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As memórias
d o sol d e s c a r a d o a c a m i n h o d e T e r r a B o a e P o ç o V e r d e
c o m o b a r r i l , único b r i n q u e d o a sério a q u e tive d i r e i t o , as
in\estidas d o v e n t o e n d i a j j r a d o , e m r e d e m o i n h o , (jue ía/ia
dançar a p o e i r a , m a q u i l h a n d o o m e u r o s t o p r e n s a d o d e
d i f i c u l d a d e s , o sal d a m a r e s i a q u e da\ g o s t o à m i n h a p e l e
o m a r q u e e n c h i a m e u s o l h o s e o céu d a i l h a , p o r o n d e os
m e u s s o n h o s alados i n v a d i a m o i n f i n i t o , f o r a m m e u s com-
p a n h e i r o s p o r t o d a a v i d a . C o m eles construí o m e u des-
t i n o p o r q u e não sabia d e o u t r o s c a m i n h o s .
A m i n h a infância f o i cercada de situações grotescas, de mistc
rios n u n c a des\endados, de i n t r i g a n t e s a c o n t e c i m e n t o s , de
gentes semianalfabetas q u e mais p a r e c i a m peças d e u m a
e n g e n h a i ia m a l acabada. C o n t u d o , divertia-me i m e n s o ,
apesar dos castigos sc\eros da m i n h a mãe e da censura d a
sociedade. F u i feliz e n q u a n t o p u d e . Poucas crianças de hoje
sabem o q u e é m o n t a r u m p o r c o b u l h e n t o . ser p e r s e g u i d o
p o r u m bêbado e n d e m o i l i n h a r l o . o u m e s m o c o r r e r atrás de
u m c a r r o e p e n d u r a r iií) pár<i-chocjues. I^i i i u ar de ^<mãos-a<
alto», o u perseguir u m marcha-cacaia.
EVEL ROCHA
J u l h o 2010
mãe S^^/rí/:(/^ytjiáe^e axi nirit^ m^mx^i^/>el
F i c h a Técnica
J u l h o de 2010
T i r a g e m : 1.000 exemplares
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MARGINAIS • EVEL ROCHA
vida, reflexões feitas no leito da enfermidade, nos momentos mais - Gostaria que o senhor lesse este documento e o guardasse
difíceis em que perdera toda a esperança de sobreviver à doença que por mim. Não sei se alguém mais quererá ler isso, mas para mim
o atormentava. Fomos colegas no Liceu Olavo Moniz, o Externato tem um valor inestimável. Nestas páginas consegui afogar muita
para os mais antigos, mas, por imposição do Destino, como fazia mágoa e se não morri antes foi por estar com a mente ocupada
questão de salientar, tivemos sortes diferentes. nestas anotações. Por algum tempo, consegui anestesiar a angús-
Embora a minha vivência com ele tivesse sido limitada aos muros tia que me engole, desgraçadamente. Aqui, procuro descrever os
do liceu e, raras vezes, aos encontros recreativos de Espargos, eu reconhecia dois mundos onde vivi comprimido: o mundo da pobreza e o dos
nele uma inteligência que as vicissitudes da vida não puderam apagar abastados, como alguns o chamam, mas para mim são o mundo
Como uma boaparte das crianças daperiferia, cresceu na rua e a suei dos exploradores e o dos explorados. O senhor é a única pessoa
personalidadefoi cinzelada pelas leis estereotipadas da sociedade. Tomou-se que me pode ajudar. Se achar que vale a pena publicá-las, faça-
um revoltada, um marginal, conslruindo-se a si própno contra tudo o -0, senão, rasgue-as ou queime-as. Há muito tempo que desejava
que é convencimal, rejeitando a censura e exaltando o ódio, negando os encontrar-me consigo para conversarmos, mas como o senhor
preceitos da religião efomentando o seu próprio isolamento contra tudo engenheiro é um homem muito ocupado, fui escrevendo essas
o que é normalmente acate pela sociedade. A sua condição de marginal anotações que agora lhe entrego. Por favor, senhor, gostaria que
roubou-lhe afaculdade de desenvolver novas afeições. desse uma vista de olhos nesses manuscritos. - Tentei várias vezes
No nosso primeiro contacto, quis que se sentisse à vontade e dissiudi-lo para que não me chamasse de senhor, mas ele apenas
estava na disposição de ajudá-lo em tudo o que fosse necessário. sorria, desajeitadamente, e continuava a falar
Sérgio apenas queria que eu fosse com ele ao lugar onde dormia Sérgio tinha o rosto salpicado de svxyre respirava com dificuldades.
porque tinha algo de importante para me mostrar, mas as minhas Este é o livro que muitos jovens deste país gostariam de ter
ocupações não me deixavam tempo. escrito. A caligrafia perfeita, as frases construídas de uma forma
O que de importante um jovem doente, andrajoso e solitário, escorreita reflectem uma certa intimidade que Sérgio tinha com
um marginalizado poderia ter para me mostrar? a escrita. A princípio, pensei em publicá-lo como estava, porém,
Acicatado pela sua contumácia, apressei-me em atender o devido à linguagem, à abundância de calão e termos que pode-
seu pedido. Adiei alguns compromissos para estar com ele no seu riam chocar os mais refinados, tomei a iniciativa de substituir
quarto e, provavelmente, não teria mais oportunidades, pois, o seu algumas passagens de modo a não perder o sentido das frases.
estado de saúde inspirava cuidado e poderia a qualquer momento Alguns trechos foram suprimidos por serem demasiado realistas
cair morto nas ruas de Espargos. e por descreverem factos que poderiam pôr em causa a dignidade
O seu quario, um compartimento mofo, com cheiro forte efétido de muitas pessoas da ilha.
de nicotina, de paredes com nódoas de fumo, que cobriam grande Os apontamentos deste jovem fazem-me lembrar a atitude
parte de um desenho tosco de uma folha deganja, e cortes de revistas religiosa expressa de forma errónea por muitos devotos ao culto
amarelecidas, tinha uma cama e um mocho que servia de banquinha, da própria personalidade, que se escondem atrás do manto da
uma boba de viagem e um caixote de onde tirou uma pilha de papas fé para satisfazerem seus caprichos, confundem a benevolência
engordurados, escritos à mão e enumerados. Tive dificuldades em e a compaixão com afecto e se desprendem do acto de pensar
entender o que dizia, na sua voz submersa pelo guinchar tuberculoso em nome da quietude da mente infinita. Enquanto o homem,
que lhe subia do estômago, dificultando a minha percepção. Mas, cheio de intenções, obcecado pelo desejo de realização própria,
aos poucos, entendemo-nos. insistirem confundir o interesse próprio com os da colectividade,
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N a r u e l a p o e i r e n t a e m o n ó t o n a , c o m os pés ruços
e descalços, descansávamos d e u m a e x t e n u a n t e p a r t i d a
d e f u t e b o l sob o sol a b r a s a d o r d o m e i o - d i a . M e u d e d ã o
d o pé d i r e i t o e s t o r t e g a d o p a r e c i a não r e s p o n d e r à v o n -
t a d e d e c o r r e r u m p o u c o m a i s atrás d a b o l a . T o d o s os
dias, d u r a n t e t o d a a m i n h a infância, servíamo-nos d a t r a n -
q u i l i d a d e d a r u a p a r a d a r vazão ao imaginário d o nosso
p e q u e n o m u n d o . E n t r e b r i g a s e gracejos, m o r d e n d o a
p o e i r a , e n t r e vaias e aplausos, e s f o l a n d o a p e l e a c o b r e a d a ,
e n f i m , conseguíamos e m p u r r a r a b o l a p a r a d e n t r o d a baliza
d e p e d r a s . Batíamos c o m o autêndcos heróis. O m o m e n t o
mais sublime d o j o g o era sempre i n t e r r o m p i d o c o m o
b r a d o d a m a m ã e a c h a m a r - m e p a r a os afazeres de casa.
A p e s a r dos r e s m u n g o s e p r o t e s t o s , lá i a e u r e s p o n d e r à
c h a m a d a . M e u irmão m a i s v e l h o t r a b a l h a v a c o m o a j u d a n t e
d e m e c â n i c o e e u estudava à t a r d e n a escola primária d a
E s c o l a N o v a . A n t e s d o s j o g o s , t i n h a d e a j u d a r e m casa,
e s t u d a r e l i m p a r o c h i q u e i r o e só d e p o i s estaria l i b e r a d o
p a r a a l i m e n t a r o m e u s o n h o d e ser u m a g r a n d e estrela d e
f u t e b o l . E u não e r a m e n i n o d e u m s o n h o mas d e m u i t o s
s o n h o s . M a m ã e t i n h a seu s o n h o também: q u e r i a q u e e u
fosse a d v o g a d o p a r a m e t e r m e u p a i n a c a d e i a e casar c o m
a f i l h a d o d o u t o r A p o l i n á r i o . E r a difícil p a r a m i m c o n j u -
gar estes d o i s s o n h o s , o d e estrela d e f u t e b o l e a d v o g a d o ,
p o r isso tinha d e c a p r i c h a r nos d r i b l e s e d e m e p e n d u r a r
n o s l i v r o s . D e pés descalços, c o m os calções r e m e n d a d o s ,
g r o s s e i r a m e n t e , e u m a c a m i s o l a , q u e só d e s p i a q u a n d o
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o u t r o s , q u e i a m viajar, p a r a se l e m b r a r e m d e d a r u m b o m
e x p e d i e n t e e não e s q u e c e s s e m d o s q u e f i c a v a m e q u e
n e c e s s i t a v a m d e u m a n o i v a p r e n d a d a . N h ô César, p o r
III
e x e m p l o , casou s e m c o n h e c e r a n o i v a . F o i u m c a s a m e n t o
p o r procuração q u e quase acabava n o p r i m e i r o e n c o n t r o .
Q u a n d o J u l i a n a , v i n d a d e São N i c o l a u , e n t r o u n a sala d e
d e s e m b a r q u e , desejosa d e c o n h e c e r o m a r i d o , c a i u d e
costas ao ver q u e N h ô César e r a f e i o , d e s e n x a b i d o e. A i n d a
p o r c i m a , a n d a a a t i r a r c o m u m a p e r n a ! , e x c l a m o u ao
a c o r d a r d o d e s m a i o . A f o r t u n a d a m e n t e , a i n d a h o j e estão P e r t e n c e r aos Pitboys e r a o m e s m o q u e r e c e b e r u m
casados, felizes e sem c h i f r e s p e l o m e i o . c e r t i f i c a d o de emancipação à repressão dos pais e dos a d u l -
T a l c o m o N h ô César, p a p a i f o i b u s c a r n o i v a e m São tos q u e n o s r o d e a v a m ; era u m a f o r m a d e d e f e n d e r a nossa
N i c o l a u . M a m ã e c r e s c e u a c a t a r l e n h a nas m o n t a n h a s i n t e g r i d a d e , o n d e expúnhamos a nossa cólera sem m e d o
d e São N i c o l a u e c o m apenas dezassete anos amigou-se dos o u t r o s , o n d e enunciávamos t o d a a nossa c r u e l d a d e
c o m p a p a i , e n t u s i a s m a d a c o m a i d e i a d e v i r m o r a r n o Sal de m o d o a n o s v i n g a r m o s d a rejeição social. T o d a a nossa
e f o r m a r a sua p r ó p r i a família c o m o a c o n t e c i a c o m as r e v o l t a t i n h a apenas u m alvo: a intolerância. N o seio d o
m e n i n a s d a sua i d a d e . E l a o u v i a d i z e r q u e a I l h a d o Sal g r u p o o m e d o ficava d e f o r a . N i n g u é m , e n q u a n t o estivesse
e r a a H o l a n d i n h a das i l h a s , t e r r a d e t r a b a l h o e d e s a b u r a . n o g r u p o , d e v e r i a d e m o n s t r a r q u a l q u e r s i n a l d e fraqueza.
N a a l t u r a , v i v i a c o m a mãe e m a i s d o z e irmãos. M e u avô O c h o r o , a submissão e o m e d o e r a m sinais d e f r a q u e z a
p a t e r n o m o r r e u d e icterícia, mas, m u i t o s anos antes, f o r a e n e n h u m d e nós estava n a disposição d e passar p o r t a l
d a d o p o r inútil ao d e s p e n c a r c o m u m a m u l a m o n t e a b a i x o a f r o n t a . E r a necessário e n c a r a r o p e r i g o c o m d e s p r e z o e
a c a m i n h o de C o v o a d a . M a m ã e não teve a sorte de J u l i a n a . c u s p i r n a cara d o m e d o , era necessário d e m o n s t r a r r e v o l t a
E l a t i n h a f e i t o t u d o p a r a s e g u r a r o seu h o m e m , t r a b a l h a v a p o r t u d o o q u e fosse r e g r a e b o m c o m p o r t a m e n t o , p o i s , as
p a r a l h e s u s t e n t a r os vícios, fazia j o g o d e c i n t u r a , c o r t a v a pessoas o l h a v a m - n o s c o m d e s p r e z o e devíamos r e t r i b u i r -
o m e i o p a r a fazer p o n t a , l o m b a v a d e sol a sol c o m o u m a Ihes desprezo também. U m a das p r i m e i r a s m e d i d a s f o i q u e
escrava, r e c o r r i a aos c u r i o s o s , f a z i a s a l a m a l e q u e s , m a s c a d a u m elegesse u m í d o l o q u e reflectisse o s e n t i m e n t o
nada serviu para convencer Dadejo, m e u pai. Ela olhava d o g r u p o . U m g r u p o é u m a t r i b o m o d e r n a c o m rituais
p a r a p a p a i c o m o l h o s d e u m a criança m i r a n d o u m d o c e . b e m d e l i n e a d o s . R a s p a d e i r a f o i e x p u l s o dos Pitboys p o r t e r
A m a n e i r a c o m o falava d e l e fazia-me l e m b r a r os c o n t o s d e s u g e r i d o q u e tomássemos C r i s t o c o m o nosso í d o l o . E r a
fada n a sua voz m e l i f i c a d a de paixão. Mamãe levava p o r r a d a d e u m a l e v i a n d a d e indescritível p e n s a r u m a coisa dessas.
e, e m silêncio, o u v i a d e s c o m p o s t u r a s dele, q u a n d o e n t r a v a Para m i m , C h e G u e v a r a s i m b o l i z a v a t u d o . A sua revolução
c o m o n u m pé-de-vento q u e b r a n d o t u d o o q u e e n c o n t r a v a e r a c o n t r a as classes d o m i n a n t e s , c o n t r a o i m p e r i a l i s m o
p e l a f r e n t e sem q u a l q u e r m o t i v o . E l a c h o r a v a c o m o u m a e a d o m i n a ç ã o . A m e u ver, a i l h a d o Sal está i n f e s t a d a d e
criança, mas l o g o e n x u g a v a os o l h o s e fazia t u d o c o m u m sanguessugas, coronéis q u e só p e n s a m n o v i l m e t a l e c u l -
e n t u s i a s m o indescritível p a r a a g r a d a r ao seu h o m e m . t u a m o desprezo pelos m a r g i n a l i z a d o s . A i l h a precisa de u m
l i b e r t a d o r , não de u m actor religioso q u e se d e i x a c r u c i f i c a r
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MARGINAIS
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EVEL ROCHA
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MARGINAIS , , . EVEL ROCHA
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A H
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pénis majestoso, a boca de u m cantor de rap se c o n f u n d i a c o m um buraco negro nos olhos de Deus
o sexo ameaçador d a m u l h e r , disposto a e n g o l i r o m u n d o à Eu sei do meu final
sua volta. O grafismo n a p a r e d e parecia ter vida. Pichávamos quando eu morrer
as paredes dos h o m e n s grandes, dos coronéis, e as impressões todos dirão: menos um marginal
ficavam lá, pois, ninguém p o d i a m a n d a r - n o s ficar calados.
