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Trabalho artesanal, cadências infernais e lesões

ARTIGO ARTICLE
por esforços repetitivos: estudo de caso
em uma comunidade de mariscadeiras na Ilha de Maré, Bahia

Non-industrial labor, infernal conditions and repetitive strain


injury: a case study in a shellfish-rearing community
on Maré Island, State of Bahia, Brazil

Paulo Gilvane Lopes Pena 1


Maria do Carmo Soares de Freitas 2
Adryanna Cardim 3

Abstract Non-industrial labor is still widespread Resumo O trabalho artesanal persiste no país,
in Brazil. An appropriate approach ought to con- cuja abordagem deve considerar particularidades
sider different social specificities from those of sal- sociais distintas das relações assalariadas. O obje-
aried-work relations. The scope was to examine tivo foi analisar o processo de trabalho artesanal e
non-industrial work practices, specifically those suas relações com a saúde em uma comunidade de
of extractive shellfishing, and their relation to pescadores artesanais, particularmente nas ativi-
health conditions in a small-scale fishing commu- dades de pesca extrativa de mariscos. Estudar as
nity. It focused on the cadences and time contin- cadências e contingenciamentos de tempo e ou-
gencies, as well as other working conditions, relat- tras condições de trabalho relacionadas ao desen-
ed to the development of ailments such as repeti- volvimento de patologias como lesões por esforços
tive strain injury - RSI. A qualitative-ethnographic repetitivos - LER. Realizou-se um estudo quali-
study was conducted between 2005 and 2007 in a tativo, ou etnográfico, no período de 2005 a 2007,
community of 800 inhabitants, located on Maré em uma comunidade de 800 habitantes, situada
Island in the state of Bahia. In a population con- em Ilha de Maré - Bahia. Foram entrevistados 30
sisting of fishing households, thirty families were pescadores e familiares, observados as atividades
interviewed, observed at work and – in cases of no trabalho e os casos suspeitos de LER encami-
suspected RSI – referred to a specialized health nhados para serviço ambulatorial especializado.
service. The seriousness of the working conditions Evidenciou-se a gravidade das condições de tra-
became evident, especially with respect to RSI. By balho, em particular para enfermidades LER. Em
way of illustration, an average frequency of 10,200 um modo de extração de mariscos, verificou-se a
repetitive movements per hour were verified in frequência média de 10.200 movimentos repetiti-
1
Departamento de Medicina extractive shellfishing, while the official Brazilian vos por hora, enquanto, para a atividade de digi-
Preventiva, Faculdade de
norm (NR17) for a keyboarder establishes a max- tador, a norma oficial estabelece o limite de 8.000
Medicina, Universidade
Federal da Bahia. Av. Reitor imum of 8,000 movements per hour. This suggests toques por hora. Concluiu-se que as mariscadei-
Miguel Calmon s/n, Vale do that women shellfishers ought to be included in ras devem ser incluídas dentre os grupos sociais de
Canela. 40000-000
repetitive strain injury risk groups. riscos que realizam esforços excessivos e repetiti-
Salvador BA. pena@ufba.br
2
Departamento de Ciência Key words Small-scale fishing, Health, Work, vos do sistema músculo-esquelético nas ativida-
da Nutrição, Escola de Repetitive Strain Injury (RSI) des do trabalho.
Nutrição, Universidade
Palavras-chave Pescador artesanal, Saúde, Tra-
Federal da Bahia.
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Escola Bahiana de balho, Lesões por Esforços Repetitivos
Medicina e Saúde Pública.
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Introdução parceladas. Atualmente, entende-se que o arte-


são típico é, antes de tudo, um trabalhador ma-
O presente artigo objetiva analisar o processo de nual do campo ou da cidade; aprendiz direto e
trabalho artesanal e suas relações com a saúde independente ao exercer seu ofício por conta pró-
do trabalhador em uma comunidade de pesca- pria de modo solitário ou não4.
dores artesanais, particularmente nas atividades Vale lembrar, que antes da revolução indus-
de pesca extrativa de mariscos. Especificamente, trial, os trabalhadores manuais formavam o
discute nessa modalidade de trabalho as condi- conjunto de profissões que constituíam as ma-
ções de ocorrência das Lesões por Esforços Re- nufaturas predominantes no capitalismo mer-
petitivos – LER ou Distúrbios Osteomusculares cantilista. Sobre as enfermidades do trabalho,
Relacionados ao Trabalho – DORT. Bernadino Ramazzini7, em 1700, relacionou 54
Segundo dados da Organização Internacio- profissões artesanais. Dentre estas, citou o ofício
nal do Trabalho – OIT1, no mundo existe um do pescador e suas respectivas doenças, mas, re-
contingente de 25 a 34 milhões de homens e mu- feriu-se apenas à pesca marítima e fluvial e não
lheres nas atividades de pesca, e destes, 75% são mencionou a extração de mariscos.
