q u e l h e disfarçava a p o n t a d o n a r i z a v e r m e l h a d o de
I r r i t a d o c o m a sua insistência, e s m u r r e i - l h e o r o s t o , tanto snifar. A r r a n j o u u m a moça sossegada q u e l h e preparava
v i o l e n t a m e n t e , e c a i u n o m e i o d e p r a n c h a s de surf. Pianista as refeições, lavava as suas r o u p a s e servia-lhe de m u l h e r
não e r a h o m e m d e l e v a r d e n i n g u é m , m a s não r e a g i u , Os anos vão p a s s a n d o e R i b e i r a F u n d a c o n t i n u a a
a p e n a s p a s s o u a m ã o p e l o r o s t o e foi-se e m b o r a , i g n o - ser a m e s m a : a miséria c o n t i n u a e s p i a n d o pelas frestas das
r a n d o os m e u s i n s u l t o s . E r a m q u a t r o h o r a s d e m a d r u g a d a . p o r t a s , o p o v o c o n t i n u a grávido d e promessas e c o m e n d o
R i c a r d o P i a n i s t a tinha a j u d a d o o s e u patrão n o d e s e m - o p ã o q u e o d i a b o a m a s s o u . As crianças, q u e j á não s a b e m
b a r q u e d e c o n t r a b a n d o e, e n q u a n t o a n d a v a p e l a p r a i a , m a i s o q u e é t e r esperanças, p r o c u r a m nos c o n t e n t o r e s
v i u a sua p r i m a d e q u i n z e a n o s c o m d o i s gajos, r o l a n d o d a e s q u i n a o s u s t e n t o e c o m e m a d o r e b e b e m a tristeza,
n a a r e i a f e l i z d a v i d a , n o e s c u r o d a n o i t e , v i u moças, a i n d a e n t r e r a t o s , moscas e baratas e, a g r a d e c i d o s , r o g a m a D e u s
n a t e n r a i d a d e , e n t r e g u e s ao c a p r i c h o d o s h o m e n s , v i u p a r a q u e não l h e s f a l t e m u m c o n t e n t o r d e l i x o .
m u l h e r e s d e família, n a ausência d o m a r i d o , a l g u r e s n u m Nas reuniões dos sectores d o p a r t i d o , o d o u t o r Apolinário,
b a r o u e m v i a g e m , r e s g a t a n d o os seus breves a m a n t e s n a o m o d e r a d o r d a mesa, c o m o a r q u i t e c t o da palavra, projecta o

H OH
MARGINAIS
EVEL ROCHA

seu discurso c o m régua viciada, c o m lápis d e s e n h a n d o a c o r para distrair osjovens. T a n t a promessa, tantos planos heróicos
d a sua b a n d e i r a , c o m compasso q u e traça curvas perigosas. d e salvação n o a r r o j o d e u m a l u t a q u e t a n t o s p r o m e t e r a m
O d o u t o r Apolinário, a p r e s i d e n t e d a câmara, os vereadores, e f a l h a r a m e v o l t a m n a p r o m e s s a e n g a l a n a d a n o s média
os d e p u t a d o s e u m p u n h a d o d e p e n d u r a s dão o t o t a l d e e n f e i t a d o s e m luzes e cores, n o s o r r i s o forçado, s e m p u d o -
q u a r e n t a ladrões. A l i Babá é o p o v o . res d e d i z e r q u e a máquina e m p e r r a d a n ã o lhes p e r m i t e
Mas, c o n c e n t r e m o - n o s n o discurso d o d o u t o r fazer m e s m o n a d a q u e n ã o seja o equilíbrio financeiro à
Apolinário, a q u a n d o d a a b e r t u r a d o a n o político: diremos espera d o troco, d a m o r d o m i a e tanta regalia q u e oferece
para a massa, a massa informe, que a nossa luta é grande, a luta é o p o d e r E a miséria p r o s s e g u e s e u d e s f i l e e m c i r c u l o ,
enorme, e quefinanciaremos as micro empresas, a saúde para todos s e m p r e c o m fé e m D e u s e n a s u a misericórdia, a g u a r -
será a nossa meta, usaremos a vassoura para varrer a corrupção, d a n d o resignada e pacientemente, vivendo d a podridão
a enxada para plantar a honestidade e a vida digna para todos o u m e s m o d o n a d a , c o m sopa d e água f r i a , f a z e n d o festa
os cidadãos da ilha do futuro, a menina bonita do oceano. No q u a n d o há a r r o z n o s p r a t o s e m p o r c a l h a d o s , n a l a t r i n a , n a
tribunal, osjuízes serão imaculados. Faremos leis que serão cumpri- e s m o l a q u e l h e n e g a m n u m a e s q u i n a e v i v a m os l o u v o r e s
das, os desvios serão reprimidos, o povo encontrará em cada rua, d a p r o s p e r i d a d e d o s g r a n d e s coronéis, os barões d o p r o i -
em cada esquina, a paz e a liberdade e m^is justiça, pois seremos b i d o . N ó s , os miseráveis, os m a r g i n a l i z a d o s , filhos d a mãe,
heróis nesta batalha contra esta pouca vergonha e contra esta cana- a d o l e s c e n t e s m a l p a r i d o s , i g n o r a d o s , mal-acabados... m o r -
lhice que mantém a miséria onde ela existe. Abraçaremos o eleitor r e m o s aos p o u c o s atrás d a c o r t i n a r e t r a t a d a n o s j o r n a i s e
carente, apertaremos as mãos dos trabalhadores dos restaurantes, nas revistas, n a televisão e n o s outdoors d e c a m p a n h a q u e
os pedreiros, os pescadores, daremos pão a muitos indigentes, dis- d i z e m a o m u n d o q u e v i v e m o s n u m paraíso t e r r e s t r e .
cursaremos para o povo idiota que adora nos comícios nosso SYÍGW;
prometeremos mais realizações na palavra que o vento sempre leva,
teremos vitoriosas eleições. O povo tem memória curta. Na próxima
eleição prometeremos mais porque o povo gosta.
O s políticos t ê m c o n s e g u i d o e s c o n d e r , c o m s e u
m a n t o invisível d e discursos c o l o r i d o s , a miséria dos b a i r r o s
d e Chã d e F r a q u e z a , A l t o d e Saco, A l t o d e S. João e Chã
d e M a t i a s , d o s esgotos a céu a b e r t o d a R i b e i r a , das l i x e i -
ras, d o d e f i c i e n t e , d o distraído, d o s m o r i b u n d o s n a h o r a
derradeira n a porta d o hospital, d o aborto clandestino n o
casebre d e N h a M a r i a d o M o n t e , d o fontanário s e m água,
d a f e b r e p e s t i l e n t a e t u b e r c u l o s a . . . O povo tem a visão curta,
por isso construiremos jardins-de-infância, enfeitaremos as ruas,
construiremos polivalentes (polivalentes, não! E desperdício) cons-
truiremos placas desportivas, promoveremos acampamentos nos
ihéus, compraremos uma aparelhagem sonora para fazer muito
barulho cobrindo a voz queixosa dos miseráveis, faremos festivais

1QQ
EVEL ROCHA

XVIII

A n t ó n i o estava a cada d i a mais a p a r v a l h a d o e L a u r a ,


apesar d o j e i t o dengoso, tinha u m apetite sexual comparável
a u m c a b r i t o d e s m a m a d o . A n t ó n i o j á não dava c o n t a d o
r e c a d o e L a u r a não tinha p a c h o r r a p a r a o c o r p o m o l e d o
m a r i d o . Os dois tinham c o m b i n a d o i r j u n t o s à festa d e São
M a r t i n h o mas, L a u r a , acossada p e l o vício, disse-lhe q u e
fosse à f r e n t e p o r q u e a i n d a tinha q u e a r r u m a r a casa e
d e i t a r os m e n i n o s q u e não e r a m p o u c o s . Fazer d o r m i r seis
«antoninhos» d e s m i o l a d o s não é b r i n c a d e i r a ! T u ficas aí
p a s m a n d o c o m a v i d a , mas e u t e n h o de d a r n o d u r o ; vai,
vai q u e te e n c o n t r o lá.
A n t ó n i o saiu p e l a p o r t a d a f r e n t e e G u a l b e r t o e n t r o u
p e l o portão. Três h o r a s d e p o i s , A n t ó n i o , f a r t o d e esperar
p o r ela n a sala d e b a i l e , resolveu i r deitar-se, r e s m u n g a n d o
a má sorte d e t e r u m a m u l h e r q u e se p r e o c u p a v a mais c o m
a casa d o q u e c o m o m a r i d o . A n t e s d e a b a n d o n a r a festa,
t o m o u u m c a q u i n h o p a r a a c a l m a r os n e r v o s e r e t o m o u
o c a m i n h o d e casa. Os m e n i n o s estavam a d o r m i r o b o m
s o n o , p o r é m n o seu q u a r t o h a v i a u m rebuliço d e s t e m -
p e r a d o . P r o v a v e l m e n t e , e r a u m ladrão. T i n h a d e ser u m
ladrão cara-de-pau p a r a fazer t a n t o rebuliço. D e c i d i d o e m
p e g a r o ladrão, A n t ó n i o , a r m a d o d e u m p a u de pilão, c o m
a cabeça q u e n t e c o m o estava, d e c i d i u e n f r e n t a r o g a t u n o .
H o m e m q u e é h o m e m não t e m m e d o de ninguém! L o l o c a ,
lá v o u e u p a r a te salvar
A r r o m b o u a p o r t a e e n c o n t r o u a m u l h e r n u m ciciar
d e g o z o c o m as p e r n a s abertas p a r a o a r e G u a l b e r t o n u m

135
MARGINAIS EVEL ROCHA

vaivém buliçoso. Bi, L a u r a , casta d e coisa é essa d e m e g e a d a d e E s p a r g o s . A m e l h o r f o r m a d e lavar a h o n r a e r a


passar c h i f r e a i n d a p o r c i m a n a m i n h a cama? s e m dúvida m a t a r os d o i s o u p e l o m e n o s c a p a r o m é d i c o ,
G u a l b e r t o e v a p o r o u - s e , sabe-se lá c o m o , m a s e l a , d e f e n d i a m os h o m e n s d a p r a c i n h a d e Q u e b r ô d , m a s
n u m a latosa b o z o f a r i a , c o n s e g u i u c o n v e n c e r o m a r i d o q u e q u e m ficou c a p a d o - c a p a d o m e s m o ! - d e injúria e d e
não e r a n a d a e j u r a v a p e l a mãezinha q u e não o c h i f r a v a frustração, f o i M a t e u s q u e p e r d e u o g o s t o p o r m u l h e r e s ,
p o r q u e n o m o m e n t o usava c a m i s i n h a , A c a m i s i n h a evita a b a f a n d o a angústia c o m a g u a r d e n t e , a p e r t a n d o p e s a r o -
c o n t a c t o , p o r t a n t o , não é c o r n o . Podes d o r m i r descansado s a m e n t e n o r o s t o a trança d e c a b e l o q u e a r r a n c a r a à sua
p o r q u e fazer sexo c o m c a m i s i n h a não é adultério. Se tiveres ex. E l e e r a u m b o m p e d r e i r o , m a s a frustração e o v í c i o
dúvida p e r g u n t a a o d o u t o r M e l í c i o . d o g r o g u e r o u b a v a m - l h e o t e m p o à profissão. Ele passava
Criou-se o m i t o q u e os ares d a i l h a d o Sal não são cerca de u m a semana embriagado, a cantarolar n u m a
p a r a m u l h e r casada n e m a m i g a d a . P a r e c e q u e há u m a l i n g u a g e m s e m s e n t i d o . A s u a casa t r a n s f o r m o u - s e n u m
espécie d e vírus q u e as c o n t a m i n a e as t o r n a p r o p e n s a s p a r d i e i r o cujo c h e i r o ácido e enjoativo era detectado à
à i n f i d e l i d a d e . M a t e u s q u e o d i g a . A o regressar d e u m a distância. E r a m f r e q u e n t e s os seus g r i t o s d e injúria e o
f a r r a , e n c o n t r o u a sua m u l h e r c o m o d o u t o r M e l í c i o , n o b a t e r d e m u r r o s , p a u l a d a s e pontapés e m t u d o o q u e l h e
sagrado l e i t o m a t r i m o n i a l , n u m c o i t o d e s c o m u n a l . A q u i l o a p a r e c i a à f r e n t e . L u t a v a c o m u m ser i m a g i n á r i o , q u e só
não e r a sexo, e r a selvajaria. C o m os c o r p o s m e l a d o s d e e l e p o d i a ver, q u e b r a n d o t u d o até p e r d e r a força e c a i r
suor, os d o i s c h a f u r d a v a m n o l i m o d a i n f i d e l i d a d e c o m o n u m s o n o p e s a d o e r u i d o s o . M a t e u s queixava-se q u e e r a
p o r c o s . Mas ele n ã o se fez r o g a d o : s a c u d i u - l h e s as costas o d i a b o q u e r e n d o a r r a n c a r a sua a l m a . A mobília d a casa
c o m v i o l e n t a s pauladas e expulsou-os d a casa c o m o tinham t i n h a s i d o r e d u z i d a a b o c a d o s d e m a d e i r a e cacos d e
c h e g a d o ao m u n d o , n u s e m p e l e . Os d o i s l e v a r a m m a i s louça e v i d r o . A s u a a p a r ê n c i a r e v e l a v a a s u a f r u s t r a n t e
p a u l a d a s q u e os t a m b o r e s n a festa d e São J o ã o . E r a caso decisão d e l a v a r a h o n r a c o m v i o l ê n c i a . T i n h a o c a b e l o
p a r a se dizer: q u e m n u n c a f o i c o r n u d o q u e a t i r e a p r i m e i r a s a r a p i n t a d o d e lêndeas, p i o l h o s graúdos e c h a t o s q u e
p e d r a . M a t e u s l a v o u a h o n r a c a i n d o n a graça d e t o d o o l h e d e s c i a m p e l a f a r t a b a r b a , as u n h a s p r e t a s , a r o u p a
p o v o . I n f l a m a d o d e r a i v a , a r r a n c o u c o m as mãos u m a das f e d o r e n t a davam-lhe o aspecto de u m espantalho. Ele
l i n d a s tranças d o c a b e l o c o m p r i d o e s e d o s o à m u l h e r , p o d i a ter p e r d o a d o à m u l h e r , esquecido o assunto e
d e i x a n d o u m rasgo d e s a n g u e p e l o chão. A o s o l h o s d o c o n t i n u a r a sua v i d a c o m o A n t ó n i o e t a n t o s o u t r o s c o r -
p o v o ele a g i u e m legítima defesa, estava a lavar a h o n r a n u d o s desta i l h a .
e a h o n r a não t e m p r e ç o . Se t o d o s os c o r n o s resolvessem
lavar a h o n r a , esta i l h a e n t r a r i a n u m a autêntica g u e r r a civil. H a v i a seis a n o s q u e e u não v i a L e n a . S o u b e q u e e l a
M a t e u s l a v o u a h o n r a , n o e n t a n t o , não p ô d e liber- a b r i r a u m n e g ó c i o n a p e r i f e r i a d a v i l a d e S a n t a M a r i a e,
tar-se d o p e s a d e l o d e r e c o r d a ç õ e s q u e o p e r s e g u i a t o d a s depois de m u i t o s adiamentos. Pianista e e u resolvemos
as n o i t e s a p o n t o d e p e r d e r a m e m ó r i a atrás d e c o p o s f a z e r - l h e u m a v i s i t a . A p e q u e n a tasca c r e s c e r a r a p i d a -
e mais copos de grogue. Isabel casou c o m o d o u t o r m e n t e , t r a n s f o r m a r a - s e n u m snack-bar b e m a p e t r e c h a d o ,
M e l í c i o , o c a b e l o c r e s c e u e, h o j e c o m c i n c o filhos, vive c o m reservado, o n d e , depois de e n c e r r a r a p o r t a , dava
feliz c o m u m a v i d a regalada, e n q u a n t o o b o i c h i f r u d o v a z ã o a o s e u e s p í r i t o d e j o g a d o r a i n v e t e r a d a c o m os
m u g e a s u a desgraça d e b o r c o n a s calçadas húmidas d e h o m e n s q u e v i n h a m d e t o d o s os l a d o s p a r a a p o s t a r e m

1.3R 1.37
MARGINAIS____
EVEL ROCHA
f o r t e n o s j o g o s d e tchintchôm. L e n a m u d a r a m u i t o , estava
f i g u r a e s c o n d i a o e n c a n t o f e m i n i l de u m a m u l h e r q u e n o
mais f o r t e , s e n h o r a d e si. As escondidas, g a n h o u o a p e l i d o
olhar irradiava simpatia e parecia retratar a verdadeira
d e B a r b i n h a pelos finíssimos pêlos q u e l h e s o m b r e a v a m a
i m a g e m d a pessoa q u e t o d o s a m a v a m .
p a r t e i n f e r i o r d o q u e i x o mas c o n t i n u a v a d e s l u m b r a n d o os
D e s c o b r i r a razão d o n o m e Tasquinha Russa t o r n o u - s e
h o m e n s c o m s e u j e i t o indomável e selvagem. E l a parecia
u m desafio p a r a t o d o s os q u e f r e q u e n t a v a m o b a r A l g u é m
u m a n i m a l a r i s c o q u e n ã o m e d i a as palavras p a r a desar-
teve a i d e i a d e c r i a r u m a l o t a r i a e t o d o s d e p o s i t a v a m u m
m a r os m a i s a t r e v i d o s . À f r e n t e d o snack-bar c o l o c o u u m a
f u n d o d e m i l escudos e, e m três meses, o m o n t a n t e u l t r a -
p l a c a c o m a inscrição: Tasquinha Russa. Esse e s t r a n h o
p a s s o u os q u i n h e n t o s m i l escudos. C a d a a p o s t a d o r , a o
n o m e despertou a curiosidade de todos e m a d i v i n h a r o
d e p o s i t a r os m i l escudos, tinha o d i r e i t o de, n u m a t e n -
seu s i g n i f i c a d o . A l g u n s a p o s t a v a m q u a n t i a s e x o r b i t a n t e s
tativa, a d i v i n h a r o s i g n i f i c a d o d o n o m e e m voz a l t a n a
p a r a d e s c o b r i r e m a razão d o n o m e , mas ela, n o s e u j e i t o
presença d e p e l o m e n o s c i n c o t e s t e m u n h a s e d e p o i s L e n a
espassarado, r i a das caras e n c a f u a d a s d e interrogações. A
B a r b i n h a t e r i a d e c o n f i r m a r se a c e r t o u o u não. E m n o m e
princípio tive r e c e i o d e a c u m p r i m e n t a r c o m u m a calorosa
d a transparência, ( e m b o r a ninguém ousasse d u v i d a r d e l a
saudação, p o r é m , ela a r r a n j o u u m a algazarra d o t a m a n h o
p u b l i c a m e n t e ) e l a escreveu o s i g n i f i c a d o d o n o m e n u m a
d o m u n d o ao v e r - m e e, n u m abraço f o r t e , quase q u e m e
f o l h a que f o r a g u a r d a d a n u m envelope lacrado, assinado
m o í a os ossos, e x p r e s s a n d o a s u a a l e g r i a , C m a n e i r a ,
n a p a r t e de f o r a p o r c i n c o pessoas, e só seria a b e r t o q u a n d o
m o ç o ? P e n s e i q u e estivesses e m b a r c a d o . R e l e m b r a m o s
alguém tivesse a d i v i n h a d o o s i g n i f i c a d o . O c o r r e u - m e u m
os j o g o s d e b a t o t a c o m os rapazes e m casa d a m i n h a mãe,
s i g n i f i c a d o p a r a o n o m e , mas não tinha c o r a g e m d e dizê-
d e p o i s L e n a v o l t o u p a r a a c l i e n t e l a e disse, A m i n h a v i d a
-lo à f r e n t e d e l a c o m m e d o d e ser c e n s u r a d o p e l o s seus
c o m e ç o u a m u d a r e m casa deste m e n i n o , q u e r d i z e r deste
p u n h o s d e aço. A p a r t i r d a q u e l e d i a , Tasquinha Russa
h o m e m f e i t o ; o l h e m c o m o ele e n g r o s s o u a p o l p a . F o i
passou a ser u m espaço d e frequência obrigatória. D e p o i s
b o m saber q u e e l a se l e m b r a v a d e m i m e c o n t i n u a v a a
d e u m a n o i t a d a , antes q u e sol esbracejasse os seus r a i o s
ser a m i n h a a m i g a . Se há coisa q u e e u a p r e n d i a p r e z a r
l u m i n o s o s , dávamos u m a saltada p o r lá p a r a c o m e r u m a
nesta vida é a amizade.
c a c h u p i n h a guisada c o m linguiça e s o b r e t u d o p a r a d e s c o n -
J o g a d o r a i m p u l s i v a c o m o e r a , L e n a g a n h o u o res- t r a i r c o m as suas tiradas recheadas de h u m o r e n q u a n t o
p e i t o dos h o m e n s desde o d i a e m q u e d e u u m a s u r r a n u m j o g a v a tchintchôm.
médico político que lhe t i n h a recusado u m a consulta.
O m a u estado e m q u e d e i x o u o sujeito valeu-lhe nove
dias d e c a d e i a e u m a p e s a d a i n d e m n i z a ç ã o q u e s e r v i r a m
p a r a f o r j a r mais o seu f e i t i o de b r i g u e n t a e m a l c r i a d a .
O s seus braços l o n g o s e as mãos calejadas d e e s t i v a d o r ,
os o m b r o s l a r g o s e as nádegas e s t r e i t a s c o n f e r i a m - l h e
o e s t a t u t o de p a u p a r a t o d a a o b r a . Assumia-se c o m o
m u l h e r d e p o n t a d e faca e x i n g a v a a m ã e d o s c l i e n t e s
q u e l h e f a l t a v a m ao r e s p e i t o . L e n a c o n t i n u a v a a ser b a t o -
t e i r a c o m o n o s v e l h o s t e m p o s e atrás d a q u e l a e n é r g i c a

1.?8
, EVEL ROCHA

XIX

Fui apanhado p o r u m a violenta tuberculose que m e


d e f i n h o u p o r c o m p l e t o . Passei v i n t e e nove dias de intensa
febre, v o m i t a n d o e escarrando sangue. Q u a n d o e u pensava
q u e a m i n h a v i d a estava a m e l h o r a r , aparece-me esta m a l d i t a
doença. Apesar dos meus v i n t e e u m N o v e m b r o s b e m vividos,
o m e u c o r p o não pesava mais d o q u e q u a r e n t a e o i t o q u i l o s
e a m i n h a aparência e r a d e u m v e l h o . Tive m e d o de m o r r e r
F i q u e i sozinho n u m q u a r t o fechado e m casa de Pianista p a r a
q u e ninguém m e visse n a q u e l a situação. E u tossia d u r a n t e a
n o i t e e o estômago pesava-me n o c o r p o . H a v i a o i t o anos q u e
não via mamãe. Só m e lembrava dela nas horas de embriaguês,
mas naqueles dias de solidão e e n f e r m i d a d e , senti falta dos
seus cuidados. A p ó s a m a l d i t a doença q u e m e fazia escarrar
sangue e tossir r u i n d a d e s , fiquei c o m m e d o de não p o d e r
cantar mais c o m o antes, a m i n h a condição deplorável afastava
as pessoas d e m i m . A doença t i n h a envelhecido a m i n h a pele,
e s p r e m i d o a m i n h a carne e descoberto os meus ossos frágeis
e penosos. As m i n h a s e c o n o m i a s acabaram e tive de voltar
p a r a Espargos. Beto Vesgo recebeu-me e m sua casa, c o m o das
outras vezes, n o v e l h o g u e t o de o n d e p a r t i r a p a r a m u d a r a
m i n h a sorte. N a altura, ele tinha p e r d i d o p o r c o m p l e t o a visão
d o o l h o enviesado e o o u t r o estava a d a r sinais de d e b i l i d a d e ,
c o n t u d o , o seu h u m o r e descontracção adoçavam a v i d a dos
q u e v i v i a m p e r t o dele. E u acreditava q u e havia de m e c u r a r
daquele estado t u b e r c u l o s o e ser o Sérgio dos o u t r o s tempos,
mas a realidade d o m e u b a i r r o , a p o b r e z a q u e m e cercava
segredavam-me q u e t u d o não passava d e u m s o n h o . B e t o
MARGINAIS — ^ EVEL ROCHA

Vesgo trazia os restos de c o m i d a q u e os «primos» l h e doavam: a casa d o s pais e f o i m o r a r n u m p e q u e n o a p a r t a m e n t o


porção de arroz cozido, pedaços de f r a n g o , bocados de peixe, a l u g a d o p o r u m c o m e r c i a n t e safado p a r a não ter q u e o u v i r
pães, f r u t a s m e i o estragadas, t o d o s m i s t u r a d o s d e n t r o d e as represálias d a mãe. M i r n a r i a à t o a , p o i s estava a n a d a r
u m a bolsa d e plástico. As vezes a f o m e era t a n t a q u e não e m d i n h e i r o . T i n h a e x t o r q u i d o mais d e d u z e n t o s c o n t o s
tinha paciência p a r a esperar o B e t o aquecer a c o m i d a , c o m i a dos c i n c o coronéis c o m q u e m d o r m i a . A r r a n j o u u m a falsa
d i r e c t a m e n t e d a bolsa. Fusco visitava-me todas as segundas, g r a v i d e z p a r a e x t o r q u i r o d i n h e i r o deles. Rindo-se até às
trazia-me c o m i d a de verdade e a l g u m d i n h e i r o . M e u s amigos lágrimas, disse-me q u e l o g o assim q u e c o m u n i c a v a a u m
insistiram p a r a q u e e u fosse ao h o s p i t a l , porém, só d e pensar deles q u e e r a o p a i d o f i l h o , ele se apressava e m l h e ofe-
n o c h e i r o de remédio insuportável daquele lugar, p r e f e r i a r e c e r d i n h e i r o p a r a o a b o r t o . A q u i tens o s u f i c i e n t e p a r a
m o r r e r a ter de m e sujeitar a u m i n t e r n a m e n t o . O a m b i e n t e tirares o f i l h o , d i n h e i r o p a r a t r a t a r e s d a t u a própria saúde
d o h o s p i t a l relembrava-me os tristes dias d a m i n h a infância e até d i n h e i r o p a r a fazeres u m a v i a g e m a São V i c e n t e p o r
e a m o r t e das m i n h a s três irmãzinhas. u n s t e m p o s . E se d e s c o b r i r e m q u e é t u d o falso?, p e r g u n -
T o d o s os dias, q u a n d o a b r i a a j a n e l a d o q u a r t o , e u via tei-lhe. Se t e n t a r e m a l g u m a coisa digo-lhes q u e c o n t o t u d o
Adélia l a v a n d o panadas d e r o u p a p a r a sobreviver A q u e l a p a r a as suas m u l h e r e s . T e n h o b i l h e t i n h o s d e a m o r q u e m e
cena entristecia-me d u p l a m e n t e . Mamãe era lavadeira e e s c r e v e m , sei d e t o d o s os s e g r e d o s d o fracasso das suas
e u t e s t e m u n h e i o sacrifício q u e ela levava p a r a sustentar os esposas e d e c o m o g e m e m n a c a m a . M i r n a falava d a n a t a
filhos e, p o r o u t r o l a d o , custava-me ver a q u e l a j o v e m m u l h e r social, dos políticos d a praça, dos c o m e r c i a n t e s e o p e r a -
q u e h a v i a m e n o s de u m a n o vivia c o m t u d o d o b o m e d o d o r e s turísticos, cidadãos d o b e m q u e e n c h e m páginas
m e l h o r , mas agora tinha d e d a r n o d u r o p a r a sobreviver P o r dos j o r n a i s , q u e estão nas conferências p e l a i g u a l d a d e e
causa de u m p r o b l e m a d e c o l u n a e d o r nos rins, ela teve d e p a r a u m a c u l t u r a d e paz. São os m e s m o s q u e nos u s a m ,
p a r a r e fazer pastéis d e m i l h o p a r a v e n d e r S e m p r e q u e e u l a m b u s a m e depois nos d e i t a m fora.
o l h a v a p a r a ela e p a r a G e r t r u d e s m e u s o l h o s enchiam-se d e A sua irmã m a i s n o v a e r a u m e x e m p l o e v i d e n t e q u e
lágrimas e, n u m a t a q u e d e alucinação, a m i n h a m e m ó r i a os m a c h o s não p r e s t a m . Os h o m e n s são t o d o s iguais, só
vagueava p e l o passado. C o m o se fosse h o j e , vejo-me nas m u d a o e n d e r e ç o , d e s a b a f o u . Os r i c o s são i n t e l i g e n t e s ,
ruelas a v e n d e r pastéis d e m i l h o s , vejo-me a esconder e n t r e m a s m u i t o b u r r o s d e b a i x o d e lençol; são vulneráveis e
as crateras e os e n t u l h o s , q u e a b u n d a v a m pelas ruas d a c a r e n t e s . D e r r e t e m - s e c o m q u a l q u e r besta d e saia e, n a
R i b e i r a F u n d a , p a r a e s c o n d e r a c o m i d a s u r r i p i a d a . Adélia g e n e r a l i d a d e , c o m p o r t a m - s e c o m o crianças m i m a d a s . São
resignou-se à miséria q u e a c o n s u m i a . H o j e , ela t e m de se m o r r i n h a s e m t u d o , mas esbanjam c o m m e n i n a s novas p o r
c o n t e n t a r c o m u m a refeição d e a r r o z m a l a n d r o , u m café q u e m se a r r a s t a m f e i t o cobras n o chão.
d e feijão t o r r a d o , u m pão d o r m i d o o u u m a p a p a d e t r i g o M i r n a e r a m a i s e s b a n j a d o r a q u e e u , se tivesse d i -
insossa p a r a s o b r e v i v e r n h e i r o gastava t u d o e m r o u p a s e b a n q u e t e s d i g n o s d e
r e i e, q u a n d o n ã o t i n h a n a d a , passava m o m e n t o s d e
D u r a n t e q u a t r o meses, B e t o Vesgo d e u - m e g u a r i d a p r i v a c i d a d e , r e v e n d e n d o os p r e s e n t e s ao d e s b a r a t o . U m a
e m sua casa. Nesse p e r í o d o , r e c e b i a a visita d e M i r n a q u e vez, b r i g u e i p o r e l a q u a n d o a l g u é m a c h a m o u d e c a b r a ,
m e t r a z i a as n o v i d a d e s d e S a n t a M a r i a e c o n t a v a - m e as m a s e l a e r a m e s m o u m a c a b r a das boas. D o m i n a v a os
a v e n t u r a s q u e tinha c o m os coronéis d a i l h a . E l a d e i x o u h o m e n s c o m a sua b e l e z a , f a z e n d o - o s c h o r a r o b s t i n a d a -

