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Inforgeo, Julho 2007, 59-63

RISCOS E ORDENAMENTO
DO TERRITÓRIO

José Luís Zêzere*

1. Catástrofes Naturais riais, resultantes da destruição de infra-estrutu-


ras económicas e sociais e de danos ambien-
e (des)Ordenamento tais, atingiram a cifra (avaliada por defeito) de
do Território 1,38 triliões de dólares (Guaha-Sapir et al.,
2004). No mesmo sentido, as projecções efec-
Ao contrário do que seria desejável, o cres- tuadas em 2001 pela Munich Re, para o hori-
cimento económico e o desenvolvimento tec- zonte temporal de 2050, apontam para 100.000
nológico verificados no decurso do século XX mortos/ano e prejuízos anuais na ordem dos
não foram acompanhados pela redução da 300 biliões de dólares, devido a perigos natu-
ocorrência de catástrofes naturais, entendidas rais (SEI, IUCN, IISD, 2001).
enquanto interrupções sérias da funcionalidade As razões que justificam o aumento expo-
das comunidades, na sequência de um evento nencial dos desastres naturais nas últimas
natural perigoso, responsável por perdas huma- décadas têm sido objecto de amplo debate pela
nas, materiais ou ambientais significativas, que comunidade científica. No caso dos eventos
excedem a capacidade da comunidade afec- climáticos e hidrológicos extremos, admite-se
tada em recuperar com base nos seus próprios a existência de um aumento do número de
recursos (ISDR, 2004). A base de dados EM- ocorrências, provavelmente associado a modi-
-DAT (CRED, 2006) reporta cerca de 9000 ficações climáticas globais. Porém, no caso
catástrofes naturais desde o início do século dos fenómenos ligados à geodinâmica interna
XX, sendo que mais de 80% dos eventos ocor- (e.g. sismos ou erupções vulcânicas) esse incre-
reu no período posterior a 1974. Entre 1974 mento não se confirma, pelo que, pelo menos
e 2003 o número médio anual de catástrofes nestes casos, as razões para o agravamento dos
registadas no mundo cresceu cerca de 4 vezes. prejuízos prendem-se com o aumento da vul-
Neste período, as catástrofes naturais resulta- nerabilidade das populações, nomeadamente
ram na morte de mais de 2 milhões de indiví- junto das grandes aglomerações urbanas e nas
duos, 182 milhões desalojados e cerca de 5,1 áreas litorais. Com efeito, o suporte físico dos
biliões de pessoas afectadas. Os prejuízos mate- territórios tem sido menosprezado nos proces-
sos de ordenamento do território e planea-
mento urbano, e este facto tem conduzindo
* Centro de Estudos Geográficos da Universidade a situações incompatíveis com o desenvolvi-
de Lisboa. mento sustentável.