pescadores artesãos. No Brasil, a pesca artesanal Com o fim da hegemonia do método artesa-
representa uma importante modalidade de tra- nal, as sociedades modernas centraram-se no
balho. Dados oficiais de 2006 indicam existir desenvolvimento dos direitos trabalhistas e da
390.761 pescadores artesanais2, estando 47% con- proteção à saúde nas relações dos trabalhos as-
centrada nos estados do Nordeste. A Bahia pos- salariados. Enquanto isso, o artesanato ainda é
sui 36.851 pescadores registrados2, podendo che- uma atividade, de um modo geral, não regula-
gar a 150 mil, segundo estimativas de organiza- mentada no Brasil e sem normas específicas para
ções não governamentais. a proteção à saúde e à segurança no trabalho. A
O enfoque na relação entre saúde e processo maior parte do trabalho artesanal da pesca ocor-
de trabalho3 geralmente pressupõe a existência de re no setor informal da economia e, por isso, são
assalariamento típico, formal ou informal. Nessa precárias as informações nos sistemas de vigi-
perspectiva, as relações de emprego se situam no lância. O artesão, em geral, não tem direito ao
âmbito do conflito entre patronato e trabalhado- seguro acidentário. Porém, há exceções, pois a
res. Entretanto, para o conhecimento das condi- Constituição Federal de 1988 conferiu este direi-
ções de saúde dos artesãos pescadores, é necessá- to ao pescador artesanal em regime de economia
ria uma inflexão nos elementos característicos do familiar, no artigo 11, da Lei 8.213/918. Entretan-
processo de trabalho artesanal e suas especifici- to, para esses artesãos, os significados de tais
dades jurídicas, compreendendo os modos de mudanças nas suas relações com as doenças e os
ocorrência de cargas de trabalho, riscos e danos à agravos inscritos nas normas securitárias ainda
saúde. Dentre estes elementos característicos, ine- não são estudados, dificultando orientações aos
xiste um mercado de compra e venda de força de procedimentos que promovam a aplicação do
trabalho, com formalidades contratuais traba- direito alcançado.
lhistas, situação de emprego e desemprego.
No século XIX, o termo artesão era usado
para distinguir o comerciante da massa de assa- Material e método
lariados da indústria nascente4. A cultura artesa-
nal organizava atividades do trabalho por meio Trata-se de um estudo de natureza qualitativa,
das tradições5,6, que incluíam saberes e práticas um exercício etnográfico realizado no período de
sobre saúde e prevenção de riscos ou perigos co- agosto de 2005 a dezembro de 2007, em uma co-
nhecidos na época. O artesão controlava a con- munidade de aproximadamente 800 habitantes,
cepção e a execução do seu trabalho e possuía o na Ilha de Maré, município de Salvador. Com
“saber-fazer” (know-how) com o domínio dos exceção das épocas de chuvas, frequentes entre
métodos aplicados em todas as etapas do pro- março e junho, as visitas à comunidade foram
cesso de produção. O artesão típico era capaz de semanais. A população afrodescendente é for-
realizar qualquer tarefa do ofício, em qualquer mada, essencialmente, de famílias de pescadores
região6. A divisão técnica do trabalho, quando artesanais e mariscadeiras, as quais apresenta-
ocorria, era rudimentar e não o distanciava do ram seus testemunhos sobre a vida e o trabalho.
seu objeto de trabalho como se configurou na Foram entrevistados um total de 27 mulheres e 3
Revolução Industrial em que os ofícios deram homens, com idades entre 18 e 65 anos, todos
lugar aos operadores de máquinas, em tarefas trabalhadores extrativistas de mariscos em man-
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guezais e arenosos das praias. Colaboraram de das narrativas, os sensos comuns sobre os senti-
modo voluntário, após a apresentação dos obje- dos dos processos de trabalho, os sofrimentos e
tivos da pesquisa, em reunião com a comunida- as percepções das LER10. Incluiu-se a análise er-
de. Estes foram os critérios de inclusão dos sujei- gonômica e da higiene do trabalho, com o perfil
tos neste trabalho. Seus nomes citados são fictí- qualitativo dos riscos, e selecionou-se as maris-
cios, conforme acertos com eles, para preservar cadeiras que apresentaram suspeitas de LER. No
suas identidades. referido ambulatório procedeu-se a avaliação clí-
Aprovado por um comitê de ética em pesqui- nica conforme protocolos definidos para diag-
sa, este estudo utilizou instrumentos etnográficos nóstico de LER, pelo Ministério da Saúde e Previ-
como: observação participante, registros de cam- dência Social11.
