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Imã- “Um relato do eu”

Por Gabi Cabral

O casamento enquanto rito é uma alteração de status na vida daquele que o vive,
constituindo o meio pelo qual a sociedade se apropria, experimenta e se transforma.
Esse ritual de comunicação simbólica permite compartilhar com um determinado grupo
uma nova posição no meio em que vive, além de festejar e partilhar sentimentos com
família e amigos.
A partir destes pressupostos escreverei minhas percepções acerca do meu
casamento na performance Imã (terceira fase do projeto “ A performance do Humano –
da Pedra ao Caos”) no mês de setembro do ano de 2012.
O performer é um ser em ação, um estado de ser, uma conexão com seu “eu”
interior. Estudos revelam que diversos artistas contemporâneos baseiam toda a sua
pesquisa performativa no “eu”, podendo ocupar espaços comuns (em vez de teatros ou
auditórios) sendo que este fato pode nos levar à conclusão de que a performance
contemporânea, em muitos casos, seria a ocupação desses espaços e tempo comuns, por
um “eu”. Essa autobiografia corporal é uma revelação do si mesmo para o público, de
forma que ambos comungam das relações e limites da arte/ vida.
O caminho criativo desenvolvido pelo grupo totem partiu desse imbricamento
eu/performance/ ritual/ como experiência estética e experiência mítica através da
imersão física, psíquica e temporal.
Para Renato Cohen a instauração do campo mítico se dá através da inteireza da
ampliação da presença e a colocação do trabalho psicofísico à disposição do trabalho
presente. A presença aumenta as demandas energéticas para atender as vicissitudes do
cotidiano e o participante passa a operar mais pleno, tendo acesso a sua mente
subliminar não objetiva.
Imã teve como base o Mito cosmogónico, este debruça-se sobre a criação e o
ordenamento do mundo e dos seus elementos, reflexo da preocupação do homem em
relação às suas origens e da tentativa de considerar e compreender, de um modo natural
e evolutivo, o universo.
Através do rito, o homem se incorpora ao mito, beneficiando-se de todas as
forças e energias ancestrais. A ação ritual realizada em imã foi uma cerimônia com suas
regras próprias, onde o corpo foi o elemento primordial da ação.
Durante o processo vivenciamos alguns laboratórios com base nos estudos de
Carl Gustav Jung e nas imagens arquetípicas pessoais, visto que esta integração
corpo/mente se fez necessário para o ritual de casamento.
Durante os laboratórios concebemos um movimento primordial para cada
performer, estes nos definiriam enquanto seres únicos, carregados de experiências
próprias e arquetípicas. Eu seria iniciada numa nova fase da vida através do casamento,
passaria a obter outra colocação social e por isso foi necessário apreender os
movimentos de todas as performers, pois elas estavam me inicializando no seu mundo
interior e no seu inconsciente coletivo feminino.
Essa iniciação é mais do que simplesmente um rito de transição, ela é um rito de
formação.
A performance
No momento inicial da performance eu passei pelo ritual da caverna, fiquei num
quarto escuro, em reclusão, aos cuidados da grande sacerdotisa do grupo totem “Mãe
Lau”, ela estava me preparando neste confinamento para o momento em que eu casaria.
Nós rezamos e passei por sua benção silenciosa. Instintivamente fiz uma ligação com
meus espíritos ancestrais. As outras performers do grupo já estavam em cena e
simbolizavam os rituais de iniciação em diversas culturas através de movimentos e mix
de imagens projetadas em cena. É importante ressaltar que os rituais simbólicos de
iniciação são vivenciados pelos jovens de um determinado grupo antes do casamento,
este é um marco para uma vida de fertilidade, benesse e prosperidade na vida adulta.
Ao entrar em cena venho acompanhada pela sacerdotisa, estamos com o corpo
em movimento de infinito, algo experimentado em laboratório que determina as minhas
projeções ao matrimonio. O encontro do infinito está relatado em meu diário de bordo
da seguinte forma;

A imagem é o infinito, o número 8, encontro de mãos e pensamentos.