Já não e r a necessário r o e r as u n h a s o u coçar a cabeça p a r a Quem inventou as grades não sabe o que é sofrer
aliviar a emoção glandular. Se estivesse d e p r i m i d o , dava u m a não experimentou o veneno das ruas na penumbra
cacada d e p e d r a à m o n t r a d e u m a loja e fugia. H á m e l h o r nem o gosto do pão que o diabo amassou!
t e r a p i a d o q u e q u e b r a r os v i d r o s d e u m a m o n t r a n u m país Quem inventou a lei não precisa dela
o n d e os filhos dos pobres são excluídos e a discriminação é tem sifrão E barriga cheia
estimulada? É necessário vandalizar os interesses d a burga, por isso luto pra sobreviver
que enriquece facilmente, p a r a q u e o estado possa o l h a r para Eu sei do meu final
nós, os marginalizados; é necessário vandalizar o património quando eu morrer
dos coronéis d a i l h a , c o n q u i s t a d o à custa dos fracos, p a r a todos dirão: menos um marginal.
q u e c h o r e m d e raiva c o m o nós chorámos p o r u m pedaço d e
pão e pelos nossos direitos. As paredes das casas f o r a m feitas M a n u e l A n t ó n i o c o s t u m a v a d i z e r q u e p r e f e r i a nascer
p a r a q u e pudéssemos desabafar a d o r q u e nos a t o r m e n t a v a m o r t o n a A m é r i c a a t e r d e viver n a penúria dos dias d e
a a l m a ; m o s t r a r t o d a a nossa arte c o m desenhos e palavrões miséria nestas i l h a s . Miséria é u m a p a l a v r a m u i t o f o r t e e
aos d o n o s d a i l h a q u e c o n d u z e m o nosso destino, p a r a q u e i n c o m o d a m u i t a g e n t e , p o r é m , não existe t e r m o m e l h o r
sintam o nosso desprezo pelas suas leis e a violência endémica p a r a c a r a c t e r i z a r o d o l o r o s o r i t u a l d o s rapazes, d e a m b u -
q u e n o s afectavam atrás d o s seus olhares safados. V e n d e r l a n d o pelas r u a s d e E s p a r g o s , d e s d e Chã d e F r a q u e z a ,
charros, ser m o ç o d e brigas, u m Pitboy dos maus, ladrão d e p a s s a n d o p o r H o r t e l ã e A l t o d e Saco, S a n t a C r u z até
f r u t a . . . é m u i t a m a l d a d e , mas u m a m a l d a d e necessária, u m a A l t o São João, p r o c u r a n d o u m m e i o d e s u s t e n t o . M a n u e l
m a l d a d e d e sobrevivência. A n t ó n i o , c o m o das o u t r a s vezes, tinha i d o catar b a g i n h a ' '
p a r a a l i m e n t a r a estúpida vaca d o seu p a i . Ele t r e p a v a às
Eu sei do meu final acácias c o m o u m m a c a c o o b s t i n a d o e, e n q u a n t o c o l h i a as
quando eu morrer b a g i n h a s , s a l t a n d o d e g a l h o e m g a l h o até e n c h e r o saco,
todos dirão: menos um marginal! c h u p a v a as m a i s r e c h o n c h u d a s , a m a r e l a d a s e p i n t a l g a d a s
um golpe de sorte de caca d e m o s c a d e vareja. A f o m e e r a t a n t a q u e ele e n g o -
pra engordar a triste estatística l i a a casca e as s e m e n t e s até o d i a e m q u e l h e p r o v o c a r a m
não sou filho de burguês u m a obstrução i n t e s t i n a l . M a n u e l A n t ó n i o não c o n s e g u i a
criado com leite E energia moral desovar. D e r a m - l h e chá d e seno, p u r g a n t e , l a x a n t e e, c o m o
escola particular, universidade d 'europa não p o d i a aliviar o v e n t r e i n c h a d o e l u z i d i o , v o m i t a v a t u d o
sou apenas um vagabundo o q u e i n g e r i a . A n t e s d e ele ser e v a c u a d o p a r a P o r t u g a l ,
sou um vira-lata d ^olhos raiados é r a m o s a c o r d a d o s p e l o s seus g r i t o s d e d o r e a g o n i a .
com ódio nos poros 3 Baginha: diminutivo de vagem, Fruto da acácia.
MARGINAIS EVEL ROCHA
Passados d o i s meses, r e g r e s s o u à t e r r a c u r a d o d o m a l das ter que engolir poeira e ar seco, engolir o desprezo dos olhares
b a g i n h a s e, n u m português fastidioso, descrevia as m a r a v i - desconfiados e acusadores, recalcados de ódios, ter que adiar
lhas lusitanas, o s t e n t a n d o u m sorriso l a r g o q u e contrastava o p l a n o de assaltar a loja d o vizinho e n q u a n t o o estômago grita
c o m o seu a n d a r p e n i t e n t e e r e q u e b r a d o pelos efeitos dos p o r comida. As pessoas especulavam que tínhamos u m esconde-
m e d i c a m e n t o s e d a operação a n a l . R a p i d a m e n t e , passou a rijo o n d e guardávamos o p r o d u t o dos roubos. Era t u d o falso,
ser c o n h e c i d o p o r M a n é B a g i n h a . D e p o i s d e se r e c u p e r a r roubávamos para matar a f o m e n o m o m e n t o .
d o p r o b l e m a , Mané B a g i n h a resolveu dar u m a demons- B e t o ficou c e g o d e u m o l h o p o r t e r e s c o n d i d o u m a
tração d e q u e estava c o m p l e t a m e n t e c u r a d o . E p a r a q u e maçã d e b a i x o d a camisa. A p r o v e i t a n d o a confusão d a h o r a
t o d o s os m o r a d o r e s d a Preguiça não tivessem dúvida, s u b i u d e p o n t a de u m m i n i m e r c a d o , ele desceu a mão n o caixote
à t o r r e d a i g r e j a d e S a n t o A n t ó n i o e a r r i o u as calças. N u m d e f r u t a s e e s c o n d e u u m a maçã d e b a i x o d a c a m i s o l a . A o
i n s t a n t e , o p a d o d a i g r e j a f e r v i l h a v a d e pessoas q u e p a r e - sair p e l a p o r t a a p i n h a d a d e g e n t e , tropeçou n o c a i x a e a
c i a m divertir-se c o m o p r e s u n t o c a i n d o d o céu. maçã r o l o u p e l o chão. O e m p r e g a d o d a l o j a s a l t o u p a r a
C h a m e m N h ô padre! Mané Baginha está a cagar d a t o r r e ! c i m a d e l e , e n c h e u - o d e p o r r a d a ; d e u - l h e u m a trochada d e
N o d i z e r d e L e i a , D e u s c r i o u o m u n d o e n o sétimo soco n o o l h o e s q u e r d o e a r r a s t o u - o p a r a a r u a , x i n g a n d o
d i a descansou. N o oitavo d i a c r i o u o i n f e r n o . E n q u a n t o a sua mãe. B e t o l e v o u , mas não d e u u m s u s p i r o de d o r ,
criava o i n f e r n o , a l g u m a s fagulhas caíram n a t e r r a e d e r a m a g u e n t o u a a f r o n t a d o c a i x e i r o desalmado e das pessoas q u e
o r i g e m a estas i l h a s p e r d i d a s n o m a r . c u s p i a m n e l e os seus o l h a r e s d e d e s p r e z o . D e s c a m b a d o ,
N a escola o u e m q u a l q u e r lugar tínhamos u m tratamento ajudei-o a e n d i r e i t a r - s e . D e s p i u a c a m i s o l a p a r a e n x u g a r o
diferenciado e m relação aos filhos dos engomados que exer- o l h o e n s a n g u e n t a d o e i n c h a d o f e i t o u m t a m b o r . Passámos
c i a m cargos de destaque n a zona d o A e r o p o r t o . N o f i n a l d o a t a r d e i n t e i r a n o b a n c o d e urgências e não d e u e m n a d a .
a n o tínhamos as notas mais baixas. Nós nascíamos c o m a m a r c a O e n f e r m e i r o de serviço, sem o l h a r p a r a nós, r o s n o u . Sem
d a besta, carregando a sina d o fracasso n a escola. Não faltava p a p e l d e polícia não e n t r a s a q u i . T e r p a p e l de polícia sig-
alguém para nos l e m b r a r d a nossa condição e, b e m cedo, co- n i f i c a v a mais t o r m e n t o . B e t o p r e f e r i a m o r r e r a t e r de se
mecei a odiar todos aqueles q u e f e r i a m a m i n h a integridade. a b e i r a r d a E s q u a d r a . O seu r o s t o p a r e c i a u m a b e x i g a d e
A escola, o tão apregoado c e n t r o de c o n t i n u i d a d e d o processo p o r c o i n c h a d a , vazando sangue e lágrimas. D e s o r i e n t a d o e
d a socialização, não passa de u m centro autoritário, u m c a m p o só, sem o c o n s o l o d e alguém dá família, ele passou a n o i t e
de concentração que exerce a violência selectiva sobre os desfa- ao r e l e n t o , a n d a n d o às a p a l p a d e l a s , c h o r a n d o p e l a mãe,
vorecidos e esquece que cada d i a nas nossas vidas é u m m a r c o c u r t i n d o a d o r e desejando a m o r t e .
de sobrevivência. A escola ensinou-me que sou u m indivíduo
incapaz e predestinado a ser r u i m . Os professores não fezem ideia
d o que é i r à escola de estômago vazio, de ter q u e aturar cinco
aulas de bombardeamento de inutilidades, enquanto o estômago
troveja, de ter que enfrentar u m a t u r m a de preconceituosos e
b e m comportados e de lutar c o n t r a o próprio pensamento q u e
insiste e m planear u m furto para enganar a fome. O m u n d o não
sabe o que é passar à frente de u m a m o n t r a c o l o r i d a de doces e
EVEL ROCHA
B e t o t i n h a d i t o q u e o p a i m o r r e r a n a estiva c o m a
cabeça e s m a g a d a p o r u m c o n t e n t o r , q u e se d e s p r e n d e r a
d e u m g u i n d a s t e , e q u e a mãe m o r r e r a d e m o r t e esquisita.
Ele e r a u m m e s t r e n o c h o r o , t i n h a as lágrimas n o c a n t o d o
o l h o . A f o r m a c o m o c o n t a v a a história c o m o v i a q u a l q u e r
u m . O ú n i c o o l h o q u e f u n c i o n a v a sobressaía d o r o s t o
c o m o u m a b o l a d e b e r l i n d e r a i a d o d e sangue, a cabeça
d e c o t o n e t e e as o r e l h a s d e b o r b o l e t a f a z i a m l e m b r a r
as c a r i c a t u r a s d o s j o r n a i s . E l e c h e g o u à i l h a d o Sal n u m
ferry-boat, v i n d o d e São V i c e n t e , d o r m i a n u m a casa m a l
acabada e sem tecto, q u e havia anos fora a b a n d o n a d a
p e l o d o n o q u e e m i g r a r a . Metia-se n u m bidão e cobria-se
c o m sacos d e nylon p a r a se p r o t e g e r d a acérrima g e a d a d e
m a d r u g a d a . O l u g a r o n d e ele p e r n o i t a v a estava c h e i o d e
correspondências rasgadas. Através dos selos e u p o d i a ver
q u e e r a m cartas v i n d a s d e quase t o d o s os cantos d o m u n d o
e n e n h u m a delas e r a e n d e r e ç a d a p a r a ele.
Bi, Beto, estas cartas não são para tí!, exclamei, alarmado.
B e t o g r i l i u o o l h o , mas l o g o se d e s c o n t r a i u e, n u m
j e i t o m a l a n d r o , r e t o r q u i u , Adê, p r i m o , não sabes q u e p a r a
safares n a v i d a tens q u e d a r e x p e d i e n t e s ? E u v o u aos cor-
reios e digo: « ó senhora, f u l a n a m a n d o u - m e v i r t o m a r
a q u e l a carta», o u então, d e i x o q u e façam a c h a m a d a e
q u a n d o n i n g u é m r e s p o n d e , d i g o «dá-me ele li» e p r o n t o .
D e p o i s , c h e g o cá, vejo se t e m d i n h e i r o e rasgo-a de seguida.
M e i o a t a r a n t a d o , a j u d e i - o a r e c o l h e r aquelas cartas e a
queimá-las, antes q u e u m o l h a r i n d i s c r e t o as visse e disse-
MARGINAIS, — • • .. EVEL ROCHA
4fi 47
MARGINAIS . . . _ _ EVEL ROCHA
48 AQ
MARGINAIS . EVEL ROCHA
C O
EVEL ROCHA
MARGINAIS.
combustíveis h u m a n o s p a r a f a z e r a n d a r o c o m b o i o d o
p r o g r e s s o . M o s t r a r i a os malefícios q u e o t u r i s m o v i n h a VI
t r a z e n d o e q u e , n a v e r d a d e , os mais ricos estavam cada vez
m a i s r i c o s , à custa dos operários escravizados m a l r e m u -
n e r a d o s , q u e os c o n s t r u t o r e s deste paraíso t r o p i c a l n a o se
p r e o c u p a m c o m o bem-estar físico e i n t e l e c t u a l d o p o v o .
RA RR
MARGINAIS • EVEL ROCHA
RPí 57
EVEL ROCHA
VII
Rn 61
MARfílNAIR ^ ^
EVEL ROCHA
R/1 Ç\R
MARGINAIS . EVEL ROCHA
fifi
MARGINAIS EVEL ROCHA
69
EVEL ROCHA
A n t ó n i o a n d a v a e x a c e r b a d o c o m a i d e i a d e ser p a i .
N a altura, namorava c o m u m a m e n i n a natural da ilha
d o Fogo, de nariz c o m p r i d o , pele cor de canela, olhos
esgazeados d e b o i e n s o n a d o , v i d r a d o s e tímidos, e o cabelo
liso e c o m p r i d o q u e l h e c o b r i a as o r e l h a s d e b o r b o l e t a .
Chamava-se L a u r a . E l a tinha e n t r a d o n o p e r í o d o d e p a r t o
e a q u a l q u e r h o r a p o d e r i a ser mãe. A n t ó n i o levou-a a casa
p a r a ser apresentada à mamãe, q u e a e s t u d o u c o m os olhos,
d e m o r a d a m e n t e , e, d e p o i s d e u m a conversa inquisitória,
d e u a sua aprovação c o m o s e n d o u m a m e n i n a d e b e m .
