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Liderança e Gestão de Conflito

Unidade 2 — Estratégias de gerenciamento de conflito

Leitura Recomendada

É possível trabalhar o conflito como


matéria prima da gestão em saúde?

CECILIO, Luiz Carlos de Oliveira. É possível trabalhar o conflito


como matéria prima da gestão em saúde? Cadernos de Saúde
Pública, [S.l.], v. 21, n. 2, p. 508- 516, abr. 2005. Disponível em:
https://doi.org/10.1590/S0102-311X2005000200017. Acesso em:
2 dez. 2018.
508 ARTIGO ARTICLE

É possível trabalhar o conflito


como matéria-prima da gestão em saúde?

Can conflict be used as the “raw material”


for health services management?

Luiz Carlos de Oliveira Cecílio 1

Abstract O conflito na teoria das organizações

1 Faculdade de Ciências The author examines the possibility of under- As agendas de trabalho dos gerentes das orga-
Médicas, Universidade
standing ordinary conflicts within health care nizações de saúde são sempre invadidas, no dia-
Estadual de Campinas,
Campinas, Brasil. organizations as a management object. He thus a-dia, por um conjunto de fatos que podem ser
proposes the use of an “analytical matrix” aimed designados como conflitos. Na verdade, “lidar
Correspondência
at allowing the actors involved in conflictive sit- com conflitos” é uma constante no cotidiano
L. C. O. Cecílio
Departamento de Medicina uations (always in a self-analytical position) to dos gerentes e da direção superior, em toda e
Preventiva e Social, achieve a broader understanding of such con- qualquer organização.
Faculdade de Ciências
flicts. There would be new possibilities for con- Pretendemos, neste artigo, fazer dois movi-
Médicas, Universidade
Estadual de Campinas. tractibility in the management of the health ser- mentos sucessivos e complementares. Primei-
C. P. 6111, Campinas, SP vice’s daily routine, as well as new shapes in the ro, adotar uma definição de conflito a partir da
13083-970, Brasil.
cecilioluiz@uol.com.br
relations among workers; this would include revisão de um certo debate, ainda que não exaus-
bringing previously concealed conflicts to the tivo, sobre o tema existente na literatura. Depois,
surface and helping them reach the service’s de- a partir dessa conceituação de caráter abstrato,
cision-making arena. The author also indicates sugerir uma formatação mais operacional de
possible difficulties for adopting this type of um “dispositivo de gestão” (a planilha de análi-
managerial practice. se de conflitos) que permita uma eventual apro-
priação do conceito e sua aplicação em situa-
Conflict (Psychology); Organizations; Manage- ções reais por parte de coletivos nos serviços
ment de saúde. Tal movimento da teoria em direção
à prática tem a pretensão, em última instância,
de contribuir para processos de gestão, nos
quais os trabalhadores poderiam alcançar uma
maior competência para reconstruir suas prá-
ticas e relações cotidianas. O artigo pode ser
visto como um exercício de especulação sobre
novas possibilidades gerenciais, tendo como
ponto de partida um tema tão comum em to-
das as organizações: o conflito. Sem ter o cará-
ter de investigação empírica mais aprofunda-
da, apóia-se na experiência do autor que teve a

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oportunidade de testar a aplicabilidade do ins- os conflitos encobertos. Há ruídos, sim, mas