Dá-se início com a mão esquerda na região lombar, mão direita aberta no centro
do rosto. É como se a face fosse dividida em dois lados.
Depois faz-se o símbolo do infinito com essa mão. Passa a mão por cima da
cabeça, no pescoço faz o encontro e completa o oito por baixo do peito.
Esse movimento expande-se e também fica minúsculo. O movimento toma os
ombros, a cabeça e as pernas.
As performers que tinham acabado de passar pelos seus próprios rituais de
transição doavam gestos para que eu apreendesse os diversos desígnios do meu clã. Aos
poucos, fui trazendo para meu corpo aqueles que seriam os ensinamentos para minha
vida. A partir dos movimentos do meu grupo construí corporalmente minha própria
essência e as outras mulheres também incorporaram o movimento como sendo parte do
grupo, naquele momento eu já fazia parte do universo feminino e estava pronta para
casar.
O noivo já está em cena e ele também vive seu próprio ritual de iniciação junto a
outro integrante do totem, um dos estudos vividos pelo grupo é essa divisão de gênero
nestes eventos, cotidianamente presente nas cerimônias de casamento em diversas
culturas do mundo. Visto que o noivo não fazia parte do nosso clã totêmico, foi preciso
que ele atravessasse por um ciclo de preparação do grande totem (estrutura sagrada
presente em todas as quatro performances do projeto). Ao organizar aquele monumento
ele revela a forma de expressão convencional e obrigatória aos valores do grupo.
Arnold Van Genep, em Os ritos de Passagem, fala que;

As cerimônias de casamento apresentam analogias, muitas vezes mesmo


identidades de detalhes, com a adoção, mas Isto é um fato que parecerá normal a quem
se lembrar que no casamento, em última análise, trata-se da agregação de um
estrangeiro ao grupo.

A partir daí aconteceu o primeiro encontro com meu futuro marido, nos olhamos
e passamos a construir o grande totem juntos, cada parte dos andaimes tinha a
simbologia de uma etapa de nossa vida, fomos subindo os quatro andares e
automaticamente estávamos construindo os pilares da nossa relação.

Durante toda a pesquisa utilizamos os objetos sagrados, minha roupa, que foi
vestida em cena por uma performer grávida, Inaê Veríssimo, era um desses objetos,
além de um adereço de cabeça que simbolizava todas as energias do grupo que vinham
na minha direção. Ao meu parceiro também foram colocadas (por um performer,
Ronaldo) as vestes e o mesmo adereço, sendo que no pulso.
O processo dramático se dá entre os corpos, só que naquele momento eu sentia algo de
pós dramático, visto que algo acontecia “no meu corpo”. Minha relação corpórea com
duas xamãs benzedeiras trazia alguma coisa para o ambiente, uma sensação de que algo
estava se manifestando. Naquele momento eu entrei em contato com as memórias ativas
de minha vida...
Estávamos prontos e abençoados, entramos no totem construído por nós e
recebemos nossas alianças através de pintura facial com urucum, a grande mãe fez
símbolos nos nossos rostos, ela, enquanto mestre de cerimônia estava nos casando
perante o público, passamos a mesma tinta nos nossos braços e tive a sensação que
aquela situação teatral era de confrontação e contaminação do público. Ao som de
música experimental ao vivo, subimos ao último andar do totem e pronunciamos uma
poesia nossa...

No dia-a-dia /cravejar diamantes /dente crava /beijar de amantes / Imã


Uma cor / amar-elE... / amarEla... / nós / estreitos / e pontos
entre veias e artérias/ matérias / metas / metamorfoses / fases / frases faces / tem a
cor luminosa / amar-elo

Casados, descemos do totem, minha filha de 7 anos nos recebeu com um pote de
águas perfumadas, acredito que para todos nós, este foi um momento não só
emocionante como orientador, visto que a partir daquele período nós três seríamos uma
só família. Passamos por entre o público e também recebemos uma chuva de águas
perfumadas, todos em comunhão com o que estava acontecendo. O desapassivamento
de quem participava era nítido, as sensações transbordavam à todos como uma ativação
perceptiva do teatro na sua realidade. A vitalização e a dinâmica do olhar estavam
criando seus próprios processos sensoriais.

Essa experiência de casar numa performance ainda reverbera na minha alma até
hoje. Vejo como é impressionante a incrível força que as coisas parecem ter quando elas
precisam acontecer. E concluo que a performance ritual reinventa as tradições e a
corporeidade, ativando essa conexão do “eu” enquanto performer.

Gabi Cabral.

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