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Liderança e Gestão de Conflito

Unidade 3 — Aplicação de boas práticas em conflitos

Leitura Recomendada

Mediação de conflitos no SUS


como ação política transformadora

PARISSI, Luciana; SILVA, Jandira Maciel da. Mediação de conflitos no SUS


como ação política transformadora. Saúde em debate, v. 42, n. esp4. p.
30-42. 2018. Disponível em:
https://doi.org/10.1590/0103-11042018S402. Acesso em: 23 jun. 2021.
30 ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE

Mediação de conflitos no SUS como ação


política transformadora
Conflict mediation in SUS as a transformative political action

Luciana Parisi1, Jandira Maciel da Silva2

DOI: 10.1590/0103-11042018S402

RESUMO Este artigo apresenta uma análise de processos de mediação de conflitos no traba-
lho, realizados no âmbito da instituição pública e gestora do Sistema Único de Saúde de Belo
Horizonte – Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte (SMSA-SUS-BH) e conduzidos
pela Gerência de Gestão do Trabalho e Educação em Saúde (GGTE) da própria Instituição no
período entre 2012 a 2015. A análise foi dirigida aos processos de quatro coletivos de trabalho,
sendo três em centros de saúde e outro em uma gerência de atividade meio da SMSA. Utilizou-
se como metodologia a pesquisa documental, analisada sob dois referenciais distintos: análise
das narrativas na perspectiva do modelo de mediação Circular Narrativo e análise das Clínicas
do Trabalho. Os resultados evidenciaram que a mediação foi bem sucedida em duas unidades
analisadas e parcialmente em uma terceira. Na quarta unidade a mediação não restabeleceu o
diálogo entre a chefia e seus subordinados e foi possível compreender quais fatores influencia-
ram o resultado. Os determinantes dos conflitos analisados foram compreendidos nas quatro
unidades analisadas. Os resultados mostraram que, mesmo em ambientes hierarquizados, é
possível utilizar a prática da mediação com sucesso.

PALAVRAS-CHAVE Negociação. Trabalho. Relações interpessoais.

ABSTRACT This research aimed to analyze mediation processes in labor disputes, within the public
institution and manager of the Unified Health System of Belo Horizonte – Municipal Health
1 Prefeitura
Department of Belo Horizonte (SMSA-SUS-BH) and conducted by the Human Resources and
de Belo
Horizonte, Secretaria Health Education Office (GGTE) pertaining to the institution itself from 2012 to 2015. The analysis
Municipal de Saúde – Belo was addressed to the processes carried out in four working collectives, being three health centers
Horizonte (MG), Brasil.
Orcid: https://orcid. and one activity management of the SMSA. Documentary research was used as methodology,
org/0000-0002-9233- analyzed as for two different frameworks: narrative analysis from the perspective of the Circular
5806
lucianaparisi.bh@gmail.com Narrative mediation and clinical work. Results showed that mediation was successful in two units
2 Universidade Federal de
and partly successful in a third one. In the fourth unit, mediation did not restore the dialogue
Minas Gerais (UFMG), between leadership and subordinates making possible to understand what factors influenced the
Faculdade de Medicina, outcome. The determinants of the analyzed conflicts made part of the four analyzed units. Results
Departamento de
Medicina Preventiva e showed that, even in hierarchical environments, mediation practice could be successfully employed.
Social – Belo Horizonte
(MG), Brasil.
Orcid: https://orcid. KEYWORDS Negociation. Work. Interpersonal relations.
org/0000-0002-9990-
9323
jandira.maciel@gmail.com

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
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Introdução não o que faz não o que produz, mas o que é