trumento proposto em várias situações institu- esses não têm força para impor-se à agenda da
cionais. direção. “Todas as formas de organização polí-
Motta 1, fazendo uma revisão na literatura, tica têm preconceitos em favor da exploração de
afirma haver três grandes correntes na aborda- algumas espécies de conflito e a supressão de
gem do conflito na organização. A primeira en- outras, porque a organização é a mobilização
tende os conflitos como o resultado de disputa do preconceito. Algumas discussões são organi-
de interesses inconciliáveis inscritos na estru- zadas dentro da política e outras fora dela” 3 (p.
tura social e que invadem a organização. A se- 13). Um exemplo: as insatisfações do pessoal
gunda corrente veria o conflito como algo en- de enfermagem em relação a certos privilégios
volvendo papéis em nível organizacional, re- que os médicos têm no hospital (flexibilidade
sultantes da evolução tecnológica e econômica de horário, grande autonomia nas suas práti-
que imporia adaptações à organização da pro- cas, desconsideração com o trabalho da enfer-
dução e, como conseqüência, uma crescente ne- magem etc.). Diz-se que esses conflitos são en-
cessidade de controle dos gerentes sobre a co- cobertos porque não conseguem penetrar a
letividade de trabalhadores. Finalmente, uma agenda da direção, serem apreciados e resulta-
terceira corrente, que trataria o conflito como rem em alguma forma de modificação do sta-
sendo essencialmente de personalidade e de per- tus quo. Os conflitos encobertos são os ruídos
cepções em nível individual, ou seja, uma dis- que a direção não escuta, nem pode, de algu-
crepância entre aspirações individuais e impo- ma forma, escutar: fazer isso seria ter que en-
sições organizacionais. Afinal, o autor advoga frentar relações de poder instituído, com gran-
uma posição eclética que reconhece que “interes- de poder de reprodução/manutenção. Assim, a
ses de classe, como os do trabalho, por exemplo, não tomada de decisão (em relação à situação
não destroem interesses individuais e de peque- conflituosa) seria um meio pelo qual as de-
nos grupos, que continuam a gerar conflitos e mandas de mudanças nas atuais relações de
precisam ser enfrentados pela gerência” 1 (p. 154). poder seriam sufocadas antes mesmo de serem
Burrell & Morgan (1979, apud Hall 2) defen- enunciadas ou mantidas encobertas ou elimi-
dem que haveria três visões sobre interesses, nadas antes mesmo de ganharem acesso à are-
conflito e poder. Na visão unitária, conforme na de tomada de decisões. Lukes afirma, ainda,
definição dos autores, o conflito poderia ser que haveria um terceiro tipo de conflito, que
visto como um fenômeno raro e transitório que ele denomina de latente. Seriam conflitos que
poderia ser eliminado através da ação geren- poderiam manifestar-se desde que determina-
cial apropriada. Seriam sempre conflitos inter- dos atores pudessem tomar consciência do
pessoais e causados por funcionários proble- quanto seus verdadeiros interesses são descon-
máticos ou criadores de caso. Uma segunda vi- siderados. Aqui, Lukes amplia a clássica defini-
são, a pluralista, encara o conflito como uma ção de poder – que diz que “A tem poder quan-
característica intrínseca e inerradicável dos as- do faz B fazer algo que não faria se não fosse A”
suntos organizacionais e enfatiza seus aspec- – para a idéia de que “A também exerce poder
tos potencialmente positivos e funcionais. Por sobre B ao influenciar, moldar ou determinar
fim, uma terceira visão, denominada como ra- seus próprios desejos. Com efeito, não é o supre-
dical pelos autores, “encara o conflito como for- mo exercício do poder levar outro, ou outros, a
ça motora onipresente e causadora de rupturas, ter desejos que se que queria que tivessem – isto
que impele às mudanças na sociedade em geral é, assegurar sua obediência, controlando seus
e nas organizações em particular. Reconhecem pensamentos e desejos?” 3 (p. 18). Estamos, com
que o conflito pode ser um aspecto reprimido do essa visão, em pleno campo da ideologia, da
sistema social, nem sempre visível no nível em- falsa consciência, da concepção gramsciana de
pírico como ‘realidade’” 2 (p. 93). hegemonia política e cultural de um grupo so-
Outro autor que tenta elaborar uma defini- cial sobre os subalternos, de forma que os ex-
ção de conflito mais abrangente é Lukes 3, ao cluídos ou os submetidos às várias formas de
afirmar que, para além dos conflitos abertos, violência e dominação sequer chegam a estar
observáveis, comportamentais, é preciso reco- conscientes dos seus interesses. O que Lukes 3
nhecer que há certos conflitos que não alcan- quer enfatizar é que pode haver relações de po-
çam a agenda formal da direção e das gerên- der que não se expressam, necessariamente,
cias. Circulam pelos corredores, pelas áreas de em conflitos observáveis ou mesmo encober-
bastidores, como um murmúrio institucional, tos, na medida em que os interesses dos dife-