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A articulação desajustada entre a activi- 2. Perigos e Riscos
dade humana no território e o funcionamento
dos fenómenos perigosos que nele se verifi- no território
cam tem-se manifestado, dominantemente, no
incremento da «vulnerabilidade passiva», por Um dos obstáculos à correcta consideração
via da expansão da população e das activida- dos riscos no ordenamento do território prende-
des económicas para zonas que sempre estive- -se com alguma confusão conceptual que, ainda
ram expostas a perigos naturais (Fig. 1). A hoje, existe neste domínio. A definição oficial
ocupação de terrenos naturalmente perigosos dos termos utilizados na avaliação de riscos
(e.g. leitos de cheia, vertentes instáveis) é par- foi estabelecida numa convenção internacional
ticularmente sensível nas áreas metropolita- organizada pela United Nations Disater Relief
nas, onde o desconhecimento generalizado dos Co-ordinator (UNDRO, 1979). Desta conven-
riscos por parte de uma população que não tem ção emergiu um modelo conceptual do risco,
raízes locais contribui grandemente para o adoptado internacionalmente, que integra os
incremento da vulnerabilidade. Noutros casos, seguintes elementos fundamentais (Fig. 2): a
a actividade antrópica interfere, directa ou Perigosidade (Hazard), entendida como a pro-
indirectamente, com os processos de instabili- babilidade de ocorrência de um fenómeno com
dade natural, potenciando o seu funciona- uma determinada magnitude (a que está asso-
mento (Fig. 1). Este facto é independente da ciado um potencial de destruição), num deter-
escala, verificando-se dos níveis local e regio- minado período de tempo e numa dada área;
nal (e.g. instabilidade de vertente por abertura os Elementos em Risco, ou Elementos Vulne-
de talude mal dimensionado; incremento de ráveis, representados pela população, equipa-
pontas de cheia por impermeabilização dos mentos, propriedades e actividades económi-
terrenos e obstrução à drenagem) até à escala cas que se encontram expostos no território e
global (e.g. mudança climática decorrente da que são portadores de um determinado Valor;
emissão de gases com efeito de estufa). a Vulnerabilidade, correspondente ao grau de
perda de um elemento ou conjunto de elemen-
tos vulneráveis, resultante da ocorrência de um
Figura 1 – Interacção desajustada entre fenómeno (natural ou induzido pelo Homem)
fenómenos perigosos e actividade humana com determinada magnitude ou intensidade;
no território e o Risco, entendido como a possibilidade de
ocorrência, e a respectiva quantificação em
termos de custos, de consequências gravosas,
PERIGOS NATURAIS
económicas ou mesmo para a segurança das
pessoas, em resultado do desencadeamento de
–meios naturais potencialmente danosos
para o Homem e para as suas actividades um fenómeno natural ou induzido pela activi-
dade antrópica.
Impacto

Agravamento

Interferências nos Interferências nos


sistemas naturais sistemas naturais

ACTIVIDADE HUMANA NO TERRITÓRIO

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Temas do ordenamento territorial
Figura 2 – Modelo conceptual do Risco
(adaptado de Panizza, 1990)

Fenómenos perigosos Elementos em risco

• sismos • população
• maremotos • construções
• vulcões • infra-estruturas
• movimentos de vertente • actividades económicas
• cheias e inundações • valores culturais e paisagísticos
• erosão hídrica dos solos • organização social
• fenómenos climáticos extremos • programas de expansão e potencialidades
• outros do território

Perigosidade (hazard) Vulnerabilidade Valor

RISCO

Dos elementos integrantes do modelo con- 3. O quadro legislativo:


ceptual do risco, a perigosidade é o que revela
maior interesse para o ordenamento do ter- políticas reactivas vs políticas
ritório, num quadro de prevalência de políti- preventivas
cas preventivas. Neste contexto, a avaliação
e o zonamento da perigosidade (e.g. movi- Ao contrário do que acontece noutros países
mentos de vertente, inundações, erosão do da União Europeia, a legislação e a prática do
litoral) devem preceder a selecção das melho- ordenamento do território em Portugal não
res localizações para a implantação de estrutu- têm considerado devidamente a prevenção dos
ras e infra-estruturas, nas escalas regional e riscos naturais. Este facto é agravado pela falta
local. de coordenação transversal entre as políticas
A avaliação do grau de risco implica a esti- de protecção civil e de ordenamento do terri-
mativa do nível dos danos, directos e indirec- tório e urbanismo.
tos, para cada elemento em risco presente no De acordo com a Lei nº 48/98, de 11 de
território. Embora seja evidente o interesse Agosto, constitui finalidade da política do orde-
desta avaliação na gestão do território, nomea- namento do território e do urbanismo, acaute-
damente como suporte para a definição de lar a protecção civil da população, prevenindo
políticas mitigadoras de base territorial, é no os efeitos decorrentes de catástrofes naturais.
domínio da protecção civil que ela adquire No entanto, a avaliação dos perigos e riscos está
maior relevância, seja no âmbito da preven- praticamente omissa na definição dos objecti-
ção, seja no campo dos planos de contingência vos do ordenamento do território e do urba-
para resposta a catástrofes. nismo, bem como na discriminação do funda-
mento técnico dos instrumentos de gestão ter-