sua autoria, sua assinatura e sua liberdade no
A maioria dos conflitos da vida humana não mundo dos homens5. A mediação, ao oportu-
está no script das condutas obrigatórias e nizar o diálogo, tem um caráter de facilitar
proibidas, ou seja, ocorre fora da esfera penal as conexões entre as complexas e múltiplas
e, portanto, acontece na vida cotidiana, na dimensões próprias do viver junto, sempre
vida privada, nas relações sociais, comer- permeado pelos conflitos e contradições2.
ciais, laborais, internacionais etc. Na socie- Cobb6 propõe uma reflexão sobre as con-
dade contemporânea, segundo Castells1, há cepções que explicam as disputas humanas.
a tendência de aceleração das polarizações Compreender como surgem e se mantêm é
e desigualdades sociais mesmo dentro das fundamental para orientar sua condução.
sociedades supostamente civilizadas. Boqué2 Optar pela mediação é uma escolha política
afirma que tal tendência só poderá ser alte- em sociedades onde a cidadania, o protagonis-
rada se o homem assumir a rédea e se res- mo, a autonomia, a participação e a respon-
ponsabilizar pelo mundo que produz e que sabilização são valores desejáveis. Assim, ao
partilha e a necessidade de mudança social na abrir o diálogo compreensivo entre as partes
fibra humana que sobrepuge as questões de conflitantes, a mediação pretende incluir as
ordem econômica. Considera que, para isso, diferenças e evitar as exclusões.
sejam fundamentais os princípios básicos da
compreensão do respeito à pluralidade e das
práticas democráticas. Para Folger e Bush3, a Modelos de mediação de
relação que se estabelece entre humanos é a conflitos
pedra angular dos conflitos, relação entendida
como a experiência no contato com o outro e No campo específico da mediação, ao longo
pelo impacto que produz. Maturana4 afirma dos últimos 50 anos, três modelos têm sido
só haver possibilidade de relações sociais se desenvolvidos, que se diferenciam por focar
fundamentam na aceitação do outro como preferencialmente em um dos seguintes ele-
um legítimo outro da convivência. Celebrar a mentos: 1) no conflito, 2) nas partes confli-
diferença em vez de penalizá-la significa que a tantes ou 3) no processo de comunicação que
procura dos pontos comuns deve ser acompa- se estabelece entre as partes2. Dessa forma,
nhada pela constatação da singularidade e da temos o modelo de solução de problemas
diversidade dos seres humanos. A questão não que está associado à escola de negociação de
radica em cooperar, porque temos interesses Harvard, Estados Unidos da América (EUA).
parecidos, mas em compreender que o que é Centra seu foco nos aspectos objetivos do con-
verdadeiramente valioso é colaborar a partir flito e nos interesses comuns entre as partes,
da aceitação da diferença2. neutralizando aspectos subjetivos tais como
Segundo Boqué2, a mediação deve ser enten- percepções e emoções. O modelo transforma-
dida como possibilidade para a coesão social tivo, associado aos autores A. Baruch Bush da
numa sociedade de confrontação. Mediar sig- Hofstra University, EUA e Joseph P. Folger da
nifica optar por uma via contrária à exclusão, Temple University, EUA, está centrado no rela-
que extirpa o outro com o qual se tem desaven- cionamento que se constrói a partir do processo
ças. Também não se pauta em preconcepções de mediação. O Modelo Circular Narrativo,
sobre o conflito. Propõe dar voz aos envolvidos adotado pelas autoras deste estudo, foi proposto
para que assumam seu protagonismo e cons- por Sara Cobb, da Universidade George Mason,
truam novas histórias a partir das narrativas EUA2. Estruturou-se a partir de pressupostos
preconcebidas sobre as diferenças. A ação e a da terapia familiar sistêmica, teoria geral dos
palavra possibilitam que o ser humano imprima sistemas, teoria do observador, construcionismo

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social, teoria da narrativa, psicologia social de consequentemente, da razão9. O mediador está


Pichon Rivière, cibernética de segunda ordem, inserido no processo e não no conflito. Boqué2
teoria da desconstrução de Derrida, contribu- afirma que o mediador oportuniza o protago-
tos de Foucault e outros2. Propõe a superação nismo das partes, tendo a obrigação principal
das explicações sobre o conflito enraizadas no de manter a equidade de poderes e potenciali-
positivismo lógico, onde cada parte envolvida zar a autodeterminação. Assim, teria um papel
atribui uma causalidade linear, culpabilizando integrador, compensando partes débeis para
o outro pela manutenção do conflito. alcançar equilíbrio de poder, fundamental para
Cobb7 entende que as narrativas se encadeiam superação da violência e da exclusão. Não deve
inicialmente para dar uma imagem final de in- externalizar responsabilidades, pois é dessa
felicidade a uma das partes e de culpabilidade à forma que as partes tentam explicar o conflito
outra. Nos conflitos, os adversários constroem e por isso o perpetuam6.
narrativas de acusação, de reprovação, de justi-
ficativa e de negação. As narrativas dos conflitos
têm características semelhantes aos sistemas, Mediação de conflitos no
podendo ser abertas ou fechadas. As narrativas trabalho em saúde
fechadas são impermeáveis e estruturadas de
modo a impedir a entrada de outras narrativas O Sistema Único de Saúde (SUS), fruto da resis-
alternativas. Assim, um tema principal só aceita tência ao regime totalitário brasileiro, sustenta
outras narrativas a que se alinhe ou reforce. Essa princípios que preconizam gestões democrá-
sequência foi denominada por Cobb7 colonização ticas e participativas com produção de “sub-
da narrativa. As narrativas fechadas criam a di- jetividades ativas, críticas e solidárias”10(683).
cotomia vítima versus vitimário, onde há sempre Por outro lado, o SUS sofre as influências dos
um lado certo e um lado errado. modelos econômicos hegemônicos subordina-
A mediação possibilita abrir as narrativas dos modelo neoliberal predominante do setor
das partes envolvidas, permitindo-lhes contex- privado, que, incorporado à gestão de saúde
tualizar suas disputas de forma mais ampliada, pública, imprime subjetivações individualizan-
de compreender as diferenças, de rever posi- tes, fragmentadas e competitivas, antagônicas
ções, formas de interação, de se implicar, de ao cunho universal e solidário do SUS.
assumir responsabilidades e criar narrativas A subjetivação individualista neoliberal, ao
alternativas que modifiquem os valores e as contaminar o profissional, a organização dos
características das narrativas anteriores7. serviços de saúde e da gestão, produz atos par-
Na mediação, o objetivo não seria apurar celados, fragmentação das equipes de trabalho,
as verdades, mas interromper a violência e hipervalorização de procedimentos técnicos
facilitar a ressignificação das narrativas8. A e tecnológicos em detrimento do cuidado que
mediação propicia a abertura das diversas afasta a subjetivação solidária e coletiva10.
narrativas, respeitando-se princípios éticos Nesse sentido, o neoliberalismo produz a ex-
para oportunizar a ressignificação dessas clusão, agrupa os afins, cria guetos, produz a
histórias em direção a outra mais completa e rejeição e dificulta a sociabilidade.
inclusiva do que as anteriores7. O mediador A mediação de conflitos no trabalho em
facilita o diálogo, a aceitação do outro e das saúde, ao propor a compreensão, a aceitação da
diferenças, considerando que os conflitos são, diversidade e o diálogo, adquire um sentido de
por natureza, complexos, permeados pelo sub- transformação das subjetividades e de resistên-
jetivo, pelos interesses individuais e de poder. cia às proposições de exclusão e de utilitarismo.
Encara o acordo apenas como uma possibi- A Gerência de Gestão do Trabalho da
lidade e não como uma finalidade. Propicia Secretaria Municipal de Saúde/SUS/Belo
o diálogo, facilita a ordenação dos afetos e, Horizonte (GGTRA/SMSA/SUS/BH) vem