po, entrevistas narrativas em profundidade, fo-
tos e filmagens de atividades de mariscagem na Processo de trabalho artesanal
praia, no manguezal, nas residências e na colônia da mariscagem e a saúde no trabalho
de pescadores. Observou-se aspectos do cotidia-
no, como: rotinas, rituais, conflitos, valores cultu- Na Ilha de Maré, a produção pesqueira é ar-
rais e, particularmente, as condições de trabalho, tesanal, de natureza extrativista, caracterizada
as doenças e os acidentes mais frequentes. Um como uma atividade econômica primária, pre-
total de vinte casos suspeitos de doenças do tra- dominantemente individual e com baixa divisão
balho, principalmente LER, foram identificados técnica. A mariscadeira é a proprietária dos ins-
nas atividades de campo e encaminhados ao am- trumentos de trabalho e sobrevive da venda do
bulatório especializado em doenças do trabalho produto do seu trabalho. Ela dispõe de um saber
no Hospital Universitário na cidade do Salvador. próprio de ofício que se expressa no universo
Os sujeitos do estudo desenvolvem ativida- simbólico de crenças, valores e mitos apreendi-
des grafadas na Classificação Brasileira de Ocu- dos por meio de uma herança cultural secular
pações, e para este trabalho adotou-se a deno- inscrita em tradições de um modo de pensar e
minação de marisqueira ou mariscadeira em re- fazer o trabalho. As relações sociais no trabalho
ferência à mulher pescadora artesanal que centra da pesca indicam a inexistência de contrato de
suas atividades de extração de crustáceos e ma- trabalho12, visto que não há emprego ou assala-
riscos, em geral. O uso da denominação no femi- riamento, pois o trabalho é desenvolvido indivi-
nino resulta do reconhecimento da centralidade dualmente ou em grupos familiares.
do papel da mulher nesse tipo de trabalho. As mariscadeiras atuam em áreas limitadas e
As entrevistas foram realizadas com quem utilizam instrumentos rudimentares para a cole-
vivencia desde a infância as atividades de pesca ta de crustáceos e moluscos. Assemelha-se ao que
de mariscos na comunidade. Procurou-se esti- Milton Santos13 chamou de homem local, senhor
mular a conversa sobre os aspectos do trabalho: e prisioneiro de uma área limitada, que depende
rotinas, execução das tarefas (prescritas pela tra- diretamente do espaço circundante para a repro-
dição; o saber do ofício aprendido na vivência dução da vida. Segundo o autor, nessas condições,
familiar e o trabalho real); relação com os co- era necessário conhecer os segredos para sobrevi-
merciantes que compram o produto do traba- ver e assim as primeiras técnicas (invenção do pró-
lho; equipamentos e métodos de uso na pesca prio homem local) foram elaboradas no contato
dos diversos mariscos prevalentes na região; con- íntimo com a natureza13.
trole do tempo natural e social; forma de organi- Observou-se que o valor do trabalho está
zação das pausas; intervalos; sentimentos; aci- inscrito no produto final que é vendido ou con-
dentes; dores; doenças; dificuldades; e outros sumido pela família. Entretanto, com insuficiên-
problemas ligados ao trabalho. Foram destaca- cia de produção e sem condições de conservação
das categorias analíticas relativas ao processo de e armazenagem, o produto circula com rapidez
trabalho como: tempo e organização do traba- levando à dependência do comerciante ou atra-
lho; percepção dos riscos existentes; e a relação vessador. Eu faço dois quilos de catado de siri ou
entre dor e trabalho. três [...]. Mas tem maré que eu não faço nada. Aí
As interpretações das narrativas e das obser- eu guardo o que peguei pra inteirar em outra maré
vações de campo desvelaram aspectos do uni- (Mira, 65 anos). Nesse sentido, a mariscadeira
verso subjetivo do objeto de investigação9, ou seja, necessita vender o produto imediatamente por
mostraram como os sujeitos interpretam seus preços abaixo do valor de mercado.
processos de trabalho e adoecimento. Houve um A escolha do marisco, a forma de coleta, o
esforço para compreender, a partir das análises tratamento dispensado, incluindo o pré-cozimen-
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to, são inscrições de uma rica cultura culinária do não trabalho implica na perda da produção
que define as matérias-primas e orienta o modo correspondente. Deixam apenas os domingos à
de extração e preparo. A mariscadeira não se dis- tarde e alguns feriados religiosos para o descan-
tancia do seu objeto de trabalho (contrariamen- so. A exposição aos riscos inicia na infância, quan-
te ao que ocorre nos processos industriais com a do manejam instrumentos de trabalho, cami-
divisão do trabalho)12 e opera todas as fases de nham sob o sol e as intempéries, sobre as pedras
manipulação do produto, sem modificar a sua e os mangues sem qualquer proteção. Os riscos
natureza: coleta e vende com beneficiamento mí- relativos aos fatores externos se acumulam ao
nimo para a conservação, expondo-se à globali- longo da vida laboral e somam-se às condições
dade dos riscos inerentes ao ofício. que repercutem negativamente no seu crescimen-
Na região há vários tipos de peixes e crustáce- to15. O trabalho infanto-juvenil afasta ainda as
os: siri, camarão, caranguejo e “aratu” (Aratu pi- crianças e os adolescentes das atividades escola-
soni) encontrados nos mangues, além do “guaia- res, essenciais para sua formação humana.
mum” (siri do mangue: Cardisoma guanhumi); Quando eu tinha 6 anos meu pai morreu, não
moluscos, como: ostras, mexilhões, caramujos, tinha as coisas, minha mãe trazia a gente pra maré
lambretas (molusco bivalve Lucina pectinata), pra poder mariscar. Inclusive eu estudei muito
etc.; cefalópodes, como polvo e lulas. O objeto de pouco, até a terceira série porque não dava pra
trabalho da mariscadeira não é apenas uma cole- gente estudar de manhã cedo por causa da maré...
