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PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU”

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AVM FACULDADE INTEGRADA

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O CAMINHO DA ÁGUA: O SENTIMENTO COMO DINAMIZADOR


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DO PROCESSO DE INDIVIDUAÇÃO DO SER HUMANO


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CAMILA DOLABELLA SILVEIRA


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Orientadora
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Profa. Me. Fátima Alves


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RIO DE JANEIRO
2015
UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES
PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU”
AVM FACULDADE INTEGRADA

O CAMINHO DA ÁGUA: O SENTIMENTO COMO DINAMIZADOR


DO PROCESSO DE INDIVIDUAÇÃO DO SER HUMANO

Apresentação de monografia à AVM Faculdade


Integrada como requisito parcial para obtenção do
grau de especialista em Arteterapia em educação e
saúde.
Por: Camila Dolabella Silveira

RIO DE JANEIRO
2015
AGRADECIMENTOS

Ao amor, por sua constância em minha


vida.
DEDICATÓRIA

Aos amigos queridos e grandes


mestres que percorrem comigo este
caminho e fazem de mérito percorrê-lo.
RESUMO

Este estudo pretende catalogar os referenciais estéticos e culturais


correspondentes ao elemento água e sua influência no imaginário popular
através dos mitos e ritos que lhe foram atribuídos ao longo dos séculos.
Norteado pelos estudos Junguianos sobre as funções psíquicas relacionadas
aos quatro elementos da natureza: Sensação (Terra), Pensamento (Ar),
Intuição (Fogo) e Sentimento (Água), o ensaio abordará o poder catalisador
dessa função em específico: Sentimento e sua relevância pra o processo de
individuação do ser humano. O fazer artístico com materiais aquosos, além da
música e da poesia serão os referenciais que darão suporte a este trabalho
quando aplicado ao ambiente arteterapeutico visando mostrar como esta
função em específico pode influir sobre o indivíduo auxiliando-a a alcançar a
totalidade do ser. Atuando como ferramenta catalisadora do desenvolvimento
da Função Psíquica denominada por Jung: Sentimento, o fazer manual
direcionado a ativar a função proposta pode auxiliar a todo o indivíduo, seja ele
normótico, neurótico ou psicótico, posto que o mundo em que estamos
inseridos não legitima devidamente o desenvolvimento dessa função.
METODOLOGIA

O estudo desenvolveu-se através da pesquisa histórica e teórica,


iniciando pela reunião do material de pesquisa para a composição do
aprofundamento do tema proposto. Procurou-se destacar a importância do
elemento água e catalogar o maior número de referenciais mitológicos e
arquetípicos correspondentes a esse, bem como sua representação artística e
estética em diferentes culturas a fim de apontar a representatividade desse no
inconsciente coletivo.
Também, destacou-se as terapias expressivas e sua atuação como
ferramenta de revelação das imagens do inconsciente através da observação de
oficinas que manejam este elemento no ambiente arteterapeutico.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 8

CAPÍTULO I - Vislumbres da água 10

CAPÍTULO II - O Sentimento segundo Jung 29

CAPÍTULO III – A terapia expressiva como veículo de revelação e


ressignificação das imagens do inconsciente 36

CONCLUSÃO 42

LISTA DE IMAGENS 43

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA 45

ÍNDICE 47
INTRODUÇÃO

Partindo da premissa que “Se uma função não é empregada há o perigo


de que escape de todo ao manejo consciente, tornando-se autônoma e
mergulhando no inconsciente onde vá provocar ativação anormal”, como nos
aponta a Doutora Nise da Silveira, e atrelado ao fato de que no mundo pós-
moderno não há muito espaço para o fazer artístico e poético, este estudo
pontuará que trabalhar a função psíquica do Sentimento possibilita ao sujeito
maior integração consigo mesmo e com o meio ambiente que o modifica no
exato instante que é por ele modificado. Além de, possibilitar melhorias na
atuação deste no espaço psicofísico através do desenvolvimento de uma
função latente ou pouco trabalhada ao longo da vida.
O projeto se aterá ao estudo da função psíquica que Jung denominou
Sentimento, correspondente ao elemento água, apontando em que aspectos e
sob quais circunstancias podemos identificar sua atuação. Como não existem
muitos registros que atentam para esta função em especifico, o estudo deste
tópico visa fomentar o trabalho com o elemento no cuidado diário com os
pacientes à medida que possibilitará uma melhor compreensão a respeito do
tema e dos materiais que o despertam.
O primeiro momento reunirá apontamentos e considerações sobre os
aspectos da água e como estes atuam sobre o individuo, bem como seus
mitos e arquétipos correspondentes em variadas culturas que seguem
arraigados ao inconsciente coletivo e individual.
O segundo introduzirá os conceitos Junguianos a respeito das funções
psíquicas e sua importância no processo de Individuação do ser humano.
Atendo-se a função Sentimento, levantara hipóteses sobre como o manejo
dessa pode atuar também como facilitador do equilíbrio da Anima e do Animus
através do resgate e da ressignificação do feminino ancestral, tão preterido
pela sociedade moderna, força motriz de muitos desequilíbrios psíquicos.

8
Finalmente, o terceiro apontará o papel das terapias expressivas como
veículo de captura das imagens do inconsciente possibilitando um melhor
entendimento sobre a função supracitada. Também, apontará materiais e
práticas que permitam ao cuidador, ciente dos diversos caminhos que a
ativam, atuar de forma mais eficaz, acolhendo as produções realizadas no
ateliê criativo.
Assim, galgando os caminhos da água teremos os mitos e os fazeres
artísticos ciceroneando o processo de autoconhecimento e busca do individuo
pela plenitude do ser e pelo bem estar no ambiente onde este se encontra
inserido através do ativamento desta função psíquica.

9
CAPÍTULO I
VISLUMBRES DA ÁGUA

Ah, onde há um mar, ainda,


no qual possamos afogar-nos?
Nietzsche.