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desenvolvendo, desde 2001, o acompanha- articulação teórica em torno da concepção de


mento sócio funcional de trabalhadores da mediação, de conflito e de trabalho, analisadas
instituição. Essa atividade procura atender aos sob os referenciais das clínicas do trabalho e dos
trabalhadores que se encontram em sofrimento, modelos de mediação circular narrativo.
gerado ou não a partir da atividade de trabalho, Sob a denominação clínicas do trabalho
mas sempre estabelecendo uma relação com ela. subentende-se um conjunto de teorias que,
O atendimento aos trabalhadores pode aconte- embora tenham divergências epistemológicas
cer individualmente, como também por meio de e metodológicas, têm como foco de estudo
coletivos de trabalho. Vale destacar que, mesmo a relação que se estabelece entre trabalho e
nos acompanhamentos individuais, o que se subjetividade. A partir das clínicas do traba-
busca é a restauração ou desenvolvimento do lho, para fins deste estudo, foi dada ênfase à
sujeito coletivo11. Quando há um conflito iden- clínica da atividade, proposta por Yves Clot e
tificado no acompanhamento, faz-se a opção de Daniel Faita12. A clínica da atividade oferece
conduzi-lo por meio de métodos dialógicos tais instrumentos capazes de aumentar a compre-
como a Intervenção Psicossocial ou a Mediação, ensão sobre o poder de agir dos trabalhadores
sendo esta o objeto deste artigo. frente às situações de trabalho real. Aborda o
A mediação no trabalho no SUS-BH ocorre sofrimento no trabalho sem associá-lo, exclu-
dentro de limites administrativos, legais e ins- sivamente, às características individuais do
titucionais, mas seu campo de atuação vai além trabalhador, mas à interface entre esse sujeito
do produzido, do desempenho e do resultado. e o campo social no qual está inserido. Traz
O mediador propicia condições adequadas também contribuições sobre os aspectos posi-
para que se descortinem os conflitos e suas co- tivos e criativos do trabalho12. Ainda de acordo
nexões entre a subjetividade e os processos de com as clínicas do trabalho, foram incorpora-
trabalho, estabelece um clima psicológico de das conceitos de Danièle Linhart15 e Gaulejac16,
segurança que facilita a liberdade de expressão, respectivamente, sobre precariedade subjetiva
a redução das defesas e a igualdade de direito à no trabalhador terceirizado e gerencialismo.
fala. À medida que o entendimento do conflito Os pressupostos teóricos do modelo de me-
aumenta, o mediador convoca as partes confli- diação circular narrativo foram apresentados
tantes a proporem soluções e sugestões para anteriormente. A pesquisa documental foi re-
seu enfrentamento por meio de pacto coletivo alizada em quatro casos de acompanhamentos
entre as diversas singularidades11. A mediação coletivos selecionados no arquivo da GGTRA/
abre caminho para auxiliar o trabalhador a SMSA/SUS/BH, realizados entre 2012 e 2015.
compreender as origens de seu sofrimento de De início, foram identificados oito casos. Como,
modo a construir processos de enfrentamento. dentre eles, sete estavam em três distritos sa-
Nessa linha, este estudo objetivou categori- nitários diferentes, optou-se por sortear um
zar os tipos de conflitos no trabalho, investigar caso em cada um desses três distritos, aos quais
o papel da mediação na compreensão de tais foi somado o único caso do nível central da
conflitos e avaliar se a mediação contribuiu SMSA, totalizando os quatro casos seleciona-
para migrar de uma posição de confronto para dos. Optou-se por manter como quarto caso de
uma via pacífica de condução do conflito. análise da mediação um caso do nível central
da gestão, tendo em vista a distinção do tipo
atividade meio exercida, enquanto os demais
Metodologia casos executam atividade fim na SMSA.
Para validar a seleção e a análise dos docu-
Adotou-se a pesquisa qualitativa como meio de mentos, além da própria pesquisadora, que
investigação, tendo como caminho metodológico faz parte do grupo de técnicos que trabalha
a análise documental e de narrativas. Houve uma na GGTE, outras três profissionais da mesma