tânea de mariscos existentes na natureza, mas um Se a gente fosse estudar não dava pra gente comer,
universo de representações subjetivas compreen- não dava pra gente se vestir (Maria, 46 anos).
síveis nas esferas sócio-antropológicas, essencial Esta modalidade de trabalho precoce se dife-
para a construção de sua identidade. rencia das formas que ocorrem nos processos
industriais, principalmente em empresas tercei-
Organização da pesca artesanal do marisco rizadas e na agricultura15. Na pesca artesanal o
trabalho na infância e na adolescência tem uma
O uso de instrumentos simples não condici- consolidação cultural e social. Constitui-se o pe-
ona a divisão técnica do trabalho. Porém, a situ- ríodo de aprendizado dos modos de praticar a
ação familiar e a faixa etária estabelecem a divi- extração do marisco e da pesca. A partir dos doze
são do trabalho. Crianças e adolescentes assu- anos de idade, os meninos são destinados à pes-
mem a condição de aprendizes e não participam ca e as meninas permanecem na mariscagem. Sem
da pesca de alguns mariscos (caranguejo ou ou- disporem de condições sociais como creches e
tras atividades no mangue) em função da exi- escolas integrais, os familiares entendem que o
gência de habilidades e de condições físicas. As trabalho é um lugar seguro para proteger e de-
técnicas ou instrumentos rudimentares utiliza- senvolver a criança: O mangue da praia ajuda a dá
dos são: faca ou facão para a coleta de ostras em força nas pernas das crianças. Muitos começam a
pedras; colher de pau ou alumínio e pequenas caminhar na praia enquanto a mulher trabalha....
enxadas para cavar e/ou raspar a areia na identi- Debaixo do sol. (Conceição, 25 anos).
ficação do marisco; panela de alumínio e/ou lata A organização do trabalho artesanal não se
para armazenamento da coleta e balde para o estrutura na forma de postos de trabalho inte-
transporte do produto. grados, como se costuma verificar nas adminis-
Diversos outros instrumentos de pesca ex- trações de base matricial taylorista/fordista. Es-
trativa são utilizados, como: anzóis (varas e li- tabelece-se por meio da tradição de “métier” ins-
nhas); redes (tarrafas, arrasto etc.) para pesca crita em “habitus”, segundo Bourdieu16, herda-
do camarão; armadilhas como “gererés” ou man- dos do saber familiar, em que a mulher assume o
zuás, utilizados para captura do siri, também papel central. Também, conforme situação em
observado por Pacheco14 em região próxima; análise, a mulher conduz a dinâmica das ativida-
canoas a remo e à vela, “traquete”; “ratoeiras” des cuja organização exige a compreensão da
utilizadas na pesca do guaiamu; bombas (con- noção de autonomia e de tempo natural. Trata-
duta ilegal). A comercialização de alguns maris- se de um modo de vida, em que o conteúdo do
cos exige outras etapas de trabalho como a lim- trabalho não é fragmentado, empobrecido, alie-
peza e o pré-cozimento, sendo estes realizados nado, pois o pescador artesanal domina todo o
na forma clássica de cozinha doméstica com o processo de seu trabalho.
uso de fogareiro à lenha. A questão do gênero é marcante na divisão
Para as mariscadeiras, não há férias, descan- do trabalho de extração de mariscos, realizada
so semanal e feriados remunerados. A decisão principalmente por mulheres e crianças. Verifi-
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ca-se uma organização sexuada do trabalho ar- ainda quando idosos. Portanto, são os valores e
raigada na tradição da comunidade e distinta do as condições econômicas que proporcionam a
informal (a mariscadeira encontra-se inscrita na divisão do trabalho por sexo, caracterizando as-
colônia de pesca) ou das existentes em processos sim uma condição de gênero em que a mulher
industriais17,18. As narrativas não identificam uma assume a centralidade no desenvolvimento dessa
subordinação do trabalho feminino, mas uma modalidade de pesca artesanal17,18.
naturalização dessas relações, em que a praia e o O trabalho é autogerenciado, pois não há
mangue seriam uma extensão dos aspectos bio- delegação de tarefas típicas da divisão do traba-
lógicos do corpo da mulher. Nesse sentido, no lho nem do assalariamento. Os saberes e práti-
campo simbólico, o espaço do trabalho seria fe- cas tradicionais compõem a organização do ofí-
minino, pois o mangue ou a “maternidade dos cio, como: locais de mariscagem adequados; fa-
peixes é um barro feminino porque tudo no man- bricação ou adaptação de instrumentos de tra-
gue se parece com a gente” (Ana, 45 anos). A metá- balho e procedimentos de uso; escolha do maris-
fora se articula em uma teia de sentidos19 que co em função do valor econômico, acesso e perí-
assemelha ambiente de trabalho com a condição odos de pesca na sua relação com a natureza;
materna, pois sabem que o manguezal é uma modalidades de limpeza e pré-cozimento (bene-
local de reprodução dos animais marinhos. ficiamento); previsão do tempo pela interpreta-
As mulheres detêm o saber e exercem práti- ção dos ciclos lunares, marés, variações climáti-
cas de todas as etapas da extração do marisco no cas e interferências na reprodução dos mariscos;
arenoso e no mangue que se somam ao trabalho modos operatórios de pesca em função de cada
doméstico tradicional, configurando uma dupla tipo de marisco; posturas corporais, inclusive
jornada. O trabalho de homens na extração do posturas tradicionais que reduzem o peso da ca-
marisco ocorre quando estes não dispõem de beça e do tórax sobre a coluna lombar (Figura
recursos para adquirir canoas para participar da 1); identificação de perigos (riscos) variados no
pesca, ou em situações de invalidez parcial ou ambiente de trabalho, até mesmo dos mariscos e
peixes venenosos que podem causar acidentes no
trabalho; músicas cantadas quando o trabalho é
feito em grupo, além de informações diversas.