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rentes atores nem sempre seriam consciente- desse mesmo ator, e que são sempre, em parte,
mente articulados e observáveis. pré-formadas por uma socialização passada).
A “organização” que o diretor do hospital ou do
centro de saúde vê não é a mesma que o fun-
Delimitando um conceito de conflito cionário da recepção ou a enfermeira do bloco
obstétrico vê. Trabalhamos ainda com a idéia
A discussão sobre conflito, tanto no plano social de que essas diferenças são parte das tensões
mais geral como em nível das organizações, é constitutivas de toda e qualquer organização e
extensa, e não pretendemos tomar essa discus- explicam, em boa medida, os conflitos que in-
são como o centro do presente artigo. A revisão vadem as agendas dos seus gerentes 8.
cuidadosa que Birnbaum 4 faz sobre o tema, a Vamos adotar, ainda, a idéia de que conflito
partir de uma leitura sociológica, é uma refe- é fenômeno, é comportamento, é ruído: SUPER-
rência. O que nos propomos, aqui, é adotar FÍCIE. As tensões constitutivas seriam a ES-
uma definição de conflito que permita sua uti- PESSURA, a “estrutura”, os “lugares” (instâncias,
lização no contexto da gestão de serviços de topos, saberes/poderes das diferentes corpora-
saúde. Ou, pelo menos, como o título do artigo ções etc.) instituídos. Estrutura e superfície,
sugere, nos indagarmos se o conflito, conceito tensões constitutivas e conflitos se interpene-
tão prenhe de sentidos, pode ser apreendido trando, produzindo deslocamentos, instituin-
como “matéria-prima da gestão em saúde”. A do novas configurações da organização, mas
primeira definição que adotamos, ela mesma também reproduzindo, confirmando instituí-
podendo ser problematizada conforme o refe- dos, malhas de captura: territórios de poder.
rencial teórico adotado pelo leitor, é a de que Aqui, filiamo-nos às contribuições feitas pela
“o conflito é sempre consciente”, como advoga sócio-análise francesa, em particular nas for-
Boudon 5. Consideramos, ainda, que a eclosão mulações contidas nos trabalhos já clássicos
e o desenvolvimento do conflito podem ser ex- de Lapassade & Lourau 9 e Lapassade 10, em par-
plicados tanto a partir das posições detidas nas ticular a crítica que fazem aos teóricos organi-
“estruturas” como de intencionalidades opos- zacionais, no sentido de que suas análises te-
tas dos atores que ocupam esses papéis, uma riam se desenvolvido com o esquecimento ou
vez que só eles podem decidir-se por agir e subestimação da instituição, termo que desig-
transformar o conflito, que até lá permanece na a produção e a reprodução das relações so-
potencial, num confronto real. Pensamos, tam- ciais dominantes, tanto nos pequenos grupos
bém, que há conflito quando dois ou mais ato- como na estrutura das organizações.
res fazem uma apreciação situacional diver- Podemos então dizer que conflito é o que
gente – situação entendida no estrito sentido escapa, o que se apresenta, o que denuncia, o
proposto por Matus 6: o recorte interessado da que invade a agenda de quem faz a gestão, o
“realidade” feito por um ator engajado na ação. que incomoda. São os comportamentos obser-
Essa definição está comprometida com duas váveis que exigem “tomadas de providências”:
idéias principais. A primeira é a de que cada a briga entre funcionários, o bate-boca de pa-
ator faz uma apreciação da “realidade” que de- cientes com funcionários, a disputa de recur-
pende do lugar que ocupa na organização que sos entre unidades diferentes, as reclamações
está sendo analisada. Seu lugar na “estrutura”. de pacientes. Ruídos. Os conflitos abertos, tal
O olhar condicionado pelo lugar. A segunda qual definidos por Lukes 3. Mas tomaremos,
idéia é a de que esse olhar é, sempre e antes de também, potencialmente, como objeto da ação
qualquer coisa, um olhar comprometido com a gerencial, os conflitos encobertos, aqueles que
ação, com intencionalidades. Fiquemos, então, ainda circulam nos bastidores, na “rádio-corre-
com a idéia de que há, no cotidiano das orga- dor” e que não conseguem, nos sistemas de ges-
nizações, uma incontornável diferença entre tão mais tradicionais, ocupar a agenda da dire-
esses modos de olhar dos distintos atores, sem- ção. Trataremos, então, como conflitos, os fe-
pre engajados com a ação. Nesse sentido, esta- nômenos, os fatos, os comportamentos que, na
mos de acordo com Boudon, em obra citada vida organizacional, constituem-se em “ruídos”
por Friedberg 7, quando afirma que a racionali- e são reconhecidos como tais pelos trabalha-
dade da ação dos atores institucionais seria dores e pela gerência.
produto conjunto de um efeito de posição (que Nas reflexões que pretendemos fazer neste
dependeria da posição que um decisor ou ator texto, tomaremos como foco de atenção os con-
ocupa num contexto determinado e que con- flitos abertos e os encobertos, trabalhando com
diciona seu acesso a informações pertinentes) a idéia de que estes últimos poderão vir a ser
e de um efeito de disposição (que dependeria tratados na agenda da direção em função do
das disposições mentais, cognitivas e afetivas quanto se criem dispositivos de gestão mais