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instituição que não participaram dos processos Unidade I


de mediação selecionados foram incluídas nos
processos de análises. Os técnicos do distrito sanitário apresentaram
Os documentos analisados referiram-se a à GGTRA o seguinte conflito:
diferentes conteúdos sobre os conflitos, como
relatórios, registro de reuniões, documentos O problema é a violência da comunidade. O
da Gerência de Perícia Médica, comunicados centro de saúde está um caos. Não havia es-
da Corregedoria Geral do Município, conver- ses problemas com a gerente anterior. Houve
sas por e-mail e transcrição de depoimentos desmotivação da equipe com a troca das en-
de trabalhadores. fermeiras, que eram experientes e conseguiam
Na análise dos dados, não se pretendeu fazer administrar os problemas com a comunidade.
julgamentos sobre as intenções dos narrado- Houve substituição por servidoras efetivas,
res, mas constituir significados às situações recém-formadas. A área física do centro de
vividas, trazer uma compreensão sobre a saúde é péssima. Há pedidos de transferência
condução e evolução dos conflitos narrados, relacionados aos conflitos com a comunidade.
estabelecer conexões com o contexto e com as Há conflito interno entre duas auxiliares e a
atividades. Para Vieira13, o estudo da narrativa gerente identifica lideranças negativas.
significa estudar a ação dos homens, sua inten-
cionalidade, sua representação de tempo e da A análise revelou que, durante os encontros,
própria vida. A narrativa faz a intermediação a narrativa inicial foi sendo desconstruída em
entre o indivíduo e a cultura. alguns aspectos e acrescida de elementos novos
Esta pesquisa recebeu parecer favorável do até alcançar uma reelaboração. Na narrativa
Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade dos trabalhadores, havia sofrimento intenso e
Federal de Minas Gerais (UFMG), CAAE dificuldade em compreender a sua causalidade:
52841916.7.3001.5140 e do Comitê de Ética
do SUS-BH – Parecer 1.508.397. Às vezes, tenho vontade de tapar os ouvidos e
sair. Me sinto abafada. Se abro a boca, tudo se
vira contra mim. Me sinto com a corda no pes-
Resultados e discussão coço. [...] Que vai acontecer daqui pra frente? Se
piorar, o centro de saúde acaba. Nunca houve um
Os casos conflitivos analisados haviam sido momento tão ruim. O Centro de Saúde está se
encaminhados à GGTRA com solicitação de tornando inóspito. Muitos problemas e poucos
intervenção. Em todos eles, após ouvir a nar- para dar solução. Acho que os problemas são só
rativa trazida pelos distritos e pela gerência, a ponta do iceberg.
os mediadores propuseram encontros com
os trabalhadores e gestores para inclusão À medida que o processo de mediação trans-
da narrativa dos trabalhadores. Solicitaram correu, os trabalhadores e gestores localizaram
aos gestores que não se colocassem como acontecimentos que poderiam ter produzi-
responsáveis em encontrar soluções, mas do a instabilidade no trabalho. Dentre eles,
que se abrissem ao diálogo numa perspectiva a admissão de servidores inexperientes em
de construir coletivamente saídas para as postos estratégicos de cuidado; a implantação
crises. Durante os encontros, os técnicos da classificação de risco na porta de entrada
se colocaram em posição de neutralidade, da unidade (protocolo de Manchester), que
valorizando as falas, fazendo perguntas, desconsiderava as questões sócio-afetivas
resumindo os temas abordados de modo a do território; a falta de espaços deliberativos
facilitar a reflexão e ampliar o entendimento internos e com a comunidade, a entrada de
do conflito. novo gerente e a intensificação do trabalho:

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Fico sufocado pela estrutura física, tento fazer singular e sujeita ao inesperado. É interpessoal,
as coisas, mas não consigo [...] A demanda é porque todo trabalho realizado é dirigido a
grande, o sistema é lento e as pessoas xingam. um destinatário. O ofício tem uma dimensão
As pessoas novatas chegam para trabalhar transpessoal, porque todo trabalho é atraves-
sem saber. [...] dor nas costas porque a filha sado por histórias coletivas acumuladas ao
está sendo violentada dentro de casa é cartão longo de gerações, de situações vividas e dos
verde na classificação de risco. [...] apagando modos de responder a elas. À dimensão trans-
incêndio. O fluxo do serviço é confuso, tumul- pessoal, Clot14 denominou gênero profissional.
tuado, tudo urgente. Não consigo atender as O gênero funciona como uma senha utilizada
expectativas dos usuários. pelos que trabalham juntos e compartilham
As pessoas me abordam, me sinto vigiada. Falta saberes tácitos. A dimensão impessoal do ofício
união entre as pessoas. Muita cobrança de pra- abarcaria os fluxos, as normas, os protocolos,
zos. Não tem escuta. Na época da gerente an- ou seja, a tarefa prescrita, que cada um irá
terior, era melhor. Todos estão querendo ser es- ‘descongelar’ a seu modo, diante do real que se
cutados, mas não dá. O centro de saúde sempre impõe à atividade, se valendo dos pressupostos
foi bom de indicadores. Ser primeiro não adianta da história coletiva.
nada [...]. Antes, éramos protagonistas. Passa- Quando, na arquitetura do ofício, a his-
mos a ser coadjuvantes. Hoje, somos figurantes. tória coletiva enfraquece, o trabalhador se
vê sozinho no enfrentamento do real. Seria
E o mediador fez um resumo: responsabilidade de todos os trabalhadores
e gerentes manter a estrutura do ofício de
Tenho a sensação que há impotência e sentimen- pé por meio do debate profissional sobre o
to de estar trabalhando mecanicamente. O can- trabalho bem feito. Nesses debates, os grupos
saço e a impotência podem surgir quando não se heterogêneos, o dissenso e as dissonâncias são
faz o que precisa ser feito. O que está contribuin- esperados e desejados, pois ampliam a super-
do para isto acontecer? fície de contato com o real. Clot14(4) entende
que, onde diminuem os espaços de debate,
Na perspectiva das clínicas da atividade, o aumentam as “querelas que envenenam os
sofrimento diante dos conflitos era consequ- meios de trabalho”.
ência de condições precárias, de empobreci- Após os encontros de mediação, os traba-
mento das interações entre os trabalhadores e a lhadores e gestores conseguiram ampliar o
comunidade, o que impedia a realização de um entendimento do conflito e se implicar como
trabalho bem feito. Havia uma fragmentação protagonistas na sua condução. A narrativa
das equipes e dos processos. Essa dissolução passou a ser de reestruturação dos espaços de-
de uma unidade de trabalho é descrita como liberativos. Passaram a discutir os processos de
enfraquecimento do ofício, no conceito da trabalho, a estrutura do colegiado gestor e co-
clínica da atividade. missão local, refletiram sobre as relações entre
Para Clot14(3), o ofício seria uma arquitetura eles, com o distrito e comunidade. Entenderam
social no trabalho que “pode adquirir uma que teriam que reconstruir os processos e rei-
função psíquica interna”. Essa arquitetura vindicar melhores condições de trabalho:
teria quatro dimensões: pessoal, interpes-
soal, transpessoal e impessoal, que estariam Precisamos estimular o sentimento de que somos
permanentemente em discordância criativa uma unidade e não quatro equipes, trabalhar
ou destrutiva, em ligamentos ou desligamen- em grupo, ser solidários uns com os outros. Pre-
tos, mantendo o ofício vivo, em movimento cisamos ser corresponsáveis pelo usuário, inde-
e construção contínuos. O ofício é pessoal, pendente da equipe a qual ele esteja vinculado.
porque cada situação vivida pelo trabalhador é Melhorar o processo de trabalho. Precisamos