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ritorial e dos interesses públicos com expres- servidão algumas áreas de risco, tais como arri-
são territorial (Decreto-Lei nº 380/99 de 22 de bas, leitos de cursos de água e zonas ameaçadas
Setembro, com as alterações introduzidas pelo pelas cheias, escarpas e vertentes com declive
Decreto-Lei nº 310/2003 de 10 de Dezembro). superior a 30%. A inclusão de zonas de risco
A Lei de Bases da Protecção Civil (Lei n.º no âmbito de uma reserva ecológica nacional é
27/2006 de 3 de Julho) estabelece os objecti- contraproducente, por quatro razões funda-
vos fundamentais da protecção civil, de entre mentais: (i) territórios de risco e territórios de
os quais se destacam: (i) prevenir os riscos reserva ecológica não têm que estar, obrigato-
colectivos e a ocorrência de acidente grave ou riamente, sujeitos ao mesmo tipo de restrições
de catástrofe dele resultante; e (ii) atenuar os de utilização; (ii) a coincidência territorial
riscos colectivos e limitar os seus efeitos. destas áreas frequentemente não se verifica;
Embora a preocupação pela prevenção esteja i.e., um território perigoso não tem, necessa-
expressa nos domínios sobre os quais a activi- riamente, um elevado valor ecológico; (iii) a
dade da protecção civil deverá ser exercida inclusão de algumas situações de risco na
(e.g., levantamento, previsão, avaliação e pre- REN pode conduzir à conclusão errónea que
venção dos riscos colectivos; análise perma- está contemplado o leque completo de situa-
nente das vulnerabilidades), as políticas e as ções perigosas, quando a REN está longe de
operações de protecção civil são praticamente incluir toda a tipologia de riscos que se podem
omissas sobre o assunto, preocupando-se mais verificar num território; e (iv) se o território é
com medidas reactivas, que culminam com a perigoso (i.e., susceptível de colocar em risco
criação dos Planos de Emergência. Acresce a segurança das populações e dos bens) a sua
que nunca são retiradas as consequências da interdição ou limitação de uso não deve ser
realização das actividades preventivas no que «disfarçada» na servidão da REN, até pela
respeita ao Ordenamento do Território, facto aplicação do princípio da informação: os cida-
que limita drasticamente o seu alcance. A este dãos têm direito ao conhecimento sobre os
respeito, o artigo 26º da Lei n.º 27/2006 intro- riscos a que estão sujeitos. Acresce que o cri-
duz uma inovação ao tipificar as consequên- tério expresso na REN para a identificação de
cias da declaração de situação de calamidade, zonas de risco é bastante discutível. Pelo
estabelecida por Resolução de Conselho de menos no que diz respeito aos movimentos de
Ministros. Com efeito, esta resolução pode vertente (e.g., deslizamentos, desabamentos,
determinar a suspensão de planos municipais escoadas de detritos) o limiar de declive de 30%
e/ou de planos especiais de ordenamento do contemplado na Lei não tem qualquer signi-
território, que terão que ser alterados tendo em ficado físico ou estatístico. Deste modo, em
conta os riscos para o interesse público rela- função do enquadramento geológico e geo-
tivo à protecção civil. Esta medida é a pri- morfológico local, este limiar pode revelar-se
meira, no quadro jurídico português, que esta- demasiado conservador, ou, pior do que isso,
belece explicitamente a articulação entre Pro- manifestamente insuficiente, fomentando a
tecção Civil e Ordenamento do Território. No ocorrência de situações de falsa segurança.
entanto, trata-se, mais uma vez, de uma medida Noutro domínio, o Decreto-Lei nº 364/98,
reactiva, na medida em que só é levada a efeito de 21 de Novembro, estabelece a obrigatorie-
na sequência de uma calamidade. dade de elaboração de cartas de zonas inundá-
O Decreto-Lei nº 93/90, de 19 de Março, veis nos municípios com aglomerados urbanos
com as alterações introduzidas pelo Decreto- atingidos por cheias num período de tempo
-Lei nº 180/2006, de 6 de Setembro, estabelece que, pelo menos, inclua o ano de 1967. Estas
e Reserva Ecológica Nacional e integra nesta cartas deverão ser efectuadas em sede de PMOT,