O trabalho das mariscadeiras no arenoso da
praia e no manguezal é de natureza ambulante
onde mantém a flexão dorsal por longo tempo.
Deambulam e cavam com movimentos dos
membros superiores em ritmo acelerado, quase
sempre em flexão dorsal, se deslocam por pe-
dras e pelo arenoso da praia, sob sol intenso e
com os olhos fixos no arenoso para identificar
mariscos. São ambientes sempre úmidos e com-
pletamente diferentes, quando se consideram as
características do manguezal.
Na fase de limpeza e pré-cozimento, as ma-
riscadeiras trabalham sentadas, em bancos ru-
dimentares e geralmente improvisados, durante
longas jornadas. No mangue, em meio à folha-
gem e galhos perfurantes da vegetação, perma-
necem na lama geralmente até a altura dos joe-
lhos por seis horas, e muitas vezes se flexionam
para apanhar o caranguejo, quando a lama pode
alcançar a face, situação que gera risco de afoga-
mento. Neste lugar inóspito, essa imersão de tra-
balhadores na procura do marisco conforma o
que Josué de Castro20 chamou de “seres anfíbios”
mimetizados com a própria lama que toma o
corpo e domina o ambiente.
Figura 1. Foto sobre postura típica do trabalho da As condições ambientais de trabalho envolvem
mariscadeira – Ilha de Maré, 2007. outros riscos físicos, químicos e biológicos, não
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abordados neste artigo. Do ponto de vista ergonô- balho na vazante e descanso na enchente (Antônia,
mico, observamos a sobrecarga muscular no pes- 52 anos), pois destes ciclos, seguem todos os ou-
coço, ombros, dorso, membros superiores e re- tros da vida dessas artesãs.
gião lombar, além do excesso rítmico centrado no A maré baixa significa mais espaço de terreno
punho nas atividades repetitivas (Figura 2). Sobre arenoso na praia e no manguezal, ampliando a
as condições de higiene pessoal, estas se configu- possibilidade de encontrar mariscos. O movi-
ram com inscrições da cultura e produzidas em mento cíclico das marés define a jornada de tra-
função da falta de acesso aos serviços de sanea- balho; a tábua de marés mostra as variações di-
mento básico. Como exemplo, muitas vezes as ne- árias em função do ciclo lunar: Sururu? esse nós
cessidades fisiológicas são realizadas no ambiente temos que esperar, depende da maré. Na laje [pe-
natural, típico de áreas isoladas e camponesas. dra ou rocha], as mulheres estão tirando, quando
Todo esse trabalho, para cada mariscadeira, a Maré vaza; o bichinho fica em cima da laje.
resulta em uma renda mensal média de apenas Quando ele abre pra nós enxergar melhor, ele fica
R$ 50,00 por mês. Por isso, a miséria social im- estalando. Já o de mangue não. Ele fica debaixo da
põe ritmo intenso de trabalho para gerar mais lama (Mara, 60 anos).
produtos à venda. A jornada típica tem um período aproximado
de seis horas de mariscagem, que equivale ao tem-
O tempo natural, a lua e as marés po da maré baixa. A jornada continua por mais
na relação com o trabalho e na regência seis a oito horas, quando se soma o tempo de des-
do modo de vida do pescador locamento, o período de limpeza, pré-cozimento e
armazenamento do marisco, sendo estes realiza-
A percepção do tempo em relação ao traba- dos nas residências ou áreas comuns na colônia de
lho é uma categoria central na vida do pescador e pescadores. A jornada diária da mariscadeira varia
da mariscadeira. Nesse sentido, conhecer as com- entre 10 a 14 horas. Os valores socioculturais dos
moradores refletem o tempo natural em que as
plexas variações do tempo e suas relações com os
marés influenciam a dinâmica do trabalho e ou-
movimentos das marés é fundamental na orga-
tras atividades do cotidiano: Tudo a gente sente,
nização do trabalho de extração de mariscos, pois
tudo é através da maré. Eu mesmo estou prejudicada
a coleta ocorre nos espaços ampliados pela maré
dessa inflamação [na mão]. Não posso mais traba-
baixa ou vazante, da praia e do mangue. O tempo
lhar, venho mariscar porque não tem jeito. Sinto dor
natural é formado de ciclos solar, lunar e das
de cabeça, devido à maré (Josefa, 45 anos).