1/19 14.9
MARGINAIS :

m e n t e p o r a l g o q u e só e l a e r a c a p a z d e l h e s d a r . T o d o s
os t r a b a l h o s q u e e l a t e v e n ã o f o r a m p e l o s e u t a l e n t o XX
b r i l h a n t e , mas p e l o s e u c o r p o d e s l u m b r a n t e , p e l o s seus
olhos f u l m i n a n t e s cor de ervilha, c o m u m encanto feroz
e f a t a l . C e r t a vez, d o m i n a d o p e l o poff, e u disse-lhe q u e
e r a capaz d e c o r t a r u m a o r e l h a p a r a p r o v a r o m e u a m o r
p o r e l a e, a g r a d e c i d a , n a q u e l a n o i t e , v i v e m o s t o d a a
e t e r n i d a d e e n t r e os lençóis d o m e u g u e t o .
A o raiar d a m a d r u g a d a fomos i n t e r r o m p i d o s pelo g r i t o
de N h ô Simão p e d i n d o ajuda para apagar o fogo q u e destruía a D u r a n t e os meses d e convalescença, e u passava h o r a s
sua casa. E m p o u c o t e m p o a r u a estava cheia de curiosos, alguns a arquitectar u m m e i o de transformar a vida d o d o u t o r
pegavam de sacos molhados, outros atiravam baldes de água, A p o l i n á r i o n u m i n f e r n o . C a d a s e g u n d o q u e passava, ele
e n q u a n t o as línguas de f o g o dançavam avassaladoras, n u m a ficava m a i s r i c o e m a i s p o d e r o s o , p o r é m , e u s u c u m b i a
gana demoníaca, envolvendo a casa n u m véu v e r m e l h o alaran- n a miséria q u e m e p e r s e g u i a d e s d e q u e nasci. M a g r e z a
j a d o . O fogo c o n s u m i u a casa n u m instante. O cheiro forte das t i n h a o m e s m o s e n t i m e n t o q u e e u e e r a o único q u e p o d i a
gíilinhas e d o cão chamuscados, dos cacarecos, dos plásticos, das e n g e n d r a r u m artifício p a r a q u e b r a r a c r i s t a d o a r r o g a n t e
mobílias transformados e m brasas íiilgurantes dava m o t i v o para a d v o g a d o . L e i a l e m b r o u - s e d a insólita história d e G i l , o
q u e o magoado c h o r o de N h ô Simão e dos filhos tocassem o s a n i c o l a u e n s e , q u e u m a vez m a t o u u m c a c h o r r o e v e n d e u
coração d o p o v o q u e e m vão t u d o fez para salvar a l g u m a coisa. a c a r n e c o m o s e n d o c a r n e d e c a b r i t o . A l g u é m c h e g o u ao
A o r o m p e r d o dia, n o lugar d a casa, restavam apenas algumas G i l e disse-lhe. O l h a , fiz u m g u i s a d o c o m a c a r n e q u e m e
partes das paredes que conseguiram resistir ao incêndio, o resto vendeste e estava m e s m o b o m . A r r a n j a - m e mais dessa c a m i -
estava transformado e m m o n t u r o e cinzas. N h ô Simão, abraçado n h a ! - G i l , n o s e u j e i t o m a r o t o , r e s p o n d e u , se o c a c h o r r o
aos cinco filhos, ainda chorava desalmadamente a p e r d a d o que não r o n c a r e m m i m . . . !
levou a j u n t a r d u r a n t e u m a vida. T i n h a o rosto tisnado e nas R e s o l v e m o s s e g u i r o e x e m p l o d o G i l . Precisávamos
costas u m a ferida aberta pelas chamas e n q u a n t o tentava salvar d e u m cão, mas u m cão de fibra, não u m v i r a lata q u a l q u e r
a l g u m a coisa Os b o m b e i r o s não apareceram e desculparam^se c o m o os cães t i n h o s o s q u e a b u n d a v a m p o r C h ã d e
c o m o dificil acesso ã casa p o r causa das ruas apertadas e retor- F r a q u e z a . N a Preguiça e Santa M a r i a há m u i t o s cães, mas
cidas. As autoridades camarárias não apareceram p a r a levar não s e r v e m , p a r e c e m b r i n q u e d o s d e pelúcia. M a g r e z a
u m a palavra de c o n f o r t o à família sinistrada, todavia, lá estava o s u g e r i u - m e q u e roubássemos o são b e r n a r d o d o s e n h o r
povoléu c o m baldes t r e p a n d o nas casas vizinhas para comhater A p o l i n á r i o . O b i c h o e r a tão g r a n d e q u e m e t i a m e d o ;
as chamas, levando roupas, c o m i d a , sacos de c i m e n t o , blocos arrancá-lo d a v a r a n d a d o d o n o e r a t r a b a l h o d e m a i s p a r a
e outros materiais para ajudar N h ô Simão a levantar a sua casa d o i s h o m e n s . T í n h a m o s de a r r a n j a r u m m e i o . Mas c o m o ?
d e novo. O nosso b a i r r o ficava p e r t o d o edifício d a Câmara L e i a M a g r e z a d e s c e u a m ã o n o frasco d e diazêpan d a avó,
M u n i c i p a l , mas a quilómetros d e distância d a sensibilidade m o e u os c o m p r i m i d o s , d e i t o u o p ó n o b e b e d o u r o d o
autárquica. A a u t a r q u i a continuava a fazer o que sempre fez cão. F o i t i r o e q u e d a . Ficámos à e s p e r a q u e anoitecesse.
pelos pobres: nada! E n q u a n t o esperávamos p e l o b r e u d a n o i t e . L e i a c o n t a v a
MARGINAIS — —— EVEL ROCHA

histórias e r e v e l a v a as i d e i a s q u e l h e f e r v i a m n a cabeça, c a m b a r os q u a s e o i t e n t a q u i l o s d e c a c h o r r o n o g u e t o .
D i z e m q u e são b e r n a r d o é u m cão e m vias d e extinção. Beto tinha m e d o do advogado e suplicou-nos para que
H á m u i t o s a n i m a i s q u e estão a d e s a p a r e c e r s o b r e a face esquecêssemos d a i d e i a . P e l o a m o r d e Deus, p r i m o !
d a t e r r a c o m o a águia a m e r i c a n a , as baleias, as t a r t a r u g a s , A p e s a r d a f r a q u e z a física p r o v o c a d a p e l a t u b e r c u l o s e ,
e n f i m . V a m o s salvar os marcha-cacaias. T e r r a B o a a n t i g a - fiz questão d e d e g o l a r e e s f o l a r o cão q u e p a r e c i a u m
m e n t e e r a p o v o a d a deste p a s s a r i n h o e h o j e j á n e m se vê. bezerro gordo. Odeio cachorros. Que o diabo carregue
M u i t a g e n t e n e m sabe o q u e isso s i g n i f i c a . - L e i a M a g r e z a o rambo e o d o n o ! Se o d o n o tivesse a l m a , h a v i a d e se
fez u m a p a u s a e d e u u m a tirada, Já r e p a r a r a m q u e há l e m b r a r q u e o q u e gasta c o m esse b i c h o d a v a p a r a a p a -
c a d a vez m e n o s c o r c u n d a s ? P e n s o q u e estão e m vias d e d r i n h a r o e s t u d o d e d e z o u v i n t e crianças d e A l t o d e
extinção, t a m b é m . P o d í a m o s lançar u m a c a m p a n h a c o m Santa Cruz! Leia r i u d o i d a m e n t e . Beto, porém, c o m i a
cartazes d i z e n d o : s a l v e m os c o r c u n d a s . Q u e a c h a m ? as u n h a s c o m o a l g u é m q u e e s p e r a v a q u e o céu desa-
Espera, corcundas, não!, corrigiu Leia, São todos malvados. basse s o b r e a s u a cabeça. Se n o s b o t a m a m ã o e s t a m o s
H o u v e u m a r i n c h a d a geral. L e i a era u m h o m e m de lixados, p r i m o .
m u i t a s histórias e gostávamos d e as o u v i r ; a única c h a t i c e Confesso que, ao ver aquela carne v e r m e l h a e saudável à
e r a q u a n d o andávamos n a r u a : ele t i n h a d e p a r a r a c a d a m i n h a f r e n t e , tive vontade de e n t e r r a r os dentes nela, porém,
d o i s m e t r o s p o r q u e não c o n s e g u i a f a l a r e n q u a n t o andava. m e u s preceitos não m e a u t o r i z a r a m . Depois de esquartejar o
O são b e r n a r d o e r a e n o r m e e c a r r e g a r u m f a r d o a n i m a l , pusemos à p a r t e cerca de q u a r e n t a q u i l o s de carne
d a q u e l e s não e r a b r i n c a d e i r a ; p o d í a m o s c o r r e r o risco l i m p i n h a , e o resto f o i e n t e r r a d o n u m t e r r e n o b a l d i o q u e o
d e ser a p a n h a d o s . L e i a tinha solução p a r a t u d o : l e m b r a s a d v o g a d o tinha pelas bandas d e T e r r a Boa. E r a necessário
q u a n d o n a m o r a v a s a Adélia? À n o i t e , q u e b r a v a s as lâm- v e n d e r a carne n a casa d o d o u t o r o q u a n t o antes p o r q u e não
padas d o s postes p a r a ficares m a i s à v o n t a d e , r e c o r d o u o tínhamos c o n g e l a d o r Magreza f a l o u c o m a empregada, n u m a
d e s c a r n a d o a m i g o n u m r i s o i r ó n i c o . B e m l e m b r a d o . Se d i v e r t i d a bazófia, q u e se tratava de c a m e d o T a l h o Jôm Suíno
q u e b r a r m o s as lâmpadas n i n g u é m n o s r e c o n h e c e . d e P a l m e i r a e q u e , se não quisesse, levaria t u d o p a r a v e n d e r
E s p e r a aí, p e r g u n t e i - l h e , d i s s i m u l a d a m e n t e . Estás aos hotéis d e Santa M a r i a , É c a m e de p r i m e i r a e, c o m o sei
a q u e r e r d i z e r q u e és t u q u e a n d a s a q u e b r a r as lâm- q u e o s e n h o r d o u t o r é c h e g a d o à sua c a m i n h a , tirei a p a r t e
p a d a s d o s p o s t e s p a r a te e n c o n t r a r e s c o m a Amália? A m e l h o r p a r a o s e r v i d o r d o p o v o . Topas?
p r o p ó s i t o , o q u e v i s t e d e tão a t r a e n t e n e l a p a r a a n d a r e s N o s dias s u b s e q u e n t e s , não se falava e m o u t r a coisa
assim m e i o a p a l e r m a d o ? senão n o d e s a p a r e c i m e n t o d o m a l o g r a d o são b e r n a r d o . O
E u , m e i o a p a l e r m a d o ? , r e t o r q u i u . Precisas ver c o m o s e n h o r A p o l i n á r i o m a n d o u c o l o c a r anúncios n o s j o r n a i s e
ela t e m u n s pés b o n i t o s . Pelas suas palavras, ficámos a saber nas rádios, p r o m e t e n d o b o a r e c o m p e n s a , m a n d o u i m p r i -
q u e ele estava m e s m o a p a i x o n a d o p e l a filha d o a d v o g a d o e, m i r páginas c o m f o t o g r a f i a de rambopara. serem coladas e m
l o g o , estava a p t i r t i c i p a r n o r a p t o e m o r t e d o seu «cunhado» todas as esquinas, bares e praças. Nas h o r a s vagas, a n d a v a
rambo, o são b e r n a r d o . E m tempos, Amália tinha a b a n d o n a d o d e lés a lés e m b u s c a d e u m a p i s t a q u e o levasse até o seu
o curso de D i r e i t o alegando razões d e saúde, mas a verdadeira q u e r i d o a n i m a l , o seu filho m a c h o q u e t a n t o s o n h o u . L e i a
razão estava patente aos olhos de q u a l q u e r u m : estava grávida. estava o b c e c a d o e m saber o q u e o d o u t o r tinha a c h a d o
D e p o i s d e m u i t a l u t a e arrastões, c o n s e g u i m o s d a c a r n e d e b i f e . O h , ele g o s t o u t a n t o q u e m e p e d i u p a r a
MARGINAIS EVEL ROCHA

c o m p r a r mais - p u d e r a ! O t r a t a m e n t o q u e dava ao a n i m a l d e óbito d o a n i m a l c o m o n o m e d e R a m b o M o n t e i r o e


não e r a p a r a m e n o s ! - L a m e n t o u o d e s a p a r e c i m e n t o d e Silva, f i l h o d e Eufêmia e A p o l i n á r i o M o n t e i r o e Silva. N o
rambo q u e h a v i a d e a p r e c i a r a b o a c a r n e , r e s p o n d e u a p r i m e i r o d o c u m e n t o , e m vez de e s c r e v e r e m M o n t e i r o e
e m p r e g a d a , E l e t e m fé q u e o rambovai a p a r e c e r v i v o e são Silva, escreveram M o n t e i r o Silva. O « e » q u e , p o r d e s c u i d o ,
e até g u a r d o u u m b o m b o c a d o n o c o n g e l a d o r C o i t a d o , é f i c o u d e f o r a f o i o s u f i c i e n t e p a r a o a d v o g a d o fazer u n i
c o m o se o patrão tivesse p e r d i d o u m f i l h o . escândalo dos d i a b o s q u e quase deitava o prédio a b a i x o , É
M o n t e i r o e Silva, pá. O u você é a n a l f a b e t o o u é b u r r o ! O
Confesso u m a certa inveja pela vida de l o r d e que
« e » t e m d e c o n s t a r senão o d o c u m e n t o p e r d e o v a l o r q u e
rambo usufruía. E l e viajava d e avião, coisa q u e e u n u n c a
d e v e r i a t e r A p r e s i d e n t e d a Câmara M u n i c i p a l o f e r e c e u
fiz n a v i d a , c o m i a pedigree, e n q u a n t o e u e m p a n t u r r a v a o
u m a c r u z e u m a c a m p a de mármore p a r a colocar n a cova. A
estômago d e a r r o z m a l a n d r o .
população s o u b e q u e o p a d r e i a fazer a cerimónia fúnebre
D e i x á m o s q u e o a d v o g a d o curtisse a d o r d o desapa-
d e rambo n o cemitério e, alvoroçada c o m a i d e i a extrava-
r e c i m e n t o d u r a n t e três meses p a r a l h e c o m u n i c a r , através
g a n t e , ameaçou r e t i r a r os seus m o r t o s de lá e escrever u m a
d e u m t e l e f o n e m a a n ó n i m o , q u e o a n i m a l d e estimação
c a r t a ao b i s p o , caso houvesse autorização p a r a e n t e r r a r o
estava m o r t o e e n t e r r a d o n a sua p r o p r i e d a d e e m T e r r a B o a
a n i m a l n a q u e l e l u g a r sagrado. Inconsolável, m i s t u r a n d o
e o u t r a p a r t e g u a r d a d a n o seu c o n g e l a d o r O a d v o g a d o
lágrimas e r a n h o s , Apolinário c h a m o u d e raal-agradecidos
c o n t r a t o u d o i s h o m e n s p a r a escavar o t e r r e n o até e n c o n -
àqueles q u e se o p u s e r a m à i d e i a e j u r o u vingança ao f i l h o
t r a r e m as ossadas p a r a se c e r t i f i c a r q u e e r a v e r d a d e . U m
d a mãe q u e l h e m a t o u o seu rambo. R e s i g n a d o , a c a b o u p o r
desses t r a b a l h a d o r e s e r a B e t o Vesgo q u e a d o r o u a i d e i a d e
s e p u l t a r rambo n o j a r d i m d a sua casa e p r o m e t e u b o a r e -
r e t a r d a r o a c h a m e n t o das ossadas p a r a e x t o r q u i r a l g u n s
compensa para q u e m denunciasse o c r i m i n o s o , d e i x a n d o
c o n t i n h o s d o d o u t o r D e s e s p e r a d o p e l a d e m o r a , deu-lhes
a p r o m e s s a q u e o assassino seria e n q u a d r a d o n o s t e r m o s
u m a u m e n t o p a r a q u e apressassem o t r a b a l h o . Q u i n z e
da lei.
dias depois, t e r m i n a r a m o t r a b a l h o de busca, q u a n d o
d e r a m u m a p i c a r e t a d a sobre os ossos p u t r e f e i t o s . O d o u t o r
A p o l i n á r i o , ao d e s c o b r i r q u e os ossos e r a m d o seu q u e r i d o
cão q u e t r o u x e r a d a E u r o p a h a v i a c i n c o anos, desfez-se e m
lágrimas c o m o se a família i n t e i r a tivesse m o r r i d o n u m a
catástrofe. I n i c i a l m e n t e , ele q u e r i a fazer u m a espécie d e
mausoléu p a r a c o l o c a r os restos de rambo, porém, n o estado
e m q u e o a n i m a l estava, só l h e restava d a r - l h e u m e n t e r r o
d i g n o . D u r a n t e três dias, a b r i u a p o r t a d a sua mansão p a r a
r e c e b e r pêsames dos a m i g o s e d a vizinhança. A i d e i a d o
d o u t o r Apolinário e r a e n t e r r a r os restos d o cão d e f u n t o n o
cemitério d e P e d r a d e L u m e . A c h a v a q u e o rambo áe\\2L ser
enterrado c o m o gente, u m amigo d o peito, o f i l h o m a c h o
q u e n u n c a teve. A l g u n s dos seus b a j u l a d o r e s d e r a m - l h e
t o d o o a p o i o e c o n s e g u i u q u e l h e passassem u m b i l h e t e

149
EVEL ROCHA

XXI

A tuberculose e o m e u envolvimento na m o r t e de
r a m b o tinham d e i x a d o m a r c a s p r o f u n d a s e m m i m . A
f e b r e provocava-me delírios e havia m o m e n t o s d e pesadelo
o n d e e u vivia t o d o s os h o r r o r e s a c u m u l a d o s ao l o n g o d a
m i n h a c u r t a existência. N ã o sei se e r a m visões d e o u t r o
m u n d o o u s i m p l e s m e n t e c o n f l i t o s d o m e u espírito q u e -
r e n d o libertar-se d o c o r p o . O d e s p r e n d e r d o c o r p o físico
é c o m o atravessar u m t u b o m u i t o e s t r e i t o r e v e s t i d o d e
u m l í q u i d o p e s a d o e pegajoso. M e u coração p a r o u . P o r
a l g u n s i n s t a n t e s , s e n t i q u e e u estava a voejar n o q u a r t o
c o m o u m pássaro e m e s p i r a l , e n q u a n t o c o n t e m p l a v a o
m e u c o r p o imóvel cada vez mais distante. A o separar-me d o
m e u c o r p o f o i c o m o se tivesse l i b e r t a d o d e u m a c o r r e n t e
e m brasas q u e m e e n v o l v i a . C o m e c e i a subir, atravessei o
t e c t o d a casa, s u b i e n t r e as n u v e n s , m i s t u r a n d o - m e e n t r e
c o r p o s angélicos d e luzes q u e s o r r i a m p a r a m i m . F o i u m a
e x p e r i ê n c i a extraordinária q u e se d e s v a n e c e u , q u a n d o
algo m e p u x o u v i o l e n t a m e n t e p a r a d e n t r o d o rrieu c o r p o ,
e n q u a n t o o coração r e t o m a v a o seu r i t m o n o r m a l - e r a
B e t o V e s g o a c h a m a r p o r m i m e m desespero.
V o l t e i a s e n t i r o s u o r f r i o h u m e d e c e n d o os lençóis
da cama, voltei à vida.
EVEL ROCHA

XXII

E u j á disse q u e o passatempo de Magreza era ver filmes


d e t e r r o r ? N ã o se i m p o r t a v a d e v e r u m filme desses, vezes
s e m c o n t a , p a r a d e p o i s c o n t a r m i n u c i o s a m e n t e as cenas
d e h o r r o r . E n t u s i a s m a d o c o m os episódios d o filme O
Homem do Klan, L e i a achava q u e j á e r a o m o m e n t o d e d a r
u m a d u r a lição aos dois polícias pedófilos, Passaram-se o i t o
anos e n a d a a c o n t e c e u c o m eles, man. P r o v a v e l m e n t e , os
d o i s polícias j á n ã o se l e m b r a m d o m a l q u e n o s c a u s a r a m
e isto e r a u m b o m m o t i v o p a r a n o s v i n g a r m o s s e m n u n c a
p e r c e b e r e m , V a m o s capá-los
O p l a n o d e L e i a e r a p e r f e i t o e t u d o o q u e tínhamos
a fazer e r a esperar o m o m e n t o d e b o t a r as mãos n o s d o i s .
Pianista encarregou-se d e espiar os dois tarados q u e m o r a -
v a m e m Santa M a r i a . B a s t o u u m s i m p l e s t e l e f o n e m a p a r a
l o c a l i z a r m o s os d o i s polícias. D j o s a e n g o r d a r a c o m o u m
p o r c o e R a u l estava mais m a g r o , não f o r a a b a r r i g a a r r e -
d o n d a d a , dir-se-ia q u e e r a u m poste a m b u l a n t e . O t e m p o ,
o grogue e a m a n d r i a tinham-se encarregado de facilitar
o nosso t r a b a l h o . F o i u m a espécie d o j o g o d o gato e d o
r a t o . Vestidos c o m bubu e g o r r o s , passando p o r n i g e r i a n o s ,
n u m s o t a q u e e n r o l a d o , esperávamos o m o m e n t o c e r t o
p a r a os a p a n h a r n a p r a c i n h a o n d e passavam a t a r d e até
ao e s c u r e c e r d a n o i t e j o g a n d o u r i l . G e r a l m e n t e , e r a m os
l i l t i m o s a a b a n d o n a r o lugar. F o i u m r a p t o b e m sucedido,
d e v i d o ao estado d e e m b r i a g u e z e m q u e se e n c o n t r a v a m .
Aproveitámos p a r a encharcá-los d e g r o g u e e desviámos o
c a r r o e m direcção ao M o n t e L e ã o o n d e , d e p o i s d e amarrá-

-I C O
— EVEL ROCHA
MARGINAIS
p r o f u n d o d o s s o n o s . N ã o d e v i a ser uísque o u q u a l q u e r
-los, iniciámos o t r a b a l h o d e castração. Djosa f o i o p r i m e i r o
b e b i d a c o m u m p o r q u e F u s c o e r a imbatível n o s c o p o s .
a e x p e r i m e n t a r a d o l o r o s a e a f i a d a lâmina r a s g a n d o a sua
Q u a n d o a c o r d o u , m e i o grogue, o l h o u para o tecto
confidência. P a r a m i m , f o i u m m o m e n t o s u b l i m e , u m a
b r a n c o l u m i n o s o , o l h o u p a r a os l a d o s , v e n d o a p e n a s
catarse e m o c i o n a l , v e r o s a n g u e p e d ó f i l o s e r i n g a n d o a
e s t r a n h o s , p e r g u n t o u o n d e estava, mas n i n g u é m o p o d i a
c a d a g o l p e . Os g r i t o s d e d o r e d e s e s p e r o e r a m h i n o s d e
e n t e n d e r . O q u e está a a c o n t e c e r ? Q u e língua é esta q u e
glória e e s p l e n d o r , as súplicas d e misericórdia d o s d o i s
estão a falar? D e p o i s de m u i t o soletrar, d e s c o b r i u que estava
c u r a v a m as penosas lembranças d e u m passado q u e n o s
n u m a e n f e r m a r i a d o A e r o p o r t o de J o a n e s b u r g o . Fez a mais
v i n h a p e r s e g u i n d o e a t o r m e n t a n d o , f e r o z m e n t e , ao l o n g o
l o n g a v i a g e m d a sua v i d a d e n t r o d e u m c o n t e n t o r de avião.
d a nossa existência.
F u s c o i n i c i o u a sua v i d a s e x u a l c o m rapazes a i n d a
Por favor, deixem-me i r embora, t e n h o três filhos para criar
m u i t o c e d o . N ã o a c r e d i t o q u e ele fosse u m a m u l h e r n u m
O v o não, t i r e m - m e t u d o m e n o s os ovos. A n t e s m o r t o
c o r p o d e h o m e m c o m o ele gostava d e a f i r m a r A c h o q u e
q u e s e m ovos!, g r i t a v a m .
t u d o c o m e ç o u nas b r i n c a d e i r a s d e m e n i n o , mas d e p o i s
D e regresso, abandonámo-los à b e i r a d a estrada o n d e f o i difícil c o n t o r n a r o vício.
alguém os h a v i a d e socorrer, p o i s , a nossa intenção não e r a N u m a m a d r u g a d a q u a l q u e r , e u tinha d a d o u m a
matá-los, mas fazer-lhes c a r r e g a r até à m o r t e o e s t i g m a d e escapulida d o m e u posto de g u a r d a - n o c t u r n o para beber
u m p e s a d e l o i m p i n g i d o a u m p u n h a d o d e adolescentes u n s copos. A o passar j u n t o a u m p a r d i e i r o , o u v i a voz r o u c a
sem eira n e m beira. d e desespero d e Fusco p e d i n d o s o c o r r o . Ele gritava a m e n i -
E u a d m i r a v a o c o m p o r t a m e n t o d e Fusco. Rebolava n a d o q u e j á não a g u e n t a v a m a i s e q u e i a m o r r e r Q u a n d o
a p o l p a obstinadamente, mas era arrojado. Q u a n d o a p r o x i m e i p a r a c e r t i f i c a r d o q u e se passava, d e p a r e i c o m a
p a r t i l h e i c o m ele a i d e i a de nos v i n g a r m o s dos dois patética c e n a d e F u s c o e u m t u r i s t a e m p l e n o acto sexual:
h o m e n s , e l e p r o n t i f i c o u - s e . E r a c o m o se tivesse t r a n s - o e s t r a n g e i r o tinha-o a m a r r a d o a u m a árvore, c o m u m
f o r m a d o n u m a f e r a , u m m u t a n t e q u e se l i b e r t a v a das c i n t o à v o l t a d a sua c i n t u r a e d a d e Fusco e, p e l o que ele
peças d e r o u p a f e m i n i n a e d a f r a g i l i d a d e d e m u l h e r p a r a m e c o n t o u , h a v i a mais d e duas h o r a s e o h o m e m não se
vestir a r o u p a g e m de u m a f e r a f e r i d a n a sua d i g n i d a d e . saciava d o gozo. Cala a boca, c a r a l h o ! Dou-te mais m i l paus!,
N ã o se t r a t a v a d e u m p r a z e r , o u d e u m d e s e j o selvático o r d e n a v a o português. F u i p e d i r a j u d a a a l g u n s clientes
e m a f e r r a r a d o r aos o u t r o s , m a s d e r e p o r a j u s t i ç a d o b a r p a r a a r r a n c a r o e s t r a n g e i r o g r u d a d o ao Fusco, q u e
q u e a p r ó p r i a l e i n o s t i n h a n e g a d o através d o s e n h o r estava e m estado d e c h o q u e . Fusco passou alguns meses
Apolinário. A vida breve de Fusco era u m m i l h e i r a l e m abstinência p a r a se r e c o m p o r d o susto e, d u r a n t e u m a
d e histórias engraçadas. L e m b r o - m e d o a l a r i d o q u e se v i n t e n a d e dias, não c o n s e g u i a r e t e r as fezes.
l e v a n t o u e m Chã d e F r a q u e z a , q u a n d o c h e g o u a notícia
q u e e l e d e s e m b a r c a r a d e u m d o s aviões d a S A A v i n d o
d a Á f r i c a d o S u l . N ã o f o i difícil d e s c o b r i r c o m o t u d o
acontecera: Fusco t i n h a i d o vasculhar u m dos c o n t e n -
t o r e s d e l i x o d e avião, e n c o n t r o u u m a g a r r a f a d e b e b i d a
p e l a m e t a d e ; n u m t r a g o , e n g o l i u a b e b i d a e, a t o r d o a d o ,
caiu desamparadamente n o contentor, p e g a n d o n o mais
EVEL ROCHA