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publicizados e com mais sensibilidade para es- conflitos. Inicia com o reconhecimento e enun-
cutar e processar os conflitos encobertos que, ciação dos conflitos mais freqüentes vividos
em sistemas de gestão mais fechados, acabam por determinados coletivos ou percebidos por
circulando pela “rádio-corredor” da organiza- determinadas instâncias de direção para, na se-
ção. Pensamos que os gerentes e os trabalha- qüência, fazer uma priorização dos conflitos a
dores de saúde podem ser pensados como ho- serem analisados. A matriz tem o formato apre-
mens da ação, como seres práticos, com capa- sentado na Figura 1. É bom que se esclareça que
cidade para conhecer e (re)criar a realidade hu- o formato dessa planilha é apenas uma suges-
mana, inclusive tomando uma postura ativa e tão de possibilidade de organização da discus-
criadora diante dos conflitos. são (um roteiro de discussão), podendo ser mo-
A definição de conflito que adotamos coin- dificada, recriada em cada contexto organiza-
cide, então, com a visão pluralista do esquema cional distinto, servindo, ainda, como um “guia
de Burrell & Morgan, isto é, aquela que consi- para a reflexão” de grupos organizacionais.
dera os conflitos como característica intrínseca Na coluna 1, enuncia-se o conflito em análi-
e inerradicável da vida organizacional, da mes- se. Na coluna 2, tenta-se fazer um movimento
ma forma que toma emprestados os conceitos que vai da SUPERFÍCIE em direção à ESPESSU-
de conflitos abertos e encobertos de Lukes e RA, buscando-se caracterizar as tensões consti-
assume a postura eclética de Motta, que defen- tutivas do conflito. Para tanto, introduzem-se os
de que há uma convivência, sem exclusão, de seguintes conceitos: (a) os atores envolvidos no
conflitos decorrentes de interesses de classe ou conflito; (b) a apreciação que fazem da situação
de lugares diferenciados na estrutura social conflituosa a partir do lugar que ocupam e de
com aqueles ligados ao trabalho e à disputa de seus interesses específicos; (c) como os atores
interesse entre pequenos grupos e mesmo con- jogam no contexto do conflito (São mais ofensi-
flitos interpessoais. vos ou defensivos? Jogam por omissão? Aliam-
A pergunta que estrutura as reflexões deste se a outros atores? Quais?); (d) quais os recursos
texto é se seria possível instrumentalizar os ge- que os atores envolvidos controlam e que têm
rentes e os coletivos das organizações de saúde importância para a situação conflituosa especi-
com determinados dispositivos que lhes per- ficamente? Na coluna 3, propõe-se que o coleti-
mitam tomar os conflitos como tema da gestão, vo explicite como o conflito analisado tem sido
capacitando-os a compreender o que os confli- trabalhado (fica de fora da pauta da direção ou
tos estão dizendo, denunciando, em última ins- tem sido tema de disputa? É simplesmente ig-
tância, contribuindo para mudanças substan- norado, “jogado para debaixo do tapete ou, sim-
tivas no cotidiano das organizações, em parti- plesmente, “incorporado à paisagem”). Final-
cular na relação entre os trabalhadores e entre mente, na coluna 4, a partir da compreensão
estes e os usuários. No limite, possibilitar que que o grupo conseguir alcançar, são pensadas
conflitos encobertos acessem a agenda de de- novas possibilidades de se trabalharem os con-
cisão, superando crônicas situações de injusti- flitos, de forma mais pública e acordada, dentro
ça a que são submetidos tanto os trabalhado- dos limites de governabilidade do grupo.
res como os usuários.

Um exemplo de utilização da matriz


Uma “matriz de análise dos conflitos” para análise de conflitos freqüentes
como ferramenta gerencial nas organizações de saúde

A elaboração de uma “matriz de análise dos Para uma melhor compreensão, pelo leitor, da
conflitos” teria a pretensão de facilitar a análi- utilização potencial da matriz de análise de
se, por coletivos de trabalhadores, desse fenô- conflitos, apresentamos sua utilização e dis-
meno corriqueiro nas organizações que são os cussão em uma situação hipotética, mas bas-

Figura 1

A “matriz de análise dos conflitos”.

1 – Conflito em 2 – Tensões constitutivas 3 – Como se lida com 4 – Novas possibilidades