Desde tempos imemoriáveis a água é considerada, além de


mantenedora da vida, um símbolo sagrado e ritualístico na maioria das
religiões. Em algumas crenças fia-se que a água tenha poderes especiais,
sendo um dos tattwas, os cinco elementos básicos da natureza segundo os
orientais. Tattwa significa “tudo aquilo que é ti”, a imagem verdadeira de tudo, a
água corresponde ao tattwa Apas, que é simbolizado pela lua crescente
prateada. No ocidente, a teoria dos quatro elementos, tal como conhecemos
na atualidade, é atribuída aos filósofos gregos pré-socráticos.
Tales de Mileto acreditava que a água era a origem de todas as coisas e
para onde tudo retornava. Na maioria das tradições religiosas a água é
considerada a matéria prima de toda criação.
A água cobre a maior parte do globo terrestre, a maior porcentagem dos
seres vivos, inclusive os humanos, são compostos de água. Sendo o único
elemento capaz de se apresentar em estado líquido, gasoso ou sólido a água é
também um paradoxo. Como Lao-tsé postula no Tao Te Ching: ”O sábio vive
como a água. A água serve a todos os seres e não exige nada para si mesma.
Ela permanece mais abaixo que todos. Nisso, é semelhante ao Tao.“

1.1 – Mitos e arquétipos

10
Na astrologia, a água rege os signos de Escorpião, Câncer e Peixes,
manifestando-se de forma distinta em cada um deles. Segundo esta ciência, o
elemento atribui a seus nativos enorme sensibilidade e intuição. Semelhante
aos dois grupos da filosofia chinesa, que permeiam grande parte da obra do
psicanalista, Carl Gustav Jung: yin representa Água e Terra e yang o Fogo e o
Ar. Figurando na polaridade negativa os signos da água apresentam alto grau
de introspecção e fluidez perante a vida. Dessa forma, no universo astrológico,
em conformidade com tantos outros, a água simboliza a psique, a alma e as
emoções.
No que concerne ao comportamento humano, a água corresponde ao
temperamento fleumático, segundo a tipologia dos quatro tipos de
temperamento formulada pelo filósofo grego Hipócrates. Em conformidade
com a astrologia, o tipo onde predomina o elemento água é calmo, sensível e
afetuoso. Tendem a apatia em seu aspecto negativo e ao excesso de fantasia
perante a realidade. Em contrapartida, a ausência do elemento água traz falta
de sensibilidade emocional e dificuldade em exteriorizar emoções. O tipo
fleumático corresponde ao naipe de copas no Tarô.
Ainda no Tarô, nos defrontamos com a presença significativa do
elemento água no arcano maior a estrela, que retrata uma mulher ajoelhada a
beira de um rio, jorrando água de duas urnas. Enquanto a água de um vaso se
une as do rio, a do outro nutre a terra. Acerca desse arquétipo diz Sallie
Nichols:

...ela aparece no ponto em que a água viva do


inconsciente coletivo toca a terra da realidade humana
individual. Interessa-se por ambos e, através das suas
ministrações, as duas interagem criativamente. A água
que cai na terra nutre todas as sementes que ali já jazem
adormecidas. A água do outro jarro, arejada e purificada,
flui de volta ao rio comum para revivificá-lo e enche-lo de
novo. (NICHOLS, 2007, p. 291)

11
Figura 1: A Estrela

Jean Chevalier aduz em seu dicionário de símbolos que: ”As


significações simbólicas da água podem reduzir-se a três temas dominantes:
fonte de vida, meio de purificação e centro de renascimento.” (CHEVALIER,
1994)
Já para Jung, o inconsciente coletivo possibilita a visão, de forma geral,
desse elemento como expressão imanente do transcendental. Assim, esse
capítulo transitará pelos mitos e arquétipos comuns a esse elemento galgando
o caminho da água através dos referenciais que nos são dados a conhecer.
No Runemal, arte do uso do alfabeto rúnico como oráculo, temos na
runa Laguz a representação da água primordial, do renascimento, da iniciação,
da fonte e do fluir da vida.

Figura 2: Runa Laguz

12
Também, a idéia encerrada na forma desta runa, expressa no nome em
nórdico antigo Laukr, significa ainda “alho-poró”. Na tradição, uma planta desta
era dada ao jovem que tivesse provado seu valor como guerreiro. Para os
Vikings, este era um símbolo de crescimento orgânico, de poder fálico e
fertilidade, no âmbito físico e espiritual. Por esse motivo a runa da água
governava, para estes, ainda a tradição da magia herbácea. (THORSSON,
2013)
No antigo Egito, o deus Sobek, representado como um crocodilo, estava
ligado ao culto do rio Nilo e da divinização da água, por ser um réptil que as
habitava. Seus poderes também estavam associados à fertilidade e a proteção
durante a gravidez. O deus Hapi era considerado o principal deus das águas
do Nilo e para a civilização egípcia figurava como o grande responsável pelo
fornecimento do alimento proveniente do Rio. Simbolizando o baixo e o alto
Egito, Hapi era representado segurando flores de lótus e papiros, sua cintura
era ornada por uma cinta utilizada por pescadores e sua pele reluzia em um
azul esverdeado igualmente associado à fecundidade.
A correspondência entre água e fertilidade, presente em todas as
antigas religiões, vai alem da mera dependência dos mares e dos rios como
fonte de subsistência. Este elemento é visto como fonte de inspiração,
sabedoria e até da própria vida. Significando a renovação e o renascimento
constante. Era pelas águas do mar que também vinham os governantes que
trariam paz e prosperidade à região.
Desde os tempos pagãos os recém-nascidos eram borrifados com água
e recebiam seus nomes, depois de mostrarem que eram dignos da vida. Este
ritual de batismo, repetido até hoje em diversas religiões, para os antigos,
atendia ao propósito de reintegrar a alma da criança à força vital de seu clã.
(THORSSON, 2013)
Segundo a antiga doutrina nórdica, Laguz também inclui o rito de
passagem pela água ao findar da vida. Os funerais marítimos dos Vikings e o
simbolismo da travessia simbólica das águas ilustram bem essa crença. Os
mitos de Odin como o barqueiro das almas são uma correspondência
importante neste sentido. Em contrapartida, temos Caronte, na mitologia