XXIII

Depois de m e refazer d o desgaste causado pela t u b e r c u -


lose, voltei e m definitivo para Santa M a r i a . F u i convidado para
ser vocalista d o g r u p o Bubista nos self-services e noites cabo-ver-
dianas, porém a remuneração m a l chegava para sobreviver Zé
B e n t o chamou-me à parte e vi l o g o que era assunto sério. Volta
e m e i a coçava a cabeça e deixava escapulir a l g u m a lamúria,
c o n t u d o , depois d e u m suspiro explosivo, disse-me. Á v i d a de
serenata está cada vez mais difícil. U l t i m a m e n t e , este l u g a r
encheu-se d e g r u p o s e u m gajo está bastante p r e o c u p a d o
c o m isto. A n t e s d e regressares ao g r u p o , as coisas estavam
m e s m o complicadas, agora estão piores. Q u a l q u e r c o i s i n h a
d i z e m , a h ! , vocês p e r d e r a m q u a l i d a d e , a h , o Pitboy está c o m
tuberculose e temos clientes, a h ! , vocês estão recebendo caro,
sabes, assim não dá. Todos nós sabemos q u e t u és o m e l h o r
c a n t o r de serenata desta i l h a , disso ninguém t e m dúvida. Mas
achamos que devias dar u m t e m p o para recuperares. U m gajo
está a q u i p a r a te ajudar, sabemos q u e não aguentas a esto-
cada d u m a n o i t a d a . C o m u m p o u c o de paciência e repouso,
recuperas e voltas, pá. A n d a m p o r aí a dizer q u e estás c o m
sida, sabes, esse p o v o fala de mais, pá. Q u a l q u e r f e b r e z i n h o
começam l o g o a pensar e m sida, h e p a t i t e , m o r t e . . .
Irremediavelmente, tive de voltar a passar droga n a praia
p a r a sobreviver. As coisas estavam mais difíceis d o q u e n u n c a .
A l g u n s nigerianos tinham sido apanhados e m flagrante d e l i t o
e u m o u t r o f o i preso p o r molestar sexualmente u m a turista. A
violação é u m a a t i t u d e cobarde e abjecta. Os q u e c o m e t e m tal
acto deviam ser decapitados sexuailmente, o u m e l h o r , deviam
MARGINAIS EVEL ROCHA

sofrer n a pele a m e s m a d o r q u e causam às vítimas. E u era u m equilibrada, u m a sociedade q u e m e pudesse mostrar o c a m i n h o


passador d e d r o g a p o r q u e ninguém m e dava t r a b a l h o . O u certo q u e não fosse o c a m i n h o d a discriminação, as montanhas
v e n d i a d r o g a o u tinha de r o u b a r para sobreviver. Arreliava-me íngremes d a marginalização e d o egoísmo. Sempre q u e furtava
c o m i g o m e s m o p o r q u a n t o nào e r a a q u e l a a v i d a q u e q u e r i a p a r a m a t a r a f o m e , davam-me p o r r a d a , n o entanto, não m e
p a r a m i m . E u tinha consciência d o p e r i g o q u e atravessava, ensinaram a fazer o u t r a coisa. Castigaram-me e mandaram-me
mas era m e l h o r ser passador d o q u e assaltar a casa d e alguém de volta para os meus problemas; as autoridades, que nos vigiam
a r m a d o d e u m a pistola, c o m o a c o n t e c e u c o m O t a l d i n o q u e e se f l i r t o m ao dever de nos ensinar o m e l h o r , abusam de nós
l e v o u c h u m b o p e l o c o r p o e q u e até h o j e vive c o m u m a bala física, m e n t a l e sexualmente.
alojada n a n u c a . C h a t e o u - m e bastante o b a r u l h o d a c o m u - C o m o não o d i a r ?
nicação social a q u a n d o d a violação d a q u e l a turista n a p r a i a A p i o r violência é não se i m p o r t a r c o m os outros, c o m
d e Santa M a r i a . F i q u e i c h a t e a d o p o r q u e a n d a r a m p o r aí a aqueles que vivem e m condições subhhumanas. A indiferença dói
dizer q u e aquele acto i a p r e j u d i c a r a i m a g e m d e C a b o Verde. mais que u m m u r r o n o estômago e neste sentido as autoridades
A moça e r a miss d e u m a república q u a l q u e r lá d a E u r o p a . A d a i l h a e m e r g e m c o m o os mais violentos. A m i n h a vida t e m
rádio, a televisão e os j o r n a i s dissecaram o assunto c o m o se sido u m circo r o m a n o , a b a n d o n a d o n a arena de atrocidades,
se tratasse d e u m a crise i n t e r n a c i o n a l , q u a n d o todos os dias de roubos, d e tráficos, d a violência, n u m salve-se q u e m p u d e r
os mristas v i o l a m m e n o r e s dos nossos bairros. A q u i l o q u e os o u t r o s c h a m a m d e d e l i n q u ê n c i a ,
Santa Mariajá não é ejamais será a vila hospitaleira de gente c h a m a m o s d e sobrevivência.
h u m i l d e e trabalhadeira d o passado. A vila d o u r a d a p e l o sol e
pela areia das suas praias, q u e nasceu enti^e as salinas e o m a r Viver e m b a n d o é mais seguro e deixamo-nos ser levados
de cor esmeralda, q u e abasteceu a Africa e a E u r o p a c o m o seu pela vida. Nas brigas há sempre dois partidos q u e se o p õ e m
sal, hoje é refém de mercenários, caçadores d e ilusões, comer- n u m a feroz disputa, que termina, geralmente, n u m a luta corpo-
ciantes d o sexo i n d i s c r i m i n a d o , predadores q u e vão d e i x a n d o -a-corpo. A n d a r e m g r u p o é sempre mais seguro. Tomasse mais
as suas marcas à m e d i d a q u e destroem a nossa terra e m n o m e fácil defender-nos um ao o u t r o e as rixas t o m a m proporções
d o progresso e mais trabáho, bárbaros q u e vão p r o f a n a n d o a incontroláveis. Ricardo Pianista, o kamicaze d o g r u p o , m e t i a
pureza desse magnificente recanto q u e inspira a paz. Sobre o m e d o pela sua valentia, g r u d a v a n o i n i m i g o c o m o u m cão
imenso areal erguem-se m u r o s d e c i m e n t o ameaçadores. pitbulle, sem esforço, r e c o r r i a à sua q u e i x a d a de f e r r o e às suas
E u também t e n h o lágrimas nos olhos, d o m e u lado u n h a s rapinas. N u m a briga, q u a n d o t u d o indicava q u e ele i a
esquerdo t e n h o u m coração c o m o qualquer ser h u m a n o , t e n h o levar a m a i o r sova d a sua vida, eis q u e ele se levantava, t r i u n -
sentimentos moldados segundo ávida que tenho vivido, segundo f a n t e m e n t e , n o m e i o d a poeira, c o m u m pedaço de o r e l h a n o
os valores adquiridos n a sociedade o n d e estou inserido, t e n h o m e i o dos dentes, a r r a n c a d o ao seu adversário.
vivido ávida q u e a sorte m e g u a r d o u . A m o de paixão, o d e i o de N u m a m a d r u g a d a d e d o m i n g o , e u descia o m o r r o d e
alma e faço t u d o de consciência lavada. A o escrever estas páginas Hortelã c o m u m a moça d e Santo Antão q u e havia p o u c o
d e r r a m o o m e u coração nelas, c h o r o p o r saber que meus sonhos t e m p o chegara à i l h a e m busca d o p r i m e i r o e m p r e g o . E l a
estão tão distantes de m i m quanto as estrelas estão da terra. Sofro e l o g i o u o m e u j e i t o civilizado d e dançar: tipo dançá-parôde,
p o r não ter a força d e vontade q u e H u m b e r t o Lélis teve para sabes estou farta dessas danças q u e mais p a r e c e m b r i g a d e
fazer u m curso, mas também sofro p o r não ter tido u m a família galo. A l é m d o mais, és c u r t i d o .
MARGINAIS EVEL ROCHA

E l a não e r a assim t i p o avião, mas não e r a d e se d e i t a r


f o r a . C o m a escassez d e m u l h e r q u e h a v i a n a i l h a , t u d o o
q u e v i n h a n a r e d e e r a p e i x e e e u d e v i a a p r o v e i t a r , antes
XXIV
q u e os o u t r o s b o t a s s e m os o l h o s n e l a . Fazia p a r t e d o j o g o
n a i l h a o n d e m u l h e r e r a coisa r a r a . A o c h e g a r n a l a d e i r a
d e H o r t e l ã , r e p a r e i e m três v u l t o s q u e v i n h a m atrás d e
nós, a r m a d o s c o m p a u s . R e t i r e i o braço à v o l t a das ancas
d a moça, fingindo não m e a p e r c e b e r d e n a d a . O s três
h o m e n s postaram-se à m i n h a f r e n t e , t e n t e i f u g i r , p o r é m
era tarde demais. V o l t e i a c a n t a r nas loucas n o i t e s d e serenata, v o l t e i
Q u a n d o a b r i os o l h o s i n c h a d o s e c o b e r t o s d e t e r r a , e m força p a r a m e v i n g a r d e t o d o s aqueles q u e a c h a v a m
v i apenas os pés dos agressores d e s a p a r e c e n d o n a p o e i r a q u e e u e r a u m caso p e r d i d o . N u n c a c a n t e i tão b e m n a
q u e m e cercava. T e n t e i l e v a n t a r - m e , mas m e u c o r p o estava vida c o m o n a n o i t e cabo-verdiana, n o Restaurante L a
a m o r t e c i d o pelas b o r d o a d a s d e p a u e p a r e c i a pesar t o n e l a - Milaneza. Depois de cantar c o m t o d a a a l m a u m a m o r n a
das. C h o r e i d e d o r e raiva, mas não d e m o r o u a vingança: d e N h e l a s S p e n c e r , os c l i e n t e s , q u e a p i n h a v a m o salão,
Pianista t o m o u o caso c o m o s e n d o u m a questão d e h o n r a . m a i o r i t a r i a m e n t e i t a l i a n o s , a p l a u d i r a m - m e d e pé, f a z e n d o
C h a m o u B e t o , Fusco e L e i a M a g r e z a e fizeram u m p l a n o c o r o n o refrão. B r a v o ! U m a das m i n h a s m o r n a s p r e f e r i -
d e g u e r r a . C o n n o s c o é assim: «bateu n o C h i c o , b a t e u n o das é Naquele Dia de Festa, de Antero Simas: Ah! Naquele dia
Francisco!». Levaste p o r r a d a ? T o d o s nós levámos p o r r a d a . de festa// Mim crê colá Sanjon na Picos// Mim crê batuque na
A g o r a t e m o s d e te v i n g a r , man. Ribeira de Julião// Vulcão na praia de Santa Maria// Vale de
Saíram l a d o a l a d o , d e rostos f e c h a d o s , c o m o p i s t o - Paul na Boa Vista// Morna de Nhô Eugénio na Nhô Saniculauf
l e i r o s dos filmes d e cowboy. A r m a r a m - s e c o m paus e, p o r A l g u é m f a l o u e m financiar nosso p r i m e i r o disco, d e i x a n d o
v i a das dúvidas, e s c o n d e r a m n a v a l h a s nas meias, caso a a p r o m e s s a q u e l o g o d e p o i s d o festival d e Santa M a r i a ,
b r i g a tomasse p r o p o r ç õ e s incontroláveis. L e i a c o m e ç o u iríamos aos Estados U n i d o s . N o m e u í n t i m o , e u estava
a assobiar u m a c o l a d e i r a b r e j e i r a e Fusco esforçava-se e m convicto que aquela era a m i n h a noite redentora, a p o r t a
a m a r r a r o cabelo d u r o e crespo c o m u m lenço d a cor da q u e m e l e v a r i a à a u t o - e s t r a d a d o sucesso. Zé B e n t o , o v i o -
b a n d e i r a a m e r i c a n a e, n o s a r r o t o s , i m i t a v a o r u g i d o d e l i n i s t a d o g r u p o , sentia-se n o céu c o m a o n d a d e êxito d o
l e ã o p a r a g a n h a r c o r a g e m . O s rapazes d e S a n t o A n t ã o g r u p o B u b i s t a , q u e l h e faltava t e m p o p a r a d a r atenção à
ainda comemoravam a surra que m e t i n h a m dado, quando Sílvia q u e regressara d e Itália p a r a rever o m a r i d o e os seus
f o r a m s u r p r e e n d i d o s p e l o s q u a t r o Pitboys. d o i s filhos n a t e r r a . A p e s a r d e t u d o , Sílvia sentia-se feliz
O regresso dos q u a t r o f o i t r i u n f a n t e e p r a z e n t e i r o . p e l o sucesso d e Zé B e n t o . E r a mais q u e provável q u e , n u m
N ã o obstante algumas contusões, o resto da n o i t e f o i r e g a d o espaço de três meses, estivéssemos a gravar o nosso p r i m e i r o
d e cerveja e p r e m i a d o c o m o f u m o d o poff que p e r f u m a v a d i s c o . O sucesso n a música seria u m a f o r m a d e s u p e r a r
a casa t o d a e lavava a a l m a .
7 A h ! Naquele dia de festa// Quero colar São João nos Picos// Quero batu-
co na Ribeira de Julião// Vulcão na praia de Santa Maria// Vale do Paul na Boa
Vista// M o r n a do Senhor Eugénio em São Nicolau!. ,

-\H
MARGI NAIS • _ EVEL ROCHA

OS s o n h o s t r i s t e m e n t e esvaídos d e c r a q u e d e f u t e b o l e d a N a matéria d e a n t i g u i d a d e não posso d a r opinião;


advocacia e m favor dos p o b r e s . A m i n h a voz seria o u v i d a a isto j á não é d o m e u t e m p o , disse-lhe a b r i n c a r .
c a n t a r a s i n a d o c r i o u l o , a l u t a r c o n t r a as d e s i g u a l d a d e s e Ela olhou-me nos olhos e respondeu c o m hostili-
a e x a l t a r a m o r a b e z a d e u m p o v o castigado p e l a d o r . L e n a d a d e . Estás a c h a m a r - m e d e v e c c h i a , hã? O l h a q u e a nossa
p e d i u - n o s q u e fôssemos c a n t a r n a sua Tasquinha Russa q u e diferença d e i d a d e não é t a n t o assim. Sílvia q u e r i a q u e Zé
prosperava, escandalosamente. E u era o l i n i c o h o m e m B e n t o apagasse a c h a m a d o desejo q u e l h e c o n s u m i a as
que entrara pela p o r t a adentro d o estabelecimento e que e n t r a n h a s . A força d o álcool i n t e n s i f i c a v a o f o g o a r d e n t e
não d n h a a p o s t a d o n a t e n t a t i v a d e a d i v i n h a r o s i g n i f i c a d o d a q u e l e c o r p o e f e r v e s c e n t e e l i b i d i n o s o . Se Zé B e n t o n ã o
d e Tasquinha Russa. N ã o o tinha f e i t o mais p o r m e d o d e respondesse aos seus vagidos, e l a e r a capaz d e c o m e t e r
p e r d e r a a m i z a d e d e L e n a , p o i s , e l a t i n h a u m fascínio q u e u m a loucura.
eclipsava os m e u s s e n t i d o s . P r e f e r i a p e r d e r os mais d e m i l A m i n h a f a m a d e c a n t o r crescia, v e r t i g i n o s a m e n t e .
c o n t o s q u e a q u a n t i a d a aposta tinha alcançado até então, a Q u a l q u e r e s p i r r o q u e e u d a v a e r a m o t i v o d e aplausos.
t e r q u e m e a t r e v e r a d i z e r p u b l i c a m e n t e o q u e pensava d o Q u a n d o fazia obscenidades o u i n s u l t a v a u m c o r o n e l , t o d o s
significado d o n o m e e não adiantava insistirem para q u e o a c h a v a m graça e n i n g u é m m a i s se l e m b r a v a q u e e u e r a
fizesse. Sílvia, q u e n ã o d e s g r u d a v a d o pescoço d o m a r i d o , u m m a r g i n a l . E u tinha a impressão q u e a g a n j a m e fazia
o l h a n d o p a r a o cartaz «realize os seus s o n h o s a d i v i n h a n d o c a n t a r m e l h o r ; e l a p u r i f i c a v a as m i n h a s c o r d a s vocais e
o s i g n i f i c a d o d e t a s q u i n h a russa», a c h o u u m d i s p a r a t e fazia-me v o a r c o m os pés n o chão. E u e r a capaz d e c a n t a r
a i d e i a d a aposta, m a s n ã o r e s i s t i u à tentação d e p e r d e r u m a n o i t e i n t e i r a e só p a r a v a p a r a s o r v e r o f u m o d i v i n o e
a l g u n s c o n t i n h o s : M a che spropositol, vão v e r q u e o n o m e d o c e d a erva m i r a c u l o s a , q u e m e d e v o l v i a a q u e l a sensação
não t e m s i g n i f i c a d o n e n h u m . Sílvia misturava o c r i o u l o c o m d e paz e m e a n t e c i p a v a o g o z o d o paraíso celeste!
o italiano c o m a mesma velocidade q u e misturava p o n c h e F o i n a Tasquinha Russa q u e assinei u m c o n t r a t o c o m o
e Cinzano. C h a m a v a a a g u a r d e n t e d e acquavite, m o s t r a v a a d o n o de u m a gravadora. V o l t e i a acreditar nos sonhos, voltei a
sua preferência p o r u m a b o a birra. d o r m i r n u m a cama d e verdade, passei a ser Sérgio d o Rosário
Q u e m está a f i c a r e m b i r r a d o c o m t u d o isso s o u e u , Araújo, e m b o r a preferisse ser c h a m a d o d e Pitboy.
r e s m u n g o u Zé B e n t o , p a r a quê t a n t a birra? Sílvia f a l o u - m e d a Itália, e n a l t e c e n d o a g r a n d e z a e
Birra é cerveja e m i t a l i a n o , s e u t o l o , scioccol Es m u i t o o p o d e r d a t e r r a c o n s a g r a d a p e l o s Césares, m o s t r o u - m e
p l e n g o . A g o r a q u e r o é m a n g i a r e u m a b o a c a c h u p a guisada q u e lá também t e m rios d e água d o c e e r i o s d e d i n h e i r o
c o m linguiça, s e g r e d o u - l h e aos o u v i d o s a j o v e m m u l h e r , p a r a q u e m t e m m u i t o t a l e n t o e t a l e n t o e r a o q u e e u tinha
s e d e n t a d e afecto e afins. p a r a s i n g r a r n a t e r r a d o p a p a e. Se quiseres, arranjo-te u m a
Então, mandja, p o r r a ! , r e t o r q u i u o violinista, c o m e e c r i o u l a das boas. T e n h o u m a a m i g a q u e m e e n c a r r e g o u
deixa-me e m paz! Sílvia, indiferente aos resmungos d o seu c o m - d e l h e a r r a n j a r u m maschio, u m h o m e m sério e d i s p o s t o a
panheiro, espevitava o seu italiano torto, baraflistava c o m aqueles Cíisar c o m ela. O l h a q u e é sério. Estás a v e r essas «fanciul-
que se abeiravam dela para se divertirem d o seu linguarejar, falava linhas» a e x i b i r e m - s e p o r aí? E l a é m a i s b o a q u e q u a l q u e r
de Itália c o m o se se tratasse de u m parafeo à parte e longínquo, u m a delas e é t r a b a l h a d e i r a lá f o r a , p o d e s crer. E l a é d a q u i
a terra p r o m e t i d a . Pois é, antigamente comíamos cachupa p o r d o Sal e t e m três filhos j á g r a n d e s , mas t e m u m b o m v e n -
necessidade e hoje c o m e r cachupa guisada é u m l u x o ! c i m e n t o , buona scadenza. Se estás a p e n s a r q u e se t r a t a d e

^ RO
MARGINAIS . . EVEL ROCHA

a l g u m a v e l h a à p r o c u r a d e u m a b e n g a l a , estás e n g a n a d o . L o g o assim q u e chegares à Itália, d i z à m a m ã e q u e


Os f i l h o s j á são a d u l t o s p o r q u e e l a p a r i u m u i t o c e d o , f o i seu filho não é a d v o g a d o , c o n t u d o é a d m i r a d o p o r t o d o s
e n g a n a d a p o r u m e s t u p o r d o d i a b o n a adolescência, u m os a d v o g a d o s e j u í z e s deste país, q u e , c o m o a Size o u
maledetto cucciolo. Se casares c o m ela, casarás b e m casado, P a v a r o t t i , é u m a e s t r e l a q u e a j u d a os m a i s f r a c o s e dá
só q u e tens d e tratá-la c o m c u i d a d o p o r q u e t e m u m f i l h o d e c o m e r aos p o b r e s . A i m a g e m d o r e t r a t o e r a de u m a
a d v o g a d o ! , a l e r t o u - m e , n u m a g a r g a l h a d a . Sabes, Sérgio, m u l h e r forte e bela, u m a g u e r r e i r a que soube c o n t o r n a r
t e n h o p e n a d e l ^ . S a i u d a q u i há dez anos, n o s p r i m e i r o s as vicissitudes q u e a v i d a l h e i m p i n g i r a p a r a t r i u n f a r n a
anos, todas as semanas, escrevia u m a c a r t a ao f i l h o advo- t e r r a l o n g e . P e d i à Sílvia q u e m e oferecesse a f o t o g r a f i a ,
g a d o e este n u n c a l h e r e s p o n d e u , mas mãe é mãe e não vê p o i s e r a a p r i m e i r a vez q u e v i a u m a f o t o g r a f i a d a m i n h a
o d i a e m q u e há-de v o l t a r p a r a abraçar os f i l h o s . O s o n h o mãe desde q u e e m i g r a r a . C o n t e i - l h e a m i n h a história, d e
d e l a é v o l t a r p a r a ver seu f i l h o a d v o g a d o , d e c a p a p r e t a n o c o m o f o r a m m e u s dias após a p a r t i d a d e mamãe e, c o m o
t r i b u n a l , e m defesa d a v e r d a d e e d a justiça. Sílvia m o s t r o u - e r a m e u hábito, c o n t e i - l h e a l g u m a s m e n t i r a s c o l o r i d a s
m e a fotografia de u m a j o v e m m u l h e r m u i t o linda. p a r a a c o n v e n c e r d a razão p o r q u e e u não e r a u m advo-
A i n d a n a ressaca d a a l i e n a d a n o i t e a n t e r i o r , tive a g a d o : d e i x e i d e e s t u d a r p o r q u e os professores e r a m t o d o s
impressão q u e a i m a g e m p u r a e b e l a d a m u l h e r d a f o t o - preconceituosos e malvados!
g r a f i a m e d i z i a q u a l q u e r coisa q u e os m e u s s e n t i d o s não Q u a n d o Zé B e n t o e os colegas d o g r u p o m u s i c a l sou-
p e r c e b i a m , p o r é m , q u a n d o e l a disse-me q u e o r o s t o d a b e r a m d o a c o n t e c i d o , riram-se, f o l g a d a m e n t e , d e b a i x o dos
f o t o se c h a m a v a Rosário, M a r i a d o Rosário Araújo, tive a m e u s protestos e ameaças. C a n t a r era t u d o o q u e e u q u e r i a .
sensação d e q u e alguém m e p u x a v a o t a p e t e d o o r g u l h o Estávamos m u i t o p e r t o d o d i a q u i n z e d e S e t e m b r o , o d i a
q u e m e s u s t i n h a os pés: Rosário é a m i n h a mãe!, b r a d e i d o Município, a l t u r a d o Festival d e S a n t a M a r i a e e u e r a
d e s c o n c e r t a d o e às avessas. C o m o p u d e ser tão i n d e c e n t e a estrela d a i l h a , a voz d e o u r o q u e o r g u l h a v a os salenses.
e despropositado a p o n t o de engendrar pensamentos
v e r g o n h o s o s c o m a m i n h a própria mãe? O f i l h o a d v o g a d o
sou eu!, u m drogado, u m marginal, u m decadente, u m
l a r a p i o passador, u m b ê b a d o ! M a m ã e s e m p r e a c r e d i t o u
e m m i m e ela v a i m o r r e r d e desgosto, se s o u b e r q u e não
sou o q u e ela sempre s o n h o u .
E a g o r a , Sérgio?
Tive n o j o de m i m m e s m o , mas, depois, recuperei-me d o
desgosto. A velha c o m p a n h e i r a dos m o m e n t o s difíceis, a divina
cocaína, ajudou-me a levantar d o fosso sem f l m d o que se abrira
debaixo dos meus pés. E u não era o advogado que mamãe tanto
s o n h o u , mas e m breve seria u m artista conceituado de q u e m ela
i r i a se orgulhar. Ser artista é de certa f o r m a ser u m advogado,
usando a música para dar voz ao sentimento, defender os fracos
e infelizes - teria o u v i d o isso e m a l g u m lugar?