análise do conflito o conflito atualmente de lidar-se com o conflito

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tante corriqueira nos serviços de saúde. Muitos que não consegue “negociar” ou impor mesmo
outros exemplos poderiam ser lembrados. uma outra postura para o médico e impotente
“porque as coisas na Secretaria sempre foram
Cenário assim, e sempre que algum gerente resolveu en-
frentar os médicos nesta questão de horário se
Um centro de saúde hipotético (há inúmeras deu mal”; por fim, o usuário que está vivendo a
variações em torno da caracterização apresen- necessidade de atendimento e tem que esbar-
tada a seguir). rar com a má vontade do auxiliar e do pessoal
da recepção, que sempre colocam alguma difi-
Conflito culdade e sabem que ele, o usuário, terá que
sair, por conta própria, atrás de atendimento
Médicos com reclamações freqüentes, agres- em outro lugar, além de já saber que novas hu-
sões verbais e má vontade com os auxiliares de milhações e dificuldades lhe esperam nas filas
enfermagem, em um centro de saúde, quando do pronto-socorro que inevitavelmente terá
estes pedem que eles atendam “só” mais um que demandar.
paciente “de última hora”, quando a cota de (c) Como “jogam” os atores na situação confli-
atendimento ou a jornada de trabalho do mé- tuosa: os médicos fazem ameaças veladas (ou
dico já chegaram ao fim”. abertas), dificultam o acesso, de toda as formas
possíveis, evitando criar “precedentes” de tole-
Utilização da matriz para análise rância, “para não acostumar mal o pessoal”. O
enfrentamento nunca é direto com o paciente.
• Coluna 1 Cede de cara feia (ou se recusa a atender, algu-
mas vezes) quando o pedido é feito diretamen-
O conflito descrito acima. te pela gerente; os auxiliares de saúde jogam
em duas “frentes”: são os mais duros possíveis
• Coluna 2 com os pacientes, dizendo que não podem fa-
zer nada porque as cotas de atendimento já es-
(a) Os atores envolvidos diretamente na situa- tão esgotadas, mas sempre tentam um jogo de
ção conflituosa: os médicos, os auxiliares de “sedução” com os médicos (nunca de enfrenta-
enfermagem, o pessoal da recepção, o gerente mento, como, no íntimo, imaginam que seria
da unidade, os pacientes. justo fazer), tentando sensibilizá-los para uma
(b) A apreciação que os atores envolvidos fa- ou outra situação que avaliam como justifica-
zem da situação conflituosa: os médicos sen- do o pedido do “atendimento extra”. Duplo es-
tem-se pressionados, “explorados” por pedidos tresse sempre. O pessoal da recepção faz o mes-
que chegam sempre fora de hora (ou bem na mo jogo dos auxiliares: como regra geral, joga
hora de ir embora...), sentem-se angustiados “duro” com os usuários, fazendo o jogo do
porque precisam sair correndo, pois têm ou- “não”, mas tenta a “sedução” dos auxiliares pa-
tro(s) emprego(s), mesmo porque “a Secretaria ra conseguir a vaga junto ao médico em situa-
de Saúde paga tão pouco...”; os auxiliares de ções que avalia como justificadas. De qualquer
enfermagem se estressam todos os dias, pres- forma, tanto os auxiliares como o pessoal da
sionados, de um lado, pelos usuários que eles recepção estão sempre em situação de tensão,
vêem que estão precisando de ajuda e, por ou- em que devem avaliar os riscos de cada opção,
tro, pelos médicos que sempre se irritam e difi- em cada situação concreta; o jogo do gerente é
cultam o acesso como se estivessem fazendo o da omissão na maioria das vezes, deixando
um favor para eles (auxiliares); além do mais, que as coisas se “resolvam” entre médicos e
os médicos não cumprem o horário, enquanto pessoal de enfermagem. Às vezes, interfere em
os auxiliares têm que estar toda a jornada no situações que o conflito fica muito ruidoso, em
centro de saúde. Avaliam, também, que os mé- particular quando o usuário “tenta fazer valer
dicos, com um pouquinho mais de boa vonta- seus direitos” e é mais brigão; o usuário joga fa-
de, poderiam facilitar muito a vida de todos; o zendo pressão sobre o pessoal da recepção,
pessoal da recepção se angustia diante das de- mas raramente expondo sua insatisfação dire-
mandas das pessoas que procuram atendi- tamente ao médico. Uma forma de jogar pode
mento, sabendo de antemão o quão difícil será ser levar sua queixa ao conselho gestor local
“implorar” por mais um atendimento para o (quando existe) ou queixar-se com o gerente
médico por intermédio dos auxiliares de enfer- ou procurar a imprensa, quando conhece “os
magem tão estressados; o gerente (em geral caminhos” para tal.
uma enfermeira), que vê esse conflito repetir- (d) Os recursos que os atores envolvidos na si-
se quase cotidianamente, sente-se irritado por- tuação conflituosa controlam: todos os atores

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envolvidos controlam algum recurso para re- tégias a serem trabalhadas. A primeira seria de
solver a situação problemática, como defende enfrentamento ou de confronto com os médi-
Friedberg 7. Os médicos controlam o recurso es- cos, conduzida pelo gerente a partir do seu lu-
tratégico: o saber nuclear que resulta no aten- gar de autoridade e, se necessário, apoiado por
dimento pretendido. Esse saber/poder está in- outros lugares de autoridade legal/formal (a
serido na ESPESSURA, referido a instituídos direção do Distrito Sanitário ou da Secretaria
que atravessam o centro de saúde, mas que Municipal de Saúde), que resultaria em medi-
não podem ser compreendidos integralmente das como cobrança do cumprimento da carga
nele ou só a partir dele. O poder médico se horária contratada, novas formas de agenda-
exerce no centro de saúde, mas se origina em mento por horário, exigência do atendimento
uma trama de relações e em outras institui- de “encaixes” de eventuais etc. A Instituição
ções/organizações que extrapolam o espaço Burocrática enfrentando e tentando se impor à
singular no estabelecimento analisado 11, em Instituição Médica. Uma outra estratégia seria
particular a Instituição Médica. Os auxiliares a que comporia uma linha mais afeita à nego-
de saúde e o pessoal da recepção controlam o ciação. Por exemplo, a construção de um espa-
fluxo do paciente, sua movimentação na uni- ço público e compartilhado de gestão pela equi-
dade, fazendo a intermediação entre o pacien- pe, como uma reunião periódica, com pauta que
te e o médico. Gerenciam, em parte, o acesso. consiga incluir a discussão do tema pelos ato-
O gerente controla o recurso de autoridade (le- res envolvidos. Nessas reuniões, seria tentada a
gal/formal) para, em princípio, tanto negociar criação de uma nova contratualidade que con-
novas rotinas e fluxos com os funcionários, in- seguisse deixar as regras do jogo mais claras e
cluindo os médicos, como para impor, por exem- definidas, no mínimo, aliviando a sobrecarga
plo, o cumprimento do horário pelo médico. que representa a “negociação” de cada situação
Por fim, os usuários, como cidadãos, controlam conflituosa, na base das relações interpessoais,
tanto o recurso de pressão direta sobre o servi- entre atores com controle de recursos de poder
ço (com sua presença física, cobrança e tensio- muito diferenciados. Típica situação de poder
namento da equipe) como podem “fazer valer compartilhado.
seus direitos” nas instâncias formalmente exis-
tentes de controle social (conselho gestor lo-
cal, Conselho Municipal de Saúde). Discussão