13
grega, que assim como o deus nórdico de um olho só, tinha a incumbência de
conduzir as almas dos recém-mortos sobre as águas dos rios Estige e
Aqueronte, que dividiam o mundo dos vivos do mundo dos mortos. Também no
Egito, os mortos precisavam convencer o barqueiro Aken a levá-los em uma
longa e dificultosa jornada, pelo rio da morte, antes de adentrarem o tribunal de
Osíris.
Na mitologia greco-roma, Narciso nasce de um rio. Os gregos antigos
cultuavam os rios na mesma medida que os temiam, pois era sabido que
esses, como divindades mantenedoras da vida, tinham o poder tanto de
submergir, quanto de irrigar ou inundar. (TOMMASI, 2015).
De acordo com Chevalier:

A água é, ao mesmo tempo, morte e vida... Dos


símbolos antigos da água como fonte de fecundação da
Terra e dos seus habitantes podemos passar para os
símbolos analíticos da água como fonte de fecundação
da alma: o rio e o mar representam o curso da existência
humana e as flutuações dos desejos e dos sentimentos.
A água é o símbolo das energias inconscientes, dos
poderes informes da alma, das motivações secretas e
desconhecidas. (CHEVALIER, 1994 p. 202)

O jovem Hilas, herói que acompanhou Jasão na expedição dos


argonautas foi seduzido pelas Náiades, ninfas oriundas das águas doces dos
lagos e fontes, e nunca mais o encontraram.
Da mesma forma, na cultura Celta, os rios e os mares configuravam os
principais meios de acesso ao Outro Mundo e estavam intimamente
relacionados ao aspecto feminino da psique. Analisando a etimologias de dois
dos mais importantes nomes do ciclo Arturiano: Merlin e Morgana percebemos
que ambos estão relacionados ao mar. A respeito da simbologia das águas
marítimas, ainda, Chevalier ressalta que:

O mar é, antes de mais, um importante símbolo da


dinâmica da vida. Tudo sai do mar e tudo a ele
regressa... Sabiam que dele também podiam sair
monstros, simbolizando os abismos e as profundidades
da psique humana, a nossa sombra, que tanto pode ser
vivificadora como mortal,tudo dependendo da “utilização”
que dela façamos. (CHEVALIER, 1994 p.202)

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A travessia para Avalon, realizada através de um rio permeado de
brumas alude ao adentramento do homem no reino do inconsciente. Segundo
Tommasi:

Os rios, por servirem para transporte, também eram


considerados meio de transformação de um estado para
o outro e acesso ao desconhecido. Nas margens dos rios
realizavam-se rituais eu marcavam uma passagem ou
iniciação. A travessia era realizada após ritos de
purificação e prece... O rio simbolizava também o limite a
ser ultrapassado, a hybris, a desmedida que o herói
deveria cometer para desencadear seu destino.
(TOMMASI, 2015, p.105)

Dessa forma, podemos inferir que a água figura entre um dos mais
poderosos símbolos do inconsciente. Tanto pode a alma humana afogar-se
nos mares do inconsciente deixando-se levar como por uma paixão
avassaladora, quanto pode por eles navegar e ressurgir purificada e sanada.
Tão forte como as paixões, o elemento água permeia os registros
mitológicos de todos os cantos da terra, podendo-se catalogar um sem número
de arquétipos femininos e masculinos correspondentes a esse. De acordo com
Raissa Cavalcanti em seu estudo intitulado Mitos da água:

Nas tradições mais antigas Oceano é um imenso rio que


circunda o mundo terrestre. Entre os gregos era
concebido como um grande rio-serpente, que cercava e
envolvia a terra... é o primeiro deus das águas, filho de
Urano e de Geia, e o mais velho dos titãs, sendo
considerado o pai de todos os seres. (CAVALCANTI,
1997, p..21)

Para Homero, todos os deuses da cultura grega eram originários da


deusa Tétis e do deus Oceano. Com o passar do tempo Oceano passa a
representar apenas as águas desconhecidas do Atlântico, deixando para
Poseidon, conhecido por Netuno pelos romanos, o domínio sob o
Mediterrâneo.
Ainda na mitologia grega temos Nereu e Proteu, filho de Oceano e de
Tétis, deuses marinhos primitivos, representados como personagens de idade

15
avançada que possuem o dom da profecia. Aqui, nos defrontamos com o
arquétipo do velho do mar, que nos propicia múltiplas possibilidades de
manejo, sobretudo no trabalho arteterapeutico com idosos. São as águas que
detém a sabedoria, mas também as emoções contidas da luta constante do
homem contra a natureza e sua própria sombra, como no romance de
Hemingway: “Tudo que nele existia era velho, como exceção dos olhos, que
eram da cor do mar, alegres e indomáveis.” Ou como diria o Zaratustra de
Nietzsche: "Ah, onde há um mar, ainda, no qual possamos afogar-nos?"
Trabalhando o feminino temos as Ninfas, as Nereidas, as Náiades, as
Sereias alem de Tétis, a grande senhora das águas no mundo grego. Tétis
representa a grande mãe, a polaridade feminina do self. Passeia pela mundo
numa concha de marfim puxada por cavalos brancos, personificando a
fecundidade da água que alimenta os corpos e forma a seiva de toda
vegetação. Vênus, ou Afrodite, nasceu das espumas do mar, na representação
de Botticelli, essa emerge das águas também por uma concha.
A concha, por se formar na água, também é um poderoso símbolo da
fecundidade desde o mundo pagão. No cristianismo são comumente
encontradas servindo de pia batismal em igrejas e também figuram na lenda
de Santo Agostinho o qual encontrando um jovem na praia, que com uma
concha procurava pôr toda a água do mar num buraco cavado na areia, lhe
perguntou o que fazia. Ele explicou-lhe a sua vã tentativa, e Agostinho
compreendeu a referência ao seu inútil esforço de procurar fazer entrar a
infinidade de Deus na limitada mente humana. Além disso, a concha é há
séculos identificada como símbolo do peregrino em sua jornada.
No caminho de Santiago de Compostela, Campus Stellae (Campo de
Estrelas), a concha de vieira é utilizada desde a idade média para identificar os
peregrinos significando proteção e busca de conhecimento. Aquele que trilha o
caminho deve levar consigo uma concha de vieira para posteriormente exibi-la
como prova da peregrinação. Nas doutrinas secretas a concha corresponde a
Mercúrio, a água benta dos alquimistas.