F i c o u d e c i d i d o q u e L a u r a ficaria n a nossa casa, pois ela não
t i n h a n e n h u m p a r e n t e n a i l h a e A n t ó n i o estava d e c i d i d o
e m fazer dela a sua m u l h e r Verguei-me c o m o se tivesse sido
a t i n g i d o p o r u m m u r r o invisível n o estômago. A presença
d e L a u r a n a q u e l a casa significava q u e A n t ó n i o v o l t a r i a a
m o r a r c o n n o s c o , s i g n i f i c a v a o fim d o s j o g o s d e b a t o t a ;
significava q u e n u n c a m a i s e u h a v e r i a de r e c e b e r a r e n d a
p o r j o g o , n e m v e r os p i n t e l h o s d o u r a d o s atrás das cuecas
c o l o r i d a s d e L e n a . E m c o n t r a p a r t i d a , as n o i t e s s e r i a m a p i -
m e n t a d a s p e l o s b e r r o s d e u m bebé - p i o r a i n d a : d e duas
bebés r e f i l o n a s . E l a p a r i u u m p a r d e gémeas.
A n t ó n i o fez u m a festa de a r r o m b a p a r a a n o i t e de sete.
C o n v i d o u os a m i g o s e passaram a n o i t e b a n h a n d o - s e n o
g r o g u e e n a cerveja e e n t u p i n d o - s e de mariscos. Às tantas
d a n o i t e , A n t ó n i o p e d i u aos convivas q u e o escutassem, pois
q u e r i a fazer u m discurso. E m o c i o n a d o e m e i o grogue, sin-
g r a n d o as turvas águas da embriaguês, subiu a u m b a n q u i n h o .
MARGINAIS EVEL ROCHA
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XI
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MARGINAIS
EVEL ROCHA
E l a r e v e l o u q u e i a aos c o r r e i o s b u s c a r as cartas q u e
mamãe m e escrevia, t i r a v a o d i n h e i r o e enviava-o aos f a m i l i -
ares n a i l h a d o F o g o . A n t ó n i o r o g o u - m e q u e perdoasse à
XII
sua m u l h e r e estava d i s p o s t o a p a g a r - m e t o d o o prejuízo,
tostão p o r tostão. N ã o h a v i a d e s c u l p a s capazes d e p a g a r a
humilhação d e ser e x p u l s o d a casa q u e m a m ã e construíra
c o m sacrifício. E os m o m e n t o s d e privação e f o m e q u e
passei? I m p l o r o u - m e q u e voltasse p a r a casa, q u e o m e u
c a n t i n h o estava lá à m i n h a espera, q u e Analgésio, o f u t u r o
d o u t o r d a família, parecia-se c o m i g o e seria m e u s o b r i n h o Fusco e e u saímos d e b a i x o d e u m s o l e s t u r r a d o pelas
e a f i l h a d o . E u t i n h a os m e u s c a p r i c h o s c o m o q u a l q u e r f i l h o chãs d e P a l m e i r a à p r o c u r a d e duas caixas d e l e i t e e m p ó
d e p a r i d a . N ã o v o l t e i p a r a a casa. P e d i - l h e q u e esquecesse q u e roubáramos d a c a r r i n h a d e N h ô T e o d o r o . A o s u b i r
a nossa i r m a n d a d e e e u não estava i n t e r e s s a d o e m ser t i o e u m a l o m b a , v i a professora Izilda n u m carro desabrido.
p a d r i n h o d o seu f i l h o , a i n d a mais u m m e n i n o c o m n o m e C o r r i c o m o o d i a b o c o r r e n d o d a c r u z p a r a não ser r e c o -
d e r e m é d i o e, q u a n t o ao d i n h e i r o , haveríamos d e a n d a r n h e c i d o . P a r e i u m p o u c o p a r a l i m p a r o s u o r d a testa e
c a m i n h o l o n g e se não m o devolvesse. c o n t i n u e i a c o r r e r . N a q u e l e m o m e n t o não m e l e m b r e i
D e vez e m q u a n d o , r e a c e n d i a e m m i m a esperança d e m a i s d e Fusco. E u c o r r i a mas não sabia porquê. Talvez c o m
u m d i a v i r a ser u m a e s t r e l a d e f u t e b o l , p o r é m , o p e d r e g a l v e r g o n h a d e ser v i s t o n o m e i o d a q u e l e d e s c a m p a d o , n a
d e frustração q u e caíra s o b r e m i m , l e v o u - m e aos l i m i t e s h o r a m i n g u a d a , talvez p o r s e n t i r v e r g o n h a d e m i m m e s m o ,
d a m i n h a força d e v o n t a d e . B e t o e e u f o m o s a u m a i g r e j a o u p o r ser estúpido a p o n t o d e c o n t i n u a r a p a i x o n a d o
e v a n g é l i c a o n d e a p r e g o a v a m q u e D e u s estava a f a z e r p o r alguém q u e j á n e m se l e m b r a v a d a m i n h a existência.
g r a n d e s m i l a g r e s . Passei a f r e q u e n t a r a q u e l a i g r e j a , p o i s , S e n t i - m e t e n t a d o a e s q u e c e r os caixotes d e l e i t e e c o r r e r
p a r a c u r a r m e u d e d o e s t o r t e g a d o n ã o e r a necessário u m e m direcção d a m i n h a a d o r a d a , confessar-lhe o m e u a m o r ,
g r a n d e m i l a g r e , mas apenas u m t o q u e z i n h o d o T o d o - dizer-lhe q u e p o r ela era capaz de d e i x a r t u d o p a r a agradar-
Poderoso, apenas u m a m i g a l h a d a sua b o n d a d e . Vivia -Ihe e q u e q u e r i a ser a sua « a b o b o r i n h a » p a r a s e m p r e .
horas de c o m p l e t a agonia esperando a cura para o m e u
E se e l a disser q u e n ã o m e c o n h e c e ? E se m e c h a m a r
d e d o e s t o r t e g a d o . H a v i a m o m e n t o s e m q u e os m e u s o l h o s d e ladrão?
e r a m duas calhas p o r o n d e j o r r a v a m t o r r e n t e s d e lágrimas
Passei o r e s t o d o d i a p e r d i d o e m c o n j e c t u r a s , c o n -
d e desespero. D i s s e r a m - m e q u e d e v i a t e r m a i s fé, mas e u
t e m p l a n d o a m i n h a v i d a n a t e l a das recordações q u e se
q u e r i a e r a o m e u d e d o c u r a d o . P a r e c e q u e D e u s não f o i
desvanecia e n t r e as n u v e n s d e lã e os braços d o u r a d o s d o
c o m a m i n h a c a r a e não m e c u r o u . E r a d a sua v o n t a d e q u e
sol, f i n a n d o - s e n o seu último s u s p i r o atrás d o h o r i z o n t e .
e u continuasse c o m o d e d o esfarelado. D e u s q u i s q u e assim
U m a zabilinha voava e m círculos e p o r i n s t a n t e s p a i -
fosse, q u e A p o l i n á r i o fosse r i c o e n o s odiasse, q u e ele e os
rava n o a r D e p o i s d e u m v o o r a s a n t e d e s a p a r e c e u n o céu,
o u t r o s m a n d a s s e m e m nós, q u e n o s m a r g i n a l i z a s s e m e q u e
l e v a n d o nas g a r r a s q u a l q u e r coisa q u e m e p a r e c e u u m
eu continuasse c o m o dedão estortegado. Estou p e r d i d o
p e q u e n o rato, A q u i l o que n o m o m e n t o m e aparentava
n e s t a c o n g r e g a ç ã o d e ilusão.
ser u m i n s t i n t o d e m o r t e e c r u e l d a d e n ã o e r a senão u m
98
MARGINAIS
. — -_ . EVEL ROCHA
i n s t i n t o d e sobrevivência. C u m p r i a - s e a l e i d a n a t u r e z a :
o u simplesmente entregue a u m estranho. M i r n a chorava,
nesta v i d a é m a t a r o u m o r r e r ! N e s t a selva, os m a i s f o r t e s
mas n o m e u í n t i m o e u t i n h a a certeza q u e seria m e l h o r
a l i m e n t a m - s e d o s m a i s fracos, a m o r t e p a r a u n s é a sobre-
p a r a a p e q u e n a Jerusa. E l a i r i a t e r u m a b o a educação, vive-
vivência p a r a o u t r o s . E u t i n h a m e d o d e ser a p a n h a d o p e l a
r i a l o n g e dessa l o d o s a miséria d i s s i m u l a d a . M e u l a m e n t o
polícia q u a n d o f u r t a v a ; v i v i a e m p e r m a n e n t e sobressalto
é p a r a aqueles q u e ficaram p a r a trás. H a v i a r u m o r e s q u e
p o r q u a l q u e r m o v i r n e n t o à m i n h a v o l t a c o m o u m a ave
os e s t r a n g e i r o s r a p t a v a m o u c o m p r a v a m crianças p a r a
f e r i d a , p e r s e g u i d a p o r caçadores o b s t i n a d o s , t r a n s p i r a v a
extraírem órfãos e f a z i a m f o r t u n a s ao vendê-los n a E u r o p a .
u m s u o r f r i o c h e i r a n d o a b i c h o m o r t o . As h o r a s e s c o r r i a m
N ã o m e i m p o r t a v a de vender u m dos meus rins e m troca
l e v e m e n t e e e u , d e i t a d o n o chão c o m as mãos d e b a i x o d a
d e u m a p e q u e n a f o r t u n a . D i z e m q u e há u m m é d i c o q u e
n u c a feitas travesseiro, c o n t e m p l a v a a dança das estrelas
v e m d e vez e m q u a n d o e o f e r e c e u m passaporte e u r o p e u
q u e p a r e c i a m insectos l u m i n o s o s . E u i m a g i n a v a q u e e n t r e
a q u e m d o a r u m r i m . E l a o l h o u - m e d e l a d o e disse. N ã o
elas h a v i a u m m u n d o o n d e t u d o o q u e e u pensava a c o n t e -
sei se f a r i a isso. T e n h o m e d o q u e as coisas d ê e m p a r a o
cia, o n d e os nossos desejos se t r a n s f o r m a v a m e m r e a l i d a d e ,
t o r t o . Eduíno f o i i n t e r n a d o n o h o s p i t a l c o m u m a f e r i d a
o n d e I z i l d a e r a a m i n h a a m a d a , o n d e e u e r a u m a estrela d e p o d r e n u m l a d o d a b a r r i g a , Eles t i r a m - t e o r i m e d e i x a m -
f u t e b o l , a p o b r e z a e r a u m a v i r t u d e e os m a u s e r a m transfor- te ao D e u s dará.
m a d o s e m chapéus-de-bruxa^. C o m o e u q u e r i a e n c o n t r a r
V i v e r nesse m u n d o é p e r i g o s o . V i v e r é u m a e s t u p i d e z
o m e u paraíso e ser f e l i z e t e r n a m e n t e ! F i q u e i d e i t a d o
e v i v e r p o b r e é u m c r i m e imperdoável.
n o chão d e t e r r a e b r i t a d u r a n t e m u i t a s h o r a s e s q u e c i d o
n o m u n d o . C a n s a d o d e c o n t e m p l a r as estrelas d i s t a n t e s , M i r n a tirava m a c a q u i n h o s d o n a r i z e p a r e c i a a l h e i a
às m i n h a s e s t r a n h a s reflexões. Pensar e r a u m e x e r c í c i o
passei a r e c o r d a r t o d o o t i p o d e palavrões q u e c o n h e c i a
a r r i s c a d o p a r a ela. Se estivesse a m e x e r e r e m e x e r n o n a r i z
c o m o f o r m a d e m e d i s t r a i r . A lista e r a i n f i n i t a , mas tinha
e r a u m s i n a l d e q u e necessitava d e atenção e c a r i n h o p a r a
t o d o o t e m p o d o m u n d o . N i n g u é m esperava p o r m i m e m
mais u m c o n t o .
l u g a r n e n h u m . A n o i t e estava m a i s e s c u r a q u e n u n c a . As
estrelas d e u m b r i l h o i n t e n s o f o r m a v a m a i m a g e m d e u m
g r a n d e cadeirão l u m i n o s o . U m d i a , q u a n d o c h e g a r o fim
d o m u n d o , e s t a r e i s e n t a d o n u m cadeirão c o m o a q u e l e ,
c o n t e m p l a n d o o espectáculo ã distância!
V o l t e i p a r a casa e e n c o n t r e i M i r n a sentada n a m i n h a
c a m a a c h o r a r P r o v a v e l m e n t e , o p a i t o r c e u o pescoço a
N h a M a r i a d o M o n t e c o m o havia p r o m e t i d o , falei para
os m e u s b o t õ e s . N a v e r d a d e , a situação e r a b e m p i o r :
N h a M a r i a d o M o n t e v e n d e r a a filhinha d e d o i s anos a
u m casal d e t u r i s t a s alemães p a r a p o d e r p a g a r o c u r a t i v o
d a Célia q u e c o n t i n u a v a i n t e r n a d a e m estado grave pelas
q u e i m a d u r a s . E l a não e r a a p r i m e i r a criança a ser v e n d i d a
5 Cogumelos.
•4 r \
EVEL ROCHA
XIII
-I nr
MARGINAIS EVEL ROCHA
XIV
111
MARGINAIS EVEL ROCHA
112 -1 n
MARGINAIS EVEL ROCHA
d r o g a e l e v a r p a r a os c l i e n t e s . A p r i n c í p i o t i v e m e d o , Abastecer-me d e cocaína e r a m o l e z a . A p r e n d i r a p i d a -
n o e n t a n t o , aos p o u c o s , f u i h a b i t u a n d o - m e a o m u n d o m e n t e os t r u q u e s d e c o m o l i d a r c o m as pessoas envolvidas
s e c r e t o das d r o g a s . E m p o u c o t e m p o , t o r n e i - m e u m n o n e g ó c i o . A p r i m e i r a lição a c o n t e c e u n u m a lanchonette
vendedor ambulante. e m Santa IVIaria: R i c a r d o Pianista p e d i u dois hambúrgueres
Se n ã o v e n d e s s e d r o g a , a c a b a r i a c o m o N h i p s e b r a n c o s . D u r a n t e o t e m p o d e espera, fiquei a i m a g i n a r o
P a l e r m a , v i v e n d o d e favores, o u t e r i a d e o p t a r p o r r e c o l h e r q u e seria u m « h a m b ú r g u e r b r a n c o » : D e v e ser u m h a m -
l i x o n a casa dos abastados, mas m e u o r g u l h o e r a g r a n d e búrguer m e s m o cool, d o tipo q u e e n c h e a pança e d e i x a o
demais, a m i n h a vaidade gelatinosa não c o m b i n a v a c o m cliente a chorar p o r mais!
as l i x e i r a s . O q u e h a v i a d e d i z e r a o H u m b e r t o , q u a n d o F i n a l m e n t e , o i t a l i a n o a p a r e c e u c o m os d o i s h a m -
ele voltasse d o curso? C o m o h a v e r i a d e e n c a r a r J o r g i n h o búrgueres b r a n c o s r e c h o n c h u d o s e e u não v i a a h o r a d e
q u a n d o ele voltzisse à terra? C o m o p o d e r i a c o n q u i s t a r o atravessar a e s q u i n a e e n t e r r a r os d e n t e s n a q u e l a coisa.
coração d e I z i l d a ? N ã o , m i l vezes n ã o ! N e m pensar, boyl, e s p a n e j o u Pianista, Achas q u e se quisesse
Adélia f o i á m i n h a p r i m e i r a n a m o r a d a n o limiar c o m e r ia e n c h e r o estômago dessa p r e c i o s i d a d e ? E l e a b r i u
d a m i n h a a d o l e s c ê n c i a . F o i c o m e l a q u e g a n h e i o esta- o p ã o e lá d e n t r o estava e n t u p i d o d e doses d e cocaína!
t u t o d e h o m e m n o s n o s s o s e n c o n t r o s íntimos. D e u m a E r a apenas u m a das m i l m a n e i r a s d e r e c e b e r o p r o d u t o .
f o r m a inexplicável, ela desapareceu d o nosso convívio. A p r a i a d e S a n t a M a r i a passou a ser o m e u m u n d o .