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identificar os fatores estressantes que afligem as mesma forma que seus subordinados, o encar-
equipes. Precisamos antecipar os problemas. O regado não tinha autonomia. Suas atividades
Gerente deve participar do colegiado e reuniões e as normas de organização do trabalho eram
da comissão local, com compromisso de reuni- pré-definidas e determinadas:
ões mensais. O colegiado gestor deve ser mais
representativo. O distrito deve estar mais presen- O próprio agente pegou o impresso de plane-
te. Precisamos melhorar a relação e informação jamento diário e fez por conta dele. O boletim
e comunicação interna, com o Distrito e com a de tratamento focal tem ficado em poder dos
comunidade. agentes durante a semana, sendo que o correto
seria o encarregado recolher todos os dias para
que possa acompanhar a produção, qualidade e
Unidade II planejar o dia posterior. O encarregado permite
que os próprios agentes conduzam da forma que
A demanda foi enviada à gestão do trabalho desejarem a tarefa do dia, ficando sem condições
com relatório assinado pelo gerente imediato de acompanhar o percurso dos seus agentes. Re-
e por dois gerentes do distrito em 2015: forçamos a importância de cumprir as obrigações
e deveres com realização das rotinas diárias do
Há algum tempo, observamos que um emprega- processo de trabalho, do horário, assinatura do
do, que tem função de encarregado, apresenta ponto na sala da gerência e entrega dos boletins
dificuldades na condução da equipe. Apresenta no final do dia.
conflitos nas relações interpessoais e problemas
de cumprimento de horário com reflexos negati- Na perspectiva da clínica da atividade, a
vos no trabalho. Ele não consegue atuar confor- narrativa do distrito sobre o conflito revela
me sua atribuição, não tem perfil e postura para hipertrofia da dimensão impessoal do ofício,
o bom andamento do serviço. A equipe encontra- segundo o conceito de ofício de Yves Clot14(5):
-se desmotivada. Ele não exerce nenhum tipo de
liderança ou controle sobre as atividades que os Somos feitos para fabricar contextos para neles
agentes deveriam realizar. Realizamos reuniões vivermos. Uma vez que essa possibilidade esteja
individuais e coletivas na tentativa de resgatar diminuída ou, principalmente, se ela desaparece
sua liderança junto ao grupo, estabelecemos nor- de modo continuado, não vivemos, apenas sobre-
mas e diretrizes, discutimos o cumprimento de vivemos, submetidos que estamos aos contextos
horário, a elaboração de relatórios a serem en- profissionais, sem poder verdadeiramente nos re-
tregues à gerência em tempo hábil, mas não foi conhecer naquilo que fazemos.
percebida, até o momento, qualquer mudança de
comportamento. Com base nos registros da mediação, infe-
re-se que a narrativa dos trabalhadores não
Nos relatórios anteriores ao processo de confirmava a narrativa da gestão sobre a causa-
mediação, desde 2011, a narrativa era que o lidade do conflito. A equipe sentia-se isolada,
encarregado não vinha cumprindo bem o seu sem capacitação, sem espaços de debate, sem
papel, a partir de uma concepção de supervi- suporte, com uma supervisão frágil. Os agentes
são com um forte caráter fiscalizatório que não atribuíam exclusivamente ao encarrega-
previa a conferência das visitas aos domicílios do a responsabilidade pelos conflitos. Não
realizadas pelos agentes. Na mesma concep- elogiavam sua atuação como supervisor, mas
ção, o planejamento das atividades diárias não o destituíam integralmente da função.
dos agentes ficaria sob a responsabilidade do Tampouco estavam desmotivados. Ao contrá-
encarregado, sendo considerado incorreto rio, narravam que se dedicavam, eram respon-
delegar a atividade para quem a executava. Da sáveis, criativos e viam sentido no que faziam.