• Coluna 3 A primeira impressão que temos, ao nos pro-


pormos discutir o exemplo apresentado, é o
(a) Como se lida com o conflito atualmente: a quanto não há assuntos simples na agenda do
primeira coisa que poderíamos dizer aqui é gerente de saúde. Mesmo uma situação apa-
que, nesse exemplo hipotético, não há um es- rentemente corriqueira e que, em princípio,
paço formal de gestão que consiga incluir esse poderia ser facilmente resolvida (médicos em
tipo de conflito em sua agenda de análise e de- conflito com pessoal de enfermagem, em fun-
cisão. No caso que estamos apresentando (mas ção do acesso mais ou menos ampliado ao con-
bastante comum na realidade dos nossos ser- sultório), remete-nos ao que denominamos ES-
viços), esses conflitos ocorrem, com muita fre- PESSURA: o conjunto de instituídos, de insti-
qüência, cotidianamente, sendo “resolvidos” ca- tuições que atravessam e se enfrentam no lu-
so a caso, numa intricada rede de relações, bar- gar singular, que é um centro de saúde, de uma
ganhas, disputas, tensionando brutalmente o intricada rede de poder e de inconciliáveis vi-
cotidiano das equipes. Cada situação é tratada sões de distintos atores a partir de diferentes
como uma situação singular, um fenômeno iso- lugares que ocupam. SUPERFÍCIE e ESPESSU-
lado, sem o reconhecimento das mediações que RA se interpenetrando, não em uma relação do
remetem a tensões constitutivas que se inscre- tipo causa-efeito ou de determinação de senti-
vem na ESPESSURA. Vemos, então, atores “es- do único, da ESPESSURA para a SUPERFÍCIE,
cravos das circunstâncias”, sem potência para, mas muito mais dinâmica, de deslocamentos,
pelo menos, tentar construir, de forma mais so- de deformações mútuas. Um instrumento for-
lidária e intencional, estratégias de melhoria matado na lógica da “planilha de análise dos
de seus cotidianos tão desgastantes. conflitos” que ora apresentamos como ferra-
menta gerencial, apropriada e operada por ato-
• Coluna 4 res reais, em situação, teria o propósito de con-
tribuir para a realização desse complexo e pre-
(a) Novas possibilidades de trabalhar-se os con- tensioso movimento de (re)construir algumas
flitos: há, em princípio, pelo menos duas estra- relações que são muito completivas no cotidia-