Falava-se a b o c a p e q u e n a q u e e l a t i n h a s i d o m a n d a d o D o r m i c o m m u l h e r e s d e p e l e r o s a d a , d e o l h o s azuis, p a r -
d e v o l t a p a r a a casa d o s p a i s n a i l h a d a B o a V i s t a . Q u a s e ticipava das o r g i a s e das n o i t a d a s d e P o n t a Preta, a p r e n d i
d e z a n o s d e p o i s , e l a r e g r e s s o u a o Sal c o m u m a f i l h a , a a a n d a r n u c o m os b a n h i s t a s , n a p r a i a , sob a l u a c h e i a q u e
G e r t r u d e s , e o m a r i d o q u e s o f r i a d e a s m a . E l a estava m a i s p a r e c i a u m s o l p r a t e a d o . T i n h a m u i t a s vezes d e m e
m a i s l i n d a d o q u e n u n c a . N ã o p e r d e u o s e u j e i t o aca- m i s t u r a r c o m h o m o s s e x u a i s , casais d e hábitos e s t r a n h o s ,
n h a d o e o o l h a r t e r n o d o s d i a s d a s u a infância. A d é l i a j o v e n s turistas esquisitos e paranóicos, m u l h e r e s ricas sepa-
c u m p r i m e n t o u - m e u m a vez, m a s d e p o i s p a s s o u a e v i t a r - radas o u c a r e n t e s , infiéis e viúvas, mas a m a i o r d i f i c u l d a d e
- m e n a r u a . C e r t a vez, o m a r i d o , u m j o v e m e s f o r ç a d o e e r a t e r q u e e m p u n h a r u m a n a v a l h a p a r a e n f r e n t a r os
m u i t o e d u c a d o , teve u m a t a q u e d e asma n o snack-bar i m i g r a n t e s d a costa o c i d e n t a l a f r i c a n a q u e p o n t i l h a v a m a
Bom Dia. E r a a p r i m e i r a vez q u e isso a c o n t e c i a d e p o i s p r a i a c o m o p r a g a d e g a f a n h o t o s f a m i n t o s q u e p a r e c i a m ter
d e t e r e m c h e g a d o à i l h a d o Sal. N e n é , o g e r e n t e d o Bom d e s p r e z o p e l a v i d a . Eles e r a m m a i s astutos q u e nós e, p e l o
Dia, s e m s a b e r o q u e fazer, m a n d o u q u e as pessoas se v i l m e t a l , v e n d i a m a a l m a d a própria mãe. A p r a i a é u m a
afastassem, E l e p r e c i s a d e a r e a s s i m vocês n ã o estão a m i n a d e o u r o p a r a o o p e r a d o r turístico, u m c a n t i n h o d o
ajudar. Adélia c o l o c o u - l h e u m a b o m b a de asma n a boca paraíso b o r d a d o d e a r e i a fina e d o u r a d a , b a n h a d o d e água
e p o u c o d e p o i s o r a p a z l e v a n t o u - s e . T e n t e i ajudá-lo, tépida e e s m e r a l d a p a r a os a m a n t e s d o s o l e d o m a r , mas
mas ela disse-me r i s p i d a m e n t e q u e não a p r o x i m a s s e d o p a r a nós e r a u m c a m p o d e b a t a l h a . É m a i s fácil e n c o n t r a r
seu m a r i d o e d a sua filha. O m a r i d o era r e v e n d e d o r de d r o g a n a vila d o que areia n a praia d o m a r
lagosta, percebes e peixes d a sua i l h a n a t a l . A p r o s p e r i - A l g u n s imigrantes d a costa d a Africa d o m i n a m o negócio
d a d e e a f e l i c i d a d e r e i n a v a m n a q u e l e lar. d e v e n c k d a d r o g a e d a prostituição. Isso não é p r e c o n c e i t o ,
é a mais p u r a verdade. As suas m u l h e r e s t r a n s f o r m a r a m a
114
MARGINAIS EVEL ROCHA
XVI
19?
EVEL ROCHA
XVII
N u m a t a r d e e n s o l a r a d a , estava e u a p r e p a r a r - m e p a r a
i r a o F o r d m o n d e e u tinha a m i n h a plantação d e ganja,
nas águas d e esgoto, q u a n d o d e p a r e i c o m Silvestre, m a r i d o
d e Adélia, a t a c a d o d e asma, caído ao p é d a p o r t a d o m e u
p a r d i e i r o . Silvestre respirava c o m d i f i c u l d a d e s , p a r e c i a q u e
o p e i t o i a a r r e b e n t a r a q u a l q u e r m o m e n t o e as palavras
saíam-lhe c o m o o r o n c o d e u m m o t o r v e l h o . P e d i u - m e
q u e l h e arranjasse flor d e b e r b i a c a , D i z e m q u e é b o a p a r a
asma. T e n t e i convencê-lo q u e m e u n e g ó c i o e r a ganja, mas
ele estava m u i t o d e s e s p e r a d o p a r a p e r c e b e r
O l h a , e s t o u d i s p o s t o a p e r c o r r e r as chãs d e T e r r a
B o a e m b u s c a d e flores d e b e r b i a c a p a r a te d e s e n t u p i r o
pulmão, mas, antes, e x p e r i m e n t a u m poff. D e i - l h e u m chapo
e d e p o i s d e estancar o p u l m ã o d e fiimo, ele c o m e ç o u a
r e s p i r a r m e l h o r - f o i c o m o se tivesse d e s e n t u p i d o u m cano.
E s t o u m u i t o a g r a d e c i d o . Se não fosse o t e u poff e u
estava m o r t o , d e s a b a f o u . Q u a n t o cobras p o r c a d a c h a r u -
tinho? O l h a , t e n h o d i n h e i r o n o b o l s o . A r r a n j a - m e m a i s ,
j u r o q u e não c o n t o a ninguém.
Fiz-lhe v e r q u e e u estava apenas a a j u d a r e d a q u e l e
d i a e m d i a n t e , passámos a t e r u m a relação d e a m i z a d e à
revelia d e Adélia q u e c o n t i n u a v a a a c h a r q u e e u era u m a má
influência p a r a o m a r i d o . V o l t a e m e i a , ele b a t i a à m i n h a
p o r t a p a r a l h e a r r a n j a r u m poff. Silvestre submetera-se a
vários t r a t a m e n t o s p a r a d i m i n u i r o p r o b l e m a d e asma,
usava t o d a a espécie d e b o m b a s p a r a desentupir-se, e n g o l i a
c o m p r i m i d o s e besuntava-se e m loções anti-asma, c o n t u d o
MARGINAIS •• EVEL ROCHA
-I9R 1?7
MARGINAIS EVEL ROCHA
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MARGINAIS ^ ^ . EVEL ROCHA
H OH
MARGINAIS
EVEL ROCHA
seu discurso c o m régua viciada, c o m lápis d e s e n h a n d o a c o r para distrair osjovens. T a n t a promessa, tantos planos heróicos
d a sua b a n d e i r a , c o m compasso q u e traça curvas perigosas. d e salvação n o a r r o j o d e u m a l u t a q u e t a n t o s p r o m e t e r a m
O d o u t o r Apolinário, a p r e s i d e n t e d a câmara, os vereadores, e f a l h a r a m e v o l t a m n a p r o m e s s a e n g a l a n a d a n o s média
os d e p u t a d o s e u m p u n h a d o d e p e n d u r a s dão o t o t a l d e e n f e i t a d o s e m luzes e cores, n o s o r r i s o forçado, s e m p u d o -
q u a r e n t a ladrões. A l i Babá é o p o v o . res d e d i z e r q u e a máquina e m p e r r a d a n ã o lhes p e r m i t e
Mas, c o n c e n t r e m o - n o s n o discurso d o d o u t o r fazer m e s m o n a d a q u e n ã o seja o equilíbrio financeiro à
Apolinário, a q u a n d o d a a b e r t u r a d o a n o político: diremos espera d o troco, d a m o r d o m i a e tanta regalia q u e oferece
para a massa, a massa informe, que a nossa luta é grande, a luta é o p o d e r E a miséria p r o s s e g u e s e u d e s f i l e e m c i r c u l o ,
enorme, e quefinanciaremos as micro empresas, a saúde para todos s e m p r e c o m fé e m D e u s e n a s u a misericórdia, a g u a r -
será a nossa meta, usaremos a vassoura para varrer a corrupção, d a n d o resignada e pacientemente, vivendo d a podridão
a enxada para plantar a honestidade e a vida digna para todos o u m e s m o d o n a d a , c o m sopa d e água f r i a , f a z e n d o festa
os cidadãos da ilha do futuro, a menina bonita do oceano. No q u a n d o há a r r o z n o s p r a t o s e m p o r c a l h a d o s , n a l a t r i n a , n a
tribunal, osjuízes serão imaculados. Faremos leis que serão cumpri- e s m o l a q u e l h e n e g a m n u m a e s q u i n a e v i v a m os l o u v o r e s
das, os desvios serão reprimidos, o povo encontrará em cada rua, d a p r o s p e r i d a d e d o s g r a n d e s coronéis, os barões d o p r o i -
em cada esquina, a paz e a liberdade e m^is justiça, pois seremos b i d o . N ó s , os miseráveis, os m a r g i n a l i z a d o s , filhos d a mãe,
heróis nesta batalha contra esta pouca vergonha e contra esta cana- a d o l e s c e n t e s m a l p a r i d o s , i g n o r a d o s , mal-acabados... m o r -
lhice que mantém a miséria onde ela existe. Abraçaremos o eleitor r e m o s aos p o u c o s atrás d a c o r t i n a r e t r a t a d a n o s j o r n a i s e
carente, apertaremos as mãos dos trabalhadores dos restaurantes, nas revistas, n a televisão e n o s outdoors d e c a m p a n h a q u e
os pedreiros, os pescadores, daremos pão a muitos indigentes, dis- d i z e m a o m u n d o q u e v i v e m o s n u m paraíso t e r r e s t r e .
cursaremos para o povo idiota que adora nos comícios nosso SYÍGW;
prometeremos mais realizações na palavra que o vento sempre leva,
teremos vitoriosas eleições. O povo tem memória curta. Na próxima
eleição prometeremos mais porque o povo gosta.
O s políticos t ê m c o n s e g u i d o e s c o n d e r , c o m s e u
m a n t o invisível d e discursos c o l o r i d o s , a miséria dos b a i r r o s
d e Chã d e F r a q u e z a , A l t o d e Saco, A l t o d e S. João e Chã
d e M a t i a s , d o s esgotos a céu a b e r t o d a R i b e i r a , das l i x e i -
ras, d o d e f i c i e n t e , d o distraído, d o s m o r i b u n d o s n a h o r a
derradeira n a porta d o hospital, d o aborto clandestino n o
casebre d e N h a M a r i a d o M o n t e , d o fontanário s e m água,
d a f e b r e p e s t i l e n t a e t u b e r c u l o s a . . . O povo tem a visão curta,
por isso construiremos jardins-de-infância, enfeitaremos as ruas,
construiremos polivalentes (polivalentes, não! E desperdício) cons-
truiremos placas desportivas, promoveremos acampamentos nos
ihéus, compraremos uma aparelhagem sonora para fazer muito
barulho cobrindo a voz queixosa dos miseráveis, faremos festivais
1QQ
EVEL ROCHA
XVIII
135
MARGINAIS EVEL ROCHA
1.3R 1.37
MARGINAIS____
EVEL ROCHA
f o r t e n o s j o g o s d e tchintchôm. L e n a m u d a r a m u i t o , estava
f i g u r a e s c o n d i a o e n c a n t o f e m i n i l de u m a m u l h e r q u e n o
mais f o r t e , s e n h o r a d e si. As escondidas, g a n h o u o a p e l i d o
olhar irradiava simpatia e parecia retratar a verdadeira
d e B a r b i n h a pelos finíssimos pêlos q u e l h e s o m b r e a v a m a
i m a g e m d a pessoa q u e t o d o s a m a v a m .