^ «/I
EVEL ROCHA

XV

O u t r o negócio que dava l u c r o n a i l h a era o aborto. Havia


casas o n d e as m e n i n a s e m u l h e r e s de b o a família, casadas até,
p r o c u r a v a m auxílio das abortadeiras para pôr f i m a u m a gravi-
dez não desejada, c l a n d e s t i n a m e n t e . M a n d a r u m feto para
o « c o l é g i o » e r a o t e r m o mais p o p u l a r . N h a M a r i a d o M o n t e
tinha fama de abortadeira baseada nos remédios de terra, nos
chás d e p r e g o , d e f e r r u g e m , das misturas d e plantas c o m o a
sempre-noiva e d e t o d a a mixórdia q u e l h e v i n h a ã mão. E l a
passava receita p a r a remédio d e t e r r a . N h a M a r i a sabia q u a l
era a dose exacta p a r a b o t a r m e n i n o . J a q u e l i n e m o r r e u duas
semanas depois d e se s u b m e t e r ao q u a r t o a b o r t o , q u a n d o o
médico l h e fazia u m a raspagem d e u m a b o r t o clandestino
m a l feito. As pessoas d i z i a m q u e os filhos q u e ela tinha m a n -
d a d o p a r a o « c o l é g i o » se j u n t a r a m p a r a v i r buscá-la p a r a q u e
p u d e s s e m crescer c o m o anjos n o r m a i s n o céu. J a q u e l i n e
gostava d o negócio « c a m e n a carne» e não conseguia ser
f i e l ao m a r i d o . E l a tinha os seios achocolatados mais l i n d o s
q u e a natureza c r i o u . E l a gostava d o m a r i d o c o m u m a m o r
desmedido, porém, não conseguia ser fiel. J a q u e l i n e chorava
d e r e m o r s o q u a n d o caía e m si, penitenciava-se d i a n t e d o
m a r i d o , manifestava a v o n t a d e d e acabar c o m a própria vida,
mas, l o g o q u e o b i c h i n h o d o sexo a m o r d i a , não havia j u r a s
n e m promessas capazes d e segurar o seu ímpeto genital. O
m a r i d o fazia t u d o p a r a a ajudar e até l h e r e c o m e n d a v a q u e
fosse discreta nas suas saídas. Nas conversas, antes de d o r m i r ,
ele só falava d e negócios, c o n t r a t o s vantajosos, i n v e s t i m e n t o
e m mais u m prédio e m constmção, venda imobiliária, viagens
MARGINAIS : _ EVEL ROCHA

p a r a os States, chocolates e p e r f u m e s , Para m i n h a q u e r i d a Acossada pelos a t r e v i m e n t o s d a cega e o prejuízo q u e


esposa Jackie. J a q u e l i n e saía n o c a r r o à n o i t e , e n q u a n t o o isso l h e t r a z i a p a r a o n e g ó c i o , a a b o r t a d e i r a r e s o l v e u d a r
m a r i d o sonhava c o m u m n o v o negócio. u m sumiço n e l a . N h a M a r i a d e i t o u v e n e n o de r a t o n u m
Nha Maria do Monte tinha u m quarto no fundo p r a t o d e c o m i d a e m a n d o u q u e alguém o levasse à J o s i n a
d o q u i n t a l o n d e fazia o t r a b a l h o p a r a as m u l h e r e s q u e p a r a j a n t a r A l g u m a s h o r a s d e p o i s , saiu p a r a v e r i f i c a r se
a p r o c u r a v a m n a c a l a d a d a n o i t e e, d e v i d o às condições a cega tinha p a r t i d o desta p a r a m e l h o r P u x o u u n s d o i s
precárias, à f a l t a d e c u i d a d o s higiénicos, r e c e b i a «apenas» g a n i d o s d a g a r g a n t a p a r a a f i n a r a voz, e n s a i a n d o o g r i t o de
o i t o m i l escudos p o r cada serviço prestado. Apesar d o preço l a m e n t o p e l a m o r t e d a « p o b r e coitada» assim q u e e n c o n -
e x a g e r a d o , a p r o c u r a e r a b a s t a n t e considerável. T u d o trasse o c o r p o caído p e l o chão, p o r é m , ao a p r o x i m a r - s e d a
e r a f e i t o d e b a i x o d e j u r a m e n t o sigiloso d e m o d o a não a p a r e n t e d e f u n t a , r e p a r o u q u e ela r o n c a v a . Ó, diacho, ela
c o m p r o m e t e r n e n h u m a das partes. M u i t a s vezes, d e v i d o à a i n d a r e s p i r a ! E p r e c i s o ajudá-la a sair desse s o f r i m e n t o !
situação d e d e s e s p e r o e m q u e as c l i e n t e s se e n c o n t r a v a m , N o m o m e n t o e m q u e se p r e p a r a v a p a r a asfixiá-la
o a b o r t o d n h a d e ser f e i t o à pressa antes q u e raiasse o d i a . n o b r e u d a n o i t e , N h a M a r i a f o i s u r p r e e n d i d a c o m os
F o i n u m a dessas m a d r u g a d a s a t r i b u l a d a s q u e J a q u e l i n e se o l h o s g r e l a d o s d e u m b r a n c o assustador, o c a b e l o des-
sentiu o b r i g a d a a deixar o local sem c o m p l e t a r o aborto. g r e n h a d o e a b o c a s e b o r r e i c a d e sapo d a cega, r o s n a n d o ,
Restos d o f e t o f i c a r a m alojados nas suas e n t r a n h a s a p o d r e - c o m o a figura d o d e m ó n i o i n c a r n a d o . Q u e r e s a b o r t a r - m e
cendo. Q u a n d o f o i i n t e r n a d a n o hospital, já era tarde. também, m u l h e r d o d i a b o ? , b e r r o u a cega q u e , n u m salto,
N h a M a r i a d o M o n t e c o m e ç o u a c a r r e i r a c o m o par- e n g a n c h o u c o m os d e d o s o pescoço d e N h a M a r i a c o n t r a
t e i r a , mas, q u a n d o d e s c o b r i u q u e o a b o r t o dava mais l u c r o , a p a r e d e . T e n t a fazer isso d e n o v o q u e te m a n d o p a r a o
m u d o u d e profissão. S a i u d e u m e x t r e m o p a r a o u t r o . « c o l é g i o » , ó! Pensas q u e e u i a c o m e r a t u a j a n t a envene-
As suas c l i e n t e s , m a i s p r e o c u p a d a s e m se d e s e m b a - nada? S o u m a i s e s p e r t a q u e t u , ó! E u estava m e s m o à t u a
raçar d a gravidez, i g n o r a v a m p o r c o m p l e t o as condições espera. A t u a s o r t e é q u e e u não posso c o r r e r atrás d e ti
higiénicas e a presença d e J o s i n a , a cega, q u e passava a p a r a te e n f i a r este p r a t o g o e l a a b a i x o , assassina!
n o i t e ao r e l e n t o d e i t a d a ao pé d a p o r t a d e casa d a a b o r t a - E m b o r a vivesse n a e t e r n a s o m b r a d a c e g u e i r a , J o s i n a
d e i r a . N o s m e u s dias d e inocência, e u t i n h a m e d o de c o n h e c i a todas as pessoas d e Chã d e Fraqueza. Q u a l q u e r
J o s i n a , p o i s , dizia-se q u e ela e r a b r u x a e tinha c o m i d o os c h e i r i n h o de grogue era o suficiente p a r a lhe soltar a
seus próprios o l h o s ao o l h a r p a r a u m e s p e l h o . Ameaçava l í n g u a p e ç o n h e n t a . Sentava-se à p o r t a d a casa d e N h a
d i v u l g a r o n o m e d e t o d a s as m u l h e r e s q u e e n t r a v a m n a M a r i a d o M o n t e c o m as p e r n a s escancaradas e os braços
casa d e N h a M a r i a d o M o n t e , se não l h e dessem u m a c e r t a e m j e i t o d e g u i t a r r i s t a , cantava c o m a voz desafinada, n u m
importância e m d i n h e i r o . J o s i n a era mais feia q u e u m r a p h i l a r i a n t e , i m i t a n d o os g r i t o s das m u l h e r e s n a h o r a d o
m o n t e d e e s t r u m e e tinha a língua m a i s afiada q u e u m a a b o r t o . Só se calava, q u a n d o a a b o r t a d e i r a a p a r e c i a c o m
faca d e c a r n i c e i r o . S e n t i a o c h e i r o d o a b o r t o à distância e d i n h e i r o p a r a p a g a r o seu silêncio. E l a não vestia cuecas,
r e c o n h e c i a as m u l h e r e s p e l o suor. F i c a a saber q u e e u sei mas n e n h u m h o m e m tinha c o r a g e m d e d e i t a r c o m u m a
o n o m e d e todas as c r i m i n o s a s , velhas e novas q u e e n t r a m c r i a t u r a tão f e i a ! L e v a n t a v a a saia e e n f u n a v a o r a b o e m
n a t u a casa, e u sei o d i a e a h o r a , e u sei d e t u d o . Está t u d o s i n a l d e p r o t e s t o àqueles q u e l h e c o b r a v a m u m p o u c o d e
e s c r i t o n a m i n h a testa, ó. r e s p e i t o , Q u e r e s respeito? V e m apanhá-lo a q u i , ó!

1RQ
MARGINAIS^ ^ EVEL ROCHA

M i m a teria feito três o u q u a t r o abortos antes de c o m p l e -


tar dezanove anos. Os dois últimos a c o n t e c e r a m n o H o s p i t a l
d e São V i c e n t e . S e m p r e q u e falava e m a b o r t o , seus o l h o s
XXVI
h u m e d e c i a m e a sua voz trémula r e f l e c t i a u m a dose de eirre-
p e n d i m e n t o e tristeza. Passava horas esquecidas a contar c o m o
t u d o acontecia, m e s m o sabendo q u e n a m a i o r parte das vezes
e u não l h e dava ouvidos. E l a descrevia d e t a l h a d a m e n t e o p r o -
cesso a b o r t i v o e depois sentava-se à b e i r a d a cama, o l h a n d o
p a r a o chão c o m o se estivesse a b r i n c a r c o m os bebés q u e
l h e f o r a m arrancadas d o v e n t r e . « N u m a dessas operações, N u m a n o i t e , d u r a n t e os ensaios p a r a o festival d e
e u sentia o bebé a sacudir d e u m l a d o p a r a o o u t r o e t e n h o Santa M a r i a , r e p a r e i q u e o c a r r o d o a d v o g a d o estava esta-
a certeza d e o u v i r seus gritos "mamã, mamã, a r r a n c a r a m - m e c i o n a d o n o fim d a m a , j u n t o a u m a g a r a g e m . U m a vez
u m braço, agora u m a p e m a , e estão a puxar-me para f o r a c o m o u o u t r a , e u e r a assaltado p e l o b i c h o d a vingança q u e
u m t u b o ! " N ã o m e d a v a m n e n h u m a einestesia e e u berrava fazia f e r v e r o sangue nas m i n h a s veias. P e d i aos colegas
c o m o u m a cabra sangrada. O médico tinha nas mãos algumas d a b a n d a q u e m e dessem u m tostãozinho d e t e m p o , p o i s
ferragens e e m m o v i m e n t o s vigorosos q u e s a c u d i a m m e u precisava d a r u m e x p e d i e n t e e q u e v o l t a r i a n u m i n s t a n t e .
c o r p o p a r a lá e p a r a cá, p a r e c i a q u e estava a arrancar-me a V o u c o m p r a r u m a c a i x a d e fósforos, e s p r a i a r o c o r p o u m
t r i p a e o coração. Q u a n d o t e r m i n o u a sufocante operação de p o u c o e f u m a r u m a coisa.
a b o r t o , e u p o d i a ver os pedaços d o m e u m e n i n o e a cabeça Realmente, a m i n h a intenção era o u t r a : peguei
esmagada n u m a coisa q u e m e parecia u m p r a t o f u n d o , talvez f o g o a o c a r r o d e m o d o a n ã o d e i x a r pistas e v o l t e i a o
u m a p i a i n o x . Sabes, Pitboy, o p i o r de t u d o é q u a n d o levanto- e n s a i o , c o m o se n a d a tivesse a c o n t e c i d o . A p ó s u m a f o r t e
-me d a q u e l a c a m a s a b e n d o q u e d e i x e i u m pedaço de m i m explosão, o c a r r o d o d o u t o r Apolinário t r a n s f o r m o u -
algures e m u m saco de plástico o u n u m a m o n t o a d o d e l i x o , -se n u m a f o g u e i r a a r r e p i a n t e . V o l t e i m e i o c o n t r a r i a d o
s i n t o aquele vazio n a a l m a q u e p r o v o c a u m a d o r de cabeça p o r q u e a p a r t e q u e mais gostava era ver o d o u t o r z i n h o
inexplicável. S e m p r e d ã o u m c o m p r i m i d o p a r a a c a l m a r c o m os n e r v o s e m f l o r , c o n s p u r c a d o d e d o r e i n d i g n a -
a d o r d o c o r p o , mas até h o j e t e n h o u m a d o r n a a l m a q u e ção. N ã o t e n h o a m í n i m a i d e i a q u a n t o d e v e t e r c u s t a d o
remédio n e n h u m é capaz d e curar. A m i n h a mãe a j u d o u - m e aquele c a r r o . Talvez u m a f o r t u n a q u e n e m e m t o d a a
n o p r i m e i r o a b o r t o e disse-me p a r a cagar se aparecesse o u t r a m i n h a v i d a e r a c a p a z d e j u n t a r , m a s só d e s a b e r q u e
vez grávida p o r q u e não m e a j u d a r i a mais. Para falar verdade, a q u e l e s o b e r b o estava p r o s t r a d o a c h o r a r o c a r r o q u e
o a b o r t o dela causa m e n o s d o r q u e os d o h o s p i t a l ; elajá t e m estimava mais q u e a própria m u l h e r , aliviava-me n o
prática nessas coisas». m o m e n t o a d o r p u n g e n t e e f r u s t r a n t e d e t e r contribuído
S u r p r e e n d i a m i m m e s m o desejando ser u m daqueles p a r a q u e ele c o n t i n u a s s e v i v o . O a d v o g a d o estava c i e n t e
a n j i n h o s q u e tinham s i d o a b o r t a d o s . A n t e s a b o r t a d o q u e q u e as m a l d a d e s q u e l h e v i n h a m c a u s a n d o p r o v i n h a m
v i v e r nesta penúria s e m fim. d a o p o s i ç ã o p o l í t i c a , v i s t o ser v e r e a d o r d a C â m a r a e
a d v o g a d o de elevado prestígio n a i l h a .

171
MARGINAIS • _ EVEL ROCHA

A n t e s q u e o sol i r r o m p e s s e sobre o lendário t a b u - e m c o m i d a d e c a c h o r r o . . . v a i acasalar c o m b i c h o s d a t u a


l e i r o da Salina de Pedra de L u m e , Leia Magreza i n v a d i u l a i a . Amália t e m u m n o m e » . U m gajo não te c h i b o u , j u r o
o m e u quarto como u m louco alucinado. Tenho u m p e l a m i n h a mãe q u e não c o n t e i n a d a !
a s s u n t o inadiável p a r a t r a t a r c o n t i g o ! E l e t i n h a e s t a d o M e u s i m p u l s o s instígavam-me p a r a q u e fosse e u a
d e s a p a r e c i d o d o nosso convívio e o seu o l h a r a m a r g u r a d o m a t a r a q u e l e t r a i d o r , mas c o m esforço p u d e c o n t r o l a r os
e c a v a d o , o c o r p o t r é m u l o e c a d a vez m a i s e s q u e l é - n e r v o s e deixá-lo desabafar.
tico assombrava q u e m o c o n h e c i a . L e i a dava voltas n o M a g r e z a estava a ser c o n s u m i d o p e l o a m o r q u e sentia
p e q u e n o g u e t o c o m o u m leão enjaulado, e n q u a n t o p o r ela. D e i x e i q u e ele acabasse d e t e c e r as suas m a l h a s
f a l a v a . Sabes q u e s e m p r e t e a j u d e i e m t u d o . S o m o s d e s o f r i m e n t o p o r u m a m o r p r o i b i d o , E u gosto d a Amália
a m i g o s d e infância e até h o j e p o s s o d i z e r q u e a nossa mais d o q u e a m i n h a própria v i d a . Se o seu p a i não aceitar
amizade é mais d o que q u a l q u e r irmão de sangue. U m a nossa coisa, e u m a t o - m e . J u r o q u e m e m a t o . Já fiz d e
a m i g o é o i r m ã o q u e o c o r a ç ã o e s c o l h e . E u sei q u e t e n s t u d o p a r a alcançar o c o n s e n t i m e n t o d o d o u t o r , mas ele
t o d o o d i r e i t o de não m e p e r d o a r p o r ter c o l o c a d o a não m e d e i x a v e r Amália. O d o u t o r A p o l i n á r i o p e n s a q u e
n o s s a a m i z a d e e m x e q u e . Ya, man, t e n s t o d o o d i r e i t o . é o d o n o d o m u n d o e d o destino dela.
E n q u a n t o e l e a r t i c u l a v a as p a l a v r a s , e u o b s e r v a v a T e n t e i acalmá-lo c o m o f u m o d o m e u c h a p o , mas o
e m p o r m e n o r os seus gestos desengonçados, g a g u e j a n d o coração falava m a i s f o r t e . E l e estava n a disposição de l u t a r
e e n g o h n d o sílabas, Sabes, e u estava a f a z e r p l a n o p a r a p e l o a m o r d a sua v i d a até à última gota. A c o n s e l h e i - o a d a r
te c h i b a r , pôxa. D e s c u l p a , man, e u i a t r a m a r - t e se tivesse u m t e m p o p a r a d e i x a r a p o e i r a assentar, mas f o i e m vão.
d e te c h i b a r . C o m o sabes, man, e u e A m á l i a t e m o s u m Pela p r i m e i r a vez, tive m e d o d a sua condição. L e i a passava
conto. A n t e o n t e m f u i ter c o m o d o u t o r Apolinário para quase todas as n o i t e s n o c i m e n t o f r i o d ó átrio d a i g r e j a ,
te c h i b a r , p a r a c o n t a r t u d o s o b r e as safadezas q u e vens q u e ficava n a direcção d a j a n e l a d o q u a r t o d e Amália, ã
a p r o n t a n d o c o n t r a ele. F o i o j e i t o q u e b o l e i p a r a ver espera d e u m a o p o r t u n i d a d e p a r a c o n t e m p l a r o seu r o s t o ,
se r e c e b i a s e u c o n s e n t i m e n t o p a r a n a m o r a r a A m á l i a , escrevia versos m a r g i n a i s nas p a r e d e s das casas v i z i n h a s
i n f e l i z m e n t e , n ã o t i v e c o r a g e m , tss. E u q u e r i a agradá- dedicados aos d i v i n o s pés d a Amália, a c e n d i a velas n a igreja
- l o , v e r se a c e i t a v a q u e e u ficasse c o m a sua filha, m a s , e falava s o z i n h o c o m o se estivesse r o g a n d o aos deuses q u e
j á sabes, o m a l v a d o , a o d e s c o b r i r q u e e u n a m o r a v a a m u d a s s e m o c u r s o das coisas d e f o r m a q u e não houvesse
M e l i t a , c o l o c o u - m e u m a p i s t o l a n a testa e disse q u e m e q u a l q u e r i m p e d i m e n t o capaz d e os separar.
a r r a n c a v a o m i o l o . Sabes, man, é u m a questão d e p r e - N ã o e r a a p r i m e i r a vez q u e L e i a s e n t i a o t o q u e d o
c o n c e i t o . P r e t o nasce f o d i d o , man. A c o i t a d a d a A m á l i a c a n o f r i o d a p i s t o l a n a sua testa. N o s p r i m e i r o s dias d o
está t r a n c a d a n o q u a r t o e e u a q u i , j á sabes, man. n a m o r o , os d o i s f u g i r a m e passaram d o i s dias t r a n c a d o s
D o s o l h o s d e L e i a r o l a v a m grossas lágrimas c o m o as n u m q u a r t o e m Santa M a r i a , e x t r a v a s a n d o a m o r e j u r a s
chuvas d e u m d i s t a n t e S e t e m b r o . E l e a p o n t o u - m e a pis- c o m o « n u n c a m a i s h a v e m o s d e n o s separar» até s e r e m
t o l a a q u i , man. - L e i a t r e m i a d e m e d o . Ele disse q u e m e a p a n h a d o s p e l o d o u t o r Apolinário, f u l o , p r o n t o p a r a lavar
matava se não tirasse estes o l h o s sujos d a sua filha, «torço-te a h o n r a d a família c o m u m t i r o n a testa d o a m a n t e q u e f o r a
o pescoço e d e p o i s d e s c a r r e g o essa coisa d e balas e m t i , acusado de r a p t o , apesar das insistentes súplicas d a Amália,
l o m b r i g a p r e t a . . . não m e r o n d e s a casa o u t r a n s f o r m o - t e q u e não se cansava d e r e p e t i r q u e t i n h a f u g i d o c o m ele
MARGINAIS EVEL ROCHA

d e l i v r e v o n t a d e e q u e j á e r a a d u l t a o s u f i c i e n t e p a r a fazer
d a sua v i d a o q u e b e m entendesse. L e i a e s c a p o u d a m o r t e
graças ao p o v o q u e se j u n t o u , f a c i l i t a n d o a sua fuga. N o d i a
XXVII
s e g u i n t e , as p a r e d e s d a r u a d o H o s p i t a l t r a n s f o r m a r a m - s e
n u m p a i n e l d e frases d e a m o r dedicadas à Amália. U m a das
declarações d e a m o r , e m letras grandes e gordas, a p a n h a v a
de u m a p o n t a à o u t r a a r u a o n d e morava:

Qualquer dia
me embarco na loucura dos meus sonhos Q u e m n ã o se l e m b r a d e T o i N i n h a ? E l e m o r a v a
nas profundas águas da minha sede p e l o s l a d o s d a P e d r e i r a , j u n t o ao P o ç o V e r d e . E r a v e n d e -
d o r d e água - n o ú n i c o p o ç o d e água q u e s e r v i a p a r a
Qualquer dia b e b e r , e m b o r a fosse p e s a d a e u m t a n t o s a l o b r a . D e
me entrego ao perigo de te amar t e m p o s e m t e m p o s , p e r c o r r i a q u i l ó m e t r o s d e distância
à loucura de te possuir c o m u m a m e s a à cabeça, c o l o c a v a - a n o m e i o d a praça,
naufragando-me nos teus seios proibidos subia e m c i m a dela e pregava, energicamente, que o
m u n d o ia acabar. C o m a r d e p r o f e t a e n f a t i z a d o p e l a
ferirei a minha integridade b a r b a c a r a p i n h a , f a l a v a d o s cavalos d e a p o c a l i p s e , das
sofrerei com prazer v i r g e n s loucas, d o i n f e r n o , d o p e r d ã o e c h o r a v a , desatina-
dormirei nos teus braços d a m e n t e , p e l o p o v o q u e c a m i n h a v a p a r a a perdição. T o i
para nunca mais acordar! N i n h a i l u s t r a v a as suas pregações c o m histórias c a b e l u d a s
dos coronéis e das m u l h e r e s d a i l h a , a r r a n c a n d o aplausos
O d o u t o r b o t a v a f o g o pelas ventas, m a s n a d a p o d i a trocistas d a m a l t a ociosa. E r a t o m a d o c o m o d o i d o , mas
fazer c o n t r a Leia, a não ser prendê-lo p o r u n s dias n a cadeia as suas p a l a v r a s m a n i n h a d a s e s t a v a m c a r r e g a d a s d o f e l
p o r v i o l a r o património dos m o r a d o r e s d a r u a . A o passar d a s i n c e r i d a d e i r o n i z a d a . O s e n h o r M a n u e l Soares, s o g r o
pelas casas, ao l e r aquelas frases escritas a tinta avermelhada, d o d r A p o l i n á r i o , r e s o l v e u p ô r c o b r o aos d e s v a r i o s d o
seu coração destroçado, f r u s t r a d o p e l a má sorte d a f i l h a n o «pregador». E m p u n h a n d o u m machado, e m p u r r o u T o i
a m o r , c o m p r e e n d e u q u e só l h e restava pagar a alguém q u e N i n h a p a r a o lado^e q u e b r o u - l h e a m e s a e m p e d a ç o s . A
repintasse as paredes. Apolinário f o i falar c o m a mãe d e L e i a m u l t i d ã o , e m vaias e assobios, i n c i t o u o T o i q u e r e a g i u
p a r a c o n v e n c e r o f i l h o a desistir d a q u e l e estúpido n a m o r o c o m violência. T o i N i n h a e r a b a i x o , a t a r r a c a d o , mas
e mantivesse distância d a sua filha, c o n t u d o n a d a o d e m o v i a t i n h a a força d e u m b o i d e t r a p i c h e . A v a n ç o u c e g a m e n t e
das suas intenções d e a m a r e t e r n a m e n t e Amália. L e i a saiu à sobre o s e n h o r M a n u e l e i m p i n g i u - l h e golpes pelos
rua batendo n o peito descamado e gritou, O senhor pode r i n s , m a s a s u a fúria f o i a p l a c a d a p o r d o i s polícias q u e
m a n d a r apagar as frases, p o d e trancá-la n o q u a r t o p a r a não o d e r r u b a r a m às c a c e t a d a s . D i a s d e p o i s , p a r a a c o n s t e r -
m e v e r mais, mas não poderá apagar e n e m p r e n d e r o a m o r nação d e t o d o s , T o i N i n h a f o i i n t e r n a d o n o h o s p i t a l d e
q u e sentimos u m p e l o o u t r o ! Preguiça c o m a l í n g u a c o r t a d a . O c o m a n d o d a p o l í c i a

175
MARGINAIS_
EVEL ROCHA
USOU t o d o s os a r g u m e n t o s n a t e n t a t i v a d e c o n v e n c e r a
s u b i a m à missa d a cabeça. O c e r t o é q u e passava a n o i t e
opinião pública q u e ele t i n h a sido i n t e r n a d o p o r q u e i n t e i r a pelas ruas d a Preguiça até ao h o s p i t a l a n d a n d o e
c o r t a r a a l í n g u a c o m os d e n t e s n u m d o s seus a t a q u e s gritando:
d e l o u c u r a . A m e n t i r a d o s a g e n t e s c e g o u - l h e a razão
e tornou-se v i o l e n t o . U m dos presos d e u d e p o i m e n t o O Deus t'ma-me bô leva-me
que u m carcereiro t i n h a abusado do Toi e cortou-lhe O Poderoso t'ra-me desse afronta^
a língua p a r a não o d e n u n c i a r . T o i N i n h a n u n c a mais
seria o m e s m o . D e i x o u de t r a b a l h a r c o m o v e n d e d o r
P o u c o a n t e s d e escrever este capítulo, o c o r p o d e
d e água d o P o ç o V e r d e e p a s s o u a v i v e r d e b a r e m b a r ,
T o i N i n h a f o i levado p a r a o Cemitério de Pedra de L u m e
o n d e h o u v e s s e v i v a l m a q u e l h e desse d e c o m e r e u m
n u m caixão d o M u n i c í p i o . T o i , o « p r e g a d o r » , m o r r e r a
p o u c o de atenção, m o s t r a n d o a t o d o s c o m o ele t i n h a h a v i a m u i t o s anos atrás. O q u e estava d e n t r o d o caixão
s i d o v i o l e n t a d o : a r r i a v a as calças, j u n t a v a as mãos p a r a e r a o q u e r e s t a r a d a violência p o l i c i a l , d a injecção l e t a l
m o s t r a r c o m o f o i a l g e m a d o e d e p o i s caía d e j o e l h o s n a n o c e n t r o psiquiátrico, d u m a s o c i e d a d e r e c r i m i n a d o r a e
p o s i ç ã o e m q u e f o i v i o l e n t a d o . N o l u g a r das p a l a v r a s despojada de sentimentos.
soltas, g e m i a f u r i o s a m e n t e , a f u g e n t a n d o t o d o s os q u e
M e u grande receio era ter de acabar u m d i a c o m o
se c r u z a v a m c o m ele. A g r e d i a as pessoas, q u a n d o q u e r i a Toi Ninha.
d i z e r a l g u m a coisa e não p o d i a . M e u s o l h o s enchiam-se
d e lágrimas, q u a n d o o v i a n a q u e l e e s t a d o d e p l o r á v e l . A
sua angústia p o r não p o d e r f a l a r e r a a f o g a d a n o s a t a q u e s
violentos que l h e corroíam a alma. Revoltados c o m a
situação d e T o i N i n h a , f i z e m o s u m a g r a n d e arruaça
e m p l e n a m a d r u g a d a : v a n d a l i z á m o s os c a r r o s q u e n o s
a p a r e c i a m à f r e n t e , q u e b r á m o s os v i d r o s das m o n t r a s ,
esvaziámos os c o n t e n t o r e s p e l a s r u a s e d e i x á m o s u m
aviso n a p a r e d e d a câmara m u n i c i p a l q u e se n ã o t o m a s -
sem m e d i d a s haveríamos de v o l t a r à carga.
Meses d e p o i s , e n c o n t r e i o « p r e g a d o r » à p o r t a d o
p e l o u r i n h o deitado de lado a p e d i r esmola. T o i N i n h a
t r a n s f o r m o u - s e n u m vegetal. U r i n a v a e defecava nas calças
p o r q u e p e r d e r a o d o m í n i o d o s seus m o v i m e n t o s e não
t i n h a a n o ç ã o d a r e a l i d a d e q u e o cercava.
D e s d e criança, a f i g u r a d e T o i N i n h a esteve s e m p r e
p r e s e n t e n a m i n h a v i d a . E l e s o f r i a d e u m a d o r d e cabeça
q u e o d e i x a v a d e s e s p e r a d o e só se a c a l m a v a d e p o i s d e l h e
i n j e c t a r e m r e m é d i o nas veias. A l g u n s d i z i a m q u e ele tínha
u m c a n c r o n o cérebro, o u t r o s q u e e r a m l o m b r i g a s q u e l h e 8 O Deus, toma-mc e leva-nie // ó poderoso, lira-me dessa afronta.