16
Figura 3: O Nascimento de Vênus, Sandro Botticelli

Por ser a concha o símbolo materno da concepção, é relacionada


também à deusa do amor Iemanjá nos cultos afrodescendentes que, segundo
seus mitos, foi escolhida por Olurum, o seu deus supremo, como mãe de todos
os seus orixás. Seu nome deriva da expressão ioruba Yéyé omo ejá: "Mãe
cujos filhos são peixes".
Entre os cultos afrodescendentes, o candomblé conservou no Brasil
histórias mitológicas da África, contadas de geração em geração. A água é um
elemento bastante presente nessas histórias, assim como outros elementos da
natureza que são utilizados como eixo para a exibição dos mitos dos deuses
orixás. Pode-se destacar Xangô o orixá do trovão e Iansã, a senhora celeste
da tempestade. Oxumarê, a divindade do arco íris, o belo filho de Nanã, a
velha senhora que vivia nos pântanos ou fundo de lagoas. Da lama de Nanã,
Oxalá fez primeiro homem e partir desse acontecimento ela passa a ser muito
respeitada e reverenciada. O autor Reginaldo Prandi relata essas histórias de
forma leve para crianças e adolescentes no livro Os príncipes do destino –
histórias da mitologia afro-brasileira (2001), também lançou, no mesmo, ano o
livro Mitologia dos orixás.

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A grande deusa é o útero do mundo. Assim, as grandes deusas-mães
são representadas como reservatórios sagrados. Na maioria das tradições
pagãs as deusas são criadoras do universo. As águas também são
representadas pelo líquido que sai do corpo da mulher e alimenta a vida em
seu estágio primordial. Na mitologia egípcia Nuit, mãe de todos os astros e do
sol, algumas vezes é representada como uma vaca, outrora como uma mulher
cujo corpo estrelado e curvado é a própria abóboda celeste. Bem como na
Índia, também existe uma reverência muito forte a este simbolismo da mãe
doadora da vida e do alimento.

Figura 4: Nuit

1.2 – A água nas artes

Sabe-se que os surrealistas absorveram inúmeros conceitos e alegorias


sobre a mente humana com o advento da teoria psicanalítica de Freud. O
elemento água se faz presente em grande parte da pintura do espanhol
Salvador Dali: o mestre em interagir com o inconsciente. Tendo os sonhos
como leitmotiv, a água muitas vezes aparece como matéria prima desses,
permeando-os e produzindo uma pluralidade de sensações e significações
como o grande inconsciente nos segurando pela mão e ciceroneando nossa
jornada.

18
Figura 5: La ventana Salvador Dali

Figura 6:Cisnes refletindo elefantes, Salvador Dali

19
Figura 7: Metamorfose de Narciso, Salvador Dali

Figura 8: Sonho Causado Pelo Vôo de Uma Abelha à Volta de Uma Romã, Um Segundo
Antes de Despertar, Salvador Dali

20
Na obra A Carioca, do paraibano Pedro Américo, a água retém o
mesmo caráter enigmático e desafiador, apontando quiçá para algo
desconhecido da psique. Alegoria a cidade do Rio de Janeiro, a ninfa
“abrasileirada” do pintor convida a adentrar, aquém da geografia local, as
águas profundas do inconsciente e descobrir um segredo prestimosamente
guardado.

Figura 9: A Carioca, Pedro Américo

Em Paisagem do Chaco, a água aparece com um de seus significados


mais fortes e sabidos: a travessia.

21
Figura 10: Paisagem do Chaco, Pedro Américo

Também, em A batalha do Avaí pode-se notar ao longe o vislumbre de


um pequeno contingente de água, como um portal ou um oásis que
recompensará e fará esquecer os horrores da guerra.

Figura 11: A batalha do Avaí, Pedro Américo

22
Joaquín Sorolla, também espanhol, talvez tenha sido o artista que mais
vezes representou as águas do mar em sua obra. Nela, este elemento
constantemente nos arrebata por seu caráter sensorial e expressivo.

Figura 12: Chicos en la playa, Joaquín Sorolla

Figura 13: El baño, Joaquín Sorolla

23
Figura 14: El color del mar, Joaquín Sorolla

Figura 15: Boy on the Sand, Joaquín Sorolla

24
Da mesma forma, podemos vislumbrar essas sensações provenientes
do contato com as águas na produção do famoso pintor italiano de retratos
John Singer Sargent. Sua expressão pouco convencional, através da aquarela,
não o tornou tão conhecido quanto seus retratos sofisticadamente dramáticos.
Contudo, o elemento água nelas retratado salta aos olhos e constela uma
infinitude de possibilidades e impressões.

Figura 16: John Singer Sargent

Figura 17: John Singer Sargent

25
É possível sentir a brisa do mar nos enquadramentos cinematográficos
do americano Edward Hopper. Pintor, artista gráfico e ilustrador, Hopper
retratou como ninguém a solidão dos grandes espaços urbanos e seu impacto
psicológico sobre seus atores. Sua produção sofreu grande influencia dos
estudos Freudianos e da teoria intuicionista do francês Henri Louis Bérgson
que acreditava que a realidade não pode ser apreendida apenas de forma
racional, exaltando a intuição como forma de perceber a totalidade do ser
humano e do mundo onde este se encontra inserido.

Figura 18: Rooms by the Sea, Edward Hopper

Figura 19: The Long Leg, Edward Hopper

26
As pinturas hiper-realistas dos americanos Alyssa Monks e Eric Zener
remetem a sensações já vividas e produzem arrebatamento imediato.