p a r t e i n f e r i o r d o q u e i x o mas c o n t i n u a v a d e s l u m b r a n d o os
D e s c o b r i r a razão d o n o m e Tasquinha Russa t o r n o u - s e
h o m e n s c o m s e u j e i t o indomável e selvagem. E l a parecia
u m desafio p a r a t o d o s os q u e f r e q u e n t a v a m o b a r A l g u é m
u m a n i m a l a r i s c o q u e n ã o m e d i a as palavras p a r a desar-
teve a i d e i a d e c r i a r u m a l o t a r i a e t o d o s d e p o s i t a v a m u m
m a r os m a i s a t r e v i d o s . À f r e n t e d o snack-bar c o l o c o u u m a
f u n d o d e m i l escudos e, e m três meses, o m o n t a n t e u l t r a -
p l a c a c o m a inscrição: Tasquinha Russa. Esse e s t r a n h o
p a s s o u os q u i n h e n t o s m i l escudos. C a d a a p o s t a d o r , a o
n o m e despertou a curiosidade de todos e m a d i v i n h a r o
d e p o s i t a r os m i l escudos, tinha o d i r e i t o de, n u m a t e n -
seu s i g n i f i c a d o . A l g u n s a p o s t a v a m q u a n t i a s e x o r b i t a n t e s
tativa, a d i v i n h a r o s i g n i f i c a d o d o n o m e e m voz a l t a n a
p a r a d e s c o b r i r e m a razão d o n o m e , mas ela, n o s e u j e i t o
presença d e p e l o m e n o s c i n c o t e s t e m u n h a s e d e p o i s L e n a
espassarado, r i a das caras e n c a f u a d a s d e interrogações. A
B a r b i n h a t e r i a d e c o n f i r m a r se a c e r t o u o u não. E m n o m e
princípio tive r e c e i o d e a c u m p r i m e n t a r c o m u m a calorosa
d a transparência, ( e m b o r a ninguém ousasse d u v i d a r d e l a
saudação, p o r é m , ela a r r a n j o u u m a algazarra d o t a m a n h o
p u b l i c a m e n t e ) e l a escreveu o s i g n i f i c a d o d o n o m e n u m a
d o m u n d o ao v e r - m e e, n u m abraço f o r t e , quase q u e m e
f o l h a que f o r a g u a r d a d a n u m envelope lacrado, assinado
m o í a os ossos, e x p r e s s a n d o a s u a a l e g r i a , C m a n e i r a ,
n a p a r t e de f o r a p o r c i n c o pessoas, e só seria a b e r t o q u a n d o
m o ç o ? P e n s e i q u e estivesses e m b a r c a d o . R e l e m b r a m o s
alguém tivesse a d i v i n h a d o o s i g n i f i c a d o . O c o r r e u - m e u m
os j o g o s d e b a t o t a c o m os rapazes e m casa d a m i n h a mãe,
s i g n i f i c a d o p a r a o n o m e , mas não tinha c o r a g e m d e dizê-
d e p o i s L e n a v o l t o u p a r a a c l i e n t e l a e disse, A m i n h a v i d a
-lo à f r e n t e d e l a c o m m e d o d e ser c e n s u r a d o p e l o s seus
c o m e ç o u a m u d a r e m casa deste m e n i n o , q u e r d i z e r deste
p u n h o s d e aço. A p a r t i r d a q u e l e d i a , Tasquinha Russa
h o m e m f e i t o ; o l h e m c o m o ele e n g r o s s o u a p o l p a . F o i
passou a ser u m espaço d e frequência obrigatória. D e p o i s
b o m saber q u e e l a se l e m b r a v a d e m i m e c o n t i n u a v a a
d e u m a n o i t a d a , antes q u e sol esbracejasse os seus r a i o s
ser a m i n h a a m i g a . Se há coisa q u e e u a p r e n d i a p r e z a r
l u m i n o s o s , dávamos u m a saltada p o r lá p a r a c o m e r u m a
nesta vida é a amizade.
c a c h u p i n h a guisada c o m linguiça e s o b r e t u d o p a r a d e s c o n -
J o g a d o r a i m p u l s i v a c o m o e r a , L e n a g a n h o u o res- t r a i r c o m as suas tiradas recheadas de h u m o r e n q u a n t o
p e i t o dos h o m e n s desde o d i a e m q u e d e u u m a s u r r a n u m j o g a v a tchintchôm.
médico político que lhe t i n h a recusado u m a consulta.
O m a u estado e m q u e d e i x o u o sujeito valeu-lhe nove
dias d e c a d e i a e u m a p e s a d a i n d e m n i z a ç ã o q u e s e r v i r a m
p a r a f o r j a r mais o seu f e i t i o de b r i g u e n t a e m a l c r i a d a .
O s seus braços l o n g o s e as mãos calejadas d e e s t i v a d o r ,
os o m b r o s l a r g o s e as nádegas e s t r e i t a s c o n f e r i a m - l h e
o e s t a t u t o de p a u p a r a t o d a a o b r a . Assumia-se c o m o
m u l h e r d e p o n t a d e faca e x i n g a v a a m ã e d o s c l i e n t e s
q u e l h e f a l t a v a m ao r e s p e i t o . L e n a c o n t i n u a v a a ser b a t o -
t e i r a c o m o n o s v e l h o s t e m p o s e atrás d a q u e l a e n é r g i c a
1.?8
, EVEL ROCHA
XIX
1/19 14.9
MARGINAIS :
m e n t e p o r a l g o q u e só e l a e r a c a p a z d e l h e s d a r . T o d o s
os t r a b a l h o s q u e e l a t e v e n ã o f o r a m p e l o s e u t a l e n t o XX
b r i l h a n t e , mas p e l o s e u c o r p o d e s l u m b r a n t e , p e l o s seus
olhos f u l m i n a n t e s cor de ervilha, c o m u m encanto feroz
e f a t a l . C e r t a vez, d o m i n a d o p e l o poff, e u disse-lhe q u e
e r a capaz d e c o r t a r u m a o r e l h a p a r a p r o v a r o m e u a m o r
p o r e l a e, a g r a d e c i d a , n a q u e l a n o i t e , v i v e m o s t o d a a
e t e r n i d a d e e n t r e os lençóis d o m e u g u e t o .
A o raiar d a m a d r u g a d a fomos i n t e r r o m p i d o s pelo g r i t o
de N h ô Simão p e d i n d o ajuda para apagar o fogo q u e destruía a D u r a n t e os meses d e convalescença, e u passava h o r a s
sua casa. E m p o u c o t e m p o a r u a estava cheia de curiosos, alguns a arquitectar u m m e i o de transformar a vida d o d o u t o r
pegavam de sacos molhados, outros atiravam baldes de água, A p o l i n á r i o n u m i n f e r n o . C a d a s e g u n d o q u e passava, ele
e n q u a n t o as línguas de f o g o dançavam avassaladoras, n u m a ficava m a i s r i c o e m a i s p o d e r o s o , p o r é m , e u s u c u m b i a
gana demoníaca, envolvendo a casa n u m véu v e r m e l h o alaran- n a miséria q u e m e p e r s e g u i a d e s d e q u e nasci. M a g r e z a
j a d o . O fogo c o n s u m i u a casa n u m instante. O cheiro forte das t i n h a o m e s m o s e n t i m e n t o q u e e u e e r a o único q u e p o d i a
gíilinhas e d o cão chamuscados, dos cacarecos, dos plásticos, das e n g e n d r a r u m artifício p a r a q u e b r a r a c r i s t a d o a r r o g a n t e
mobílias transformados e m brasas íiilgurantes dava m o t i v o para a d v o g a d o . L e i a l e m b r o u - s e d a insólita história d e G i l , o
q u e o magoado c h o r o de N h ô Simão e dos filhos tocassem o s a n i c o l a u e n s e , q u e u m a vez m a t o u u m c a c h o r r o e v e n d e u
coração d o p o v o q u e e m vão t u d o fez para salvar a l g u m a coisa. a c a r n e c o m o s e n d o c a r n e d e c a b r i t o . A l g u é m c h e g o u ao
A o r o m p e r d o dia, n o lugar d a casa, restavam apenas algumas G i l e disse-lhe. O l h a , fiz u m g u i s a d o c o m a c a r n e q u e m e
partes das paredes que conseguiram resistir ao incêndio, o resto vendeste e estava m e s m o b o m . A r r a n j a - m e mais dessa c a m i -
estava transformado e m m o n t u r o e cinzas. N h ô Simão, abraçado n h a ! - G i l , n o s e u j e i t o m a r o t o , r e s p o n d e u , se o c a c h o r r o
aos cinco filhos, ainda chorava desalmadamente a p e r d a d o que não r o n c a r e m m i m . . . !
levou a j u n t a r d u r a n t e u m a vida. T i n h a o rosto tisnado e nas R e s o l v e m o s s e g u i r o e x e m p l o d o G i l . Precisávamos
costas u m a ferida aberta pelas chamas e n q u a n t o tentava salvar d e u m cão, mas u m cão de fibra, não u m v i r a lata q u a l q u e r
a l g u m a coisa Os b o m b e i r o s não apareceram e desculparam^se c o m o os cães t i n h o s o s q u e a b u n d a v a m p o r C h ã d e
c o m o dificil acesso ã casa p o r causa das ruas apertadas e retor- F r a q u e z a . N a Preguiça e Santa M a r i a há m u i t o s cães, mas
cidas. As autoridades camarárias não apareceram p a r a levar não s e r v e m , p a r e c e m b r i n q u e d o s d e pelúcia. M a g r e z a
u m a palavra de c o n f o r t o à família sinistrada, todavia, lá estava o s u g e r i u - m e q u e roubássemos o são b e r n a r d o d o s e n h o r
povoléu c o m baldes t r e p a n d o nas casas vizinhas para comhater A p o l i n á r i o . O b i c h o e r a tão g r a n d e q u e m e t i a m e d o ;
as chamas, levando roupas, c o m i d a , sacos de c i m e n t o , blocos arrancá-lo d a v a r a n d a d o d o n o e r a t r a b a l h o d e m a i s p a r a
e outros materiais para ajudar N h ô Simão a levantar a sua casa d o i s h o m e n s . T í n h a m o s de a r r a n j a r u m m e i o . Mas c o m o ?
d e novo. O nosso b a i r r o ficava p e r t o d o edifício d a Câmara L e i a M a g r e z a d e s c e u a m ã o n o frasco d e diazêpan d a avó,
M u n i c i p a l , mas a quilómetros d e distância d a sensibilidade m o e u os c o m p r i m i d o s , d e i t o u o p ó n o b e b e d o u r o d o
autárquica. A a u t a r q u i a continuava a fazer o que sempre fez cão. F o i t i r o e q u e d a . Ficámos à e s p e r a q u e anoitecesse.
pelos pobres: nada! E n q u a n t o esperávamos p e l o b r e u d a n o i t e . L e i a c o n t a v a
MARGINAIS — —— EVEL ROCHA
histórias e r e v e l a v a as i d e i a s q u e l h e f e r v i a m n a cabeça, c a m b a r os q u a s e o i t e n t a q u i l o s d e c a c h o r r o n o g u e t o .
D i z e m q u e são b e r n a r d o é u m cão e m vias d e extinção. Beto tinha m e d o do advogado e suplicou-nos para que
H á m u i t o s a n i m a i s q u e estão a d e s a p a r e c e r s o b r e a face esquecêssemos d a i d e i a . P e l o a m o r d e Deus, p r i m o !
d a t e r r a c o m o a águia a m e r i c a n a , as baleias, as t a r t a r u g a s , A p e s a r d a f r a q u e z a física p r o v o c a d a p e l a t u b e r c u l o s e ,
e n f i m . V a m o s salvar os marcha-cacaias. T e r r a B o a a n t i g a - fiz questão d e d e g o l a r e e s f o l a r o cão q u e p a r e c i a u m
m e n t e e r a p o v o a d a deste p a s s a r i n h o e h o j e j á n e m se vê. bezerro gordo. Odeio cachorros. Que o diabo carregue
M u i t a g e n t e n e m sabe o q u e isso s i g n i f i c a . - L e i a M a g r e z a o rambo e o d o n o ! Se o d o n o tivesse a l m a , h a v i a d e se
fez u m a p a u s a e d e u u m a tirada, Já r e p a r a r a m q u e há l e m b r a r q u e o q u e gasta c o m esse b i c h o d a v a p a r a a p a -
c a d a vez m e n o s c o r c u n d a s ? P e n s o q u e estão e m vias d e d r i n h a r o e s t u d o d e d e z o u v i n t e crianças d e A l t o d e
extinção, t a m b é m . P o d í a m o s lançar u m a c a m p a n h a c o m Santa Cruz! Leia r i u d o i d a m e n t e . Beto, porém, c o m i a
cartazes d i z e n d o : s a l v e m os c o r c u n d a s . Q u e a c h a m ? as u n h a s c o m o a l g u é m q u e e s p e r a v a q u e o céu desa-
Espera, corcundas, não!, corrigiu Leia, São todos malvados. basse s o b r e a s u a cabeça. Se n o s b o t a m a m ã o e s t a m o s
H o u v e u m a r i n c h a d a geral. L e i a era u m h o m e m de lixados, p r i m o .
m u i t a s histórias e gostávamos d e as o u v i r ; a única c h a t i c e Confesso que, ao ver aquela carne v e r m e l h a e saudável à
e r a q u a n d o andávamos n a r u a : ele t i n h a d e p a r a r a c a d a m i n h a f r e n t e , tive vontade de e n t e r r a r os dentes nela, porém,
d o i s m e t r o s p o r q u e não c o n s e g u i a f a l a r e n q u a n t o andava. m e u s preceitos não m e a u t o r i z a r a m . Depois de esquartejar o
O são b e r n a r d o e r a e n o r m e e c a r r e g a r u m f a r d o a n i m a l , pusemos à p a r t e cerca de q u a r e n t a q u i l o s de carne
d a q u e l e s não e r a b r i n c a d e i r a ; p o d í a m o s c o r r e r o risco l i m p i n h a , e o resto f o i e n t e r r a d o n u m t e r r e n o b a l d i o q u e o
d e ser a p a n h a d o s . L e i a tinha solução p a r a t u d o : l e m b r a s a d v o g a d o tinha pelas bandas d e T e r r a Boa. E r a necessário
q u a n d o n a m o r a v a s a Adélia? À n o i t e , q u e b r a v a s as lâm- v e n d e r a carne n a casa d o d o u t o r o q u a n t o antes p o r q u e não
padas d o s postes p a r a ficares m a i s à v o n t a d e , r e c o r d o u o tínhamos c o n g e l a d o r Magreza f a l o u c o m a empregada, n u m a
d e s c a r n a d o a m i g o n u m r i s o i r ó n i c o . B e m l e m b r a d o . Se d i v e r t i d a bazófia, q u e se tratava de c a m e d o T a l h o Jôm Suíno
q u e b r a r m o s as lâmpadas n i n g u é m n o s r e c o n h e c e . d e P a l m e i r a e q u e , se não quisesse, levaria t u d o p a r a v e n d e r
E s p e r a aí, p e r g u n t e i - l h e , d i s s i m u l a d a m e n t e . Estás aos hotéis d e Santa M a r i a , É c a m e de p r i m e i r a e, c o m o sei
a q u e r e r d i z e r q u e és t u q u e a n d a s a q u e b r a r as lâm- q u e o s e n h o r d o u t o r é c h e g a d o à sua c a m i n h a , tirei a p a r t e
p a d a s d o s p o s t e s p a r a te e n c o n t r a r e s c o m a Amália? A m e l h o r p a r a o s e r v i d o r d o p o v o . Topas?