17R
EVEL ROCHA

XXVIII

Todas as vezes q u e p e r c o r r i a a estrada d e Santa M a r i a ,


via a q u e l e m e n i n o d e r o s t o s i n g e l o , c a m i s o l a v e r m e l h a ,
a c e n a n d o p a r a os c a r r o s . M e n i n o d e b o a fala, u m a n j o d a
e s t r a d a q u e p a r e c i a abençoar t o d o s aqueles q u e passavam
p o r ele. Seu r i s o e seu assobio a v i a d o d e m e n i n o i r r a d i a -
v a m paz e a l e g r i a . M o r a v a e m P a l h a V e r d e c o m a mãe,
m u l h e r massacrada p e l a d o e n ç a d e coração. E l e n u n c a
f r e q u e n t o u u m a escola p o r q u e t i n h a de fazer c o m p a n h i a
à mãe q u e vivia d e esmolas. T o d o s os dias, p e l a manhã, lá
estava ele à b e i r a d a e s t r a d a e m p i r u e t a s e m a l a b a r i s m o s
p a r a i m p r e s s i o n a r os passageiros dos Maces e os turistas q u e
passavam. A mãe ficava sentada d e b a i x o de u m a s o m b r i n h a
e m p o e i r a d a e c o z i n h a d a p e l o sol estorrado, e n q u a n t o o
m e n i n o d e c a b e l o e n f e r r u j a d o , e n t r e t i d o , i a c a t a n d o as
m o e d a s q u e l h e e r a m a t i r a d a s pelas j a n e l a s dos c a r r o s .
O sol, a d o r a d o e d e s e j a d o pelos turistas, não passava d e
u m i n f a m e sem coração q u e castigava o m e n i n o c o m seus
r a i o s i m p i e d o s o s e cruéis, q u e i m a n d o a p e l e , a a l m a e a
esperança d e u m a v i d a m e l h o r . T o d o s o c o n h e c i a m p o r Zé
P a r d a l . D i z i a aos viajantes. Se m e deres u m pardal te d o u
este p a r d a l ; queres trocar? O p a r d a l q u e q u e r i a era a m o e d a
d e c i n q u e n t a escudos c o m a efígie d o p a r d a l - d e - t e r r a e,
e m t r o c a , c o l o c a v a n a m ã o d o seu d o a d o r a p e q u e n a ave
p a r a q u e a soltasse d e s e g u i d a p a r a o céu. N ã o sei q u a n t a s
vezes e u t e r i a s o l t a d o u m p a s s a r i n h o d a q u e l e s q u e , n u m
t r i n a d o enternecedor, mergulhava n o imenso azul d o
céu até t r a n s f o r m a r - s e n u m minúsculo p o n t o . Zé P a r d a l
MARGINAIS —

e n c o n t r o u u m a f o r m a d i v e r t i d a p a r a sobreviver e p a r e c i a
p a r d a i s g o s t a m d e m i m e p o r isso v i v e m à m i n h a v o l t a
q u e t o d o s os p a r d a i s d e P a l h a V e r d e se j u n t a v a m p a r a o
G e n t e g r a n d e t e m p a s s a r i n h o n a g a i o l a p o r q u e sabe u
ajudar. Zé sabia d i s t i n g u i r os p a r d a i s - d e - t e r r a e t i n h a u m
os b i c h o s não g o s t a m d e g e n t e g r a n d e . Se gostassem, não
n o m e p a r a c a d a u m , Sabes, é fácil reconhecê-los, disse,
p r e c i s a v a m d e g a i o l a e g a i o l a é coisa d e p r e s o c r i m i n o s o
p a r a s e g u i d a m e n t e i m i t a r o t r i n a r dos p a s s a r i n h o s . Estás
Zé era p e q u e n o , mas t i n h a o tino de u m h o m e m feito.
a v e r estas p e n i n h a s d e u m c a s t a n h o a m a r e l a d o d e b a i x o
N o d i a e m q u e o p a r d a l d e penas castanhas amareladas
d o bico? Este é o Bóris. P o r q u ê Bóris? Sei lá! T o d a a g e n t e
m o r r e u , Zé c h o r o u - o a m a r g a m e n t e , Sua h o r a c h e g o u . Será
tem u m nome. Aquele é o Zidane. Tem o cocuruto pelado
p a r a isso q u e s e r v e m as horas? Se t e m o s h o r a p a r a m o r r e r
e é o mais h a b i l i d o s o d e t o d o s . Estás a v e r a q u e l e p a r d a l
p o r q u e se m o r r e d e f o m e e d e doenças?
c o x e a n d o n o cabouco? É o Perneta... a h , a h !
Q u a n d o a sua mãe e r a atacada pelas crises cardíacas
Zé P a r d a l c o n t a v a a história d o p a r d a l - d e - t e r r a q u e ele esbracejava, desesperadamente, n o m e i o d a estrada p a r a
salvou o m e n i n o Jesus, q u a n d o H e r o d e s p r o c u r a v a matá-lo. q u e alguém a socorresse. P r o v a v e l m e n t e , terá s i d o n u m a
São José i a à f r e n t e , Nossa S e n h o r a e o m e n i n o i a m m o n - desses ocasiões q u e u m c a r r o a alta v e l o c i d a d e a t r o p e l o u
tados n u m b u r r i n h o e o p a r d a l - d e - t e r r a i a atrás, a p a g a n d o Zé P a r d a l , arra,«tando-o quase u m a d e z e n a d e m e t r o s n o
as marcas d e sapato e dos cascos c o m as asas. F o i assim q u e asfalto. A q u e l e c o r p i n h o frágil d e m e n i n o f o i esquartejado
f u g i r a m p a r a o E g i p t o , d i z i a , i m i t a n d o c h i s t o s a m e n t e cada pelas r o d a s implacáveis d e u m c a r r o e m alta v e l o c i d a d e .
p e r s o n a g e m d a história. N o l u g a r d o r o s t o i n o c e n t e estava u m a massa d i s f o r m e
Todos os passageiros q u e paravam e m Palha Verde terão c o b e r t a d e sangue. Os braços e as p e r n a s m u t i l a d o s , e m
o u v i d o esta história fantástica, O m e n i n o Jesus escapou d o espasmos, saltavam n o a l c a t r o a d o e n t r e b o c a d o s de t r i p a s
ódio d o r e i m a l v a d o graças a u m p a r d a l z i n h o c o m o este. a r r o m b a d a s . A mãe, q u e assistira à h o r r e n d a tragédia d o
T o d a s as suas histórias e r a m povoadas de p a r d a i s . filho s e n d o a r r a s t a d o e n t r e o pára-choques e as r o d a s
Tornámo-nos a m i g o s desde o p r i m e i r o d i a e m q u e l h e d i a n t e i r a s d o c a r r o , só teve t e m p o d e c o r r e r p a r a abraçar
d e i c i n q u e n t a escudos p a r a s o l t a r u m p a s s a r i n h o . E s t e n d i a q u e l e c o r p o sem v i d a p a r a d e p o i s m o r r e r também. Mãe e
a mão p a r a l h e e n t r e g a r o d i n h e i r o e ele s a l t o u u m a risada filho f o r a m c o b e r t o s c o m u m g r a n d e lençol à espera q u e as
i n o c e n t e q u e e u tinha c a r r a p a t o s n a mão. a u t o r i d a d e s t o m a s s e m c o n h e c i m e n t o . Os pardais-de-terra
N ã o são c a r r a p a t o s , são v e r r u g a s q u e m e n a s c e r a m d e i x a r a m d e p o u s a r nas d u n a s d e a r e i a e n o solo agreste
nas costas d a m ã o p o r t e r c o n t a d o estrelas. d e P a l h a V e r d e ; a sua m e l o d i a t r a n s f o r m o u - s e n u m c a n t o
U m a vez p e r g u n t e i - l h e se q u e r i a q u e l h e arranjasse triste d e q u e m c h o r a e busca o seu m e l h o r a m i g o .
u m a g a i o l a p a r a c o l o c a r os p a s s a r i n h o s e fiquei s u r p r e e n - Se r e a l m e n t e o céu existe, Zé é u m a n j o c o m d o u r a -
d i d o c o m a sua resposta. Nas suas palavras carregadas d e das asas d e p a r d a l e v o a c o m o n a v i o s i n g r a n d o as o n d a s
inocência e b o n d a d e p u d e c o m p r e e n d e r c o m o as pessoas agitadas d a e t e r n i d a d e .
q u e m o r a m n a u r b e s a b e m p o u c o s o b r e os pássaros e a Acabou-se o Zé P a r d a l .
n a t u r e z a . G a i o l a é coisa d e g e n t e r u i m . N i n g u é m gosta
d e v i v e r e n f i a d o n a c a d e i a . Se f e c h a r e s u m p a s s a r i n h o
n u m a g a i o l a , ele m o r r e d e t r i s t e z a . E u f a l o l i v r e m e n t e
c o n t i g o p o r q u e q u e r o e sei q u e não m e fazes m a l . O s
EVEL ROCHA

XXIX

P a l e r m a d a v a evidências d e p e r t u r b a ç ã o m e n t a l
a c e n t u a d a . Passava o d i a n o A e r o p o r t o c o m u m a v e l h a
pasta p e r g u n t a n d o aos t r a n s e u n t e s p e l o seu avião. T i r a v a
o c h a p é u a t o d o s os h o m e n s d e g r a v a t a c o m q u e m se
c r u z a v a e d e s e n r o d i l h a v a a língua, O senhog não v i u m e u
avião pog 2l\} E q u e e u o d e i x e i a m a r r a d o a o p o s t e d a
p l a c a . . . A gravata assimétrica d e cores g a r r i d a s , o chapéu
d e aviador, o casaco amassado e c u r t i d o p e l o t e m p o e as
calças meia-canela aferiam-lhe a i m a g e m d e u m e s p a n t a l h o
ambulante. Palerma t i n h a a postura de u m m o r d o m o , nos
gestos p o l i d o s e nas palavras. Q u a n d o alguém l h e o f e r e c i a
d i n h e i r o , levantava a cabeça, e m p i n a v a o n a r i z e recusava,
e d u c a d a m e n t e , Guagda seu dinheigo paga meguenda, senhog.
A l g u é m o c o n v e n c e u a a b a n d o n a r a i d e i a d e ser
p i l o t o , S e n h o r P a l e r m a , p o r q u ê q u e não se t r a n s f o r m a
e m profeta? V o c ê t e m c a r a d e p r o f e t a .
N u m t e r r o s o d o m i n g o d e manhã, n o m e i o d a euca-
r i s t i a d o m i n i c a l . P a l e r m a i r r o m p e u p e l a nave d a i g r e j a d e
S a n t o A n t ó n i o e m b r u l h a d o n u m lençol, d i z e n d o ao p a d r e
e aos fiéis q u e t i n h a r e c e b i d o u m a revelação d i v i n a . E r a
t e m p o d e m u d a r a oração «ave-maria» p a r a «ave-marmita»,
p o i s , e r a a única f o r m a d e acabar c o m f o m e n a t e r r a ; o
p o v o precisava e r a d e m a r m i t a c h e i a .
Palerma sentía^se satisfeito c o m a a l c u n h a d e São Pedro.
A c r e d i t a v a q u e o santo era mais p o d e r o s o d o q u e Deus, pois
ele tínha as chaves d o céu. Se o C r i a d o r quisesse e n t r a r n o céu
teria de p e d i r as chaves ao p o r t e i r o . O p o n t o alto das prédicas

1«Q
MARGINAIS_ EVEL ROCHA

de P a l e r m a acontecia q u a n d o estendia os braços. O único


vestuário q u e usava era o lençol e, ao a b r i r os braços, t o d a
a sua v e r g o n h a ficava à m o s t r a p a r a o delírio d a rapaziada.
XXX
Ele não parava d e s u r p r e e n d e r . A l g u m t e m p o d e p o i s ,
passou a fazer-se d e p r e s i d e n t e d a Câmara. S a i u d e u m
e x t r e m o p a r a o u t r o , m u d a n d o r a d i c a l m e n t e a sua p o s t u r a .
T i r o u a b a r b a e o c a b e l o d e s g r e n h a d o e t r o c o u o lençol
p e l o v e l h o casaco, as calças m e i a - c a n e l a e a sebosa gravata.
A inauguração d a estrada d e Santa M a r i a , c o m d i r e i t o a
tolerância de p o n t o , parecia u m a festa d e c a m p a n h a eleitoral H o j e , e m b o r a t a r d i a m e n t e , descobri q u e somos a q u i l o
c o m desfile de carros n u m buzinão ensurdecedor, distribuição q u e os o u t r o s j u l g a m q u e somos. N a escola primária, a p r o -
de camisolas, batucadas, c h a m p a n h e e discursos triunfcintes. fessora r e p r e e n d i a - m e . N ã o vais a p r e n d e r n u n c a ! Para os
O s ilustres filhos d a nossa t e r r a lá estavam, os coronéis, a vizinhos, e u era o d e m ó n i o i n c a r n a d o . F u i i m p e l i d o a m a t a r
m i n i s t r a g e m e os corifeus t r a n s f o r m a r a m o arraial n u m a feira o q u e d e b o m havia e m m i m , a e s t r a n g u l a r os m e u s sonhos
de d e n t a d u r a s . N a h o r a d o discurso d o p r i m e i r o - m i n i s t r o . d e m e n i n o , a i n f l i g i r s o f r i m e n t o aos o u t r o s , a a t e r r o r i z a r a
Palerma t o m o u a d i a n t e i r a e s u r p r e e n d e u a todos c o m a v i d a dos o u t r o s . T e n h o v i n t e e três anos, mas, e m o c i o n a l -
sua pose irrepreensível d e político d e p r i m e i r a água, não m e n t e , t e n h o catorze, idade e m q u e o m e u crescimento
f o r a a l i n g u a g e m a t a b a l h o a d a d e palavras desconexas e sem e m o c i o n a l se e s t a g n o u ! O único c r e s c i m e n t o assinalável
sentido. Os guardas t e n t a r a m barrar-Ihe o c a m i n h o , mas o e m m i m é a r e v o l t a q u e se a g i g a n t a , m o n s t r u o s a m e n t e , a
chefe d o g o v e r n o d e u o r d e n s p a r a q u e o deixassem f a l a r raiva que b l o q u e i a o m e u lado h u m a n o .
P a l e r m a era de u m a l i s u r a i m a c u l a d a , todos gostavam dele. M e u íntimo está t o d o d i l a c e r a d o e não consigo aguen-
Dirigia-se às pessoas e d u c a d a m e n t e , não obstante o c h e i r o t a r o peso d a angústia, quilómetros e quilómetros d e tristes
p e s t i l e n t o q u e exalava. N ã o era surpresa p a r a nós se, n o d i a recordações p r e n s a d a s n a m i n h a minúscula m e n t e .
seguinte o u três meses depois, aparecesse a f i r m a n d o q u e e r a
o novo j u i z d a ilha. H a v i a mais d e q u a t r o meses q u e e u não v i a a M i r n a .
O d o u t o r A p o l i n á r i o e r a a única pessoa q u e se sentia E l a t i n h a v o l t a d o p a r a Chã d e F r a q u e z a l o g o q u e soube
i n c o m o d a d a c o m os disparates d a q u e l e h o m e m . «Se abrires d a detenção d e N h a M a r i a d o M o n t e , p o r t e r p a r t i d o u m a
a b o c a m a i s u m a vez, m a n d o e n t e r r a r - t e v i v o ! » , ameaçou g a r r a f a n a cara d e N h ô Custódio. A mãe f o r a s e n t e n c i a d a
ao P a l e r m a d e f o r m a a n ã o c h a m a r a atenção d o s p r e s e n - c o m seis meses d e prisão p o r agressão e o u t r o s c r i m e s
tes, mas o simplório, n u m a p o s t u r a r e f i n a d a e d i v e r t i d a , r e l a c i o n a d o s c o m remédios d e t e r r a . M i r n a teve d e v o l t a r
p e g o u n o m i c r o f o n e v o l t o u p a r a o a d v o g a d o e disse e m p a r a a casa e t o m a r r e s p o n s a b i l i d a d e dos irmãos e d a casa.
voz a l t a , Senhog Apolináguio, l i m p a o naguiz e compogta-se A n t e s d e ser p r e s a , N h a M a r i a d o M o n t e p a r e c i a u m a
como homem. e n d e m o n i n h a d a . Q u a n d o b e b i a , x i n g a v a as a m a n t e s d o
Suas palavras p r o v o c a r a m u m a t o r r e n t e d e risos. m a r i d o e atacava-as à p e d r a d a . M i r n a sentiu-se n a obrigação
d e d e i x a r a b o a v i d a d e Santa M a r i a p a r a se e s b o d e g a r n o
q u i n t a l d a casa a lavar r o u p a q u e n e m u m a c o n d e n a d a e

-I QR
MARGINAIS
EVEL ROCHA

enfurnando-se n a c o z i n h a para ferver caldo e a l i m e n t a r a a m i n a d e o u r o q u e se l h e a b r i a m e s m o à f r e n t e d o n a r i z ,


c r i a q u e a mãe d e i x a r a p a r a trás. E l a tínha p e r d i d o t o d a a p r o i b i u as pessoas d e e n t r a r e m n o q u a r t o o n d e B e t o estava
v a i d a d e e a exuberância d e m o ç a esbelta q u e fazia p e r d e r h o s p i t a l i z a d o e c o l o c o u u m a p l a c a à p o r t a c o m os dizeres:
o t i n o aos h o m e n s casados; M i r n a e B e t o t o r n a r a m - s e «Silêncio, g é n i o trabalhando». I n f e l i z m e n t e , o t a l e n t o d e
íntimos e, p o u c o t e m p o d e p o i s , passaram a v i v e r j u n t o s . B e t o Vesgo d e s a p a r e c e u n o d i a e m q u e d e i x o u d e s e n t i r
B e t o a p a n h o u u m a violentíssima q u e d a d e u m d o r e s de cabeça p a r a o d e s e n c a n t o d o m é d i c o d e c i d i d o
a n d a i m e , q u a n d o servia d e a j u d a n t e d e p e d r e i r o , t e n d o e m e n r i q u e c e r à custa d o seu p a c i e n t e . N u n c a n i n g u é m
f i c a d o e m estado d e c o m a d u r a n t e três dias. A o a c o r d a r , soube explicar o que teria acontecido c o m Beto, e m b o r a
p e d i u q u e l h e dessem u m p i n c e l p o r q u e q u e r i a p i n t a r e houvesse q u e m tentasse associar o caso c o m o u m distúr-
r e s p o n d e r a m - l h e q u e q u a n d o saísse t e r i a t o d o s os pincéis b i o m e n t a l b e n i g n o e m r e s u l t a d o d a q u e d a . Os q u a d r o s
d o m u n d o p a r a p i n t a r . « N ã o ! Q u e r o p i n t a r agora!», g r i t o u . d e B e t o r e t r a t a v a m cenas religiosas e paisagens edénicas
O d o u t o r M e l í c i o , s u r p r e s o , e s t e n d e u - l h e u m lápis e d e traços tão p e r f e i t o s q u e e r a difícil d i s t i n g u i - l o s d e u m
u m a f o l h a d e p a p e l , j u l g a n d o q u e o p a c i e n t e estivesse d e l i - p o s t e r f o t o g r a f a d o . O j o v e m l i x e i r o i n t e r p r e t o u o misté-
r a n d o . P o u c o d e p o i s , c a n s a d o dos c h a m a m e n t o s d e B e t o , r i o dos q u a d r o s c o m o s e n d o u m c h a m a m e n t o de D e u s ã
saiu d o seu g a b i n e t e d i s p o s t o a a p l i c a r - l h e u m c a l m a n t e , conversão. R e a l m e n t e , j á não fazia s e n t i d o chamá-lo d e
mas p a r a o seu a s s o m b r o , t a n t o a f o l h a de p a p e l , c o m o vesgo. Ele p e r d e r a a visão d o o l h o e s q u e r d o e só u m m i l a -
as p a r e d e s d o q u a r t o e os lençóis e s t a v a m e s t a m p a d o s g r e e v i t a r i a q u e perdesse o o l h o saudável. Usava u m p a r
c o m os d e s e n h o s m a i s l i n d o s q u e os seus o l h o s t i n h a m d e óculos escuros p a r a e s c o n d e r o o l h o c o b e r t o p o r u m a
visto. S e m d i z e r n a d a , n a m i r a dos o l h a r e s estupefactos, o m a n c h a escura q u e vazava u m líquido pegajoso m e s m o
médico saiu e m d i s p a r a d a e p o u c o d e p o i s v o l t o u c o m t u d o : d e p o i s de tantos anos escorridos. B e t o c h e g a r a ao Sal a i n d a
t u b o s d e t i n t a d e ó l e o acrílica e p a s t e l , p a l e t a , espátulas, m e n i n o . D e s e m b a r c o u n o cais d a P a l m e i r a s o z i n h o c o m a
p r a n c h e t a d e d e s e n h o e telas d e q u a l i d a d e . O r d e n o u q u e r o u p a d o c o r p o e os pés descalços, mas sem q u a l q u e r s i n a l
fechassem o q u a r t o e d e i x a s s e m o r a p a z t r a b a l h a r . B e t o d e e s p a n t o . E r a c o m o se tivesse saído d e casa p a r a b r i n c a r
d e s e n h a v a , v e r t i g i n o s a m e n t e . C o m a cabeça e n f a i x a d a no quintal do vizinho. Conhecia bem a malandragem e a
e o tórax engessado, s e n t a d o n u m a c a d e i r a , ele p i n t a v a v i d a d e r u a . N u n c a falava d e s o n h o s , n u n c a se q u e i x a v a d a
q u a d r o s d e u m a b e l e z a incomparável, r e t r a t o s autênticos solidão e, p a r a ele, o q u e c o n t a v a e r a o t e m p o p r e s e n t e e
para o d e s l u m b r a m e n t o daqueles que pagavam pequenas a b a r r i g a cheia. Tornou-se u m h o m e m e m estatura, con-
f o r t u n a s p a r a as suas o b r a s . D e b a i x o d e d o r e s intensas e t u d o o m e n i n o d e São V i c e n t e c o n t i n u a v a i n t a c t o n o seu
ininterruptas. Beto pintava a u m r i t m o alucinante. Q u a n t o íntimo. C o n d u z i a o seu c a r r i n h o d e l i x o c o m t a n t o e n t u -
m a i s i n t e n s a fosse a d o r m a i s p e r f e i t a ficava a p i n t u r a . siasmo e zelo, c o m o o d o u t o r A p o l i n á r i o c o n d u z i a os seus
M i r n a , d e s l u m b r a d a c o m o d i n h e i r o q u e e n t r a v a e m casa, c a r r o s d e l u x o , e não se i m p o r t a v a dos a p e l i d o s c o m q u e o
a r r a n j o u u m a e m p r e g a d a p a r a t o m a r c o n t a d o s irmãos a p o d a v a m : chamá-lo d e B e t o C o v e i r o , p o r a b r i r covas n o
menores, e n q u a n t o cuidava d o famoso p i n t o r que, para- cemitério, o u B e t o C o c e i r i n h a , pelas b o r b u l h a s e f e r i d a s
d o x a l m e n t e , não sabia escrever o seu n o m e d i r e i t o , n o q u e l h e m a p e a v a m os braços e as p e r n a s , r e s u l t a n t e das
e n t a n t o , p i n t a v a m i s t e r i o s a m e n t e q u a d r o s c o m perfeição famosas e r u i d o s a s u n h a d a s , p a r a ele não fazia diferença.
revelando u m t a l e n t o i n v u l g a n O d o u t o r Melício, v e n d o E m tempos, foi conhecido p o r Beto C i n q u e n t i n h a p o r q u e

1 «7
MARGINAIS EVEL ROCHA

t i n h a a cabeça c a r i m b a d a d e i m p i g e n s c o m o m o e d a s enfer- Q u a n d o vi a M i r n a n a q u e l e estado deplorável, tive u m


r u j a d a s d e c i n q u e n t a escudos. C r i a t i v o c o m o era, c o l o c o u m i s t o d e tristeza e r a i v a ao r e c o r d a r as palavras d o barman
r e t r o v i s o r e s , pisca-pisca, b u z i n a e travão n o seu c a r r i n h o o n d e f o i p r o c u r a r t r a b a l h o p e l a p r i m e i r a vez: « c o m u m
de l i x o e p i n t o u - o de amarelo. Depois de u m dia de traba- c o r p o b o n i t o desse vais g a n h a r m u i t a massa».
l h o , lavava o c a r r i n h o e encostava-o à c a m a , c o b r i a - o c o m As pessoas d i z i a m q u e e l a estava c o m espírito m a u .
u m lençol e dava-lhe u m b e i j o d e b o a n o i t e . A p e s a r d e ser Elajá não usava a p a l a v r a c u r t i r , d i z i a «vamos fazer coisa-
m e u a m i g o d e p e i t o , n u n c a l h e p e r d o e i p o r duas razões: que-não-pode-ser» e começava a despir-se n o m e i o d a r u a .
p r i m e i r o , p o r se t e r j u n t a d o a M i r n a s e m m e d a r cavaco - S e n t a d a n a calçada, ela p a r e c i a divertir-se c o m u m a
não p o r q u e e u amasse a moça, mas p o r ele t e r d e s p e r t a d o m o s c a d e vareja q u e sobrevoava e m círculos concêntricos
n e l a s e n t i m e n t o s c o n j u g a i s , n u m m o m e n t o e m q u e ela cada vez m e n o r e s até se a p r o x i m a r das lágrimas q u e l h e asso-
se s e n t i a f r a g i l i z a d a p a r a d e p o i s a a b a n d o n a r . A s e g u n d a lapavam o rosto g o r d u r e n t o . A mosca pousava n o r o s t o dela,
razão t i n h a a v e r c o m a religião: ele t i n h a e n t r e g u e a sua esfregava as patas e, n u m p a c i e n t e ritual, tornava a v o l t e a r
a l m a a u m a dessas igrejas q u e v e n d e m a c u r a e s u g a m os aquele r o s t i n h o m a r c a d o p e l a desgraça. T e n t e i a p r o x i m a r -
bolsos dos ingénuos. m e d e l a p a r a ajudá-la, mas f o i e m vão. A r u a era a sua casa.
M i r n a queixava-se d e p r o b l e m a s g e n i t a i s , t i n h a u m B e t o Vesgo e o seu pastor, escoltados p o r u m g r u p o d e
c o r r i m e n t o a m a r e l a d o e r e c u s a v a i r a o m é d i c o . Passou a fiéis e curiosos à m i s t u r a , a p a r e c e r a m armados d e gravata
f u m a r e e n g o l i r grogue e m demasia. A b a r r i g a e n d u r e c i d a e Bíblia, p a r a e x p u l s a r os m i l demónios das e n t r a n h a s d a
c r e s c i a a o l h o s vistos. A sua a u t o - e s t i m a estava e m q u e d a j o v e m e n d e m o n i n h a d a q u e , c o m m e n o s de vinte e dois anos,
e j á n ã o c u i d a v a d a s u a aparência. P o r vezes, d o p a d a parecia u m a velha decadente, Irmã, essa barriga inchada q u e r
p e l a angústia, i n g e r i a t u d o o q u e l h e cheirasse a álcool, d i z e r q u e estás grávida de m i l demónios e estamos a q u i p a r a
d o r m i a n o s passeios e, f r e q u e n t e m e n t e , e r a a b u s a d a expulsá-los, disse B e t o n o s e u j e i t o t o r t o de o l h a r
s e x u a l m e n t e . A q u e l a moça, q u e antes esbanjava c h a r m e , M a l c r i a d o c o m o e u era, m a n d e i q u e se afastassem d e l a
de pele cheirosa e bela, a q u e l a j o v e m que e n d o i d e c i a de e q u e fossem p a r a o i n f e r n o c o m as suas crenças. Q u a n d o a
p a i x ã o os e n d i n h e i r a d o s e f a z i a s o n h a r q u a l q u e r b e m levavas para a cama, não te lembravas que ela tinha demónios.
i n t e n c i o n a d o , p a s s o u a p r o s t i t u i r - s e e m t r o c a d e baga- Se há alguém q u e está p r e n h a de demónios és t u , parvalhão.
telas, p o r u m cálice d e g r o g u e , p o r u m t o c o d e c i g a r r o B e t o j á t i n h a t e n t a d o fazer o m e s m o c o m Fusco. D i z i a
o u p a r a se l i v r a r d e a l g u é m q u e quisesse se a p r o v e i t a r q u e Fusco tinha u m espírito d e m u l h e r c a n g a d o n e l e e
d e l a . Seu r o s t o b o r r i f a d o d e e s p i n h o s , os o l h o s , d e u m só u m m i l a g r e d i v i n o p o d e r i a libertá-lo. H o m e m q u e é
v e r d e e r v i l h a , t o r n a r a m - s e e n c o v a d o s , escuros e s e m v i d a h o m e m não d e i x a ser e n r a b a d o , mas o S e n h o r t e m p o d e r !
e o cabelo a r r e p i a d o , c o n f e r i a m - l h e o aspecto de u m a A p ó s a s u a c o n v e r s ã o . B e t o c o n f e s s o u q u e os p a i s
louca. Tornou-se n u m poço de esquentamento. Q u a n d o e s t a v a m vivos. I n v e n t a r a a história d e o r f a n d a d e p a r a
N h a M a r i a s a i u d a c a d e i a , a p r i m e i r a coisa q u e fez f o i g a n h a r a c o m p a i x ã o das pessoas e q u e a g o r a estava a r r e -
expulsá-la d e casa p o r q u e l u g a r d e c a d e l a é n a r u a , Isso p e n d i d o . Este não e r a o B e t o q u e e u c o n h e c i a . Passou a
é p a r a a p r e n d e r e s n o q u e dá a má v i d a . A n d a s t e a a b r i r c h a m a r a t o d o s d e i r m ã o . E u não p o d i a c u i d a r d e M i r n a
as p e r n a s é a f a z e r a b o r t o a t o r t o e a d i r e i t o , a g o r a t o m a de m o m e n t o p o r q u e t i n h a de zelar pelo m e u f u t u r o
a t u a p a g a , p u t a d e não-sei-que-diga! c o m o c a n t o r e daí a três dias t i n h a d e estar a c a n t a r n o