Figura 20: Alyssa Monks

Figura 21: Eric Zener

O artista Americano John Nicholson, que vive há décadas no Brasil,


encantou-se com a beleza das águas cariocas e as retrata incessantemente de

27
forma sensorial. O cotidiano das praias do Rio de Janeiro é primeiro captado
por fotografias antes de ser transportado para as telas em ângulos sugestivos
e aparentemente despretensiosos tendo o mar como grande protagonista de
suas composições.

Figura 22: Jonh Nicholson

Figura 23: Jonh Nicholson

28
CAPÍTULO II
O SENTIMENTO SEGUNDO JUNG

Tem um não em todo sim,


e as pessoas são muito variadas.
Guimarães Rosa.

Jung encontrou uma definição mais poética para as funções psíquicas,


chamando Sentimento o temperamento regido pelo elemento água, Sensação
o domínio pela terra, Intuição o fogo e Pensamento o ar. Pontuando que: “toda
maneira de ver é relativa e todo julgamento de um homem é limitado de
antemão pelo seu tipo de personalidade.” (JUNG, 1975 p.183 apud
GRINBERG, 1977 p. 74)

Figura 24: Funções psíquicas

29
As funções psíquicas, além dos tipos extrovertido e introvertido, também
identificados pelo psicoterapeuta suíço, correspondem ao modo como o
individuo percebe, projeta-se e atua no mundo externo ou interno. A cada
elemento corresponde um tipo de processo mental que o ser escolhe, mesmo
que inconscientemente, para se relacionar com o mundo. Preterir um elemento
ou outro e os processos mentais que lhe são atribuídos torna o temperamento
desequilibrado e distante da plenitude do ser:
.
Sob o conceito de Sensação pretendo abranger todas as
percepções através dos órgãos sensoriais; o
Pensamento é a função do conhecimento intelectual e da
formação lógica de conclusões; por Sentimento entendo
uma função que avalia as coisas subjetivamente e por
Intuição entendo a percepção por vias inconscientes... A
Sensação constata o que realmente está presente. O
Pensamento nos permite conhecer o que significa este
presente; o Sentimento, qual o seu valor; a Intuição,
finalmente, aponta as possibilidades do “de onde” e do
“para onde” que estão contidas neste presente... As
quatro funções são algo como os quatro pontos cardeais.
Tão arbitrárias e tão indispensáveis quanto estes.
(JUNG, 1971, P.497)

As dicotomias entre Pensamento e Sentimento, Introversão e


Extroversão, não atendem ao propósito de classificar e fragmentar o ser
humano. Longe disso: conhecer o modus opereandi do indivíduo possibilita o
despertar de suas partes latentes, norteando o processo de autoconhecimento
e autorrealização, o qual Jung chamou de Individuação. Esclarece Nise da
Silveira, de maneira prestimosa, em Jung: vida e obra:

O conceito junguiano de individuação tem sido muitas


vezes deturpado. Entretanto é claro e simples na sua
essência: tendência instintiva a realizar plenamente
potencialidades inatas. [...] Em primeiro lugar não se
pense que individuação seja sinônimo de perfeição,
aquele que busca individuar-se não tem a mínima
pretensão de tornar-se perfeito. Ele visa completar-se, o
que é muito diferente. (SILVEIRA, 1981, P.80)

30
A Tipologia Junguiana aponta para as diferentes direções que a energia
psíquica pode percorrer e o foco que a mente escolhe para operar. Sendo,
extrovertido aquele cuja atenção é voltada para o objeto e introvertido aquele
que a mesma tem enfoque no sujeito.
O par básico de opostos nietzschiano: apolíneo e dionisíaco aproxima-
se do conceito de extroversão e introversão de Jung, tendo sido esmiuçado
pelo mesmo. O Dionisíaco trata de um fluir para cima e para fora, uma
tentativa de abraçar o mundo inteiro, correspondente a maneira extrovertida de
operar.

É uma expansão dionisíaca, uma corrente de sentimento


universal muito forte que surge irresistível e, qual vinho
generoso, embriaga os sentidos. E embriaguez no
sentido mais elevado. Participa desse estado em grau
máximo o elemento psicológico da sensação, seja dos
sentidos, seja afetiva. Trata-se, pois, de uma extroversão
de sentimentos, ligados indistintamente ao elemento da
sensação, e por isso os chamamos de sensações-
sentimentos. O que mais se manifesta neste estado são
afetos, portanto o instintivo, o coagir cego, que se
expressa numa afetação da esfera corporal. (JUNG,
1971, p.139)

Ao passo que, o Apolíneo orienta-se pela percepção das imagens


internas: “é um estado de introspecção, de contemplação voltada para dentro,
para o mundo onírico das idéias eternas, portanto um estado de introversão.”
(JUNG, 1971, p.139)
Para Nietzsche, esses dois princípios buscam a complementaridade,
tendo sido apartados no período socrático onde o culto a razão era prediletado,
freando o fluxo da criatividade primitiva contida no estado dionisíaco.

31
Figura 25: Apolo e Dionísio

O extrovertido possui, invariavelmente, uma posição dinâmica perante o


mundo em que atua. Já o tipo introvertido, parece manter sempre uma “cortina
de fumaça” entre ele e as solicitações e estímulos da realidade, focando-se em
seu mundo interior.
Contudo, assim como o Yin e o Yang, cada par do oposto contem em si
o germe do outro arraigado nos recôndito menos explorado da psique, que
Jung denominou Sombra. Como salienta Campbell:

Quando você desce ao inconsciente, faz aflorar não só a


sombra e a anima, mas também a capacidade de
vivenciá-las e discernir que não foram utilizadas na sua
vida. Você passa a integrar as funções e atitudes

32
inferiores, de modo que qualquer enantiodromia se
resume à realização de todo o seu potencial, e não a um
naufrágio nos rochedos das sereias. (CAMPBELL, 2008,
P.105)

O caráter tanto de um quanto de outro será determinado, não apenas


pela extroversão e pela introversão em si, mas também pela forma que esses
modos do ser interagem com as quatro funções da psique supracitadas.