p r o p ó s i t o , o q u e v i s t e d e tão a t r a e n t e n e l a p a r a a n d a r e s N o s dias s u b s e q u e n t e s , não se falava e m o u t r a coisa
assim m e i o a p a l e r m a d o ? senão n o d e s a p a r e c i m e n t o d o m a l o g r a d o são b e r n a r d o . O
E u , m e i o a p a l e r m a d o ? , r e t o r q u i u . Precisas ver c o m o s e n h o r A p o l i n á r i o m a n d o u c o l o c a r anúncios n o s j o r n a i s e
ela t e m u n s pés b o n i t o s . Pelas suas palavras, ficámos a saber nas rádios, p r o m e t e n d o b o a r e c o m p e n s a , m a n d o u i m p r i -
q u e ele estava m e s m o a p a i x o n a d o p e l a filha d o a d v o g a d o e, m i r páginas c o m f o t o g r a f i a de rambopara. serem coladas e m
l o g o , estava a p t i r t i c i p a r n o r a p t o e m o r t e d o seu «cunhado» todas as esquinas, bares e praças. Nas h o r a s vagas, a n d a v a
rambo, o são b e r n a r d o . E m tempos, Amália tinha a b a n d o n a d o d e lés a lés e m b u s c a d e u m a p i s t a q u e o levasse até o seu
o curso de D i r e i t o alegando razões d e saúde, mas a verdadeira q u e r i d o a n i m a l , o seu filho m a c h o q u e t a n t o s o n h o u . L e i a
razão estava patente aos olhos de q u a l q u e r u m : estava grávida. estava o b c e c a d o e m saber o q u e o d o u t o r tinha a c h a d o
D e p o i s d e m u i t a l u t a e arrastões, c o n s e g u i m o s d a c a r n e d e b i f e . O h , ele g o s t o u t a n t o q u e m e p e d i u p a r a
MARGINAIS EVEL ROCHA
149
EVEL ROCHA
XXI
A tuberculose e o m e u envolvimento na m o r t e de
r a m b o tinham d e i x a d o m a r c a s p r o f u n d a s e m m i m . A
f e b r e provocava-me delírios e havia m o m e n t o s d e pesadelo
o n d e e u vivia t o d o s os h o r r o r e s a c u m u l a d o s ao l o n g o d a
m i n h a c u r t a existência. N ã o sei se e r a m visões d e o u t r o
m u n d o o u s i m p l e s m e n t e c o n f l i t o s d o m e u espírito q u e -
r e n d o libertar-se d o c o r p o . O d e s p r e n d e r d o c o r p o físico
é c o m o atravessar u m t u b o m u i t o e s t r e i t o r e v e s t i d o d e
u m l í q u i d o p e s a d o e pegajoso. M e u coração p a r o u . P o r
a l g u n s i n s t a n t e s , s e n t i q u e e u estava a voejar n o q u a r t o
c o m o u m pássaro e m e s p i r a l , e n q u a n t o c o n t e m p l a v a o
m e u c o r p o imóvel cada vez mais distante. A o separar-me d o
m e u c o r p o f o i c o m o se tivesse l i b e r t a d o d e u m a c o r r e n t e
e m brasas q u e m e e n v o l v i a . C o m e c e i a subir, atravessei o
t e c t o d a casa, s u b i e n t r e as n u v e n s , m i s t u r a n d o - m e e n t r e
c o r p o s angélicos d e luzes q u e s o r r i a m p a r a m i m . F o i u m a
e x p e r i ê n c i a extraordinária q u e se d e s v a n e c e u , q u a n d o
algo m e p u x o u v i o l e n t a m e n t e p a r a d e n t r o d o rrieu c o r p o ,
e n q u a n t o o coração r e t o m a v a o seu r i t m o n o r m a l - e r a
B e t o V e s g o a c h a m a r p o r m i m e m desespero.
V o l t e i a s e n t i r o s u o r f r i o h u m e d e c e n d o os lençóis
da cama, voltei à vida.
EVEL ROCHA
XXII
-I C O
— EVEL ROCHA
MARGINAIS
p r o f u n d o d o s s o n o s . N ã o d e v i a ser uísque o u q u a l q u e r
-los, iniciámos o t r a b a l h o d e castração. Djosa f o i o p r i m e i r o
b e b i d a c o m u m p o r q u e F u s c o e r a imbatível n o s c o p o s .
a e x p e r i m e n t a r a d o l o r o s a e a f i a d a lâmina r a s g a n d o a sua
Q u a n d o a c o r d o u , m e i o grogue, o l h o u para o tecto
confidência. P a r a m i m , f o i u m m o m e n t o s u b l i m e , u m a
b r a n c o l u m i n o s o , o l h o u p a r a os l a d o s , v e n d o a p e n a s
catarse e m o c i o n a l , v e r o s a n g u e p e d ó f i l o s e r i n g a n d o a
e s t r a n h o s , p e r g u n t o u o n d e estava, mas n i n g u é m o p o d i a
c a d a g o l p e . Os g r i t o s d e d o r e d e s e s p e r o e r a m h i n o s d e
e n t e n d e r . O q u e está a a c o n t e c e r ? Q u e língua é esta q u e
glória e e s p l e n d o r , as súplicas d e misericórdia d o s d o i s
estão a falar? D e p o i s de m u i t o soletrar, d e s c o b r i u que estava
c u r a v a m as penosas lembranças d e u m passado q u e n o s
n u m a e n f e r m a r i a d o A e r o p o r t o de J o a n e s b u r g o . Fez a mais
v i n h a p e r s e g u i n d o e a t o r m e n t a n d o , f e r o z m e n t e , ao l o n g o
l o n g a v i a g e m d a sua v i d a d e n t r o d e u m c o n t e n t o r de avião.
d a nossa existência.
F u s c o i n i c i o u a sua v i d a s e x u a l c o m rapazes a i n d a
Por favor, deixem-me i r embora, t e n h o três filhos para criar
m u i t o c e d o . N ã o a c r e d i t o q u e ele fosse u m a m u l h e r n u m
O v o não, t i r e m - m e t u d o m e n o s os ovos. A n t e s m o r t o
c o r p o d e h o m e m c o m o ele gostava d e a f i r m a r A c h o q u e
q u e s e m ovos!, g r i t a v a m .
t u d o c o m e ç o u nas b r i n c a d e i r a s d e m e n i n o , mas d e p o i s
D e regresso, abandonámo-los à b e i r a d a estrada o n d e f o i difícil c o n t o r n a r o vício.
alguém os h a v i a d e socorrer, p o i s , a nossa intenção não e r a N u m a m a d r u g a d a q u a l q u e r , e u tinha d a d o u m a
matá-los, mas fazer-lhes c a r r e g a r até à m o r t e o e s t i g m a d e escapulida d o m e u posto de g u a r d a - n o c t u r n o para beber
u m p e s a d e l o i m p i n g i d o a u m p u n h a d o d e adolescentes u n s copos. A o passar j u n t o a u m p a r d i e i r o , o u v i a voz r o u c a
sem eira n e m beira. d e desespero d e Fusco p e d i n d o s o c o r r o . Ele gritava a m e n i -
E u a d m i r a v a o c o m p o r t a m e n t o d e Fusco. Rebolava n a d o q u e j á não a g u e n t a v a m a i s e q u e i a m o r r e r Q u a n d o
a p o l p a obstinadamente, mas era arrojado. Q u a n d o a p r o x i m e i p a r a c e r t i f i c a r d o q u e se passava, d e p a r e i c o m a
p a r t i l h e i c o m ele a i d e i a de nos v i n g a r m o s dos dois patética c e n a d e F u s c o e u m t u r i s t a e m p l e n o acto sexual:
h o m e n s , e l e p r o n t i f i c o u - s e . E r a c o m o se tivesse t r a n s - o e s t r a n g e i r o tinha-o a m a r r a d o a u m a árvore, c o m u m
f o r m a d o n u m a f e r a , u m m u t a n t e q u e se l i b e r t a v a das c i n t o à v o l t a d a sua c i n t u r a e d a d e Fusco e, p e l o que ele
peças d e r o u p a f e m i n i n a e d a f r a g i l i d a d e d e m u l h e r p a r a m e c o n t o u , h a v i a mais d e duas h o r a s e o h o m e m não se
vestir a r o u p a g e m de u m a f e r a f e r i d a n a sua d i g n i d a d e . saciava d o gozo. Cala a boca, c a r a l h o ! Dou-te mais m i l paus!,
N ã o se t r a t a v a d e u m p r a z e r , o u d e u m d e s e j o selvático o r d e n a v a o português. F u i p e d i r a j u d a a a l g u n s clientes
e m a f e r r a r a d o r aos o u t r o s , m a s d e r e p o r a j u s t i ç a d o b a r p a r a a r r a n c a r o e s t r a n g e i r o g r u d a d o ao Fusco, q u e
q u e a p r ó p r i a l e i n o s t i n h a n e g a d o através d o s e n h o r estava e m estado d e c h o q u e . Fusco passou alguns meses
Apolinário. A vida breve de Fusco era u m m i l h e i r a l e m abstinência p a r a se r e c o m p o r d o susto e, d u r a n t e u m a
d e histórias engraçadas. L e m b r o - m e d o a l a r i d o q u e se v i n t e n a d e dias, não c o n s e g u i a r e t e r as fezes.
l e v a n t o u e m Chã d e F r a q u e z a , q u a n d o c h e g o u a notícia
q u e e l e d e s e m b a r c a r a d e u m d o s aviões d a S A A v i n d o
d a Á f r i c a d o S u l . N ã o f o i difícil d e s c o b r i r c o m o t u d o
acontecera: Fusco t i n h a i d o vasculhar u m dos c o n t e n -
t o r e s d e l i x o d e avião, e n c o n t r o u u m a g a r r a f a d e b e b i d a
p e l a m e t a d e ; n u m t r a g o , e n g o l i u a b e b i d a e, a t o r d o a d o ,
caiu desamparadamente n o contentor, p e g a n d o n o mais
EVEL ROCHA
XXIII
-\H
MARGI NAIS • _ EVEL ROCHA
^ RO
MARGINAIS . . EVEL ROCHA
^ «/I
EVEL ROCHA
XV
1RQ
MARGINAIS^ ^ EVEL ROCHA
171
MARGINAIS • _ EVEL ROCHA
d e l i v r e v o n t a d e e q u e j á e r a a d u l t a o s u f i c i e n t e p a r a fazer
d a sua v i d a o q u e b e m entendesse. L e i a e s c a p o u d a m o r t e
graças ao p o v o q u e se j u n t o u , f a c i l i t a n d o a sua fuga. N o d i a
XXVII
s e g u i n t e , as p a r e d e s d a r u a d o H o s p i t a l t r a n s f o r m a r a m - s e
n u m p a i n e l d e frases d e a m o r dedicadas à Amália. U m a das
declarações d e a m o r , e m letras grandes e gordas, a p a n h a v a
de u m a p o n t a à o u t r a a r u a o n d e morava:
Qualquer dia
me embarco na loucura dos meus sonhos Q u e m n ã o se l e m b r a d e T o i N i n h a ? E l e m o r a v a
nas profundas águas da minha sede p e l o s l a d o s d a P e d r e i r a , j u n t o ao P o ç o V e r d e . E r a v e n d e -
d o r d e água - n o ú n i c o p o ç o d e água q u e s e r v i a p a r a
Qualquer dia b e b e r , e m b o r a fosse p e s a d a e u m t a n t o s a l o b r a . D e
me entrego ao perigo de te amar t e m p o s e m t e m p o s , p e r c o r r i a q u i l ó m e t r o s d e distância
à loucura de te possuir c o m u m a m e s a à cabeça, c o l o c a v a - a n o m e i o d a praça,
naufragando-me nos teus seios proibidos subia e m c i m a dela e pregava, energicamente, que o
m u n d o ia acabar. C o m a r d e p r o f e t a e n f a t i z a d o p e l a
ferirei a minha integridade b a r b a c a r a p i n h a , f a l a v a d o s cavalos d e a p o c a l i p s e , das
sofrerei com prazer v i r g e n s loucas, d o i n f e r n o , d o p e r d ã o e c h o r a v a , desatina-
dormirei nos teus braços d a m e n t e , p e l o p o v o q u e c a m i n h a v a p a r a a perdição. T o i
para nunca mais acordar! N i n h a i l u s t r a v a as suas pregações c o m histórias c a b e l u d a s
dos coronéis e das m u l h e r e s d a i l h a , a r r a n c a n d o aplausos
O d o u t o r b o t a v a f o g o pelas ventas, m a s n a d a p o d i a trocistas d a m a l t a ociosa. E r a t o m a d o c o m o d o i d o , mas
fazer c o n t r a Leia, a não ser prendê-lo p o r u n s dias n a cadeia as suas p a l a v r a s m a n i n h a d a s e s t a v a m c a r r e g a d a s d o f e l
p o r v i o l a r o património dos m o r a d o r e s d a r u a . A o passar d a s i n c e r i d a d e i r o n i z a d a . O s e n h o r M a n u e l Soares, s o g r o
pelas casas, ao l e r aquelas frases escritas a tinta avermelhada, d o d r A p o l i n á r i o , r e s o l v e u p ô r c o b r o aos d e s v a r i o s d o
seu coração destroçado, f r u s t r a d o p e l a má sorte d a f i l h a n o «pregador». E m p u n h a n d o u m machado, e m p u r r o u T o i
a m o r , c o m p r e e n d e u q u e só l h e restava pagar a alguém q u e N i n h a p a r a o lado^e q u e b r o u - l h e a m e s a e m p e d a ç o s . A
repintasse as paredes. Apolinário f o i falar c o m a mãe d e L e i a m u l t i d ã o , e m vaias e assobios, i n c i t o u o T o i q u e r e a g i u
p a r a c o n v e n c e r o f i l h o a desistir d a q u e l e estúpido n a m o r o c o m violência. T o i N i n h a e r a b a i x o , a t a r r a c a d o , mas
e mantivesse distância d a sua filha, c o n t u d o n a d a o d e m o v i a t i n h a a força d e u m b o i d e t r a p i c h e . A v a n ç o u c e g a m e n t e
das suas intenções d e a m a r e t e r n a m e n t e Amália. L e i a saiu à sobre o s e n h o r M a n u e l e i m p i n g i u - l h e golpes pelos
rua batendo n o peito descamado e gritou, O senhor pode r i n s , m a s a s u a fúria f o i a p l a c a d a p o r d o i s polícias q u e
m a n d a r apagar as frases, p o d e trancá-la n o q u a r t o p a r a não o d e r r u b a r a m às c a c e t a d a s . D i a s d e p o i s , p a r a a c o n s t e r -
m e v e r mais, mas não poderá apagar e n e m p r e n d e r o a m o r nação d e t o d o s , T o i N i n h a f o i i n t e r n a d o n o h o s p i t a l d e
q u e sentimos u m p e l o o u t r o ! Preguiça c o m a l í n g u a c o r t a d a . O c o m a n d o d a p o l í c i a
175
MARGINAIS_
EVEL ROCHA
USOU t o d o s os a r g u m e n t o s n a t e n t a t i v a d e c o n v e n c e r a
s u b i a m à missa d a cabeça. O c e r t o é q u e passava a n o i t e
opinião pública q u e ele t i n h a sido i n t e r n a d o p o r q u e i n t e i r a pelas ruas d a Preguiça até ao h o s p i t a l a n d a n d o e
c o r t a r a a l í n g u a c o m os d e n t e s n u m d o s seus a t a q u e s gritando:
d e l o u c u r a . A m e n t i r a d o s a g e n t e s c e g o u - l h e a razão
e tornou-se v i o l e n t o . U m dos presos d e u d e p o i m e n t o O Deus t'ma-me bô leva-me
que u m carcereiro t i n h a abusado do Toi e cortou-lhe O Poderoso t'ra-me desse afronta^
a língua p a r a não o d e n u n c i a r . T o i N i n h a n u n c a mais
seria o m e s m o . D e i x o u de t r a b a l h a r c o m o v e n d e d o r
P o u c o a n t e s d e escrever este capítulo, o c o r p o d e
d e água d o P o ç o V e r d e e p a s s o u a v i v e r d e b a r e m b a r ,
T o i N i n h a f o i levado p a r a o Cemitério de Pedra de L u m e
o n d e h o u v e s s e v i v a l m a q u e l h e desse d e c o m e r e u m
n u m caixão d o M u n i c í p i o . T o i , o « p r e g a d o r » , m o r r e r a
p o u c o de atenção, m o s t r a n d o a t o d o s c o m o ele t i n h a h a v i a m u i t o s anos atrás. O q u e estava d e n t r o d o caixão
s i d o v i o l e n t a d o : a r r i a v a as calças, j u n t a v a as mãos p a r a e r a o q u e r e s t a r a d a violência p o l i c i a l , d a injecção l e t a l
m o s t r a r c o m o f o i a l g e m a d o e d e p o i s caía d e j o e l h o s n a n o c e n t r o psiquiátrico, d u m a s o c i e d a d e r e c r i m i n a d o r a e
p o s i ç ã o e m q u e f o i v i o l e n t a d o . N o l u g a r das p a l a v r a s despojada de sentimentos.
soltas, g e m i a f u r i o s a m e n t e , a f u g e n t a n d o t o d o s os q u e
M e u grande receio era ter de acabar u m d i a c o m o
se c r u z a v a m c o m ele. A g r e d i a as pessoas, q u a n d o q u e r i a Toi Ninha.
d i z e r a l g u m a coisa e não p o d i a . M e u s o l h o s enchiam-se
d e lágrimas, q u a n d o o v i a n a q u e l e e s t a d o d e p l o r á v e l . A
sua angústia p o r não p o d e r f a l a r e r a a f o g a d a n o s a t a q u e s
violentos que l h e corroíam a alma. Revoltados c o m a
situação d e T o i N i n h a , f i z e m o s u m a g r a n d e arruaça
e m p l e n a m a d r u g a d a : v a n d a l i z á m o s os c a r r o s q u e n o s
a p a r e c i a m à f r e n t e , q u e b r á m o s os v i d r o s das m o n t r a s ,
esvaziámos os c o n t e n t o r e s p e l a s r u a s e d e i x á m o s u m
aviso n a p a r e d e d a câmara m u n i c i p a l q u e se n ã o t o m a s -
sem m e d i d a s haveríamos de v o l t a r à carga.