marés, influenciado pela cosmologia gravitacio-
Nas entrevistas e no serviço ambulatorial do
nal. A coleta dos mariscos tem nos ciclos das marés
hospital universitário, as mariscadeiras indicavam
a determinação da relação com o tempo no tra-
uma relação causal entre a “condição de lua” e a
balho e com a vida da comunidade. A tábua das
ocorrência de dores nos membros superiores. A
marés representa a orientação para as atividades
convicção de que a lua era causa de dores repre-
relacionais à dinâmica do trabalho. Sobre isso,
sentava um senso comum inscrito nos modelos
uma mariscadeira relata metaforicamente: Tenho
explicativos de doenças10 existentes nas comuni-
a chave da maré, para abrir e para fechar, pois tra-
dades. Tal explicação mitológica ganhou sentido
quando se investigou o modelo científico do ciclo
lunar, das marés e suas relações como o trabalho.
Lua e sol se posicionam de forma variada e
cíclica em relação à Terra e determinam a dinâ-
mica das marés, rios e canais litorâneos. Nas fa-
ses da lua nova e cheia o alinhamento da lua com
o sol proporciona a adição de gravidades sobre a
terra e por isso ocorre maior variação das ma-
rés, conhecidas como “maré-grande”. Contraria-
mente, nas “marés-mortas”, durante os quartos
crescentes e minguantes, não ocorrem adição de
gravidades e resultam em marés de fraca eleva-
ção. Nas luas, nova e cheia há, portanto, um gran-
de acréscimo do espaço de arenoso nas praias e
nas áreas de manguezais, com incremento da fre-
Figura 2. Postura típica e esforço concentrado no quência de mariscos. As populações de pescado-
membro superior, Ilha de Maré, Bahia. res conhecem esses movimentos jornaleiros, se-
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manais, mensais e sazonais, e suas influências gundo modo taylorista23. O saber encontra-se
nos ciclos reprodutivos dos peixes e mariscos21. no próprio artesão, transmitido oralmente.
No que se refere à saúde, as “marés grandes” O “modus operandi” é, portanto, tradicional e
intensificam o trabalho, pois amplia a extensão da pode ser caracterizado como um conhecimento
coleta, resultando no aumento das atividades re- tácito na forma de “habitus de metier”16. Organi-
petitivas no extrativismo e na consequente limpe- zam-se micro poderes simbólicos de quem domi-
za dos mariscos. É importante considerar que o na este saber popular e se torna capaz de exercer
período do ciclo das marés não varia com as fases atividades de coleta de mariscos, permeadas de ri-
da lua, mas o espaço de trabalho sim. Por isso, nas tos, valores e mitos que compõem os aspectos cul-
fases de maior variação das marés há um aumen- turais relativos ao processo de trabalho artesanal
to da intensidade e do ritmo das tarefas para apro- da pesca. Para alguns autores esta situação seria
veitar a maior ocorrência e visibilidade de maris- um exemplo do que a ergonomia chama de “nor-
cos. São estas duas fases da lua que as mariscadei- mas antecedentes”, que se remete ao que é dado
ras chamam de “condição de lua”, que indicam tam- por meio de tradições e valores que imprimem
bém maior intensidade de trabalho, cujo efeito modalidades de organização do trabalho24.
pode ser verificado na exacerbação de sintomas
de dores e exaustão, típicos das LER. LER: modo de vida e trabalho com dor
O tempo do ciclo das marés influencia o grau
de psicosidade, determina o fluxo e o refluxo de Durante o trabalho de campo, oito casos de
mulheres e homens (os que não estão na pesca LER em mariscadeiras foram diagnosticados no
neste período) no trabalho da praia e do man- serviço especializado em saúde ocupacional do
gue. Ocorre uma pressão social para intensificar hospital universitário. Dores e dormências nos
as atividades no tempo, a fim de coletar a maior membros superiores sugestivos de LER foram
quantidade possível de mariscos. Esta pressão relatadas em praticamente todas as entrevistas.
resulta da condição de miséria social que impõe A análise ergonômica realizada caracterizou o
a necessidade de aceleração do trabalho para nexo causal, e assim, as mariscadeiras doentes
manter a sobrevivência. E mesmo quem já tem foram encaminhadas para a Previdência Social.
costume se sente cansada, mas não tem jeito, a gen- Neste estudo, exemplificamos os riscos relati-
te precisa (Maria, 48 anos). vos ao excesso de esforços repetitivos na captura
As mariscadeiras não podem ampliar o tem- do “sururu” (molusco bivalve Mytella guyanensis).
po que regula as marés, mas podem intensificar o Este ciclo de atividades se inicia com a raspagem do
trabalho e eliminar todo tipo de pausas para au- arenoso, com olhos fixos vasculhando a praia à
mentar a produção e assim elevar os ganhos jun- procura do marisco, em postura de flexão dorsal,
to ao mercado. Quanto mais necessitam garantir com um braço estendido com movimentos de ab-
a sobrevivência, mais se sobrecarregam de traba- dução e flexão, juntamente com a mão segurando
lho. Neste caso, o aumento do ritmo e a ausência o instrumento. Para encontrar o marisco, faz-se
de pausas contingenciadas pelo tempo somam- necessário uma média de dez movimentos do
se às condições sociais e econômicas de vulnera- membro superior por unidade encontrada, man-
bilidade. Assim, a questão social persiste como tendo a mão em flexão segurando firmemente uma
condicionante de processos patogênicos decor- colher, faca ou pequena enxada. A outra mão per-
rentes de cadências aceleradas, de forma similar manece livre para armazenar os mariscos coleta-
ao tempo cronometrado que impõe cadências dos, e, em seguida, colocá-los no balde. O tempo
infernais nos processos de trabalho taylorizados. gasto para encher a mão livre é em torno de 3 mi-
Nesta modalidade de trabalho artesanal sem nutos, quando acumula uma média de 50 sururus.