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no da organização. Como já afirmamos antes, so auto-analítico: saber lidar com conceitos, sa-
pensamos que essa proposta de planilha possa ber reconhecer e enunciar elementos que com-
ser alterada, adaptada, conforme o contexto põem a ESPESSURA, mas, principalmente, su-
organizacional trabalhado. portar dizer e escutar o que normalmente não
A partir dessa pretensão, temos que tentar se diz e não se escuta nas organizações. A idéia
responder a pelo menos duas questões que nos de trabalhar espaços auto-analíticos traz, de
parecem centrais: (1) “qual a potência auto- alguma forma, a idéia de que seria possível fa-
analítica de um coletivo, muito implicado com lar sobre tudo, que seria possível criar espaços
a situação conflituosa, para realizar o tipo de de comunicação ideal, em que todos comuni-
análise que expusemos no exemplo acima?”; (2) cam sem barulho, sem pensamentos reserva-
“qual a potência (governabilidade) desse mes- dos, sem estratégia, numa situação de transpa-
mo coletivo para propor novos arranjos, novas rência social. Pavé (1981, apud Friedberg 7; p.
contratualidades, novas regras do jogo que re- 259) nos alerta para o fato de que “a vida das
sultem em mudanças, para melhor, para o organizações e o governo dos homens não su-
maior número possível de atores envolvidos?”. portam a clareza total. Precisam também de
Em relação à primeira questão, podemos sombra, de arranjos informais, ocultos e por-
afirmar que, antes de tudo, é possível construir tanto instáveis”. Todas essas questões nos fa-
esse espaço auto-analítico nos coletivos dos zem pensar sobre a capacidade dos gerentes
serviços de saúde. Em princípio e como possi- dos serviços (e suas equipes) para conduzirem
bilidade, sim, mas não sem certas exigências o processo, na medida em que eles próprios es-
ou cuidados – chamemo-los de pressupostos – tão muito implicados na situação conflituosa,
nem sempre levados em consideração. O pri- comprometidos com alianças, acertos e prefe-
meiro pressuposto é a existência de ator(es) rências que vão sendo construídos no cotidia-
implicado(s) na situação conflituosa com sufi- no da unidade. Dessa maneira, não seria ape-
ciente poder e/ou autoridade para enunciar o nas uma questão de “capacitar” os gerentes pa-
conflito como problema e conseguir a consti- ra conduzir o processo, mas pensar no neces-
tuição de um coletivo (de implicados) com mo- sário distanciamento que ele teria que ter para
tivação para colocá-lo em análise. Em princí- permitir a construção de uma análise mais
pio, e por atribuição própria do lugar que ocu- produtiva da situação conflituosa. Tais consi-
pa, o gerente seria o ator mais indicado para derações nos imporiam a necessidade de “al-
esse primeiro movimento. Mas poderiam ser os guém de fora” (um supervisor ou um analista
usuários que conseguissem uma ação mais ar- institucional, entre outras possibilidades) para
ticulada e orgânica, através do conselho gestor apoiar o processo da equipe? A Secretaria Mu-
local, por exemplo. Ou poderia ser o pessoal de nicipal de Campinas vem tentando construir
enfermagem e da recepção que, não suportan- esse tipo de profissional “apoiador” desde o
do mais o desgaste do cotidiano, conseguisse ano 2000. Esse tipo de necessidade, que de ma-
trazer para a pauta da gestão o tema do confli- neira alguma poderia ser considerada “um lu-
to. Como pode ser visto, esse primeiro movi- xo”, pode ser bancada pela maioria das secre-
mento (definição da situação problemática e tarias de saúde hoje? Se a resposta fosse sim,
constituição de um coletivo com disposição haveria oferta suficiente de profissionais com
auto-analítica) já implica em atores, intencio- esse tipo de formação? Para concluir essa inda-
nalidades, ação, mas, principalmente, controle gação, é bom lembrar que há, na literatura,
de algum recurso de poder para impor uma de- uma discussão muito interessante sobre as di-
finição da situação como problemática. Não se ficuldades de construção de grupos autôno-
deve desconsiderar, também, que atores exter- mos ou semi-autônomos, como já estudado
nos à situação conflituosa podem estimular e em algumas experiências realizadas no mundo
propiciar o processo auto-analítico da equipe da indústria, em países escandinavos. Como
como, por exemplo, a própria direção da Secre- lembra Friedberg 7 (p. 287): “essas experiências
taria Municipal de Saúde, que, detectando o subestimavam as dificuldades que podiam sen-
problema de outro lugar (no Conselho Munici- tir grupos operários em passar de um funciona-
pal de Saúde), tem uma percepção de sua abran- mento onde o conjunto das relações de trabalho
gência e desencadeia estratégias do tipo capa- era de algum modo gerido de maneira cons-
citar os gerentes para lidar com os conflitos e trangente pela tecnologia e/ou por imposições
os estimule a criar grupos auto-analíticos nas hierárquicas, para um outro funcionamento em
várias unidades. Um segundo pressuposto, uma que essas relações de trabalho deviam ser geri-
vez que a situação tenha sido declarada e reco- das diretamente por eles”. Por tudo isso é que se
nhecida como problemática, diz respeito à ca- pode dizer que será necessário estar atento pa-
pacidade do grupo para desenvolver o proces- ra dificuldades importantes no processo de

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CONFLITO E GESTÃO EM SAÚDE 515

constituição de grupos auto-analíticos nos ser- detentos no já extinto Presídio do Carandiru:


viços. “como um grupo tão pequeno de homens sem
Já com relação à segunda questão que esta- armas consegue controlar um presídio daquele
mos nos propondo examinar nesta discussão tamanho é um dos mistérios da cadeia. Talvez o
de encerramento do artigo, talvez ela possa co- maior” 12 (p. 111). Poder em rede, construído
meçar a ser respondida com outras questões: em uma complexa relação de atores que con-
por que uma situação, tão tensionadora e difí- trolam múltiplos recursos, que vão se influen-
cil para tantos atores, mantém-se ao longo do ciando mutuamente, ação agindo sobre ação
tempo? Por que os vários atores envolvidos na 13, poderes periféricos e moleculares, uma ma-