Meses d e p o i s , e n c o n t r e i o « p r e g a d o r » à p o r t a d o
p e l o u r i n h o deitado de lado a p e d i r esmola. T o i N i n h a
t r a n s f o r m o u - s e n u m vegetal. U r i n a v a e defecava nas calças
p o r q u e p e r d e r a o d o m í n i o d o s seus m o v i m e n t o s e não
t i n h a a n o ç ã o d a r e a l i d a d e q u e o cercava.
D e s d e criança, a f i g u r a d e T o i N i n h a esteve s e m p r e
p r e s e n t e n a m i n h a v i d a . E l e s o f r i a d e u m a d o r d e cabeça
q u e o d e i x a v a d e s e s p e r a d o e só se a c a l m a v a d e p o i s d e l h e
i n j e c t a r e m r e m é d i o nas veias. A l g u n s d i z i a m q u e ele tínha
u m c a n c r o n o cérebro, o u t r o s q u e e r a m l o m b r i g a s q u e l h e 8 O Deus, toma-mc e leva-nie // ó poderoso, lira-me dessa afronta.
17R
EVEL ROCHA
XXVIII
e n c o n t r o u u m a f o r m a d i v e r t i d a p a r a sobreviver e p a r e c i a
p a r d a i s g o s t a m d e m i m e p o r isso v i v e m à m i n h a v o l t a
q u e t o d o s os p a r d a i s d e P a l h a V e r d e se j u n t a v a m p a r a o
G e n t e g r a n d e t e m p a s s a r i n h o n a g a i o l a p o r q u e sabe u
ajudar. Zé sabia d i s t i n g u i r os p a r d a i s - d e - t e r r a e t i n h a u m
os b i c h o s não g o s t a m d e g e n t e g r a n d e . Se gostassem, não
n o m e p a r a c a d a u m , Sabes, é fácil reconhecê-los, disse,
p r e c i s a v a m d e g a i o l a e g a i o l a é coisa d e p r e s o c r i m i n o s o
p a r a s e g u i d a m e n t e i m i t a r o t r i n a r dos p a s s a r i n h o s . Estás
Zé era p e q u e n o , mas t i n h a o tino de u m h o m e m feito.
a v e r estas p e n i n h a s d e u m c a s t a n h o a m a r e l a d o d e b a i x o
N o d i a e m q u e o p a r d a l d e penas castanhas amareladas
d o bico? Este é o Bóris. P o r q u ê Bóris? Sei lá! T o d a a g e n t e
m o r r e u , Zé c h o r o u - o a m a r g a m e n t e , Sua h o r a c h e g o u . Será
tem u m nome. Aquele é o Zidane. Tem o cocuruto pelado
p a r a isso q u e s e r v e m as horas? Se t e m o s h o r a p a r a m o r r e r
e é o mais h a b i l i d o s o d e t o d o s . Estás a v e r a q u e l e p a r d a l
p o r q u e se m o r r e d e f o m e e d e doenças?
c o x e a n d o n o cabouco? É o Perneta... a h , a h !
Q u a n d o a sua mãe e r a atacada pelas crises cardíacas
Zé P a r d a l c o n t a v a a história d o p a r d a l - d e - t e r r a q u e ele esbracejava, desesperadamente, n o m e i o d a estrada p a r a
salvou o m e n i n o Jesus, q u a n d o H e r o d e s p r o c u r a v a matá-lo. q u e alguém a socorresse. P r o v a v e l m e n t e , terá s i d o n u m a
São José i a à f r e n t e , Nossa S e n h o r a e o m e n i n o i a m m o n - desses ocasiões q u e u m c a r r o a alta v e l o c i d a d e a t r o p e l o u
tados n u m b u r r i n h o e o p a r d a l - d e - t e r r a i a atrás, a p a g a n d o Zé P a r d a l , arra,«tando-o quase u m a d e z e n a d e m e t r o s n o
as marcas d e sapato e dos cascos c o m as asas. F o i assim q u e asfalto. A q u e l e c o r p i n h o frágil d e m e n i n o f o i esquartejado
f u g i r a m p a r a o E g i p t o , d i z i a , i m i t a n d o c h i s t o s a m e n t e cada pelas r o d a s implacáveis d e u m c a r r o e m alta v e l o c i d a d e .
p e r s o n a g e m d a história. N o l u g a r d o r o s t o i n o c e n t e estava u m a massa d i s f o r m e
Todos os passageiros q u e paravam e m Palha Verde terão c o b e r t a d e sangue. Os braços e as p e r n a s m u t i l a d o s , e m
o u v i d o esta história fantástica, O m e n i n o Jesus escapou d o espasmos, saltavam n o a l c a t r o a d o e n t r e b o c a d o s de t r i p a s
ódio d o r e i m a l v a d o graças a u m p a r d a l z i n h o c o m o este. a r r o m b a d a s . A mãe, q u e assistira à h o r r e n d a tragédia d o
T o d a s as suas histórias e r a m povoadas de p a r d a i s . filho s e n d o a r r a s t a d o e n t r e o pára-choques e as r o d a s
Tornámo-nos a m i g o s desde o p r i m e i r o d i a e m q u e l h e d i a n t e i r a s d o c a r r o , só teve t e m p o d e c o r r e r p a r a abraçar
d e i c i n q u e n t a escudos p a r a s o l t a r u m p a s s a r i n h o . E s t e n d i a q u e l e c o r p o sem v i d a p a r a d e p o i s m o r r e r também. Mãe e
a mão p a r a l h e e n t r e g a r o d i n h e i r o e ele s a l t o u u m a risada filho f o r a m c o b e r t o s c o m u m g r a n d e lençol à espera q u e as
i n o c e n t e q u e e u tinha c a r r a p a t o s n a mão. a u t o r i d a d e s t o m a s s e m c o n h e c i m e n t o . Os pardais-de-terra
N ã o são c a r r a p a t o s , são v e r r u g a s q u e m e n a s c e r a m d e i x a r a m d e p o u s a r nas d u n a s d e a r e i a e n o solo agreste
nas costas d a m ã o p o r t e r c o n t a d o estrelas. d e P a l h a V e r d e ; a sua m e l o d i a t r a n s f o r m o u - s e n u m c a n t o
U m a vez p e r g u n t e i - l h e se q u e r i a q u e l h e arranjasse triste d e q u e m c h o r a e busca o seu m e l h o r a m i g o .
u m a g a i o l a p a r a c o l o c a r os p a s s a r i n h o s e fiquei s u r p r e e n - Se r e a l m e n t e o céu existe, Zé é u m a n j o c o m d o u r a -
d i d o c o m a sua resposta. Nas suas palavras carregadas d e das asas d e p a r d a l e v o a c o m o n a v i o s i n g r a n d o as o n d a s
inocência e b o n d a d e p u d e c o m p r e e n d e r c o m o as pessoas agitadas d a e t e r n i d a d e .
q u e m o r a m n a u r b e s a b e m p o u c o s o b r e os pássaros e a Acabou-se o Zé P a r d a l .
n a t u r e z a . G a i o l a é coisa d e g e n t e r u i m . N i n g u é m gosta
d e v i v e r e n f i a d o n a c a d e i a . Se f e c h a r e s u m p a s s a r i n h o
n u m a g a i o l a , ele m o r r e d e t r i s t e z a . E u f a l o l i v r e m e n t e
c o n t i g o p o r q u e q u e r o e sei q u e não m e fazes m a l . O s
EVEL ROCHA
XXIX
P a l e r m a d a v a evidências d e p e r t u r b a ç ã o m e n t a l
a c e n t u a d a . Passava o d i a n o A e r o p o r t o c o m u m a v e l h a
pasta p e r g u n t a n d o aos t r a n s e u n t e s p e l o seu avião. T i r a v a
o c h a p é u a t o d o s os h o m e n s d e g r a v a t a c o m q u e m se
c r u z a v a e d e s e n r o d i l h a v a a língua, O senhog não v i u m e u
avião pog 2l\} E q u e e u o d e i x e i a m a r r a d o a o p o s t e d a
p l a c a . . . A gravata assimétrica d e cores g a r r i d a s , o chapéu
d e aviador, o casaco amassado e c u r t i d o p e l o t e m p o e as
calças meia-canela aferiam-lhe a i m a g e m d e u m e s p a n t a l h o
ambulante. Palerma t i n h a a postura de u m m o r d o m o , nos
gestos p o l i d o s e nas palavras. Q u a n d o alguém l h e o f e r e c i a
d i n h e i r o , levantava a cabeça, e m p i n a v a o n a r i z e recusava,
e d u c a d a m e n t e , Guagda seu dinheigo paga meguenda, senhog.
A l g u é m o c o n v e n c e u a a b a n d o n a r a i d e i a d e ser
p i l o t o , S e n h o r P a l e r m a , p o r q u ê q u e não se t r a n s f o r m a
e m profeta? V o c ê t e m c a r a d e p r o f e t a .
N u m t e r r o s o d o m i n g o d e manhã, n o m e i o d a euca-
r i s t i a d o m i n i c a l . P a l e r m a i r r o m p e u p e l a nave d a i g r e j a d e
S a n t o A n t ó n i o e m b r u l h a d o n u m lençol, d i z e n d o ao p a d r e
e aos fiéis q u e t i n h a r e c e b i d o u m a revelação d i v i n a . E r a
t e m p o d e m u d a r a oração «ave-maria» p a r a «ave-marmita»,
p o i s , e r a a única f o r m a d e acabar c o m f o m e n a t e r r a ; o
p o v o precisava e r a d e m a r m i t a c h e i a .
Palerma sentía^se satisfeito c o m a a l c u n h a d e São Pedro.
A c r e d i t a v a q u e o santo era mais p o d e r o s o d o q u e Deus, pois
ele tínha as chaves d o céu. Se o C r i a d o r quisesse e n t r a r n o céu
teria de p e d i r as chaves ao p o r t e i r o . O p o n t o alto das prédicas
1«Q
MARGINAIS_ EVEL ROCHA
-I QR
MARGINAIS
EVEL ROCHA
1 «7
MARGINAIS EVEL ROCHA
1«Q
MARGINAIS . EVEL ROCHA
iO-l
MARGINAIS EVEL ROCHA
H n o
MARGINAIS . EVEL ROCHA
H n/1
MARGINAIS . ^ _ EVEL ROCHA
196
MARGINAIS - - EVEL ROCHA
p e l a força d a a g u a r d e n t e ; as p o u c a s p l a n t a s q u e e n f e i t a -
v a m a l g u m a s s e p u l t u r a s s u c u m b i r a m à i m p e t u o s i d a d e das
mãos e n d u r e c i d a s p e l o t r a b a l h o forçado, pelos cabos d e
XXXII
e n x a d a s e p i c a r e t a s q u e destruíam t u d o o q u e a p a r e c i a
p e l a f r e n t e . Q u a n d o a polícia c h e g o u ao l o c a l , a m u l t i -
dão f u r i o s a t i n h a devastado o cemitério e s u m i d o não se
sabe c o m o . Parecia q u e o cemitério tivesse s i d o devastado
p o r u m a t e m p e s t a d e r e l â m p a g o . F u i p r e s o , mas, n o d i a
s e g u i n t e , f u i s o l t o p o r q u e a l g u n s presentes r e c o n h e c e r a m
a m i n h a enérgica oposição ao v a n d a l i s m o d o l u g a r q u e e u N a q u e l a n o i t e , n o silêncio d o q u a r t o , l e m b r e i - m e de
considerava sagrado. L e i a Magreza, m o ç o i n t e l i g e n t e , de espírito aguçado, f e i t o
E x t e n u a d o , v o l t e i p a r a Santa M a r i a c i e n t e d o d e v e r u m traste, algures p e l a f e b r e incurável d a solidão corrosiva
c u m p r i d o . Era t e m p o de pensar e m m i m , n o m e u f u t u r o , c o m o a m a r e s i a de Fiúra. Os seus chorosos versos e r a m de
no m o m e n t o e m que poderia dar u m a virada completa u m a tristeza b r u t : J , as r i m a s e r a m esculpidas n u m a h a r m o -
n a m i n h a v i d a . V o l t e i p a r a os ensaios, mas antes tinha d e n i a m e t i c u l o s a e t r i t u r a d a s n a e n g r e n a g e m sórdida dos seus
t o m a r u m a dose d o d i v i n o p ó b r a n c o , o único a m i g o capaz sentimentos, misturava-as c o m o a m a r g o sal das suas lágrimas
de m e c o m p r e e n d e r e ajudar a esquecer o malfadado d i a destiladas p e l a d o r d e a m a r o p r o i b i d o . L e i a f o i o m a i o r
d o e n t e r r o d e M i r n a - e r a a s u b l i m e h o r a d e lavar a a l m a . p o e t a m a r g i n a l destas ilhas! E p e n a q u e os j o r n a i s não p u b l i -
Sentia q u e t i n h a c h e g a d o a m i n h a vez. O m e u t r i u n f o seria q u e m os seus p o e m a s . O s j o r n a i s estão cheios de parvoíces
o t r i u n f o d e t o d o s os m e n i n o s d a r u a d a R i b e i r a , das c r i a n - q u e os editores, n u m a h i p o c r i s i a deslavada e gananciosa,
ças m a l t r a t a d a s p e l o d e s t i n o , d o s adolescentes d e s o n h o s destacam de u m a f o r m a leviana. É m i n i s t r o - p o e t a versando
embargados, dosjovens marginais, ignorados pelo poder m e d i o c r i d a d e s , é militante-contador-de-estórias q u e escreve
político e p e l o s deuses d a p r o s p e r i d a d e . a n t o l o g i a s d e ignorância e é levado p a r a a televisão p a r a
D e p o i s d e e n s a i a r c o m a b a n d a , v o l t e i p a r a a casa falar d e c u l t u r a . Mas L e i a t i n h a razão, a poesia deve ser l i d a
e lá r e f l e c t i a m i n h a v i d a . S n i f e i u m p o u c o p e n s a n d o n o d e q u a l q u e r j e i t o , seja nos livros o u nas paredes das casas.