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Sentiam-se desvalorizados pela Instituição e efetividade e na melhoria das condições de


não pelo encarregado: trabalho e revelavam que os agentes atuavam
com responsabilidade e autonomia.
Encarregado: Gosto do que faço, não pretendo Quanto à causalidade do conflito, a media-
sair daqui. ção não alcançou a desconstrução da narrativa
da gestão, que se manteve fechada, susten-
Agentes: Acho tranquilo, tenho bons relaciona- tando uma culpabilização linear direcionada
mentos [...]. Crio amizades, gosto do que faço, é exclusivamente ao encarregado. Os encontros
dinâmico, gosto de andar e falar. Gosto de tra- ampliaram a compreensão do contexto do
balhar uma comunidade carente, faço o que está trabalho, mas não avançaram na mediação
ao meu alcance. Houve desavenças, mas ainda do conflito entre o encarregado e o agente. A
é uma equipe boa de trabalhar, apesar dos ‘ar- gestão optou pela transferência involuntária
ranca-rabo’. O problema é a comunicação entre do encarregado.
as duas pessoas [...]. Relação com a turma já foi
boa, hoje em dia a relação é boa com alguns, não Unidade III
todos [...]. Tanto o encarregado como esse colega
são muito infantis. Cada um, o colega e o encar- A mediação analisada foi realizada em uma
regado, tem de reconhecer os erros. O ideal seria unidade de gestão administrativa, ou seja, que
que os dois ficassem para não se perder mais [...]. executa uma atividade meio da SMSA, na qual
trabalham servidores efetivos e trabalhadores
Mediador: O que pode ser feito para reconstruir terceirizados. O gerente trazia a seguinte nar-
o que se perdeu? rativa, segundo registros do mediador:

Agentes: É importante a reunião de equipe de 15 [...] com a chegada de seis servidores efetivos,
em 15 dias para tratar do processo de trabalho em substituição a um quarto dos trabalhado-
para minimizar as questões pessoais e acabar res terceirizados, observei que os novatos não
com a ‘rádio peão’. A conclusão é trabalhar em têm interesse no trabalho, se posicionam como
equipe. Algo desandou, mas pode retomar. [...] O questionadores e fiscalizadores. Apontam er-
distrito tem que ter mais agilidade para resolver ros, destratam funcionários terceirizados e não
as questões que vão além do agente de campo, respeitam regras de convivência e normas da
por exemplo, como agir com os imóveis proble- Instituição.
máticos. Há coisas para as quais precisamos de
suporte. A gerência tem que aprimorar o diálo- A narrativa dos novos trabalhadores efe-
go, envolver-se nas atividades e ser o elo junto tivos era:
ao distrito. O agente de zoonoses é o baixo esca-
lão da PBH. Não reconhecem a gente. O que nos A convivência é difícil. Fiquei feliz por ter passado
mantem é a equipe unida. Temos dificuldade com no concurso, mas fiquei muito decepcionado. Já
a coordenação da zoonoses do distrito. Queria ter trabalhei em serviço público em outro município
um plano de carreira. e gostava muito. Estou desestimulado. Me iden-
tifico mais com o grupo de efetivos. Aqui, não
Tais considerações trazem a concepção podemos questionar nada, parece que estamos
de uma supervisão que se coloca mais como afrontando. O gerente me expôs frente aos cole-
apoiadora e de suporte ao trabalho. Sabiam gas [...]. Estou trabalhando sob pressão. A mesa
das dificuldades e limites da atuação do tra- lotada, o telefone toca o dia inteiro. A demanda
balho no campo e defendiam interlocutores é alta. Não sabia que o SUS era uma ‘zona’. Aqui
com o distrito para apoiá-los e orientá-los. tem muita barata e não sei como as pessoas
As declarações demonstravam interesse na aceitam trabalhar desta forma. As pessoas aqui