1«Q
MARGINAIS . EVEL ROCHA

palco d o fesdval, mas depois havia de v o l t a r e o b r i g a r p o r razões económicas o u então o a m o r é m e s m o c e g o ,


a N h a M a r i a a t o m a r c o n t a d e l a a s s i m c o m o e l a fez, u m a grande piada! C o m u m jeito compenetrado, pediu-
q u a n d o estava d e p e r f e i t a saúde, p r i n c i p a l m e n t e n o s -me q u e cantasse a m o r n a d e Nazário, Bela, e, e n q u a n t o
meses e m q u e a m ã e esteve n a c a d e i a . F o i s e m p r e a s s i m cantava, t i n h a a c e r t e z a q u e a q u e l a m u l h e r i a c o m e r - m e
d e s d e a s u a infância, l e v a v a p o r r a d a d a m ã e , a c i c a t a d a nas mãos n a q u e l a n o i t e :
pela promiscuidade do pai, f o i violada p o r u m tio c o m
a anuência d o p a i e a g o r a o t u m o r d e sete q u i l o s q u e
l h e crescia de m o d o assustador n a b a r r i g a , definhava-a, Ó Bela, oi moça querida
d e i x a n d o - a grávida d e d o r e v e r g o n h a . ^nta guarda bô regresso
Q u e m v i v e u n a p e r i f e r i a sabe q u e o q u e e u escrevo nem q^un vive
é a v e r d a d e n u a e c r u a . N a r u a , a v i d a ensina-nos q u e o tude nha vida num solidão
s o n h o é u m a l o u c u r a . A p r e n d e m o s q u e as m o n t a n h a s não ÓBela'.
e x i s t e m , q u e o sol, o m a r e t u d o o q u e v e m o s não passa d e
u m s o n h o . Q u e m s o n h a são os l o u c o s . N ã o v a l i a a p e n a Quando eu cantava o coro:
trazer o a m o r d e D e u s p a r a o subúrbio e os b a i r r o s d e lata.
O a m o r de D e u s não alcança o l a r dos nossos b a i r r o s . O sol A bô é um alma sem maldade,
q u e Ele m a n d a é f o r t e d e m a i s e d e r r e t e os nossos sonhos, a ó Bela
c h u v a q u e E l e nos m a n d a e v a p o r a antes d e m o l h a r a t e r r a ca desvanece
escalavrada. A v i d a nestas r u e l a s t e m s a b o r a v ó m i t o d e nha ansiedade,
cão, a b o n d a d e d e D e u s é rançosa e d e s t e m p e r a os nossos ÓBela''
ânimos, p o r isso, falar-nos d o e v a n g e l h o é b r i n c a r c o m o
nosso s o f r i m e n t o . D e u s é c a l a d o d e m a i s p a r a o m e u gosto,
é invisível d e m a i s p a r a o m e u m u n d o r e a l . ela piscava-me u m o l h o e n u m sorriso i n s i n u a n t e , c o l o -
cava as mãos n o p e i t o a o ritmo d a m e l o d i a . D i t o e f e i t o :
V o l t e i p a r a S a n t a M a r i a , p o i s e u t i n h a de i n v e s t i r a passámos o resto d a n o i t e j u n t o s . Mamãe costumava d i z e r
f u n d o n o s ensaios p a r a o festival e c o n t i n u a r o m e u t r a - q u e f i d e l i d a d e e r a n o m e de u m b a r c o que se a f u n d o u n o d i a
b a l h o de cantar nos restaurantes d a vila. N a q u e l a n o i t e , d e z o i t o de M a i o , n o a n o e m q u e r e b e n t o u a p r i m e i r a g u e r r a
f i q u e i s u r p r e e n d i d o ao v e r I z i l d a q u e t i n h a i d o c o m o m u n d i a l . A m i n h a desilusão f o i descobrir que a m i n h a a n t i g a
m a r i d o para j a n t a r n o restaurante o n d e e u ia actuar c o m professora não era aquele a n j o p u r o e que o seu m o d o r e f i -
a b a n d a . A princípio ela tentava ignorar-me, c o n t u d o , n o n a d o e s o b e r b o e r a apenas u m a fachada que escondia u m a
decorrer da noite, já m e olhava e sorria e eu, desconfiado, m u l h e r ordinária, v u l g a r e acostumada às maiores b a r b a r i -
f i n g i a não e n t e n d e r n a d a . O m a r i d o d e l a e r a d a q u e l e s dades d e b a i x o de u m lençol. N a m i n h a adolescência, s o f r i
h o m e n s q u e se c o n f u n d i a m c o m u m armário; ele tinha fogosos relâmpagos de paixão p o r ela, queimava n o i t e s e
as feições grossas e u m a b a r r i g a p r e n h a d e cerveja. Se
9 Ó Bela, o i moça querida // eu aguardo o teu regresso // mesmo (lue
não fosse p e l a r i q u e z a q u e ostentava, d i r i a q u e e r a coz- tenha de viver // toda a minha vida numa solidão // O Bela.
i n h e i r o d e a l g u m b a r c o d e pesca. C l a r o q u e I z i l d a casou 10 És uma alma sem maldade, ó Bela // Não desvaneça a miiilia ansiedade, ó Bela.

iO-l
MARGINAIS EVEL ROCHA

noites p e n s a n d o nela, sonhava c o m ela n o altar, mas aquele


m o m e n t o revelou-me a podridão d e algumas m u l h e r e s d e XXXI
b o a família. E s c o n j u r a d o , d e i duas tapas n o m e u rosto p o r
u m d i a ter s o n h a d o e m casar c o m ela.
F a l t a v a m d o i s dias p a r a o fesdval. D o i s dias p a r a q u e
a m i n h a estrela d a sorte b r i l h a s s e , finalmente. N ã o h a v i a
d e d o e s t o r t e g a d o , n e m m a n c h a s n o p u l m ã o capazes d e
d e r r u b a r a m i n h a v o n t a d e d e t r i u n f a r n o m u n d o d a música.
T u d o estava a m e u favor.
R e c e b i a notícia d a m o r t e d e M i r n a l o g o c e d o p o r
i n t e r m é d i o d e Fusco. F o i u m m o m e n t o difícil p a r a m i m .
S e n t i - m e n a obrigação d e fazer q u a l q u e r coisa p o r ela. O
c o r p o a i n d a estava n o h o s p i t a l . N i n g u é m d a família tinha
i d o l e v a n t a r o cadáver. F u i aos E s p a r g o s e, ã r e v e l i a d e
N h a M a r i a d o M o n t e , levei o c o r p o p a r a a sua casa e fiz
a promessa de lhe dar u m e n t e r r o digno. A n d e i de p o r t a
e m p o r t a d o s h o m e n s c o m q u e m e l a d o r m i a , n u m a estu-
p i d e z d e s e n f r e a d a , ameaçando tirar f o r a t u d o o q u e sabia
s o b r e eles, se n ã o contribuíssem p a r a q u e e l a tivesse u m
f u n e r a l m e r e c i d o . Estive e m pé d e g u e r r a c o m os coronéis,
mas também t e s t e m u n h e i o q u a n t o a a m a v a m . E n f r e n t a r
as feras p a r a q u e d i s p o n i b i l i z a s s e m a l g u m f u n d o p a r a o
e n t e r r o não f o i t a r e f a fácil. U m deles c h a m o u o segurança
p a r a m e e x p u l s a r e só d e s i s t i u d a i d e i a q u a n d o p u x e i
d e u m a faca. Q u a n d o o a r g u m e n t o d a i n f i d e l i d a d e e os
segredos d a alcova não f u n c i o n a v a m , e u apelava p a r a a
violência, p o i s , o r a n c o r e a d o r corroíam-me p o r d e n t r o .
N a c o r r e r i a d e s e n f r e a d a , passei duas vezes p o r L e i a , sujo,
descalço e a l h e i o ao q u e se passava à sua v o l t a , d e cócoras
nos degraus d a escada d a igreja, m e r g u l h a d o n u m a paixão
desnaturada, o l h a n d o demoradamente para a janela d o
q u a r t o d e Amália, f e i t o l o u c o .
C o n s e g u i a l g u m f u n d o , porém, não o suficiente p a r a
fazer o e n t e r r o d o j e i t o q u e e u q u e r i a . L e m b r e i - m e d a aposta
p a r a q u e m adivinhasse d e o n d e v i n h a o n o m e Tasquinha
Russa; t e l e f o n e i d e i m e d i a t o p a r a L e n a p a r a saber se alguém

H n o
MARGINAIS . EVEL ROCHA

tinha acertado o significado d o n o m e . Ela respondeu-me q u e H o u v e u m a v o z e a r i a d e e s p a n t o e a l e g r i a n o salão,


não e q u e aquele era o último d i a das apostas. Sabendo que os L e n a c o l o c o u o p o t e d e v i d r o c o m as m i l e trezentas n o t a s
h o m e n s se r e u n i a m todas as noites p a r a o u v i r os apostadores, d e m i l escudos s o b r e o balcão e disse, E t o d o t e u !
a p a n h e i u m táxi e fiii até ao b a r c o n v i c t o d e q u e ia g a n h a r o E n t r e risadas d e admiração e aplausos, saí a c o r r e r
prémio. A aposta t i n h a c h e g a d o à fasquia dos m i l e trezentos s e m p e r d a d e t e m p o . E r a m n o t a s d e m i l q u e se fartava!
contos, u m a s o m a q u e p o d e r i a g a r a n t i r u m e n t e r r o de c i n c o U m a p r a g a d e g a f a n h o t o s d e p a p e l s o b r e a mesa, m i l e
estrelas pára a falecida. C h e g o u a m i n h a vez de apostar, o l h e i d u z e n t a s n o t a s castanhas! A g o r a , t i n h a q u e l u t a r c o n t r a
as dezenas de curiosos, d e i dois passos à f r e n t e e disse, L e n a , o t e m p o e fazer u m f u n e r a l p o m p o s o , c o m p r a r todas as
vais desculpar-me, mas t e n h o d e d i z e r o q u e p e n s o sobre r o u p a s pretas q u e houvesse nas lojas p a r a d i s t r i b u i r aos
este n o m e ; se quiseres podes brigar, x i n g a r a m i n h a mãe q u e a c o m p a n h a n t e s , c o n t r a t a r u m g r u p o m u s i c a l , a l u g a r car-
não v o u reagir, mas e u preciso desse d i n h e i r o p a r a d a r u m r i n h a s p a r a t r a n s p o r t a r as pessoas, m a n d a r c o n f e c c i o n a r
funeral digno à M i m a . c e n t e n a s d e flores d e p a p e l d e seda d e t o d a s as cores,
M e u coração estava d i l a c e r a d o , t i n h a u m a v o n t a d e e n f e i t a r a i g r e j a c o m a a j u d a das moças dos b a i r r o s d e
i m e n s a d e m e desfazer e m p r a n t o s , mas não ficava b e m Chã d e F r a q u e z a , Hortelã, Chã d e M a t i a s , A f r i c a Setenta,
a u m h o m e m c h o r a r , a i n d a m a i s n a presença d e tantas F e r r a d u r a , A l t o d e Saco e o u t r a s q u e viessem, desde Santa
pessoas. E u t i n h a d e ser f o r t e e e n g o l i r t o d a a d o r q u e m e M a r i a até P e d r a d e L u m e . E n c o m e n d e i c o m i d a e b e b i d a
c o n s u m i a . O l h e i ã v o l t a e t o d o s , n u m silêncio e x p e c t a n t e , dos r e s t a u r a n t e s e das pastelarias p a r a t o d o s os gostos d e
e s p e r a v a m q u e e u dissesse o s i g n i f i c a d o d o n o m e . B o m , m o d o q u e ninguém tivesse q u e se p r e o c u p a r e m v o l t a r p a r a
este b a r t e m n o m e d e Tasquinha Russa p o r q u e os p i n t e l h o s casa. Moças d e c o n d u t a d u v i d o s a , c o m o as c h a m a v a o d n
d e L e n a são v e r m e l h o s e p r o n t o ! Apolinário, c a p r i c h a r a m e m t u d o , a p o n t o de o advogado
A multidão e x p l o d i u e m gargalhadas, mas L e n a a p e l i d a r o c o r t e j o fúnebre d e f u n e r a l c a r n a v a l e s c o das
c o n t i n u o u c o m o seu r o s t o f e c h a d o . N u m a m u d e z c o n - putas de Espargos. Q u a l q u e r ofensa v i n d a d a q u e l e h o m e m
s e n t i d a , e l a d i r i g i u - s e ao c o f r e z i n h o o n d e t i n h a g u a r d a d o era u m e l o g i o p a r a nós, p o r é m , a q u e l e q u e tentasse acabar
o p a p e l i n h o q u e t i n h a a resposta p a r a o segredo, p e d i u ao c o m o nosso t r a b a l h o estaria a d i t a r a sua própria sentença
J o r g e R u i e ao Pedrosa, q u e e r a m os únicos q u e s a b i a m o d e m o r t e . A m a i o r p a r t e das pessoas q u e p a r t i c i p o u das
n ú m e r o secreto, q u e a b r i s s e m o p e q u e n o c o f r e e colocas- h o n r a s fúnebres e r a m t r a b a l h a d o r e s q u e l u t a v a m p e l a
s e m o e n v e l o p e l a c r a d o s o b r e a mesa. M i n h a g e n t e , a c h o sobrevivência: o h o m e m d o l i x o , o pescador c i n z e l a d o p e l a
q u e c h e g o u a h o r a d e d e s v e n d a r este mistério, j á o u v i fúria d o m a r , o p e d r e i r o d e p r u m o m u r c h a d o p e l o sol, o
tantas b a r b a r i d a d e s e b u r r i c e s n a t e n t a t i v a de a d i v i n h a r g u a r d a - n o c t u r n o comjão, o c o v e i r o sardónico e o estivador
o n o m e deste l u g a r , mas h o j e c h e g o u o d i a d a revelação. d e o m b r o s largos, q u e d o r m i a m e m q u a r t o s s u p e r l o t a d o s
Os d o i s h o m e n s d i r i g i r a m - s e à mesa, a b r i r a m o c o f r e , e d o e n t i o s , o n d e o b a f o d e g r o g u e se m i s t u r a c o m o f u m o ,
conferenciaram-se e n t r e si e e n t r e g a r a m o envelope à L e n a . o n d e as p a r e d e s negras d e f u l i g e m d a l a m p a r i n a v e l h a e
M e u coração doía. L e n a a b r i u o e n v e l o p e . Está a q u i a res- tosca são vestidas d e f o t o g r a f i a s d e j o r n a i s e revistas. E s t o u
p o s t a ! Tasquinha Russa é r e a l m e n t e u m a h o m e n a g e m aos convencido que aquela o n d a de solidariedade f o i u m a
m e u s p i n t e l h o s ruços! Sérgio g a n h o u a aposta, o p r é m i o f o r m a d e c h a m a r a atenção das a u t o r i d a d e s : m u l h e r e s
é dele! a c o s t u m a d a s a p a s s a r e m as t a r d e s c a t a n d o lêndeas aos

H n/1
MARGINAIS . ^ _ EVEL ROCHA

filhos, c o m as mãos s e g u r a n d o o q u e i x o , e n t r e d d a s p e l o saltos. O m a i o r s o b r e s s a l t o s e m dúvida f o i e n f r e n t a r o


b a r u l h o seco dos p i o l h o s estalando nas u n h a s , e m p r e g a d a s a d v o g a d o A p o l i n á r i o . H o m e m d e u m saber e x c e p c i o n a l ,
d e mãos e j o e l h o s calejados p e l a sova dos mosaicos e d a mas q u e p a r e c i a t e r p a v o r a pessoas h u m i l d e s c o m o nós.
lixívia, v e n d e d e i r a s a m b u l a n t e s , r a b i d a n t e s d e aventais, E m vão p e r s u a d i u o p a d r e d e e x e r c e r o ofício fúnebre
d e r a m tréguas à má-língua, não sei se p o r s o l i d a r i e d a d e n a i g r e j a e disse q u e , se enterrássemos a v a g a b u n d a n o
o u guiadas p o r u m deus c o n d e s c e n d e n t e , e resolveram cemitério m u n i c i p a l j u n t a m e n t e c o m as pessoas d e b e m
prestar u m a h o m e n a g e m à defianta. M i m a fez mais h o m e n s q u e lá estavam, m a n d a r i a desenterrá-la a i n d a q u e o c o r p o
felizes d o q u e q u a l q u e r organização d e c a r i d a d e ; o seu tivesse d e a p o d r e c e r ao ar l i v r e . Os coveiros passaram a
e n t e r r o f o i o mais c o n c o r r i d o d e s e m p r e e m t o d a a história manhã i n t e i r a e s b u r a c a n d o o cemitério. F o i necessário
d a i l h a . E m b o r a fosse c r i t e r i o s a n a e s c o l h a dos h o m e n s a b r i r sete covas até a c e r t a r m o s c o m o l u g a r desejado d e
c o m q u e m se deitava, q u a n d o t i n h a saúde, n a sua m o r t e , m o d o a não d e s o n r a r os b o n s d e f u n t o s , falecidos h o n r a d o s
t o d o s nós, h o m e n s e m u l h e r e s , tínhamos a convicção d e d a i l h a . E r a h i p o c r i s i a d e m a i s ! M i n h a s palavras à b e i r a d a
p e r t e n c e r m o s à m e s m a família, c o m o a m a n t e s , r i v a i s , cova, q u e pare<:ia u m precipício t a l o zelo d o s coveiros,
cônjuges, prostituímos o c o r p o , misturámos t o n e l a d a s d e acalentadas pelos soluços e lágrimas das m u l h e r e s e moças
sémen, beijámos os m e s m o s lábios, esmurrámo-nos, p a r t i - d e l u t o c o m o órfãs a b a n d o n a d a s e pelos rostos f e c h a d o s
lhámos o m e s m o cálice c a r r e g a d o d e g r o g u e , d e ó d i o , d e dos h o m e n s , q u e p a r e c i a m b e b e r c a d a frase q u e e u falava,
o p o r t u n i s m o , culpámos os o u t r o s pelas nossas desgraças, faziam-me s e n t i r q u e a i n d a havia a l g u m a réstia d e h u m a n i -
desconfiámos, amámos, invejámos, praguejámos, c o n t u d o d a d e n a q u e l a g e n t e a c o s t u m a d a às b r i g a s e p o r r a d a s , q u e
vivemos sempre j u n t o s . n ã o se i m p o r t a v a m d e i r p a r a a c a d e i a e m defesa d e u m a
D e p o i s d e d a r os d e v i d o s e x p e d i e n t e s , p r o c u r e i u m estupidez q u a l q u e r
l u g a r silencioso p a r a p r e p a r a r o discurso fúnebre. A n o i t e j á S e n t i u m b a q u e f o r t e n o p e i t o ao o u v i r o t a m b o r i -
estava b e m avançada e o silêncio chegava a ser i n c o m o d a t i v o l a r d o s torrões d e t e r r a s o b r e o caixão d e m o g n o , o m a i s
n a q u e l e d i a . Só se o u v i a o u i v a r d o s cães, c o m o se estives- b e l o e p o l i d o caixão q u e v i e m t o d a a m i n h a v i d a . M i n h a s
sem a c h o r a r p o r ela. Os gatos n o c i o p a r e c i a m p r o n u n c i a r lágrimas espessas p e l a p o e i r a v i t a m i n a d a r o l a v a m i m p i e -
o seu n o m e n u m t r i s t e l a m e n t o . E r a necessário fazer u m dosamente, enquanto a terra cobria p o r completo o corpo
d i s c u r s o , p e l o m e n o s assim e u c h a m a r i a o m o m e n t o e m d a m i n h a a m i g a . As coroas d e f l o r e s d e p a p e l d e seda, os
q u e h a v i a d e f a l a r p a r a os p r e s e n t e s , r e c o r d a r a t o d o s a r a m a l h e t e s d e plástico e as m e n s a g e n s escritas à mão, e m
insignificância q u e é ser m a r g i n a l , a n a l f a b e t o e assala- letras r e t o r c i d a s , c o b r i r a m o s e p u l c r o p o r i n t e i r o . N u m
r i a d o , as m i n h a s palavras t e r i a m d e r e f l e c t i r o s e n t i m e n t o fúnebre i n s t a n t e , h o u v e u m silêncio n o l o c a l e as pessoas
d e t o d o s c o n t r a a injustiça e a d e s i g u a l d a d e , mas, a c i m a estatuadas m i r a v a m a s e p u l t u r a c o m o q u e e s p e r a n d o u m
d e t u d o , e u d e v e r i a m o s t r a r aos presentes q u e a p i o r das m i l a g r e d e ressurreição.
delinquências é ser e x p l o r a d o pelos próprios g o v e r n a n t e s . D e r e p e n t e , u m g r i t o histérico d e alguém, q u e n u n c a
A m o r t e daquela puta marginalizada p a r o u a vila de soubemos q u e m foi, d e u ordens para quebrar t u d o o que
Espargos: as ruas p o r o n d e passávamos estavam a p i n h a d a s houvesse p e l a f r e n t e . As cruzes v o a v a m p a r a d e p o i s caírem
de olhares curiosos que, discretamente, i a m engrossando e m pedaços, as c a m p a s d e m á r m o r e c e d i a m à fúria d o s
o c o r t e j o fúnebre. O dionisíaco e n t e r r o f o i r i c o e m sobres- r e v o l t a d o s e f e r i d o s n a d i g n i d a d e , s u b o r d i n a d o s , quiçá.

196
MARGINAIS - - EVEL ROCHA

p e l a força d a a g u a r d e n t e ; as p o u c a s p l a n t a s q u e e n f e i t a -
v a m a l g u m a s s e p u l t u r a s s u c u m b i r a m à i m p e t u o s i d a d e das
mãos e n d u r e c i d a s p e l o t r a b a l h o forçado, pelos cabos d e
XXXII
e n x a d a s e p i c a r e t a s q u e destruíam t u d o o q u e a p a r e c i a
p e l a f r e n t e . Q u a n d o a polícia c h e g o u ao l o c a l , a m u l t i -
dão f u r i o s a t i n h a devastado o cemitério e s u m i d o não se
sabe c o m o . Parecia q u e o cemitério tivesse s i d o devastado
p o r u m a t e m p e s t a d e r e l â m p a g o . F u i p r e s o , mas, n o d i a
s e g u i n t e , f u i s o l t o p o r q u e a l g u n s presentes r e c o n h e c e r a m
a m i n h a enérgica oposição ao v a n d a l i s m o d o l u g a r q u e e u N a q u e l a n o i t e , n o silêncio d o q u a r t o , l e m b r e i - m e de
considerava sagrado. L e i a Magreza, m o ç o i n t e l i g e n t e , de espírito aguçado, f e i t o
E x t e n u a d o , v o l t e i p a r a Santa M a r i a c i e n t e d o d e v e r u m traste, algures p e l a f e b r e incurável d a solidão corrosiva
c u m p r i d o . Era t e m p o de pensar e m m i m , n o m e u f u t u r o , c o m o a m a r e s i a de Fiúra. Os seus chorosos versos e r a m de
no m o m e n t o e m que poderia dar u m a virada completa u m a tristeza b r u t : J , as r i m a s e r a m esculpidas n u m a h a r m o -
n a m i n h a v i d a . V o l t e i p a r a os ensaios, mas antes tinha d e n i a m e t i c u l o s a e t r i t u r a d a s n a e n g r e n a g e m sórdida dos seus
t o m a r u m a dose d o d i v i n o p ó b r a n c o , o único a m i g o capaz sentimentos, misturava-as c o m o a m a r g o sal das suas lágrimas
de m e c o m p r e e n d e r e ajudar a esquecer o malfadado d i a destiladas p e l a d o r d e a m a r o p r o i b i d o . L e i a f o i o m a i o r
d o e n t e r r o d e M i r n a - e r a a s u b l i m e h o r a d e lavar a a l m a . p o e t a m a r g i n a l destas ilhas! E p e n a q u e os j o r n a i s não p u b l i -
Sentia q u e t i n h a c h e g a d o a m i n h a vez. O m e u t r i u n f o seria q u e m os seus p o e m a s . O s j o r n a i s estão cheios de parvoíces
o t r i u n f o d e t o d o s os m e n i n o s d a r u a d a R i b e i r a , das c r i a n - q u e os editores, n u m a h i p o c r i s i a deslavada e gananciosa,
ças m a l t r a t a d a s p e l o d e s t i n o , d o s adolescentes d e s o n h o s destacam de u m a f o r m a leviana. É m i n i s t r o - p o e t a versando
embargados, dosjovens marginais, ignorados pelo poder m e d i o c r i d a d e s , é militante-contador-de-estórias q u e escreve
político e p e l o s deuses d a p r o s p e r i d a d e . a n t o l o g i a s d e ignorância e é levado p a r a a televisão p a r a
D e p o i s d e e n s a i a r c o m a b a n d a , v o l t e i p a r a a casa falar d e c u l t u r a . Mas L e i a t i n h a razão, a poesia deve ser l i d a
e lá r e f l e c t i a m i n h a v i d a . S n i f e i u m p o u c o p e n s a n d o n o d e q u a l q u e r j e i t o , seja nos livros o u nas paredes das casas.
antes e n o d e p o i s d o festival, a g r e l h a d a p a r t i d a p a r a a A l u c i n a d o p e l a decisão d o d o u t o r Apolinário e m p r o i b i r a
c o r r i d a d o sucesso: q u i n z e d e S e t e m b r o , o d i a q u e havia de Amália d e se e n c o n t r a r c o m ele, passava horas sem c o m e r ,
m a r c a r p a r a s e m p r e a m i n h a v i d a ! A m i n h a intenção não d e c l a m a n d o versos e c a n t a n d o baladas de a m o r p a r a a sua
e r a a b u s c a d a f a m a , mas servir-me d e l a p a r a a p r o x i m a r amada, n o calor abrasador d o meio-dia e d a causticante
os d o i s m u n d o s q u e p o v o a m a i l h a , servir d e p o n t e e n t r e g e a d a d a n o i t e , à m e r c ê d o v e n t o seco d o mês d e M a i o ,
os q u e l u t a v a m p e l a sobrevivência e os q u e l u c r a v a m c o m q u e l h e rasgava os lábios, e d a d o l o s a c h u v a de S e t e m b r o ,
essa sobrevivência, aqueles q u e c h o r a v a m e aqueles q u e i n d i f e r e n t e às ameaças d o m a l d i t o a d v o g a d o e aos c o m e n -
v e n d i a m lenços. tários d e s p r o p o s i t a d o s dos q u e p o r ele passavam. O tino
V e j o a m i n h a i l h a e não gosto d o q u e vejo. d e L e i a só r e s p o n d i a a u m c h a m a d o : o g r a n d e a m o r p e l a
Amália. L e i a necessitava u r g e n t e m e n t e q u e ela voltasse p a r a
os seus braços.