antes e n o d e p o i s d o festival, a g r e l h a d a p a r t i d a p a r a a A l u c i n a d o p e l a decisão d o d o u t o r Apolinário e m p r o i b i r a
c o r r i d a d o sucesso: q u i n z e d e S e t e m b r o , o d i a q u e havia de Amália d e se e n c o n t r a r c o m ele, passava horas sem c o m e r ,
m a r c a r p a r a s e m p r e a m i n h a v i d a ! A m i n h a intenção não d e c l a m a n d o versos e c a n t a n d o baladas de a m o r p a r a a sua
e r a a b u s c a d a f a m a , mas servir-me d e l a p a r a a p r o x i m a r amada, n o calor abrasador d o meio-dia e d a causticante
os d o i s m u n d o s q u e p o v o a m a i l h a , servir d e p o n t e e n t r e g e a d a d a n o i t e , à m e r c ê d o v e n t o seco d o mês d e M a i o ,
os q u e l u t a v a m p e l a sobrevivência e os q u e l u c r a v a m c o m q u e l h e rasgava os lábios, e d a d o l o s a c h u v a de S e t e m b r o ,
essa sobrevivência, aqueles q u e c h o r a v a m e aqueles q u e i n d i f e r e n t e às ameaças d o m a l d i t o a d v o g a d o e aos c o m e n -
v e n d i a m lenços. tários d e s p r o p o s i t a d o s dos q u e p o r ele passavam. O tino
V e j o a m i n h a i l h a e não gosto d o q u e vejo. d e L e i a só r e s p o n d i a a u m c h a m a d o : o g r a n d e a m o r p e l a
Amália. L e i a necessitava u r g e n t e m e n t e q u e ela voltasse p a r a
os seus braços.
198
.... xi-iGINAIS . . . ,
9 0 1
EVEL ROCHA
XXXIII
9 0 5
MARGINAIS EVEL ROCHA
D e p o i s d a sentença, f u i t r a n s f e r i d o p a r a u m a cela
i s o l a d a o n d e os m e u s g r i t o s não i n c o m o d a v a m os o u t r o s
presos. Passei três meses s e m ver a l u z d o sol e sem r e c e b e r
XXXIV
u m a visita sequer. N ã o q u e r o r e c o r d a r t u d o o q u e passei n a
cadeia, p o i s , s i n t o v e r g o n h a d e m i m m e s m o . N e s t a t e r r a ,
só v a i p a r a c a d e i a ladrão d e g a l i n h a e filho d e p o b r e .
A p r e n d i q u e a esperança é c o m o u m a m u l h e r i n f i e l .
S o n h a m o s c o m ela a v i d a i n t e i r a e, à m e d i d a q u e o t e m p o
passa, dá-nos alguns sinais d e q u e t u d o vai d a r c e r t o , faz-nos
a c r e d i t a r n e l a até q u e u m d i a nos c h i f r a , d e s a l m a d a m e n t e , Saí d a c a d e i a quase à força p o r q u e não tinha p a r a
e se e v a p o r a n a escuridão d o t e m p o . o n d e i r N i n g u é m esperava p o r m i m e m l u g a r n e n h u m ,
C u m p r i a p e n a s n o v e meses n a prisão. P i a n i s t a f o i não t i n h a a m i g o s e n e m o n d e v i v e r P e d i ao p r o c u r a d o r
e n v i a d o p a r a a Cadeia C i v i l de São V i c e n t e . Pesava sobre ele q u e m e deixasse passar as n o i t e s n a cela até e n c o n t r a r u m
u m a série d e acusações, e n t r e os quais, abuso d e m e n o r e s . q u a r t o , mas r e c u s o u . N a c a d e i a e u t i n h a c o m i d a e c a m a ,
t o m a v a b a n h o e não t i n h a q u e m e h u m i l h a r , n e m d e m e
s u b m e t e r aos c a p r i c h o s d e u m e m p r e g a d o r q u a l q u e r .
M e u c o r p o , d e b i l i t a d o pelos dias preguiçados e m o l e s d a
reclusão, não i a a g u e n t a r a estocada d o t r a b a l h o forçado.
O s o l e r a m u i t o f o r t e p a r a a m i n h a p e l e pálida e sensível,
a c o s t u m a d a à s o m b r a das p a r e d e s escuras d o cárcere. A
m i n h a única saída era r o u b a r e v o l t a r de n o v o p a r a a cadeia.
H o j e é o m e u p r i m e i r o d i a de l i b e r d a d e . O sol parece
b r i l h a r m a i s d o q u e n u n c a . Os o l h a r e s oblíquos d e q u e m
passa p o r m i m a d v e r t e m - m e d a d u r a l u t a q u e m e espera.
A fingir, m e u s o l h o s m i r a m o vazio das ruas sem paredes
fechadas, sem c o r r e d o r e s s o m b r i o s , sem g u a r d a s c a r r a n -
c u d o s , sem o c h e i r o f r i o e m o f o dos colchões c h e i o s d e
b u r a c o s p o r o n d e os presos m a s t u r b a m , s e m a r u i d o s a
p o d r i d ã o dos a r r o t o s c o n s t a n t e s d a fossa d a cela.
C o n t u d o , é céu d e m a i s p a r a a m i n h a l i b e r d a d e .
C o m o s e m p r e , e n c o n t r e i refúgio n u m q u a r t o
e m p r e s t a d o p o r B e t o , m e u único c o m p a n h e i r o d e infância
q u e c o n s e g u i u escapar ãs teias d o d e s t i n o f a t a l d a m a r -
ginalidade. Não acredito e m milagres, c o n t u d o t e n h o de
reconhecer que Beto era u m h o m e m diferente. Não tinha
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MARGINAIS —• EVEL RO^H^
OOD 209
MARGINAIS-
EVEL ROCHA
9m
MARGINAIS
e u e os p i t b o y s f a z e m o s p l a n o s p a r a a n o i t a d a q u e não
t a r d a . N a r u a de trás, vejo-me c o m os rapazes, r i n d o d a XXXV
r a p i d e z c o m q u e u m g a l o dá u m a g a l a d u r a a u m a g a l i n h a .
A q u e l e a l t o o n d e se e r g u e a i g r e j a apostólica é o m e s m o
o n d e e s c o n d i d o m u n d o , assustado. E s c o n d i d o m u n d o
i n t e i r o p o r t e r f u r t a d o pão n a p a d a r i a d e N h a Amélia. O
m u n d o i n t e i r o c h a m a v a - m e d e ladrão d e s c a r a d o e q u e e u
t i n h a d e levar p o r r a d a p a r a p ô r j u í z o , o u m e l h o r , d e v i a m
c o r t a r - m e as mãos p a r a a p r e n d e r a não m e x e r nas coisas
dos o u t r o s . M e u coração b a t i a q u e n e m u m t a m b o r d e São Todas as noites, depois de u m d i a atarefado, Apolinário
J o ã o . M e u s o l h o s h u m e d e c e m e n q u a n t o r e l e m b r o esse regressava a casa e, d e p o i s d e t o m a r u m b a n h o q u e n t e ,
triste episódio, aliás, as m i n h a s recordações são tão reais enrolava-se n o lençol e d o r m i a p r o f u n d a m e n t e . O cansaço
q u e o m e u c o r p o t r a n s p i r a suor, os g r i t o s d a vizinhança, d o a d v o g a d o e r a e v i d e n t e e d o n a Eufêmia mostrava-se
as g a r g a l h a d a s dos o u t r o s , os desaforos d e E m b a l a d o , as p r e o c u p a d a c o m o e m p e n h o d o m a r i d o . N u m a dessas
r e p r i m e n d a s d e m a m ã e , os l a t i d o s dos cães e d a multidão n o i t e s , ela r e s o l v e u i r levar u m c a f e z i n h o ao seu q u e r i d o e
e m alvoroço, d e i x a m - m e c o n f u s o e não sei se é r e a l o u se esforçado esposo e, p a r a seu desgosto, e n c o n t r o u u m o u t r o
é apenas recordação. h o m e m e m c i m a d o seu m a r i d o : d r A p o l i n á r i o estava d e
Nas esquinas d o m e u b a i r r o , a q u e l e m e n i n o q u e e u gatas a ser e n r a b a d o p e l o seu m o t o r i s t a . D o n a Eufêmia, sem
f u i aproximou-se de m i m , o l h o u - m e nos olhos e d e i x o u p e r c e b e r o q u e estava a acontecer, e m desespero de causa,
c a i r grossas lágrimas. O seu o l h a r r e f l e c t i a a frustração saiu g r i t a n d o p o r s o c o r r o . Estão a m a t a r A p o l i n á r i o , estão
e m saber q u e o h o m e m q u e e u s o u j á não tinha a m e s m a a m a t a r o m e u m a r i d o ! P o r favor, m i n h a g e n t e , v e n h a m
a l e g r i a d e v i v e r g u a r d a d o n a q u e l e coração d e m e n i n o . ajudá-lo antes q u e seja t a r d e .
Se e u pudesse v o l t a r n o t e m p o , se tivesse a p o s s i b i l i d a d e N u m á p i c e , as pessoas, c o m o c r e d o n a b o c a ,
de e n c o n t r a r aquele adolescente que f u i , ensinar-lhe-ia e n c h e r a m a praça d a Câmara M u n i c i p a l e, e m p o u c o
u m o u t r o c a m i n h o q u e não este calvário, m o s t r a r - l h e - i a t e m p o , o susto d e u l u g a r a d e b o c h e s : e r a u m s i m p l e s
as cicatrizes c o l h i d a s nesta v i d a e o fim q u e m e espera, e n c o n t r o a m o r o s o e n t r e dois h o m e n s . O escândalo despo-
convencê-lo-ia a a r r e p i a r o c a m i n h o d a r e v o l t a e a a p r e n d e r l e t o u c o m o u m r a s t i l h o de pólvora, l e v a n d o o a d v o g a d o ao
a engolir o peixe pelo rabo. i s o l a m e n t o , q u e d u r a r i a p o u c o t e m p o . O vício a t r a v a n c o u -
-Ihe o j u í z o e m o r r e u n u m desastre q u e até h o j e ninguém
s o u b e e x p l i c a r O j u r i s t a q u e c o n t o r n a v a a l e i e r e v e r t i a as
adversidades a seu f a v o r não c o n s e g u i u e n g a n a r a m o r t e .
D o n a Eufêmia, d e r r o t a d a p e l a desgraça, f o i m o r a r c o m
a filha e o n e t o e m P e d r a d e L u m e .
A m i n h a única tristeza n a m o r t e d o a d v o g a d o f o i não
t e r p o d i d o r e t r i b u i r - l h e a c u s p i d e l a de escarro n o pescoço
q u e a i n d a sinto c o m o f o g o a q u e i m a r a m i n h a pele.
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MARGIN^JS EVEL R O C H A
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P r o v a v e l m e n t e , irá r e s p o n d e r ao t r i b u n a l p o r t r a n s g r e d i r
as n o r m a s d a c i d a d a n i a o u p o r c o m e t e r a l g u m c r i m e . Essa
visão se cumprirá p a r a desviar a atenção d a opinião pública
XXXVII
d e o u t r o s c r i m e s c o m e t i d o s p e l o s coronéis, o p e r a d o r e s
turísticos, g o v e r n a n t e s c o r r u p t o s , t r a f i c a n t e s d e m e n o r e s
e d o vício - esses são os v e r d a d e i r o s m a r g i n a i s .
M ã e e filha abraçaram-se e, resignadas, e n c o l h e r a m
os o m b r o s . A m b a s e n g r a v i d a r a m - s e n a m e s m a s e m a n a d o
mesmo h o m e m .
E r a necessário t o c a r a v i d a p a r a fi"ente. N o v e h o r a s d a n o i t e . A música natalícia v i n d a d o s
lados d a Praça d e L i b e r d a d e a c o r d o u - m e . D u r a n t e a t a r d e ,
a n d a r a m p o r aí a c o n v i d a r as pessoas d a r e d o n d e z a p a r a
p a r t i c i p a r e m d o N a t a l dos C a r e n c i a d o s . N u n c a antes t i n h a
o u v i d o u m a m e l o d i a tão a n g e l i c a l c o m o aquela; ouço vozes
d e crianças, d e j o v e n s e a d u l t o s c a n t a r i d o « n o i t e d e p a z » .
A h ! C o m o e u q u e r i a t e r paz neste m o m e n t o !
M e i o descambado, fiai tacteando p a r a a b r i r a p o r t a e
aproveitar a claridade das luzes de natal q u e enfeitavam a r u a .
O único agasalho q u e e u tinha era u m casaco de lã q u e B e t o
m e oferecera. H a v i a u m a semana q u e sentia u m a f o r t e d o r
n o p e i t o a c o m p a n h a d o d e febre e tosse. A tuberculose v o l t o u
a atacar-me e a v o n t a d e d e snifar era cada vez mais intensa.
N a t a l é t e m p o d e presentes. O m e u m e l h o r p r e s e n t e
era conseguir desaparecer n o t e m p o .
C o m o u m v e l h o tísico, fragilizado pela dor, não consigo
c o o r d e n a r os meus m o v i m e n t o s , não t e n h o forças para vencer
a tristeza q u e m e envolve n a solidão d a n o i t e , m i n h a s vísceras,
m e u o r g a n i s m o g r i t a m n u m fragor e n s u r d e c e d o r pela droga.
Talvez e u mereça o golpe de misericórdia de u m a dose cavalar,
d o c o r t e d e u m a lâmina n o pulso, de u m tiro n a cabeça.
Sinto que chegou o fim, é hora de buscar essa paz que cantam
lá fora. Fecho os olhos e vejo os astros a brilhar, vejo u m a estrela
f l % u r a n t e e as nuvens prateadas que parecem aiijos que cantam
pela paz e a m i n h a alma anseia p o r demais pelo sol de etemo fiilgor
que, certamente, iluminará os meus passos n o além...
oon
EVEL ROCHA