Cedo Jung deu-se conta de que dentro de cada uma das


atitudes típicas havia muitas variações. Um introvertido
podia diferir enormemente de outro embora ambos
reagissem, de modo análogo, face aos objetos. Idem no
interior do grupo dos extrovertidos. Que ocorria então?
Como bom empirista, Jung foi acumulando observações
até concluir que essas diferenças dependiam da função
psíquica que o indivíduo usava preferentemente para
adaptar-se ao mundo exterior. (SILVEIRA, 1981, P.48)

Segundo Grinberg (1977, p.75): “Tudo aquilo eu o ego empregar


visando relacionar-se consigo mesmo, com o mundo e com os outros é uma
função psicológica”. Em nossa cultura ocidental extremamente racionalista,
imediatista e imagética, o Pensamento e a Sensação são legitimados deixando
o Sentimento e a Intuição à deriva, transformando em outsiders as mentes que
as antepõem desde a mais tenra idade no meio sócio-cultural.
Talvez, se crescêssemos direcionados a sermos criadores do nosso
próprio saber e não detentores dos saberes de outrem, ou se vivêssemos em
uma sociedade onde as funções psíquicas do individuo fossem trabalhadas
harmonicamente não precisássemos de terapia e não nos moveríamos num
mundo de convergências e divergências, repetindo lugares-comuns
politicamente corretos, entrecortando nosso cérebro e distanciando-nos da
completude oriunda da plena realização das potencialidades do nosso ser, a
qual Jung chamou Individualização.
Diferente do que é impresso em nós, desde os anos iniciais da
educação, tanto o pensamento quanto o sentimento são considerados por
Jung funções racionais, pois ambas estão ligadas a padrões de julgamento

33
interacionistas e escolhas fundamentadas na razão. Contudo, a função
Pensamento corresponde a ética racionalista, enquanto o Sentimento julga de
maneira peculiar o valor intrínseco das coisas, tendo sido apelidado pela
Doutora Nise da Silveira de: “a lógica do coração”. Assim, o juízo pelo
Pensamento seria pautado em fatos, ao passo que o outro seria conduzido por
valores subjetivos e idiossincráticos.
Ligadas a percepção, Sensação e Intuição são entendidas como
funções irracionais, que determinam a forma como o sujeito captura o
ambiente que o circunda. Assim como o juízo pelo Sentimento, a apreensão do
mundo pela Intuição não encontra lugar confortável para desenvolver-se no
mundo que hoje conhecemos.
Desde a Idade média a Intuição foi sendo preterida paulatinamente da
vida do ser humano em prol dos estímulos sensoriais.

O desenvolvimento e a diferenciação tanto da atitude


(extroversão/introversão) quanto da função superior
começam a ocorrer muito cedo, já na infância. Desde
pequenos costumamos deixar para os outros fazerem as
coisas de eu não nos sentimos capazes e ficar o pé
naquilo em eu nos sentimos mais seguros. A família e o
meio reforçam nossas tendências ou vocações, mas, de
qualquer forma, a disposição para desenvolver uma
determinada função está presente em nós já no
nascimento,sendo,portanto,arquetípica.(GRINSBERG,
1977, P.77)

O Ego identifica-se com a função superior, enquanto a função inferior


encontra-se imersa no inconsciente, à função principal sucedem a secundária
e a terciária: chamadas auxiliares. “É o diálogo entre as duas funções que nos
instrui.” (CAMPBELL, 2009, p. 93)
O cuidado arteterapeutico mostra-se muito feliz em acionar as funções
menos exploradas através do manejo dos materiais artísticos e do
autoconhecimento, como veremos no capítulo posterior. Integrar dentro da
psique as variadas funções é mister para o processo de Individuação. Em
conformidade com Nise da Silveira:

Se uma função não é empregada... há o perigo de que


escape de todo ao manejo consciente, tornando-se

34
autônoma e mergulhando no inconsciente onde vá
provocar ativação anormal. (SILVEIRA, 1988, P.55)

O processo de autoconhecimento auxilia também a compreensão do


outro, ou a forma como este opera, percebe ou formula pensamentos
divergentes, melhorando as relações interpessoais. Ao identificar que o outro
atua e introjeta conceitos de forma peculiar devido à polaridade e a função
psíquica dominante em sua personalidade transcendemos a máxima sartriana:
de que “o inferno são os outros”.

35
CAPÍTULO III
A TERAPIA EXPRESSIVA COMO VEÍCULO DE
REVELAÇÃO E RESSIGNIFICAÇÃO DAS IMAGENS DO
INCONSCIENTE

Trago no olhar visões extraordinárias


De coisas que abracei de olhos fechados...
Florbela Espanca

Do ponto de vista arteterapeutico procuramos introduzir práticas que


equilibrem os quatro elementos possibilitando ao individuo a manifestação de
suas potencialidades de forma harmoniosa. Segundo a tipologia junguiana, os
materiais que acionam o Sentimento, em analogia ao elemento água, são a
música, a poesia, as tintas e as cores de um modo geral.
Pitágoras dava à terapia pela música o nome de purificação. Por
promover o equilíbrio entre o pensar e o sentir, a música auxilia o indivíduo a
afinar-se com seu diapasão interior e conectar processos internos e externos.
As músicas folclóricas e os instrumentos de corda são os mais
apropriados para ativar a função Sentimento. Quando introduzidos a pratica
arteterapeutica, atrelados com a produção plástica, facilitam o mergulho nos
mares internos do inconsciente indicando o emergir de suas imagens.
Freud supostamente disse: "aonde quer que eu vá, descubro que um
poeta esteve lá antes de mim”. Assim como a arte tem o poder de imprimir o
inconsciente na consciência através de suas imagens, a imagem poética
também pode sublimar a sombra psíquica trazendo a tona conteúdos pouco ou
nada trabalhados ao longo da existência.
A subjetividade que o fazer poético proporciona ao indivíduo, para além
da escrita terapêutica, auxilia-o na busca de sua plenitude enquanto ser. O ato
de tirar palavras de seus lugares-comuns, ou dos limites impostos pela lógica
do Pensamento, reorganiza e ressignifica não só a estrutura da linguagem,

36
mas também a do próprio sujeito que cria significados idiossincráticos
acionando a lógica do Sentimento.
Segundo Barthes: “Toda a recusa duma linguagem é uma morte.”
(BARTHES, 1989) Assim, constelar diversas formas de expressão é mister
para o processo de Individuação, tal qual Jung o pontuou. O individualismo de
nosso tempo espanta os “grandes temas” da música, da literatura e quiçá da
vida. Tédio e indiferença são efeitos da saturação de estímulos visuais de
todas as espécies.
Aprendemos desde os ternos anos da infância a legitimar a Sensação e
o Pensamento em detrimento da Intuição e do Sentimento. A expressão por
meio de materiais e linguagens diversas permite ao individuo revelar as
imagens inconscientes e compreender seus processos transversalmente além
dos limites da lógica cartesiana.