198
.... xi-iGINAIS . . . ,

A j o v e m amada, c o n t u d o , sofria m u i t o mais d o q u e devaneio, d n h a os o l h o s fixos n u m m o s q u i t o q u e l h e c h


ele, pois, amava-o i n t e n s a m e n t e , mas não p o d i a a b r i r a pava o sangue n a b a r r i g a d a p e r n a d i r e i t a . N a infância, c-
j a n e l a d o q u a r t o c o m m e d o q u e o p a i agravasse o s e u era u m dos nossos passatempos p r e f e r i d o s : d e i x a r q u e o
c a s t i g o . L á o n d e L e i a se a b a n c a v a d e i x a v a u m p e q u e n o m o s q u i t o sugasse sangue até i n c h a r p a r a d e p o i s esmagá-
l a g o d e v ó m i t o s e u r i n a . R e c i t a v a os v e r s o s d e a m o r l-o c o m u m a p a l m a d a . T o m e i o f ô l e g o e disse-lhe, A t u a
q u e e s c r e v e r a nas p a r e d e s das casas e d e p o i s , c o m o mãe m o r r e u ! E n o a c t o contínuo, ele d e u u m a p a l m a d a
o l h a r fixo n a j a n e l a d a a m a d a , passava o r e s t o d o t e m p o n o i n s e c t o , zás! A p a n h e i - o ! , g r i t o u .
r e i n v e n t a n d o o silêncio. E l e lavava a c a r a c o m c u s p o e F i q u e i e m silêncio m i r a n d o o v a z i o , c o n t e m p l a n d o
escovava os d e n t e s c o m o d e d o i n d i c a d o r . N ã o t o m a v a a c r u e l situação d e L e i a q u e p e r d e u o j u í z o p o r a m o r ,
b a n h o d e s d e o d i a e m q u e v i u A m á l i a p e l a última vez. mas s e m p r e c o m a esperança q u e ele levantasse e fosse
Fez u m a p r o m e s s a e estava a c u m p r i - l a . V o l t o a t o m a r p a r a casa c h o r a r a sua mãe. E l e l e v a n t o u os o l h o s t i m i -
b a n h o só n o d i a d o m e u c a s a m e n t o . d a m e n t e p a r a a j a n e l a d o q u a r t o de Amália e depois
A mãe d e L e i a , a r r a s t a d a p e l a tragédia, f o r a evacuada c o n t i n u o u o seu r i t u a l .
d e urgência p a r a P r a i a p o r causa d e sucessivas crises q u e
v i n h a s o f r e n d o . Os v i z i n h o s estavam c o n v e n c i d o s q u e fosse N o dia quinze de Setembro de m i l novecentos e
p o r causa d e M a g r e z a , p o r é m , a razão era o u t r a a i n d a m a i s n o v e n t a e n o v e , l e v a n t e i - m e b e m c e d o , antes q u e o sol
c r u e l d o q u e v e r o filho v e g e t a n d o p o r u m a m o r p r o i b i d o : desvirginasse a m a d r u g a d a , p a r a d a r a l g u n s r e t o q u e s n a
d e s c o b r i r a m q u e ela estava i n f e c t a d a c o m o vírus d a Sida. r o u p a q u e i r i a vestir n a q u e l a n o i t e memorável. Preferi
A m u l h e r ficou e m estado d e c h o q u e . E l a só c o n h e c e u u m passar a manhã i n t e i r a s o z i n h o , c h a p i n h a n d o e m m e d i -
h o m e m n a sua v i d a . A q u e l a s e n h o r a f o r a e d u c a d a d e b a i x o tações, e n t r e c r u z a n d o recordações, i n v o c a n d o memórias
dos p r e c e i t o s inabaláveis d o c a t o l i c i s m o p u r o . E r a d e v o t a e d e u m a v i d a q u e e u desejava q u e fosse d i f e r e n t e , a p a r t i r
m u i t o respeitada p o r todos, mas i n f e l i z m e n t e , f o r a c o n t a m i - d a q u e l e d i a . A o pisar o p a l c o d o festival, l e v a r i a n a m e n t e
n a d a p o r a q u e l e q u e h o n r a v a n a sua ausência, n a v e g a n d o o m e u b a i r r o , os m e u s a m i g o s , mamãe e t o d o s aqueles q u e
nas águas d o m a r . D o n a Eulália e r a u m a m u l h e r de p o u c a l a b u t a v a m p a r a sobreviver! E u seria o t e r c e i r o a a c t u a r n o
fala, usava u m l e n ç o e s t a m p a d o q u e a m a r r a v a d e b a i x o festival, l o g o d e p o i s de u m g r u p o sul-africano. M e u s amigos
d o q u e i x o e u m casaco r e n d i l h a d o d e u m a z u l - m a r i n h o j á tinham p r e p a r a d o alguns cartazes e slogans para a g r a n d e
pesado. A t a r d i n h a , se não estivesse à p o r t a d a casa f a z e n d o n o i t e . Após o r i t u a l de sempre, de cheirar u m p o u c o d o
r e n d a s , estava e m casa d e a l g u m a devota, r e z a n d o terço o u p ó b r a n c o , de b e b e r algumas garrafas d e cerveja, d e i t e i - m e
b o t a n d o esteira. U m a s e m a n a d e p o i s d o seu regresso d a na cama para d o r m i r u m pouco. N o m o m e n t o e m que me
c a p i t a l , e n v e r g o n h a d a p e l a tragédia. D o n a Eulália i n g e r i u p r e p a r a v a p a r a passar p e l o s o n o , o u v i u m g r a n d e a l a r i d o
u m frasco d e c o m p r i m i d o s . v i n d o d o e x t e r i o r e p o u c o depois, dois vultos a r r o m b a r a m
T o m e i c o r a g e m p a r a d a r a trágica notícia ao L e i a . L á a porta do m e u quarto.
estava ele n o pátio d a i g r e j a distraído, m a t a n d o m o s q u i t o s
às p a l m a d a s d e b a i x o d e u m sol e m brasas. N ã o havia f o r m a
de lhe dizer o q u e t i n h a acontecido; falei-lhe de m o r t e s ,
d e doenças, d a separação, d a saudade e ele, a l h e i o ao m e u

9 0 1
EVEL ROCHA

XXXIII

Os dois polícias l e v a r a m - m e à E s q u a d r a . F u i preso p o r


estar e n v o l v i d o c o m narcotráfico. P u s e r a m - m e n u m a cela
o n d e estava P i a n i s t a c o m o r o s t o i n c h a d o , n u m c a n t o c o m
o r o s t o e n t r e as mãos. E l e tínha s i d o a p a n h a d o c o m cerca
d e d o i s q u i l o s d e cocaína. D e r a m - l h e p o r r a d a e a c a b o u
p o r e n v o l v e r o m e u n o m e c o m a d r o g a . T i v e a esperança
q u e m e soltassem a t e m p o d e a c t u a r n o festival, m a s t o d a
a m i n h a insistência e m c o n v e n c e r a polícia s o b r e a m i n h a
inocência f o i e m vão. E n t r e i e m crise e h o u v e m o m e n t o s
e m q u e sentia q u e n u n c a mais sairia d a q u e l e lugar. R e p a r e i
então q u e estava d e n t r o d a cela o n d e , dez anos antes, m e
fartara d e rir ao ver a inscrição B E M - V I N D O A O I N F E R N O .
O í m p e t o d e r a i v a e ó d i o q u e m e d o m i n a v a m e r a tão f o r t e
q u e c o m e c e i a b a t e r a cabeça n a g r a d e d a prisão até p e r d e r
a consciência. P o r t e r p e r d i d o m u i t o sangue, f u i i n t e r n a d o
n o h o s p i t a l d u r a n t e u m a s e m a n a . E u t i n h a a sensação q u e
não i r i a s o b r e v i v e r à t a m a n h a desilusão e o p i o r e r a saber
q u e o n d e e u estava não t e r i a a c o m p a n h i a d a b e n d i t a d r o g a
q u e m e ajudava a e s q u e c e r as a g r u r a s d a v i d a .
Sílvia f o i despedir-se d e m i m três dias d e p o i s d o m e u
i n t e r n a m e n t o , e r o g o u - m e q u e mudasse d e v i d a p e l o a m o r
d e D e u s , m o s t r o u - m e q u e a m i n h a mãe e r a u m a m u l h e r
sacrificada q u e lutava n a t e r r a de gente c o m d i g n i d a d e e
q u e n ã o m e r e c i a u m f i l h o n a q u e l e estado, O q u e e u v o u
d i z e r p a r a Rosário? Q u e c h e g u e i ao Sal e não p r o c u r e i p e l o
figlio avvocato, o u q u e ele está p r e s o n u m a . . . n u m a - ma
come dire? -prigione, isso!, prisão, hein? Porca miséria, Dio mio\
MARGINAIS EVEL ROCHA

M e u s o l h o s afundaram-se e m lágrimas. E r a m lágrimas v a r r i a a p o e i r a d a cela p r o c u r a n d o o g o s t o d a d r o g a n a


a sério. P r o m e d à Sílvia q u e i a m u d a r d e v i d a e q u e não t e r r a húmida e e n j o a t i v a . C o m m u c o a p i n g a r das n a r i n a s
contasse n a d a à m a m ã e . Se e l a s o u b e r q u e e s t o u neste e a saliva pastosa a e s c o r r e r d o s lábios, e u g r i t a v a p a r a q u e
estado m o r r e , p o r favor, d i g a - l h e q u e e s t o u b e m , man. V o u alguém m e trouxesse alívio p a r a o desejo sôfrego d e c o n -
r e c u p e r a r dessa v i d a b a n d i d a , v o u ser u m h o m e m d e b e m . s u m i r d r o g a . Passava dias a f i o s e m p r e g a r os o l h o s , a t e n t o
O r o s t o sorumbádco d e Sílvia, os seus o l h o s húmi- às vozes q u e e s t r u g i a m n o s m e u s o u v i d o s e às m a n c h a s
dos t r a n s m i t i a m - m e a c e r t e z a d e q u e e l a não i r i a c o n t a r à escuras e m f o r m a s d e g a r r a s q u e se a g i g a n t a v a m pelas
mamãe sobre o q u e v i u n a q u e l a cama d o hospital. paredes q u e r e n d o p r e n d e r - m e . As vezes, t i n h a a impressão
A s e g u n d a visita f o i d e B e t o Vesgo a r m a d o d e gravata q u e e u e r a o d e u s p o d e r o s o , o u t r a s vezes, sentia-me c o m o
e Bíblia p a r a m e c u r a r d a única coisa n a v i d a q u e m e dava se estivesse a m i n g u a r , sentia-me tão p e q u e n i n o q u e ficava
p r a z e r : a d r o g a . S i m p l i f i c a n d o as suas palavras: D e u s é u m c o m m e d o q u e os o u t r o s m e pisassem!
b o m gajo e v a i c u r a r - t e . P a r a c ú m u l o das desgraças, e u t i n h a c a í d o n o v a -
B e t o c o m apenas u m o l h o via a b o n d a d e de Deus m e n t e nas garras d o d o u t o r A p o l i n á r i o , o r e p r e s e n t a n t e
e m t u d o , mas, e u q u e t i n h a d o i s o l h o s p e r f e i t o s , só v i a a d o ministério público.
desgraça, a injustiça, a f o m e , a discriminação e a h i p o c r i s i a N o d i a d a sentença, o ar d e satisfação d a q u e l e sujeito
estampada n o rosto daqueles que viviam à m i n h a volta. f e r i a - m e a a l m a . O artesão d e a r g u m e n t o s a r d i l o s o s c o n -
L e m b r o - m e q u a n d o estorteguei o dedão d o pé d i r e i t o , seguiu «provar» q u e eu era u m traficante reincidente,
m a m ã e disse-me q u e e r a castigo d e D e u s p o r d e s o b e d i - c o s t u r a n d o m e n t i r a s c o m v e r d a d e s , c o n s e g u i u passar a
ência, q u a n d o p e r d i d i r e i t o à escola, L a u r a disse-me q u e m e n s a g e m q u e e u e r a o p i o r d o s m a r g i n a i s c u j o processo
e r a castigo d e D e u s . C r e s c i c o m a convicção d e q u e D e u s l h e tínha passado pelas mãos. A m e n t i r a é u m a vocação
estava e m t o d a a p a r t e e p r o n t o p a r a m e castigar. N a m i n h a c r i o u l a . Mente-se e m t o d o l a d o , e m t o d o o m o m e n t o , mas
adolescência, f e c h a d o n o q u a r t o , q u a n d o e u m a s t u r b a v a , b e m p o u c o s t i n h a m o privilégio d e m e n t i r n o santuário d e
às vezes p a r a v a c o m m e d o só d e saber q u e E l e m e espiava. todas as m e n t i r a s : o t r i b u n a l ! Q u a n t o ao m e u a d v o g a d o ,
E u t i n h a m e d o de Deus. u m j o v e m recém-formado, feliz p o r t e r p a r t i c i p a d o d e u m
j u l g a m e n t o , passou o t e m p o m o r d i s c a n d o a caneta e, n u m
N o s t e m p o s d e reclusão, f u i a t a c a d o p o r sucessivas desassossego c a r i c a t o , t r o p e ç a n d o nas palavras, não d i z i a
crises próprias d e alguém q u e necessitava d a d r o g a p a r a coisa c o m coisa. F u i c o n d e n a d o a o n z e meses d e prisão e
satisfazer as e n t r a n h a s q u e f e r v i l h a v a m d e desejo; suava Pianista a p a n h o u q u a t r o anos. O d o u t o r o u v i u o v e r e d i c t o e
f r i o , g r i t a v a e m delírios p a r a q u e m e colocassem nos lábios d e u u m suspiro d e alívio c o m o q u e m d i z : c o n s e g u i . D e p o i s
a i n d a q u e fosse u m a p i t a d a d e cocaína; m e u c o r p o t r e m i a d a sentença, p r o c u r e i c o n t r o l a r o ó d i o q u e m e c o n s u m i a ,
e x p e l i n d o suor, o r a c o m f e b r e , o r a c o m f r i o , m e u s d e n t e s c h a m e i - o , d e l i c a d a m e n t e , e p e r g u n t e i - l h e q u e horas e r a m .
r a n g i a m e e u s a c u d i a p e l o chão e m esticões epilépticos Dez horas e vinte, r e s p o n d e u sem o l h a r para m i m .
até a d o r m e c e r n o c h ã o r a l a d o d a c e l a s o b os o l h a r e s N u m desabafo carregado de ódio, gritei-lhe ao o u v i d o .
c o n f o r m a d o s d o s o u t r o s presos. D u r a n t e a n o i t e g r i t a v a , Q u a n d o f o r d e z h o r a s e m e i a - estás a o u v i r ? - q u a n d o f o r
desesperadamente. Meus dedos e m ganchos encravavam- d e z e m e i a , faz o f a v o r d e i r p a r a p u t a q u e te p a r i u ! Se o
-se e, c o m o c o r p o e n c o l h i d o e a língua c o l a d a ao chão c a m i n h o f o r l o n g o vai de carro.

9 0 5
MARGINAIS EVEL ROCHA

D e p o i s d a sentença, f u i t r a n s f e r i d o p a r a u m a cela
i s o l a d a o n d e os m e u s g r i t o s não i n c o m o d a v a m os o u t r o s
presos. Passei três meses s e m ver a l u z d o sol e sem r e c e b e r
XXXIV
u m a visita sequer. N ã o q u e r o r e c o r d a r t u d o o q u e passei n a
cadeia, p o i s , s i n t o v e r g o n h a d e m i m m e s m o . N e s t a t e r r a ,
só v a i p a r a c a d e i a ladrão d e g a l i n h a e filho d e p o b r e .
A p r e n d i q u e a esperança é c o m o u m a m u l h e r i n f i e l .
S o n h a m o s c o m ela a v i d a i n t e i r a e, à m e d i d a q u e o t e m p o
passa, dá-nos alguns sinais d e q u e t u d o vai d a r c e r t o , faz-nos
a c r e d i t a r n e l a até q u e u m d i a nos c h i f r a , d e s a l m a d a m e n t e , Saí d a c a d e i a quase à força p o r q u e não tinha p a r a
e se e v a p o r a n a escuridão d o t e m p o . o n d e i r N i n g u é m esperava p o r m i m e m l u g a r n e n h u m ,
C u m p r i a p e n a s n o v e meses n a prisão. P i a n i s t a f o i não t i n h a a m i g o s e n e m o n d e v i v e r P e d i ao p r o c u r a d o r
e n v i a d o p a r a a Cadeia C i v i l de São V i c e n t e . Pesava sobre ele q u e m e deixasse passar as n o i t e s n a cela até e n c o n t r a r u m
u m a série d e acusações, e n t r e os quais, abuso d e m e n o r e s . q u a r t o , mas r e c u s o u . N a c a d e i a e u t i n h a c o m i d a e c a m a ,
t o m a v a b a n h o e não t i n h a q u e m e h u m i l h a r , n e m d e m e
s u b m e t e r aos c a p r i c h o s d e u m e m p r e g a d o r q u a l q u e r .
M e u c o r p o , d e b i l i t a d o pelos dias preguiçados e m o l e s d a
reclusão, não i a a g u e n t a r a estocada d o t r a b a l h o forçado.
O s o l e r a m u i t o f o r t e p a r a a m i n h a p e l e pálida e sensível,
a c o s t u m a d a à s o m b r a das p a r e d e s escuras d o cárcere. A
m i n h a única saída era r o u b a r e v o l t a r de n o v o p a r a a cadeia.
H o j e é o m e u p r i m e i r o d i a de l i b e r d a d e . O sol parece
b r i l h a r m a i s d o q u e n u n c a . Os o l h a r e s oblíquos d e q u e m
passa p o r m i m a d v e r t e m - m e d a d u r a l u t a q u e m e espera.
A fingir, m e u s o l h o s m i r a m o vazio das ruas sem paredes
fechadas, sem c o r r e d o r e s s o m b r i o s , sem g u a r d a s c a r r a n -
c u d o s , sem o c h e i r o f r i o e m o f o dos colchões c h e i o s d e
b u r a c o s p o r o n d e os presos m a s t u r b a m , s e m a r u i d o s a
p o d r i d ã o dos a r r o t o s c o n s t a n t e s d a fossa d a cela.
C o n t u d o , é céu d e m a i s p a r a a m i n h a l i b e r d a d e .

C o m o s e m p r e , e n c o n t r e i refúgio n u m q u a r t o
e m p r e s t a d o p o r B e t o , m e u único c o m p a n h e i r o d e infância
q u e c o n s e g u i u escapar ãs teias d o d e s t i n o f a t a l d a m a r -
ginalidade. Não acredito e m milagres, c o n t u d o t e n h o de
reconhecer que Beto era u m h o m e m diferente. Não tinha

206 907
MARGINAIS —• EVEL RO^H^

n a d a a v e r c o m o B e t o V e s g o travesso q u e a p a n h a v a d o s majestosas e b r a n c a s dos seus s o n h o s d e infância. Toí^r^


outros. Q u e m d i r i a que o p r i m o de o l h o t o r t o , f o r n i c a d o r p a r a q u e sejas feliz d o t e u j e i t o , q u e sejas a m u l h e r q u ^ ^
d e bestas, vacas e g a l i n h a s , o c a t a d o r d e tocos d e c i g a r r o , n a t u r e z a d e f r a u d o u , q u e consigas r e b o l a r sem complext^^
o p i r a t i n h a d o p e l o u r i n h o , o f u m a d o r d e poff, o f o l i ã o q u e sintas l i b e r t o dos p r e c o n c e i t o s , q u e o b t e n h a s aque^ ^'
das farras d e t o u c i n h o c r u e d e tubarão n o v o , tornar-se-ia l o n g o s e f a r t o s seios c o m q u e s e m p r e s o n h a s t e , q u e d^^^
n o irmão B e t o e n g r a v a t a d o q u e só falava b r a s i l e i r o ? N o s files e m a l g u m a manifestação e n v o l t o n u m a b a n d e i r a g^'
a n o s d e s l e i x a d o s e airosos, masturbava-se três vezes ao d i a t r a v e s t i d o d e m u l h e r c o m l o n g a s pestanas e botas até
e, a b r i n c a r , a m a l t a s u g e r i a - l h e q u e pedisse ao p a d r e q u e j o e l h o c o m o s e m p r e sonhaste, q u e vivas e m p l e n i t u d e a tv^
o casasse c o m os seus c i n c o d e d o s d a calosa m ã o d i r e i t a . h o m o s s e x u a l i d a d e , nas ruas d e Sidney, e m a l g u m c a b ^ ^
A m e i a - n o i t e , a h o r a e m q u e A n t ô n e E m b a l a d o caía n o d e A m e s t e r d ã o , mas vivas até m o r r e r ! ^
p e s a d o s o n o . B e t o c o s t u m a v a saltar a c e r c a d o c u r r a l p a r a L e i a M a g r e z a m o r r e u vítima de u m a lunática pai)(^
se servir d a vaca q u e m u g i a e m p r o t e s t o c o m o se estivesse a por u m a m o r proibido. Leia foi o aperitivo da morte!
c h a m a r p e l o d o n o . H o j e é u m h o m e m casado, u m chefe d e j o v e n s q u e m o r r e m l o g o , mas a m o r t e fez questão d e d ^ . ^
família q u e vive h o n r a d a m e n t e , mas será q u e não se l e m b r a ciar cada p a r t e d o seu c o r p o c o m o se d e g u s t a u m aperiti^*'
p a r a d e p o i s l h e a r r a n c a r a a l m a , d e s a l m a d a m e n t e . Lá o r i ^ ^
d o d i a e m q u e a p a n h o u u m t r e m e n d o susto a o s a b e r
estás, m e u m a n o , deves estar feliz p o r realizar t e u s o n h o
q u e a vaca d e E m b a l a d o estava p r e n h a ? E l e achava q u e
ser a c t o r e p s i q u i a t r a . D i z e m q u e n o céu os nossos sonK ^
h a v i a f o r t e s p r o b a b i l i d a d e s d e o b e z e r r o nascer z a r o l h o ,
se t o r n a m r e a l i d a d e . Deves estar feliz p o r q u e p o d e s c o n ^ ^
m e t a d e b o i e m e t a d e g e n t e . Só c o n s e g u i u descansar n o
t u d o o q u e quiseres, p o d e s abusar d o t e u a p e t i t e , gra^ ^
d i a e m q u e v i u c o m seus próprios o l h o s q u e o b e z e r r o e r a
à t u a t r i p a d e c o r v o c o m ligação d i r e c t a ; os anjos d e v ^ j ^
i n t e i r a m e n t e b o i . A p e s a r d o susto, não d e s i s t i u d o p r a z e n -
estar a m o r r e r d e t a n t o r i r c o m as tuas piadas. ^
t e i r o b e s d a l i s m o , escudando-se n a v e l h a d e s c u l p a q u e Sal
era u m a i l h a q u e t i n h a mais h o m e n s q u e m u l h e r e s . B e t o D o m a i o r p o e t a m a r g i n a l herdámos estes versos:
gostava d e u m a b o a t r a q u i n i c e , mas t i n h a o coração m o l e .
Q u a n d o e n t r o u p e l a p r i m e i r a vez n a casa d a f a l e c i d a Zefa A minha poesia é compartimentada
M a n q u i n h a , d e u m a p e r n a só, e e n c a r o u o c r u c i f i x o d e é zorra na esquina
p e r n a q u e b r a d a , seus o l h o s e n c h a r c a r a m - s e d e lágrimas e minha poesia é marginal
b e n z e u . N a q u e l e coração a d o l e s c e n t e s e m p r e e x i s t i u u m a minhapoesia é -marginalporque tenta estudar biohgaEchumh^
c e r t a atracção p o r esse t a l Jesus C r i s t o . tentei estudar direito E caí no esquerdo
P i a n i s t a , d e p o i s d e o i t o meses p r e s o n a c a d e i a d e - coisa de dimta é oposição da esquerda -
R i b e i r i n h a , f o i i n t e r n a d o n a u n i d a d e dos d o e n t e s t e r m i - não me deram emprego porque fumaua padjinha
nais n o H o s p i t a l B a p t i s t a d e Sousa, esvaindo-se e m sangue. perdi a cidadania mas ganha a poesia margnal
H e m o r r a g i a s , d i a r r e i a , f e b r e , tosse convulsa e m a n c h a s p o r que me ataca comofebre de tuberculose
t o d o o c o r p o f a z i a m d e l e m a i s u m a vítima d a Sida. faço cultura alternativa quando bebo grogue
O Fusco e m b a r c o u n u m iate e n i n g u é m sabe o q u e bd)0, caio de borco, atinjo o nirvana
f o i f e i t o d e l e . P r o v a v e l m e n t e , estará g o z a n d o a v i d a c o m escrevo nas paredes das casas, no muro abandonado
a l g u m a m a n t e p e l o s m a r e s d o s u l , c o r t a n d o as o n d a s minha poesia é kamicase

OOD 209
MARGINAIS-
EVEL ROCHA

n a d a a v e r c o m o B e t o Vesgo travesso q u e a p a n h a v a d o s majestosas e b r a n c a s dos seus s o n h o s de infância. T o r ç o


outros. Q u e m diria que o p r i m o de o l h o torto, f o r n i c a d o r p a r a q u e sejas f e l i z d o t e u j e i t o , q u e sejas a m u l h e r q u e a
d e bestas, vacas e g a l i n h a s , o c a t a d o r d e tocos d e c i g a r r o , n a t u r e z a d e f r a u d o u , q u e consigas r e b o l a r sem c o m p l e x o s ,
o p i r a t i n h a d o p e l o u r i n h o , o f u m a d o r d e poff, o folião q u e sintas l i b e r t o dos p r e c o n c e i t o s , q u e o b t e n h a s aqueles
das farras d e t o u c i n h o c r u e d e tubarão n o v o , tornar-se-ia l o n g o s e f a r t o s seios c o m q u e s e m p r e sonhaste, q u e des-
n o irmão B e t o e n g r a v a t a d o q u e só falava b r a s i l e i r o ? N o s files e m a l g u m a manifestação e n v o l t o n u m a b a n d e i r a gay,
anos d e s l e i x a d o s e airosos, masturbava-se três vezes ao d i a t r a v e s t i d o d e m u l h e r c o m l o n g a s pestanas e botas até ao
e, a b r i n c a r , a m a l t a s u g e r i a - l h e q u e pedisse ao p a d r e q u e j o e l h o c o m o s e m p r e sonhaste, q u e vivas e m p l e n i t u d e a t u a
o casasse c o m os seus c i n c o d e d o s d a calosa m ã o d i r e i t a . h o m o s s e x u a l i d a d e , nas ruas d e Sidney, e m a l g u m cabaré
A m e i a - n o i t e , a h o r a e m q u e A n t ô n e E m b a l a d o caía n o d e A m e s t e r d ã o , mas vivas até m o r r e r !
p e s a d o s o n o , B e t o c o s t u m a v a saltar a c e r c a d o c u r r a l p a r a L e i a M a g r e z a m o r r e u vítima d e u m a lunática paixão
se servir d a vaca q u e m u g i a e m p r o t e s t o c o m o se estivesse a p o r u m a m o r p r o i b i d o . Leia f o i o aperitivo da m o r t e ! Há
c h a m a r p e l o d o n o . H o j e é u m h o m e m casado, u m chefe de j o v e n s q u e m o r r e m l o g o , mas a m o r t e fez questão d e d e l i -
família q u e vive h o n r a d a m e n t e , mas será q u e não se l e m b r a c i a r cada p a r t e d o seu c o r p o c o m o se d e g u s t a u m a p e r i t i v o
d o d i a e m q u e a p a n h o u u m t r e m e n d o susto a o s a b e r p a r a d e p o i s l h e a r r a n c a r a a l m a , d e s a l m a d a m e n t e . Lá o n d e
q u e a vaca d e E m b a l a d o estava p r e n h a ? E l e achava q u e estás, m e u m a n o , deves estar feliz p o r realizar t e u s o n h o d e
h a v i a f o r t e s p r o b a b i l i d a d e s d e o b e z e r r o nascer z a r o l h o , ser a c t o r e p s i q u i a t r a . D i z e m q u e n o céu os nossos s o n h o s
m e t a d e b o i e m e t a d e g e n t e . Só c o n s e g u i u descansar n o se t o r n a m r e a l i d a d e . Deves estar feliz p o r q u e p o d e s c o m e r
d i a e m q u e v i u c o m seus próprios o l h o s q u e o b e z e r r o e r a t u d o o q u e quiseres, p o d e s a b u s a r d o t e u a p e t i t e , graças
i n t e i r a m e n t e b o i . A p e s a r d o susto, não d e s i s t i u d o p r a z e n - à t u a t r i p a d e c o r v o c o m ligação d i r e c t a ; os anjos d e v e m
t e i r o b e s d a l i s m o , escudando-se n a v e l h a d e s c u l p a q u e Sal estar a m o r r e r d e t a n t o r i r c o m as tuas piadas.
era u m a i l h a q u e t i n h a mais h o m e n s que mulheres. Beto D o m a i o r p o e t a m a r g i n a l herdámos estes versos:
gostava d e u m a b o a t r a q u i n i c e , mas t i n h a o coração m o l e .
Q u a n d o e n t r o u p e l a p r i m e i r a vez n a casa d a f a l e c i d a Zefa A minha poesia é compartimentada
M a n q u i n h a , d e u m a p e r n a só, e e n c a r o u o c r u c i f i x o d e é zorra na esquina
p e r n a q u e b r a d a , seus o l h o s e n c h a r c a r a m - s e d e lágrimas e minha poesia é mmgnal
b e n z e u . N a q u e l e coração a d o l e s c e n t e s e m p r e e x i s t i u u m a minhapoesia é margmãporque tenta estudar biologia E chumbei
c e r t a atracção p o r esse t a l Jesus C r i s t o . tentei estudar direito E caí no esquerdo
P i a n i s t a , d e p o i s d e o i t o meses p r e s o n a c a d e i a d e - coisa de direita é oposição da esquerda -
R i b e i r i n h a , f o i i n t e r n a d o n a u n i d a d e dos d o e n t e s t e r m i - não me deram emprego porquefurruwa padjinha
nais n o H o s p i t a l B a p t i s t a d e Sousa, esvaindo-se e m sangue. perdi a cidadania mas ganhei a poesia marginal
H e m o r r a g i a s , d i a r r e i a , f e b r e , tosse c o n v u l s a e m a n c h a s p o r que me ataca comofebre de tuberculose
t o d o o c o r p o f a z i a m d e l e m a i s u m a vítima d a Sida. faço cultura aUemativa quando bebo grogue
O Fusco e m b a r c o u n u m iate e n i n g u é m sabe o q u e bebo, caio de borco, atinjo o nirvana
f o i f e i t o d e l e . P r o v a v e l m e n t e , estará g o z a n d o a v i d a c o m escrevo nas paredes das casas, no muro abandonado
a l g u m a m a n t e p e l o s m a r e s d o s u l , c o r t a n d o as o n d a s minha poesia é kamicase