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abaixavam a cabeça [...]. A gente quer contribuir resistência, diante das exigências das dire-
e não tumultuar. Tenho dúvidas técnicas. Não fui ções. Criar um tipo de precariedade subjeti-
treinado, sou um peixe fora d’água. va para que os trabalhadores não se sintam à
vontade no trabalho nem entre eles, para que
Narrativa na perspectiva dos trabalhadores não possam desenvolver redes de cumplici-
terceirizados: dade e de apoio com os colegas, com a hierar-
quia nem com seus clientes, a fim de que sin-
Falta de respeito. Não tenho como crescer aqui tam sempre a corda esticada e fiquem mais
dentro. Há diferença de classe, há discriminação. receptivos às injunções que visam a aumentar
Batem o carimbo de classe social na gente. A a rentabilidade de seu trabalho.
gente não gosta de conviver com as baratas, mas
não podemos reclamar porque podemos perder Os novos servidores se diziam interessados
nossos empregos. Os efetivos pode reivindicar no concurso e decepcionados com a realida-
pela estabilidade que têm. Têm oportunidade de encontrada. Além disso, relataram uma
de crescimento. Mas a chegada deles alterou o relação comprometida com o gerente, que
esquema do trabalho parecendo que tudo que foi compartilhada pelos dois grupos. Houve
nós fazíamos era errado e que éramos coniventes outro encontro com os trabalhadores e ge-
com os erros e desmandos. Essas diferenças não rentes, 15 dias após o primeiro. O mediador
justificam privilégio, grosseria e falta de respeito. registrou que:
Quando vim trabalhar aqui as pessoas me adver-
tiram sobre o gerente. Os trabalhadores relataram que a relação entre os
colegas efetivos e terceirizados estava bem me-
Na concepção da clínica da atividade, a lhor. Eles estavam se respeitando. Havia um es-
análise indica um enfraquecimento do gênero forço mútuo de integração e de cordialidade. Não
profissional. Os servidores efetivos não com- haviam percebido, entretanto, modificação na
partilhavam ainda a história comum daquele relação entre gerente e subordinados e tampou-
coletivo e detinham, de alguma forma, mais co melhoria nas condições do trabalho. Perguntei
direitos. Por outro lado, sentiam-se impedidos, sobre alternativas. Os trabalhadores sugeriram
pelo gerente, de se apropriar dessa história que o gerente desse mais autonomia, sugeriram
coletiva, uma vez que não podiam debater permutar algumas tarefas entre eles, melhorar as
sobre os processos de trabalho. A partir dessa relações internas e com outras gerências.
situação, passaram a criticar o trabalho e os
colegas terceirizados como se fossem pessoas A análise dos registros mostrou melhoria
externas ao contexto, ou seja, como se não na interação entre os trabalhadores tercei-
pertencessem àquela realidade. Essa atitude rizados e os efetivos. Houve, portanto, uma
comprometeu a relação com os colegas ter- recontextualização, um reenquadramento das
ceirizados, que anteriormente conseguiam narrativas entre as duas partes conflitantes.
sustentar um ofício, ainda que fosse de forma Permaneceram os conflitos entre os trabalha-
frágil. Tal fragilidade ficou evidenciada quando dores e gerente.
relataram suportar situações das quais dis- Na narrativa dos gestores, os novos servi-
cordavam para manter o emprego. Segundo dores eram considerados responsáveis pela
Linhart15(151), a precariedade do vínculo criaria crise, sendo mais provável que a chegada de
também uma precariedade subjetiva e uma novos trabalhadores tenha sido o ponto de
subordinação maior ao gestor. gatilho. A entrada de novos servidores sem o
saber da experiência, embora reivindicativos
O objetivo é minimizar a capacidade dos e estáveis, produziu uma desestabilização dos
trabalhadores de fazer oposição, impor poderes e, consequentemente, a ruptura de

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situações conflitivas latentes. A substituição denúncias anônimas. As narrativas anônimas


de um quarto dos trabalhadores terceirizados apenas levantam suspeitas, mas não estabele-
do setor pode ter gerado a intensificação do cem interlocução. São fechadas em si mesmas.
trabalho, o rompimento do gênero profissional Mesmo assim, pela repercussão na unidade,
e aumento da penosidade. os trabalhadores foram ouvidos.
Meses depois, houve registro da exone-
ração da função do gerente por instâncias Mediador: Como vocês se sentem vivendo esta
superiores, não havendo menção de nexo situação?
com o conflito vivido.
Trabalhadores: Estou indignada e assustada.
Unidade IV Não presenciei nada em relação às denúncias.
Estou surpresa e chateada. E agora como ficam
A demanda de intervenção ou mediação foi as relações aqui dentro? Com quem nos relacio-
feita pelo distrito sanitário conforme registro namos? Uma covardia com o gerente, não con-
de um mediador: cordo com o que foi feito [...] Concordo com o que
foi escrito sobre a forma do gerente se relacionar,
Comparecermos à Unidade a partir de uma de- mas isso deveria ter sido conversado [...] O ge-
manda do distrito, após carta anônima sobre rente transmite agressividade em sua forma de
atuação do gerente assim redigida: [...] gerente falar, mas há outras formas de resolver. Muitas
coagiu agentes comunitários de saúde a traba- pessoas gritam na unidade umas com as outras,
lhar em desvio de função. Há reclamações no não é exclusividade do gerente [...] O centro de
SOS Saúde e não se sabe por que não se toma ne- saúde está precisando passar por uma reforma,
nhuma providencia para resolver a situação. Ge- estamos em guerra. O gerente está sobrecarre-
rente não tem tempo para ouvir os funcionários e gado de trabalho, não tem gerente adjunto, não
os usuários que o procuram, justificando que tem tem assistente social.
muito trabalho a fazer. Hoje existe até uma grade
na recepção, usuários nunca encontram o geren- A maioria ficou impactada e considerava
te. Não tem médico na equipe. Tentei falar com o o anonimato nocivo para o gerente e para as
gerente duas vezes, mas ele estava em reunião. relações dentro e fora da unidade. A agressi-
vidade foi citada como corriqueira entre os
Observa-se que as denúncias giravam em trabalhadores e a sobrecarga foi considerada
torno da interação do gerente com seus fun- uma das causas. Muitos concordaram com a
cionários e usuários. O gerente estava sendo dificuldade de interação do gerente e a indis-
avaliado como autoritário, inacessível e injusto ponibilidade para receber os trabalhadores e
no trato com seus subordinados. usuários quando priorizava atividades admi-
A narrativa do distrito trazia destaque para nistrativas. Para Gaulejac16, há sempre uma
a eficiência do gerente: contradição no exercício da gestão que deve
cumprir as exigências formais da instituição e,
Ao longo desses anos, não recebemos queixa a ao mesmo tempo, não se afastar do princípio
respeito do gerenciamento ou da conduta dele. de que o trabalho existe para construir uma
É profissional comprometido que responde em sociedade e o bem comum. Essa contradição
tempo oportuno à grande maioria das demandas era vivenciada pelo gestor da Unidade IV, que,
solicitadas pelo Distrito. Sua unidade é referência pela exigência em cumprir as normas, pela
de atendimento à dengue. sobrecarga de trabalhos administrativos e
pelas condições precárias descritas, desviava
Há conflitos em que as partes em disputa seu foco da essência do cuidado.
não estão delineadas, como é o caso de Após os encontros, os trabalhadores e