3.1 – A Aquarela

A aquarela é uma das mais antigas técnicas de pintura existentes, sua


origem coincide com a invenção do papel e dos pincéis na China há cerca de
dois mil anos. No Ocidente, acredita-se que a técnica aquosa tenha sido
introduzida pelo pintor italiano Taddeo Gaddi, discípulo de Giotto no período da
Renascença. Contudo, é com Albrecht Dürer, maior expoente do
Renascimento nórdico, que a aquarela ganha notoriedade na civilização
ocidental.
No trabalho arteterapeutico há diversas possibilidades de se libertar o
fluir das emoções através do uso das cores. Para este fim específico
escolhemos a aquarela por sua fluidez e transparência.
O manejo do material aquoso permite trazer à tona as imagens do
inconsciente com fluidez e leveza além de trabalhar o excesso de controle e
tensão através de sua transparência e delicadeza trazidas pela
imprevisibilidade do elemento água.

37
Figura 26: Aquarela sobre papel: Acervo pessoal, 2015.

O fluir da tinta facilita o fluir das emoções e dos sentimentos contidos.


Na “andada” das tintas sobre o suporte, seja ele papel ou tecido, o indivíduo
também faz a travessia de um estado emocional rígido possibilitando uma
abertura afetiva que constela a função Sentimento.

3.2 – Tie-dye: As Mandalas da água

A origem do Tie Dye, amarrar e tingir, é incerta embora muitos


acreditem que assim como a humanidade, esta técnica tenha nascido na
África. Esta modalidade de tingimento de tecidos, muito usada na antiguidade
pelos asiáticos, viveu seu auge nos anos sessenta e setenta com o advento do
movimento hippie. Os Hippies aspiravam a uma tomada de poder através da
imaginação e da criatividade e ao fim dos padrões engessados e da violência,
interna e externa, oriunda do capitalismo e da sociedade industrial. Assim
como Jung, os jovens de outrora acreditavam que apenas o homem consciente
de sua individualidade poderia realizar-se plenamente neste mundo e libertar a
sociedade de padrões comportamentais miméticos e opressores. Dessa forma,

38
tingiam suas vestimentas artesanalmente buscando nelas expressar sua
originalidade e sua indiferença ao sistema capitalista vigente.
O Tie Dye pode ser realizado com corantes reativos diluídos em água ou
com a própria aquarela, ou ainda com corantes naturais extraídos de plantas e
sementes como faziam os africanos do Egito Antigo e da Mesopotâmia.
Trabalhando cores vivas e psicodélicas, a técnica que cria formas
mandálicas através da amarração de partes do tecido, apesar de atender aos
mesmos propósitos que o trabalho com a aquarela, mantendo a surpresa do
resultado, difere um pouco por ser uma técnica que possui resultados estéticos
muito felizes, agradando na maioria das vezes o indivíduo logo no primeiro
experimento.

Figura 27: Oficina de tingimento artesanal: Miríade Espaço de Arteterapia, 2014.

Goethe afirma que, “A idéia na imagem, permanece infinitamente ativa e


inexaurível.” Além da confecção do trabalho, a descoberta e a contemplação

39
das formas surgidas também atuam sobre o indivíduo de forma terapêutica. De
acordo com Jung:

Mandala significa círculo e particularmente círculo


mágico... o símbolo mandálico não é apenas expressão,
mas também atuação. Ele atua sobre seu próprio autor.
Oculta-se neste símbolo uma antiguíssima atuação
mágica, cuja origem é o círculo de proteção ou círculo
encantado, cuja magia foi preservada em numerosos
costumes populares. . (JUNG, 1999, P.40)

Figura 28: Tie-Dye: Acervo pessoal

O uso do tecido como suporte trabalha o feminino facilitando a


integração também dos aspectos da Anima à personalidade. Nosso atual
modelo de sociedade discute o feminino, muitas vezes de forma equivocada ou
limitadora, tendendo para um extremo ou outro. Hoje, a noção de
empedramento da mulher traz em sua Sombra aspectos reprimidos e
possibilidades latentes que podem ser harmonizadas através do resgate do
feminino ancestral das sociedades onde a magia imperava evitando qualquer
enantiodromia.
Os Celtas exaltavam o feminino por associá-lo a deusa mãe, terra, não
fazendo separação entre o mundo físico e o mundo espiritual configurando
uma sociedade onde os aspectos femininos e masculinos eram igualmente
legitimados em suas peculiaridades e as funções psíquicas consteladas
naturalmente.

40
Em sua delicadeza a Arteterapia consegue reunir fragmentos e
significâncias e resgatar a magia e o encantamento do debruçar-se sobre si
mesmo no cotidiano:

As práticas mágicas não são mais do que projeções de


acontecimentos anímicos, que refluem sobre a alma
como uma espécie de encantamento da própria
personalidade, isto é o refluxo da atenção apoiada e
medida por um grafismo. Em outras palavras é a
participação de uma área sagrada interior, que é a
origem e a meta da alma. É ela que contém a unidade de
vida e consciência, anteriormente possuída, depois de
perdida e de novo reencontrada. (JUNG, 1999, P.41)