9m
MARGINAIS

qv£faz explodir a ira do juiz corrupto a m i n h a adolescência. A q u e l a casa era u m m u n d o à parte.


meu nome não vem nos jornais por ser poeta margincd Brincávamos d e pai-e-mãe a sério e quase sempre F e r n a n d a
poeta menor era o m e u p a r Fazíamos brigas d e galo, guerra-de-cavalo,
contudo sou maior que Baltazar, que Valadares, que Tavares fumávamos j o r n a i s e n r o l a d o s , e n f i m , t o d o o nosso i m a g i -
e todos os poetas que têm cursinho nário f u n c i o n a v a e m p l e n o n a q u e l e l u g a r É incrível c o m o
porque dou voz aos marinais algumas coisas a i n d a g u a r d a m as mesmas características d e
eu sou poeta porque exponho a realidade como ela é há dez anos atrás. Se b e m q u e dez anos não são n a d a ! E r a
onde Deus não tem cara pintada suposto q u e as marcas de sangue n o passeio de N h ô T e o d o r o
e não se deixa amarrar nos altares sumptuosos tivessem desaparecido, mas a i n d a lá estão. São resquícios d e
minha poesia é rap, é arma que dispara u m a b r i g a feia e m q u e Pianista c o r t o u a o r e l h a d e Calú às
contra preconceitos dentadas, q u e p e r d e u m u i t o sangue. As m a n c h a s d e sangue
faziam-nos l e m b r a r u m m a p a d e tesouro. Essa g u e r r a f o i o
Só peço a Deus que me dê mais tempo de vida resultado d e u m a o u t r a g u e r r a : a g u e r r a d e cachorros. E u
para escrever poesia marginal! s e m p r e detestei c a c h o r r o s , p o r é m , P i a n i s t a orgulhava-se
d o seu bonzo, u m vira-lata seco mas raçudo. O c a c h o r r o d e
As ruas d a R i b e i r a a i n d a g u a r d a m as marcas d o pas- Calú parecia u m t o u r o e m m i n i a t u r a q u e babava exagerada-
sado. O n d e é a praça d a L i b e r d a d e f o i o u t r o r a o nosso m e n t e . Os dois rapazes tinham apostado f o r t e m e n t e n u m a
c a m p o d e f u t e b o l e, mais ao f u n d o , fica a s e n t i n a - a escola b r i g a e n t r e os dois cães e, c o m o d e costume, havia sempre
da vida d a sacanagem. u m a multidão d e curiosos q u e os espicaçava a t i r a n d o terra,
E n q u a n t o a n d o à d e r i v a n a escuridão d a n o i t e , vejo- b a t e n d o palmas e c u s p i n d o voluntareza. Bonzo, a certa altura,
-me criança, b r i n c a n d o d e polícia e ladrão, c o m os calções levava a m e l h o r , até Calú p r e n d e r - l h e o r a b o c o m os pés
rotos segurados p o r u m alfinete, c o n s t r u i n d o o destino. A d a n d o v a n t a g e m ao seu c a c h o r r o q u e e n t e r r o u as mandíbu-
b r i n c a d e i r a havia d e acabar n u m a b r i g a p o r u m a velha r o d a las n o pescoço d e bonzo. Pianista v i u o bonzo estirado n o chão
d e bicicleta. A b r i g a c h e g o u ao fim, q u a n d o m o r d i o braço resfolegando i n t e n s a m e n t e e, m a l c r i a d o c o m o era, lançou-se
d i r e i t o de A r t u r e f o i u m c h o r o dos diabos l o g o q u e v i u selvaticamente sobre Calú, Já cagaste n a m i n h a mão, man. A
sangue esguichando e m maré-alta, m a n c h a n d o a sua camisola. multidão a p a n h a d a d e susto, tentava tirá-lo d e c i m a d o m o ç o
Mamãe deu-me u m a sova, mas, e m compensação, reparei q u e e só conseguiu, q u a n d o R i c a r d o se l e v a n t o u c o m u m pedaço
havia u m a certa satisfação n o seu rosto p o r q u e d a q u e l a vez de o r e l h a e n t r e os dentes.
e u tinha levado a m e l h o r Cada e s q u i n a t e m histórias p a r a
A r u a d e f r e n t e era a única r u a calcetada. H o j e chama-
contar, gargalhadas despropositadas, f u t e b o l d e r u a , b u r a c o
-se R u a d e São João. V e j o - m e , através d e l a , c o r r e n d o d e
de fechadura, f u r t o s d e sucrinha e rebuçados, xavecos frustra-
E m b a l a d o . « T e n h o d e c o r r e r depressa, o d i a b o é v e l o z d e
dos, e n f i m . Passo p e l o c a m p o d e N h a T u d a e ouço mamãe
m a i s e, e n q u a n t o c o r r o , t e n h o q u e s e g u r a r os calções».
a c h a m a r - m e aos gritos. H o r a d o l a n c h e , d e i x a esse j o g o d e
Mais adiante, mamãe c h a m a p o r m i m para a ajudar a
demoniaria e vai lavar os pés... Pega a t r o u x a d e r o u p a , l i m p a
c o n t a r u m a m u d a d e r o u p a . M a n a B i a está atrás d a j a n e l a
o c a t a r r o d o n a r i z , v a i e s t u d a r . . . A l i , o n d e está a B o u t i q u e
e n t r e a b e r t a fazendo-me sinal q u e os pais não estão e m casa;
'^^endes e r a u m a casa e m construção q u e d u r o u quase t o d a
é h o r a d e b r i n c a r d e pai-e-mãe. N a e s q u i n a d a s e n t i n a .
MARGINAIS . EVEL ROCHA

e u e os p i t b o y s f a z e m o s p l a n o s p a r a a n o i t a d a q u e não
t a r d a . N a r u a de trás, vejo-me c o m os rapazes, r i n d o d a XXXV
r a p i d e z c o m q u e u m g a l o dá u m a g a l a d u r a a u m a g a l i n h a .
A q u e l e a l t o o n d e se e r g u e a i g r e j a apostólica é o m e s m o
o n d e e s c o n d i d o m u n d o , assustado. E s c o n d i d o m u n d o
i n t e i r o p o r t e r f u r t a d o pão n a p a d a r i a d e N h a Amélia. O
m u n d o i n t e i r o c h a m a v a - m e d e ladrão d e s c a r a d o e q u e e u
t i n h a d e levar p o r r a d a p a r a p ô r j u í z o , o u m e l h o r , d e v i a m
c o r t a r - m e as mãos p a r a a p r e n d e r a não m e x e r nas coisas
dos o u t r o s . M e u coração b a t i a q u e n e m u m t a m b o r d e São Todas as noites, depois de u m d i a atarefado, Apolinário
J o ã o . M e u s o l h o s h u m e d e c e m e n q u a n t o r e l e m b r o esse regressava a casa e, d e p o i s d e t o m a r u m b a n h o q u e n t e ,
triste episódio, aliás, as m i n h a s recordações são tão reais enrolava-se n o lençol e d o r m i a p r o f u n d a m e n t e . O cansaço
q u e o m e u c o r p o t r a n s p i r a suor, os g r i t o s d a vizinhança, d o a d v o g a d o e r a e v i d e n t e e d o n a Eufêmia mostrava-se
as g a r g a l h a d a s dos o u t r o s , os desaforos d e E m b a l a d o , as p r e o c u p a d a c o m o e m p e n h o d o m a r i d o . N u m a dessas
r e p r i m e n d a s d e m a m ã e , os l a t i d o s dos cães e d a multidão n o i t e s , ela r e s o l v e u i r levar u m c a f e z i n h o ao seu q u e r i d o e
e m alvoroço, d e i x a m - m e c o n f u s o e não sei se é r e a l o u se esforçado esposo e, p a r a seu desgosto, e n c o n t r o u u m o u t r o
é apenas recordação. h o m e m e m c i m a d o seu m a r i d o : d r A p o l i n á r i o estava d e
Nas esquinas d o m e u b a i r r o , a q u e l e m e n i n o q u e e u gatas a ser e n r a b a d o p e l o seu m o t o r i s t a . D o n a Eufêmia, sem
f u i aproximou-se de m i m , o l h o u - m e nos olhos e d e i x o u p e r c e b e r o q u e estava a acontecer, e m desespero de causa,
c a i r grossas lágrimas. O seu o l h a r r e f l e c t i a a frustração saiu g r i t a n d o p o r s o c o r r o . Estão a m a t a r A p o l i n á r i o , estão
e m saber q u e o h o m e m q u e e u s o u j á não tinha a m e s m a a m a t a r o m e u m a r i d o ! P o r favor, m i n h a g e n t e , v e n h a m
a l e g r i a d e v i v e r g u a r d a d o n a q u e l e coração d e m e n i n o . ajudá-lo antes q u e seja t a r d e .
Se e u pudesse v o l t a r n o t e m p o , se tivesse a p o s s i b i l i d a d e N u m á p i c e , as pessoas, c o m o c r e d o n a b o c a ,
de e n c o n t r a r aquele adolescente que f u i , ensinar-lhe-ia e n c h e r a m a praça d a Câmara M u n i c i p a l e, e m p o u c o
u m o u t r o c a m i n h o q u e não este calvário, m o s t r a r - l h e - i a t e m p o , o susto d e u l u g a r a d e b o c h e s : e r a u m s i m p l e s
as cicatrizes c o l h i d a s nesta v i d a e o fim q u e m e espera, e n c o n t r o a m o r o s o e n t r e dois h o m e n s . O escândalo despo-
convencê-lo-ia a a r r e p i a r o c a m i n h o d a r e v o l t a e a a p r e n d e r l e t o u c o m o u m r a s t i l h o de pólvora, l e v a n d o o a d v o g a d o ao
a engolir o peixe pelo rabo. i s o l a m e n t o , q u e d u r a r i a p o u c o t e m p o . O vício a t r a v a n c o u -
-Ihe o j u í z o e m o r r e u n u m desastre q u e até h o j e ninguém
s o u b e e x p l i c a r O j u r i s t a q u e c o n t o r n a v a a l e i e r e v e r t i a as
adversidades a seu f a v o r não c o n s e g u i u e n g a n a r a m o r t e .
D o n a Eufêmia, d e r r o t a d a p e l a desgraça, f o i m o r a r c o m
a filha e o n e t o e m P e d r a d e L u m e .
A m i n h a única tristeza n a m o r t e d o a d v o g a d o f o i não
t e r p o d i d o r e t r i b u i r - l h e a c u s p i d e l a de escarro n o pescoço
q u e a i n d a sinto c o m o f o g o a q u e i m a r a m i n h a pele.

01Q
MARGIN^JS EVEL R O C H A

A r i q u e z a e a reputação, a d q u i r i d a s d e f o r m a deso- a vestir r o u p a s novas, G e r t r u d e s d e i x o u de i r descalça à


nesta, são c o m o u m c u b o d e g e l o b r i l h a n d o n u m a manhã escola e o c o m e r c i a n t e esqueceu o prejuízo n a bolsa. C a d a
e n s o l a r a d a . C h e g a o m e i o - d i a e só resta a lembrança. vez q u e e u v i a o A m â n d i o a atravessar a p o r t a d a casa de
E l e m o r r e u , mas o u t r o s coronéis levantam-se p a r a Adélia, s e n t i a u m d e s a r r a n j o d e b a r r i g a q u e d u r a v a h o r a s
d e s e s p e r o dos m a r g i n a i s . até e u escutar o r o n c o d o c a r r o d o c o m e r c i a n t e a desapa-
recer n o f i m da rua.
A j a n e l a d o q u a r t o o n d e e u passava a m a i o r p a r t e d o
m e u t e m p o ficava n a direcção d a casa d e Adélia. P o u c o
t e m p o d e p o i s d a m o r t e d e Silvestre, e l a e n d i v i d o u - s e e
p e r d e u t o d o s os móveis d a casa. C h e g o u a a r r a n c a r os
p o r t a i s d e m o g n o p a r a p a g a r dívidas, c o l o c a n d o nos seus
lugares chapas de bidões. E l a fez-me r e c u a r ao t e m p o
q u e e u a a m a v a d e u m a m o r b r u t a l . Se a o m e n o s m e
desse a o p o r t u n i d a d e d e começar t u d o d e n o v o c o m ela,
d e f o r m a r m o s u m a família d e v e r d a d e ! E l a j a m a i s t e r i a
d e se h u m i l h a r d i a n t e dos c o m e r c i a n t e s o u d e q u a l q u e r
m a l i n t e n c i o n a d o , pois e u m u d a r i a a m i n h a e ávida dela.
M a s n ã o ! E l a d e s p r e z a - m e . F o g e d e m i m , ameaça-me e
e s c o n j u r a - m e . Q u a n d o v a g u e i o pelas ruas m o v i m e n t a d a s
d a Preguiça, v e j o pessoas a c e n a n d o , c a r r o s , m o t o s , n u m
a n d a r frenético, v e n d e d o r e s a m b u l a n t e s e transeuntes
e x a c e r b a d o s , p o r é m só o u ç o as r e p r i m e n d a s d e Adélia,
D r o g a d o , b a n d i d o , assassino, sem-vida, m a r g i n a l . . .
P o r favor, assim t u m a t a s - m e d e desgosto!
Então m o r r e ! Se m o r r e r e s a m i n h a f i l h a crescerá
n u m m u n d o b e m m e l h o r O l h a p a r a ti: és u m b a n d i d o
que ninguém q u e r p o r p e r t o .
A m â n d i o , u m c e r t o c o m e r c i a n t e d a praça, instava-a
p a r a p a g a r o q u e d e v i a o u e n t ã o e l a p e r d e r i a a casa, o
ú n i c o b e m q u e l h e restava. A m â n d i o visitava-a todas as
n o i t e s p a r a c o b r a r a dívida e os v i z i n h o s c o m e n t a v a m q u e
o pagamento era feito e m cima da cama que o finado
c o m p r o u , q u a n d o \'ieram d a B o a Vista. O q u e ela fazia e r a
u m a p o u c a - v e r g o n h a , u m p e c a d o sem p e r d ã o q u e p o d e r i a
não d a r descanso ao d e f u n t o . O c e r t o é q u e aquelas visitas
t r o u x e r a m u m p o u c o d e v i d a àquela casa. A d é l i a passou
EVEL ROCHA

XXXVI

Gertrudes era u m a criança de onze anos, tinha o rosto


m o r e n o a r r e d o n d a d o e os olhos negros reflectiam a saudade
q u e t i n h a de Silvestre. Volvidos dois anos após a m o r t e d o infe-
liz, a i n d a ela se postava nos cantos d a casa a c h o r a r p o r ele. À
tardinha, depois de vender pastéis de m i l h o e doces de leite, ia
a casa dos vizinhos ver televisão. Amândio esquadrinhava c o m
atenção os passos d a criança até o d i a e m que p e d i u à Adélia
para chamar a filha para d o r m i r c o m eles. O coração de Adélia
estremeceu de m e d o . A r r e l i a d a , p e d i u ao h o m e m q u e fosse
e m b o r a e n u n c a mais voltasse e, se fosse caso, entregá-lo-ia à
polícia. Mas nada o demovia das suas intenções de d o r m i r c o m
a filha d a sua amante, Tens de entender, Adélia, de qualquer
m a n e i r a ela irá oferecer-se a u m vagabundo q u a l q u e r Esta zona
é promíscua demais. E u pago o q u e f o r para q u e m e deixes
d o r m i r c o m ela p e l o menos u m a noite.
N ã o e r a essa a v i d a q u e e l a tinha e s c o l h i d o p a r a a
filha, mas não h a v i a f o r m a d e escapar à c u p i d e z d o c o m e r -
c i a n t e . N o s últimos dias, a filha a n d a v a a fazer-lhe a l g u m a s
p e r g u n t a s sobre sexo, falava-lhe d a v o n t a d e de t e r u m tele-
v i s o r g r a n d e c o m o o d e A m â n d i o , E u q u e r i a q u e mamã
m e c o m p r a s s e isso o u a q u i l o c o m o n a casa de A m â n d i o .
A f o r m a como Gertmdes pronunciava o n o m e de Amândio
demonstrava que havia u m a intimidade fora d o vulgar entre eles.
A m â n d i o a c r e d i t a v a q u e fazer a m o r c o m u m a v i r g e m
p o d e r i a sarar o e s q u e n t a m e n t o q u e o castigava. Essa doença
só p o d e ser destruída se e u t i v e r c o n t a c t o c o m u m a v i r g e m
p u r a q u e não f o i a i n d a t o c a d a p o r q u a l q u e r h o m e m . N ã o

9 1 7
MARGINAIS — — EVEL ROCHA

é q u e e u q u e r o abusar dela e n e m é c a p r i c h o d o c o r p o , d o martírio q u e a esperava. A m â n d i o e n t r o u e fez u m sinal


mas u m a necessidade. E u sei q u e não m e vais n e g a r este à A d é l i a q u e t u d o i a c o r r e r b e m . Adélia passou o r e s t o d a
favor. L e m b r a - t e , a m o r c o m a m o r se paga. Se e u m o r r e r n o i t e a c h o r a r s e n t a d a à mesa d a sala d e j a n t a r à espera
c o m esta d o e n ç a n i n g u é m irá vos ajudar. q u e o g r i t o d a filha r o m p e s s e o silêncio d a n o i t e , espe-
E l a estava c e r t a d e q u e , se n ã o aceitasse a p r o p o s t a rava e x p e c t a n t e q u e u m a fiada d e sangue r o m p e s s e p o r
d o c o m e r c i a n t e , este se d e s i n t e r e s s a r i a d e l a e p e r d e r i a o baixo da porta d o quarto, n o m o m e n t o em que o h o m e m
s u s t e n t o d a casa. A p e q u e n a G e r t r u d e s n u n c a disse à mãe, desflorasse a m e n i n a o u então q u e tivesse d e a r r o m b a r
mas A m â n d i o v i n h a assediando-a desde q u e começara a a p o r t a p a r a e x p u l s a r o h o m e m d e c i m a d a sua filhinha
f r e q u e n t a r a casa e ela achava graça às suas palavras a p i m e n - j á p a s s a n d o p a r a a m o r t e d i z e n d o . Mamã, não c o n s e g o
tadas d e m o t e j o s e mãos cheias d e rebuçados r e c h e a d o s d e resistir a t a n t a d o r ! As h o r a s d e s l i z a v a m l e n t a m e n t e n o
promessas t e n t a d o r a s d e v o l t a r aos b o n s dias d e q u a n d o r e l ó g i o n u m t i q u e t a q u e e n s u r d e c e d o r até q u e a d o r m e -
Silvestre estava vivo. c e u debruçada s o b r e a mesa. D e m a d r u g a d a , e l a a c o r d o u
Amândio Baptista aproveitou-se d a i n g e n u i d a d e da mãe e m sobressalto e i r r o m p e u n o q u a r t o o n d e A m â n d i o e
q u e a c e i t o u a i d e i a d e se tratar d e u m acto c u r a t i v o apenas. G e r t r u d e s estavam d e i t a d o s . O c o m e r c i a n t e d o r m i a u m
s o n o p e s a d o e r u i d o s o e a criança a i n d a estava a c o r d a d a ,
A d é l i a a c a b o u p o r c e d e r às pressões d e A m â n d i o e t e n t a n d o p e r c e b e r o q u e tinha a c o n t e c i d o . Adélia o l h o u
c o n c o r d o u e m d e i x a r G e r t r u d e s d o r m i r c o m ele e m t r o c a as nódoas d e sangue q u e se c o n c e n t r a v a m n o l u g a r o n d e a
d e u m c h e q u e q u e c o b r i r i a as despesas d e u m televisor e a m e n i n a estava d e i t a d a e c a i u d e j o e l h o s e m soluços s o b r e
p r o m e s s a d e c o n t i n u a r a ajudá-las. C o m os o l h o s afogados o r o s t o d a filha d e o l h o s v i d r a d o s c o n t e m p l a n d o o vazio.
e m lágrimas, adélia d e r r a m o u o coração ao c o m e r c i a n t e , Adélia levantou-se, l a m b u z o u as mãos n o sangue e m p a -
Q u e r o q u e m e p r o m e t a s q u e será apenas u m a n o i t e , q u e p a d o n o lençol e esfregou-as n a c a r a d o c o m e r c i a n t e q u e
isso n ã o irá r e p e t i r m a i s . a b r i u os o l h o s e, s e m d i z e r n a d a , levantou-se, c o l o c o u u m
Adélia c h o r a v a e o c o r p o t r e m i a . E l a sabia q u e , a p a r t i r c h e q u e sobre a mesa e a b a n d o n o u o q u a r t o .
d a q u e l a n o i t e , a sua f i l h a j a m a i s seria a mesma, T u d i n h a t e m Q u a n d o a miséria entra pela p o r t a a virtude sai pela janela.
apenas o n z e anos. P o r favor, não faças m a l à m i n h a m e n i n a . N o d i a s e g u i n t e , G e r t r u d e s j á n ã o se l e m b r a v a d a
A m â n d i o j u r o u pelos santos q u e seria a p r i m e i r a e a n o i t e e m q u e f o r a o b r i g a d a a se s u b m e t e r à c a p r i c h e i r a
última vez q u e se deitava c o m a G e r t r u d e s . A g i t a d o p e l a d e u m h o m e m s e m escrúpulos, e m q u e a sua h o n r a se
coceira i n f e r n a l n o seu c o r p o d e h o m e m , n a d a o d e m o v i a d a esvaíra e m sangue p o r q u e s o b r e a mesa d a sala estava o
ideia q u e só u m a moça i n o c e n t e , u m a v i r g e m p u r a , era capaz televisor, a c a i x a dos b o n e c o s q u e f a l a v a m e t i n h a r o u p a
de c o r t a r a doença sexual. J u r o q u e m e c u r a r e i d a doença e n o v a p a r a vestir n o d i a d a p r i m e i r a comunhão. A trajectória
vos d a r e i e m d o b r o t u d o o q u e m e p e d i r e m , disse Amândio. de G e r t r u d e s não é difícil d e se p r e v e r : c o m o os o u t r o s
E r a m dez h o r a s e m e i a d a n o i t e , q u a n d o o c o m e r - m e n i n o s , irá fracassar n a v i d a escolar, culpará os o u t r o s
c i a n t e c h e g o u n o seu c a r r o . Adélia h e s i t o u e m a b r i r a c o m o A d é l i a e e u fizemos n o passado, trocará a escola
p o r t a , mas, d e p o i s d e u m a c u r t a c o n v e r s a c o m G e r t r u d e s p e l a v i d a n o c t u r n a d e Espargos e Santa M a r i a , prostituirá
e d e esta t e r p r o m e t i d o à m ã e q u e se p o r t a v a b e m , a b r i u o c o r p o p o r q u e se sentirá excluída d o s p r o j e c t o s sociais,
a p o r t a . A p e q u e n a G e r t r u d e s não t i n h a a mínima noção será e x p l o r a d a e pagará o p r e ç o d e ser p o b r e e i n d i g e n t e .

219
MARGINAIS EVEL ROCHA

P r o v a v e l m e n t e , irá r e s p o n d e r ao t r i b u n a l p o r t r a n s g r e d i r
as n o r m a s d a c i d a d a n i a o u p o r c o m e t e r a l g u m c r i m e . Essa
visão se cumprirá p a r a desviar a atenção d a opinião pública
XXXVII
d e o u t r o s c r i m e s c o m e t i d o s p e l o s coronéis, o p e r a d o r e s
turísticos, g o v e r n a n t e s c o r r u p t o s , t r a f i c a n t e s d e m e n o r e s
e d o vício - esses são os v e r d a d e i r o s m a r g i n a i s .
M ã e e filha abraçaram-se e, resignadas, e n c o l h e r a m
os o m b r o s . A m b a s e n g r a v i d a r a m - s e n a m e s m a s e m a n a d o
mesmo h o m e m .
E r a necessário t o c a r a v i d a p a r a fi"ente. N o v e h o r a s d a n o i t e . A música natalícia v i n d a d o s
lados d a Praça d e L i b e r d a d e a c o r d o u - m e . D u r a n t e a t a r d e ,
a n d a r a m p o r aí a c o n v i d a r as pessoas d a r e d o n d e z a p a r a
p a r t i c i p a r e m d o N a t a l dos C a r e n c i a d o s . N u n c a antes t i n h a
o u v i d o u m a m e l o d i a tão a n g e l i c a l c o m o aquela; ouço vozes
d e crianças, d e j o v e n s e a d u l t o s c a n t a r i d o « n o i t e d e p a z » .
A h ! C o m o e u q u e r i a t e r paz neste m o m e n t o !
M e i o descambado, fiai tacteando p a r a a b r i r a p o r t a e
aproveitar a claridade das luzes de natal q u e enfeitavam a r u a .
O único agasalho q u e e u tinha era u m casaco de lã q u e B e t o
m e oferecera. H a v i a u m a semana q u e sentia u m a f o r t e d o r
n o p e i t o a c o m p a n h a d o d e febre e tosse. A tuberculose v o l t o u
a atacar-me e a v o n t a d e d e snifar era cada vez mais intensa.
N a t a l é t e m p o d e presentes. O m e u m e l h o r p r e s e n t e
era conseguir desaparecer n o t e m p o .
C o m o u m v e l h o tísico, fragilizado pela dor, não consigo
c o o r d e n a r os meus m o v i m e n t o s , não t e n h o forças para vencer
a tristeza q u e m e envolve n a solidão d a n o i t e , m i n h a s vísceras,
m e u o r g a n i s m o g r i t a m n u m fragor e n s u r d e c e d o r pela droga.
Talvez e u mereça o golpe de misericórdia de u m a dose cavalar,
d o c o r t e d e u m a lâmina n o pulso, de u m tiro n a cabeça.
Sinto que chegou o fim, é hora de buscar essa paz que cantam
lá fora. Fecho os olhos e vejo os astros a brilhar, vejo u m a estrela
f l % u r a n t e e as nuvens prateadas que parecem aiijos que cantam
pela paz e a m i n h a alma anseia p o r demais pelo sol de etemo fiilgor
que, certamente, iluminará os meus passos n o além...

oon
EVEL ROCHA

Sérgio morreu poucos dias depois de me entregar estes manus-


critos. Foi encontrado morto sobre a cama com um corte no pulso
e, entre os dedos sujos de sangue, um poema escrito a lápis:

N o princípio e r a a corrupção e a corrupção e r a deus.


A corrupção estava n o princípio c o m deus.
Todas as coisas f o r a m feitas p e l a corrupção
E s e m ela, n a d a d o q u e f o i feito/^e fez^'.

Apesar das duras críticas e das piadas corrosivas, Adélia decidiu


levar comigo Gertrudes para o enterro de Sérgio PitbuU. No momento
em que se preparavam para descer o esquife nos sete palmos de terra, ela
pediu que abrissem o caixão. O pouco mais de uma dezena de presentes,
sobressaltado com o pedido da jovem mãe, recuou epôs o rosto de lado,
tapando o nariz, enquanto mãe efilha contemplavam o rosto decomposto
do defunto. Com a voz pesada e húmida, ela disse àfiUia:
- O que eu vou te dizer é muito duro, mas tenho certeza que vais
compreender que tudo o que fiz foi para o teu bem. Viemos até este
lugar porque já não aguento mais guardar isso dentro de mim. Passa
a minha vida a afastar este rapaz de ti porque eu tinha medo que
descobrisses quem ele era. Meu coração de mãe e o respeito e a admi-
ração que eu tinha por Silvestre fez-me tomar a decisão de te mostrar
que ele era uma má influência. Há onze anos atrás, fui levada pelos
meus tios para Boa Vista para esconder a minha gravidez, eu tinha
apenas doze anos. Silvestre (que Deus o tenha!) deu-te o seu nome,
mas é este o teu verdadeiro pai, o Sérgio do Rosário Araújo.
O grito solitário e amargurado de Gertrudes encheu o cemité-
rio e tocou o coração de todos que, penosamente, lacrimejavam não
se sabe se por Sérgio ou se pela saudade que a menina espelhava
no seu choro inocente.
11 Paráfrase de S.João 1: 1-3.

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