situação conflituosa, mesmo tendo controle quinaria, um conjunto de relações que se dis-
sobre recursos importantes, não se mobilizam seminam por toda a estrutura social 14, a ES-
e se articulam para mudar o estado de coisas? PESSURA, uma malha que os retêm, como se
A gerente é investida de autoridade formal pa- tivesse uma existência própria, independente
ra exigir o cumprimento do horário médico; os dos homens que a tecem.
usuários têm, garantido por lei, direito de con- Pensamos que a indagação que fazemos so-
trole sobre os serviços; o pessoal de enferma- bre a potência desses coletivos para transfor-
gem controla fluxo e entrada de pacientes. Se marem a situação conflituosa que vivenciam,
bem observado o exemplo analisado, aparen- utilizando-se da “planilha de análise de confli-
temente haveria uma confluência de interesses tos” como ferramenta de análise – mero dispo-
entre os auxiliares de saúde, o pessoal da re- sitivo apoiador da reflexão e, necessariamente,
cepção, o gerente e particularmente os usuá- utilizado em um processo que se prolonga no
rios no sentido de que o médico ficasse mais tempo, fazendo aproximações sucessivas à si-
tempo na unidade (pelo menos para cumprir a tuação problemática – não comporta uma res-
carga horária contratada) e que atendesse mais posta única e de certeza. A resposta sobre a ca-
pacientes. Essa seria uma solução que melho- pacidade do grupo de produzir formas auto-
raria, com toda a certeza, a vida da maioria das gestionárias e transformadoras será mais pes-
pessoas que circulam no centro de saúde. Por simista se privilegiarmos a idéia que haveria,
que prevalecem os interesses dos médicos e na ESPESSURA, instituídos e atravessamentos,
sua definição da situação? Enfim, por que não assimetria de poderes e interesses tão podero-
se transforma uma situação que, aparentemen- sos que, no limite, a mínima veleidade de mu-
te, é desfavorável para todos? (afinal, mesmo o dança, no espaço singular de qualquer estabe-
médico que acaba impondo, em boa medida, lecimento de saúde, estaria fadada ao fracasso,
sua definição da situação também sofre com tanto em função de uma forte “determinação
esse cotidiano). externa” dos fenômenos observados como do
Em discussões que fizemos com coletivos fato de os atores estarem enredados em uma
que viviam situações reais muito parecidas malha de relações da qual seria impossível es-
com a que estamos analisando, há um certo es- capar (a mosca se debatendo na teia da aranha:
panto dos participantes quando, ao usarem a quando mais tenta escapar, mais presa fica...),
“planilha de análise dos conflitos”, constatam a menos que fossem a figura mítica do Barão
que se sentem presos em uma rede ou em uma de Münchhausen que se alça pelos cabelos
armadilha que é, afinal, uma construção deles quando sua carruagem fica presa em um ato-
próprios, que eles confirmam com sua ação co- leiro 15.
tidiana! Não há nenhum vetor de poder ou de A resposta será mais otimista se adotarmos
autoridade externo, ou de cima para baixo, que o ponto de vista de Friedberg 7 (p. 287), para
justifique totalmente a manutenção de uma si- quem “um grupo que nas suas condições de ação
tuação tão desfavorável para tantos, mesmo concreta, isto é, nos constrangimentos materiais
que se considere que “não há organizações em e relacionais da sua situação, aprendeu a gerir e
que as transações entre os participantes não de algum modo a domesticar, em vez de os aba-
obedeçam a imposições exteriores e autoridades far, os conflitos, as tensões, as discussões e as re-
explícitas” 7 (p. 163). A rede, a malha de rela- lações de poder e de concorrência inseparáveis
ções que os prende e restringe seus cotidianos, da sua existência e da sua ação enquanto grupo,
é construída no próprio serviço, no conjunto adquiriu, por esse fato, uma capacidade cultural
das relações que vão sendo tecidas entre as pes- propriamente coletiva. Esta, permitir-lhe-á agir
soas. A percepção da materialidade dessa rede, melhor e mais eficazmente que outros grupos
que captura os atores em suas malhas, faz lem- que, por razões diversas, não adquiriram essa
brar a pergunta de Varela 12, ao interrogar-se capacidade”. Essa pode ser uma possibilidade.
como cerca de dez carcereiros conseguiram to- Por tudo o que foi dito, pensamos, enfim,
mar conta de um pavilhão com mais de 1.600 que a resposta para a pergunta que dá o título

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516 Cecílio LCO

deste artigo – “se seria possível usar o conflito


como matéria-prima para a gestão” – vai de-
pender, fundamentalmente, da capacidade dos
coletivos viabilizarem novos arranjos e contra-
tualidades, sempre precários e contingentes,
eles próprios disparadores de novos conflitos
ou, para usar os conceitos que adotamos nessa
análise, tornar observáveis, visíveis, abertos, os
conflitos que ficam encobertos, rechaçados das
pautas de decisão, perpetuando relações de in-
justiça e iniqüidade, parte do mal-estar da or-
ganização.

Resumo Referências

O autor examina a possibilidade de tomar os conflitos 1. Motta PR. Gestão contemporânea: a ciência e a
corriqueiros na vida das organizações de saúde como arte de ser dirigente. 2 a Ed. Rio de Janeiro: Re-
objeto da gestão. Para tanto, propõe a utilização de cord; 1998.
uma “matriz de análise”, com o objetivo de possibilitar 2. Hall RH. Organizações: estrutura e processos. Rio
aos atores envolvidos na situação conflituosa, sempre de Janeiro: Prentice Hall do Brasil; 1984.
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da dinâmica dos conflitos. Abrir-se-iam, assim, novas ra UnB; 1980.
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entre os trabalhadores, inclusive a explicitação de con- Zahar Editor; 1995. p. 247-82.
flitos encobertos que não conseguem acessar a arena 5. Boudon R. Tratado de sociologia. Rio de Janeiro:
decisória do serviço. O autor indica, também, as possí- Jorge Zahar Editor; 1995.
veis dificuldades para a adoção desse tipo de prática 6. Matus C. Planificación, política y gobierno. Cara-
gerencial. cas: Fundación Altadir; 1987.
7. Friedberg E. O poder e a regra: dinâmicas da ação
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15. Lowy M. As aventuras de Karl Marx contra o Ba-
rão de Münchausen. 2 a Ed. São Paulo: Busca Vi-
da; 1987.

Recebido em 06/Abr/2004
Versão final reapresentada em 27/Ago/2004
Aprovado em 01/Out/2004

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 21(2):508-516, mar-abr, 2005

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