41
CONCLUSÃO

Constelar as funções psíquicas é um desafio constante na jornada de


individuação. Assim, ao findar este estudo infere-se que reunir o maior número
de referenciais sobre o tema proposto atende ao propósito de guarnecer de
possibilidades e significâncias o terapeuta ou cuidador. O desvelamento dos
símbolos e arquétipos dá forma, paulatinamente, a imagens entranhadas nos
recônditos do inconsciente facilitando o processo de autoconhecimento.
Mergulhar nos mares mais profundos da psique pode ser tarefa menos
árdua quando os conteúdos são trazidos a tona de forma cautelosa através do
manejo apropriado dos quatro elementos e das funções que, segundo Jung, a
esses se relacionam.
O foco no Sentimento, que avalia o que é peculiarmente relevante para
o sujeito, justificou-se pela menor valorização que esta função em específico
possui na vida contemporânea, onde a racionalidade: Pensamento e os
estímulos sensoriais: Sensação imperam. Assim, conclui-se que o trabalho
com as linguagens e os materiais artísticos que o acionam possibilita o contato
com os desejos intrínsecos e os julgamentos que, muitas vezes, são calados
pela lógica cartesiana a qual estamos sujeitos.
Dentre as linguagens artísticas sugeridas, música, poesia e pintura,
verificou-se que a música de cordas pode ser introduzida ao set arteterapeutico
facilitando o relaxamento e o mergulho nas emoções interiores, bem como a
construção poética, enquanto processo de ressignificação das palavras e do
lugar dessas possibilita também a ressignificação do indivíduo e de seus
conteúdos psíquicos.
Quanto à pintura terapêutica, modalidade de maior destaque neste
estudo, constatou-se que as tintas mais aquosas e os suportes mais maleáveis
plasmam melhor o Sentimento, bem como a criação e a contemplação de
formas mandálicas funciona como um portal que permite ao indivíduo
debruçar-se sobre seus conteúdos, transpor influências externas atenuantes e
enveredar-se pelas paisagens mais significativas de sua alma.

42
LISTA DE FIGURAS

Figura 1: A Estrela 12
Figura 2: Runa Laguz 12
Figura 3: O Nascimento de Vênus, Sandro Botticelli 17
Figura 4: Nuit 18
Figura 5: La ventana Salvador Dali 19
Figura 6: Cisnes reflectindo elefantes, Salvador Dali 19
Figura 7: Metamorfose de Narciso, Salvador Dali 20
Figura 8: Sonho Causado Pelo Vôo de Uma Abelha à Volta de Uma Romã,
Um Segundo Antes de Despertar, Salvador Dali 20
Figura 9: A Carioca, Pedro Américo 21
Figura 10: Paisagem do Chaco, Pedro Américo 22
Figura 11: A batalha do Avaí, Pedro Américo 22
Figura 12: Chicos en la playa, Joaquín Sorolla 23
Figura 13: El baño, Joaquín Sorolla 23
Figura 14: El color del mar, Joaquín Sorolla 24
Figura 15: Boy on the Sand, Joaquín Sorolla 24
Figura 16: John Singer Sargent 25
Figura 17: John Singer Sargent 25
Figura 18: Rooms by the Sea, Edward Hopper 26
Figura 19: The Long Leg, Edward Hopper 26
Figura 20: Alyssa Monks 27
Figura 21: Eric Zener 27
Figura 22: Jonh Nicholson 28
Figura 23: Jonh Nicholson 28
Figura 24: Funções psíquicas 29
Figura 25: Apolo e Dionísio 32
Figura 26: Aquarela sobre papel: Acervo pessoal, 2015 38
Figura 27: Oficina de tingimento artesanal: Miríade Espaço de Arteterapia,
2014 39

43
Figura 28: Tie-Dye: Acervo pessoal 40

44
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

BARTHES, Roland. Aula. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix,


1989.

CAMPBELL, Joseph. Mito e transformação. São Paulo: Ágora: 2008.

CAVALCANTI, Raissa. Mitos da água: as imagens da alma no seu caminho


evolutivo. São Paulo: Editora Cultrix, 1997.

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário dos Símbolos. Lisboa:


Editora Teorema, 1994.

DAVIDSON, Hilda Roderick Ellis. Deuses e mitos do norte da Europa: uma


mitologia é o comentário de uma nova era ou civilização específica sobre os
mistérios da existência e da mente humana. São Paulo: Madras, 2004.

GRINBERG, L.P. O homem criativo. São Paulo: Editora FTD,1997.

JUNG, Carl Gustav. Tipos Psicológicos. Tradução Álvaro Cabral. Rio de


Janeiro: Editora Vozes, 1971.

JUNG, Carl Gustav; WILHELM, Richard. O Segredo da Flor de Ouro.


Petrópolis: Vozes, 1999.

NICHOLS, Sallie. Jung e o Tarô: uma jornada arquetípica. São Paulo: Cultrix,
2007.

PRANDI, Reginaldo. Os príncipes do destino - histórias da mitologia afro-


brasileira. São Paulo: Editora Cosac Naify, 2001.

45
SHARP, Daryl. Ensaios de sobrevivência: Anatomia de uma crise de meia
idade. São Paulo: Cultrix, 1988.

SILVEIRA, Nise da. Jung: vida e obra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968.

THORSSON, Edred. O oráculo sagrado das runas: autoconhecimento e


orientação pelo sistema divinatório milenar dos povos nórdicos. São Paulo:
Pensamento, 2013.

TOMMASI, Sonia Bufarah. O herói nos mitos gregos: em arteterapia e


educação. Rio de Janeiro: Wak Editora, 2015.

46
ÍNDICE

FOLHA DE ROSTO 2
AGRADECIMENTO 3
DEDICATÓRIA 4
RESUMO 5
METODOLOGIA 6
SUMÁRIO 7
INTRODUÇÃO 8

CAPÍTULO I
Vislumbres da água 10
1.1 - Mitos e arquétipos 10
1.2 – A água nas artes 18

CAPÍTULO II
O Sentimento segundo Jung 29

CAPÍTULO III
A terapia expressiva como veículo de revelação e ressignificação das
imagens do inconsciente 36
3.1 – A Aquarela 37
3.2 – Tie-dye: As Mandalas da água 38

CONCLUSÃO 42
LISTA DE FIGURAS 43
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA 45
ÍNDICE 47

47

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