conteúdos científicos, o conhecimento utilizado A contagem das coletas de sururu em uma jor-
das mariscadeiras é de natureza tradicional, em nada padrão representou a realização de uma mé-
conformidade com o descrito para os artesãos dia de 17 mariscos retirados das rochas por minu-
na sociologia clássica 6,22. Por decorrência, o to. Totaliza-se aproximadamente 10.200 movimen-
aprendizado dos conteúdos do trabalho se reali- tos repetitivos por hora, com esforço de cavar ou
za não formalmente, mas na transmissão dos raspar o arenoso. Estes movimentos podem resul-
conhecimentos entre gerações de famílias de pes- tar em sintomas dolorosos típicos das LER, como
cadores. Nesse sentido, não há atividades pres- se verifica em alguns dos vários depoimentos so-
critas em sistemas teóricos formalizados em bre dores relacionadas ao trabalho:
manuais de pesca ou publicações similares, cen- Eu não aguento mais mariscar por causa da
tradas no saber de uma hierarquia gerencial se- cãibra, mas cortava muito. Eu entrava de manhã
3390
Pena PGL et al.

pra pegar maré alta de canoa, botava canoa lá em com o qual convivem. Procuram causas, como
cima e saía de tarde (Maria, 48 anos). visto na explicação sobre a “condição de lua” e,
Sinto uma dor assim, lateja, ficam cansados os no seu esforço investigativo mediado por con-
dois braços. Se tiver fazendo alguma coisa tem que cepções, mitos, valores, e saberes, estabelecem
parar. Até para lavar me incomoda. De noite eu nexos com o trabalho, conforme ilustra o depo-
não consigo nem dormir direito. Eu faço assim com imento seguinte:
minhas mãos [mostra movimentos], não consigo Eu sentia dor, mesmo. Ficava observando que
nem fechar minha mão direito que fica com cãi- a gente só sentia essa dor quando ia mariscar. Por-
bra. Chega de manhã cedo, eu comento que não que, quando eu era menorzinha não sentia essa
consegui dormir de noite com minha mão de cãi- dor. Aí quando eu estava assim com uns 10 anos,
bra, Nilvania, diz que sente também uma dor no que comecei a mariscar, essa dor veio, a toda, no
braço. Uma dor cansada (Dalva, 34 anos). meu braço. Ficava pensando, meu Deus, o que é
Antes eu não entendia. Porque sempre senti essa isso, que dor é essa? Mas a gente não podia ir pra
dor no braço, aí o pessoal dava o nome. Aí, eu disse médico, porque não tem como ir. É muito distante
assim: meu Deus, o que eu sinto nesse braço? O (Francisca, 35 anos).
pessoal sempre dava o nome que de Bursite. Nunca O nexo entre a enfermidade e o trabalho re-
ouvi falar isso. Levou uma época que eu não maris- presenta uma vertente importante também no
cava porque eu sentia tanta dor no braço. Eu não modelo biomédico e securitário. Nexo este cons-
conseguia nem mariscar mais. Eu ficava com medo, truído por meio da história ocupacional, dos
apavorada, porque ficava pensando que ia perder achados clínicos e da investigação ergonômi-
meu braço de tanta dor (Mirian, 28 anos). ca25,27. O suporte antropológico e o instrumental
Ao analisar a coleta do sururu, os movimen- clínico/ergonômico fundamentam esta condição
tos repetitivos continuam na segunda fase da jor- de risco para LER na pesca artesanal do marisco.
nada, quando a mariscadeira leva o produto da Para as mariscadeiras, a gravidade das LER
pesca para casa, onde realiza limpeza dos maris- só não é maior em função da autogestão, pois ao
cos, pré-cozimento e abertura de cada concha, sentir esgotamento ou cansaço físico, dor, ela
gerando assim uma média de 5.040 movimentos pode interromper o trabalho. Isto, em tese, pro-
repetitivos por hora. Em uma jornada padrão, a tege a mariscadeira de consequências mais gra-
mariscadeira pode alcançar uma média de 75.000 ves, porém sem afastar o risco das LER. Na prá-
movimentos repetitivos. São quantitativamente tica, ela é constrangida a trabalhar mesmo com
comparáveis aos descritos em situações de riscos sintomas de LER ou de outras patologias relaci-
industriais encontrados para as enfermidades da onadas ou não ao trabalho, como relatado aci-
coluna e do tipo LER25-27. Esta situação não con- ma. Esta condição de trabalho, com dor crônica
sidera outros movimentos repetitivos caracterís- se constitui em um modo de vida.