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Temas do ordenamento territorial
cujo regulamento deve estabelecer as restri- contexto, os instrumentos de planeamento e
ções necessárias para fazer face ao risco de gestão territorial da «nova geração» deverão
cheia, incluindo a proibição ou condiciona- garantir a correcta utilização do recurso terri-
mento à edificação nos espaços urbanizáveis. tório, salvaguardando o direito à segurança das
De certo modo, este decreto constitui também populações, através da prevenção e minimiza-
um exemplo de medida reactiva, visto que ção dos riscos.
apenas obriga à definição das zonas inundá-
veis os municípios afectados nos 30 anos ante-
riores à lei. Por outro lado, o período de tempo REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
considerado é insuficiente para caracterizar
situações com elevado período de retorno, CRED (Centre for Research on the Epidemiology
pelo que, seguramente, deixarão de ser consi- of Disasters – Université Catholique de Lou-
derados territórios que apresentam risco de vain) (2006) — EM-DAT (Emergency Events
inundação elevado. Database), Brussels.
GUAHA-SAPIR, D.; HARGITT, D.; HOYOIS, P. (2004),
Thirty Years of Natural Disasters 1974-2003:
The Numbers. CRED, UCL Presses Universitai-
4. Para um futuro mais seguro res de Louvain.
ISDR – United Nations International Strategy for
Os Riscos representam um dos quatro gran- Disaster Reduction (2004), Living with Risk. A
des vectores de identificação e organização global review of disaster reduction initiatives
espacial do território preconizado no Programa 2004 version. United Nations, Geneva.
Nacional de Política de Ordenamento do Ter- ISDR – United Nations International Strategy for
Disaster Reduction (2005), Hyogo Framework
ritório (PNPOT). A inclusão deste vector
for Action 2005-2015. Building World Confe-
no modelo territorial do PNPOT estabelece a
rence on Disaster Reduction, 18-22 January
gestão preventiva dos riscos como uma priori- 2005, Kobe, Hyogo, Japan. United Nations,
dade essencial na política de ordenamento do Geneva.the Resilience of Nations and Commu-
território e de inclusão obrigatória nos instru- nities to Disasters.
mentos de planeamento e gestão territorial. Em PANIZZA, M. (1990), Geomorfologia applicata.
particular, o PNPOT obriga à definição das Metodi di applicazione alla Pianificazione ter-
áreas perigosas, dos usos compatíveis e das ritoriale e alla Valutazione d'Impatto Ambien-
medidas de prevenção e mitigação dos riscos, tale. La Nuova Italia Scientifica, Roma.
em sede de PROT, PMOT e PEOT. SEI (Stockholm Environment Institute); IUCN (The
As orientações do PNPOT configuram uma World Conservation Union); IISD (Internatio-
nal Institute for Sustainable Development)
mudança no paradigma dominante na aborda-
(2001), Coping with Climate Change: Environ-
gem aos riscos, com a evolução de uma cultura
mental Strategies for Increasing Human Secu-
de reacção («resposta à catástrofe») para uma rity.
cultura de prevenção («evitar e mitigar o UNDRO (1979), Natural Disasters and Vulnerabi-
risco»), na linha das orientações internacio- lity Analysis, Report of Expert Group Meeting
nais mais recentes, nomeadamente o acordo de 9-12 July 1979, Office of the United Nations
Hyogo para 2005-2015 (ISDR, 2005). Neste Disaster Relief Coordinator, Geneva.

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