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gerente compreendiam melhor os conflitos interrompidos, onde as práticas do modelo


da unidade e estavam revendo posições: gerencialista estavam intensificadas, onde
havia enfraquecimento do ofício, onde as
Agora a enfermagem decidiu se reunir mais. condições de trabalho eram excessivamente
Estou apostando na possibilidade de diálogo. O precárias, onde o cuidado com o outro e
gerente está se esforçando para melhorar. Propo- os aspectos subjetivos estavam negligen-
mos mais espaços de reunião. Depois da carta, a ciados. Os conflitos se reforçaram ou se
desconfiança permaneceu entre algumas pesso- constituíram a partir de situações de tensão
as, mas há coisas boas acontecendo. É hora de conduzidas de forma inadequada, onde
selecionar e ir adiante, avançar. As relações estão predominaram as atribuições de culpabi-
melhorando. Acho que diminuíram as conversi- lidade, de responsabilizações, de medidas
nhas [...]. Os agentes comunitários querem tam- punitivas, de narrativas de poder fechadas
bém espaço para discutir [...]. A equipe está sen- e impermeáveis a outras narrativas. Nas
do mais verdadeira entre si. O gerente tem seus mediações realizadas, houve oportunidade
defeitos, precisa mudar alguns aspectos. Está na de trazer à tona as narrativas hegemônicas e
hora de parar com essa história de carta anônima as marginalizadas, com sua desconstrução,
e reconstruir as relações de trabalho. do resgate do protagonismo e construção de
narrativa alternativa.
De forma geral, as narrativas revelaram Constatou-se que a mediação é um ins-
um alívio da tensão e disposição dos traba- trumento válido para conduzir conflitos do
lhadores e gestor em organizar o processo trabalho, mesmo considerando que ocorrem
de trabalho de forma compartilhada. Os en- em espaços como as relações de subordi-
contros de reflexões conjuntas são, em geral, nação e com o privilégio das narrativas
interpretados como perda de tempo. Esses da gestão. A intervenção dos mediadores
espaços deliberativos, entretanto, propiciam possibilitou equilibrar poderes, restabele-
os debates em busca do trabalho bem feito, a cer o diálogo entre trabalhadores e entre
troca de saberes, o desenvolvimento da ca- trabalhadores e gestores. Os espaços de
pacidade criativa, a redução da penosidade mediação constituem-se em espaços deli-
frente ao real, o enriquecimento do trabalho berativos que auxiliam a compreensão dos
e, principalmente, restituem o sentimento de significados, possibilitando contextualizar
contribuir para uma obra coletiva, dentro da os conflitos, elucidar sua causalidade e dar
concepção da clínica do atividade16. sentido ao trabalho. Por outro lado, a me-
diação não é numa panacéia, até porque
qualquer espaço deliberativo não pode ser
Conclusões idealizado7. Diferença e dissensos existem e
são desejados, porque trazem para o debate
Na análise dos documentos, constatou-se que a realidade concreta.
os registros da gestão do trabalho possibilita- É preciso demarcar também que as me-
ram a compreensão das mediações realizadas. diações analisadas foram realizadas nos
Concluiu-se que os conflitos interacionais no espaços de trabalho do SUS, que sustenta em
trabalho se assemelham a qualquer conflito, em suas diretrizes valores como o protagonismo,
qualquer contexto, apresentando fatores desen- gestão compartilhada e do cuidado. Essas di-
cadeantes, pontos de gatilho que os deflagram, retrizes são contra hegemônicas ao modelo
causalidade complexa dinâmica e circular. de gestão gerencialista, que pouco a pouco
Nos documentos analisados, os con- vem se infiltrando no SUS. Por isso, a defesa
flitos ocorreram em contextos onde os da mediação de conflitos no SUS reveste-se de
espaços de diálogo e deliberação estavam importância como método de resistência em

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defesa de valores inclusivos, democráticos, de pela precisão e integridade de qualquer parte


solidariedade e de equidade. do trabalho.

Colaboradores Agradecimentos
Parisi L contribuiu para a concepção teóri- Agradecemos aos professores José Newton
co-metodológica e elaboração do trabalho; Garcia de Araújo, Andréa Maria Silveira
aquisição, análise e interpretação dos dados; e Crisane Costa Rossetti pela supervi-
aprovação da versão final; responsabilização são durante a realização da pesquisa.
pela precisão e integridade de qualquer parte Agradecemos o apoio da Gerência de
do trabalho. Silva JM contribuiu para a con- Gestão do Trabalho e Educação em Saúde
cepção teórico-metodológica e elaboração do da Secretaria Municipal de Saúde, Prefeitura
trabalho; análise e interpretação dos dados; de Belo Horizonte. s
aprovação da versão final; responsabilização

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Aprovado em 03/10/2018
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Suporte financeiro: não houve

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