ticos de uma jornada de trabalho doméstica, Movimentos repetitivos semelhantes à extra-
como lavagem de louças e roupa. ção do sururu foram verificados na captura de
A título de comparação, para a atividade de outros mariscos, com pequenas variações de
digitador, a norma oficial brasileira, a NR 17, modos operatórios. Em alguns tipos de maris-
estabelece o limite de 8.000 toques por hora em cagem, não há movimentos repetitivos no extra-
jornadas de 6 horas28. Isto define o limite seguro tivismo, a exemplo da pesca do siri, feita por meio
de 42.000 movimentos repetitivos por dia, por- de armadilha em forma de gaiola, denominada
tanto, significativamente inferior ao identificado “manzuá”; situação que se inverte no momento
nas atividades de extração de mariscos. do preparo culinário desse marisco quando é
Esta é a cadência infernal, o sentido de uma “catado” ou descarnado.
modalidade particular de ritmo intenso obser- Neste processo de trabalho artesanal, o agra-
vado neste processo de trabalho. Situação dis- vo à saúde emerge não da valorização direta do
tinta das cadências infernais cibernéticas que es- capital, mas de forma indireta por meio do baixo
tão associadas às pressões do tempo artificial preço pago pelos comerciantes aos produtos do
simbolizado pelo cronômetro, hierarquias, divi- trabalho. Neste caso, as cadências extenuantes
sões de trabalho, pobrezas de conteúdos, ausên- resultam da miséria, dadas às condições em que
cia de autonomia no trabalho e do controle das as mariscadeiras são constrangidas ao sobretra-
técnicas, dentre outras contidas nos métodos balho para evitar a fome e a marginalização da
taylorista/fordista e sucedâneos. sua família. Por consequência, economizam na
As mariscadeiras constroem um modelo cau- compra de equipamentos de proteção à saúde,
sal da doença10, centrado no fenômeno da dor negligenciam a proteção contra riscos conheci-
3391

Ciência & Saúde Coletiva, 16(8):3383-3392, 2011


dos, introduzem o trabalho precoce das crianças Conclusão
e adolescentes, permanecem no trabalho doentes
ou mesmo em estado de gravidez até o limite do Neste estudo de caso evidenciou-se a existência de
suportável, prolongam a busca de assistência condições para a ocorrência de doenças do traba-
médica. Dessa forma, se explica à ocorrência de lho, como LER, em mariscadeiras. Estas artesãs
LER em profissões tradicionais de trabalhadores devem ser incluídas entre os grupos sociais de ris-
artesãos, semelhante ao que ocorria há 300 anos cos que realizam movimentos com esforços repe-
atrás, conforme descreveu Ramazzini7. titivos no trabalho. No entanto, diferentemente das
Nos modos de gestão tayloristas e fordistas, categorias assalariadas de serviços e indústrias, as
existentes na indústria e no comércio, o traba- cadências infernais aqui observadas ocorrem na
lhador deve adaptar as necessidades de seu orga- extração de mariscos. Não por imposições de ge-
nismo e as suas aptidões físicas e mentais à orga- rências, mas por exigências das condições de so-
nização do trabalho29. No caso desta atividade brevivência para evitar a miséria e a fome.
artesanal, a nocividade não se encontra no modo A alternativa para a melhoria das condições
de gestão do trabalho. Resulta de condições eco- de saúde desse grupo social requer a valorização
nômicas adversas, de precariedades que impõem de seu trabalho, assegurando formas de produ-
também adaptações nocivas do corpo ao traba- ção e comercialização que fortaleçam o trabalho
lho, cadências extenuantes e outros condicionan- cooperativado com sustentabilidade. Necessita-
tes prejudiciais à saúde que se constituem em ris- se, pois, buscar alternativas técnicas e de modos
cos para as LER. operatórios ergonômicos para evitar cargas ex-
Em relação ao trabalho na pesca, há referên- cessivas de trabalho e acrescentar pausas, repou-
cias às desordens músculo-esqueléticas (aqui sos, instrumentos adequados, acesso permanen-
consideradas sinônimos de LER) apenas em es- te aos serviços de saúde preventivo, curativo e de
tudos ergonômicos de trabalhos industriais rea- reabilitação. A eficácia dessas ações depende do
lizados na Islândia, Suécia e Taiwan. Neles, há respeito às culturas tradicionais, que devem ser
relatos de casos de LER em mulheres que traba- envolvidas na construção de um trabalho digno e
lham na pesca industrial, principalmente nas ta- saudável. Nesse sentido, em função da complexi-
refas que envolvem ciclos inferiores a 30 segun- dade dessas exigências, o Estado necessita atuar
dos30. No entanto, não encontramos registros de modo intersetorial, articulando o SUS, a Previ-
na literatura para casos de LER em pescadores dência Social, a Secretaria Especial de Aquicultura
artesanais mariscadeiros. e Pesca e outras instituições pertinentes.

Colaboradores

PGL Pena, MCS Freitas e A Cardim trabalharam


em todas as fases da pesquisa, na metodologia,
na concepção e na redação final do texto.
3392
Pena PGL et al.

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