Você está na página 1de 3

A voz e o orgasmo

Essa imagem talvez já não seja novidade para muitas mulheres. E se assim é, que bom. A
pequenos passos, nós, mulheres, estamos aprendendo a resgatar nosso direito de gozar
sem culpa e sem vergonha. A restabelecer a soberania sobre nossos corpos, impor limites,
dar permissões, dizer não quando se quer dizer não, sim quando se quer dizer sim,
expressar o que se pensa e o que se sente a partir de uma força interior genuína.

Claro, não é trabalho fácil. Não acontece da noite pro dia. Pode levar uma vida inteira. Ou
várias. É de fato uma jornada da alma. E para que eu me conecte com essa força genuína
e, a partir dela, possa expressar minha vida interior, preciso me apropriar dessa força e
dessa vida. Preciso olhar para mim. E olhar para mim requer prontidão, coragem e
honestidade. Mergulhar nas águas profundas do inconsciente enquanto se mantém os pés
firmes na terra é uma arte a ser desenvolvida diuturnamente. E sentir prazer de verdade,
por inteiro, de corpo e alma, passa por isso: nas costuras entre oceano e terra firme, entre
mergulhos e respiros na superfície, reconhecer, acolher e integrar as partes escondidas e
fragmentadas.

E por que estou falando disso? Voltemos à vagina e à laringe. Sentir e expressar, além de
tudo que foi dito acima, passa também pelas vísceras e pela garganta. Claro, nada aqui é
linear nem tem resposta pronta. Tudo dança o tempo todo. O corpo, as emoções, os
pensamentos, os ares vitais. Expansão e contenção. Relaxamento e contração. Movimento
e pausa. Inspiração e expiração. Vida e morte. Yin e yang. Tudo se interconecta. Mas o fato
é que elas, a vagina e a laringe, além de possuírem estruturas muito parecidas, estão
especialmente conectadas e guardam em si chaves que auxiliam na potencialização do
orgasmo e no transbordamento do sentir.

Há um estudo publicado em 2004 que comprova que d​urante o período pré-menstrual é


comum a ocorrência de mudanças na qualidade vocal e indica que são poucas as mulheres,
contudo, que se dão conta dessa variação da voz dentro do ciclo menstrual.1

1
artigo publicado na Rev. Bras. Otorrinolaringol. vol. 70 nº 3 São Paulo May/June 2004
A vagina associa-se ao 2º chakra, o sexual, fonte da energia criativa e ligado ao desejo de
relacionar-se com o outro e de procriar. A energia criativa aqui pode servir para gerar filhos
e também para criar em outros níveis: música, arte, produção intelectual etc. Seu elemento
é a água. Água das emoções, águas do inconsciente, do sentir, do fluir.

A garganta associa-se ao 5º chakra, o laríngeo, que está relacionado à nossa expressão no


mundo, ao poder de escolha, à comunicação entre os mundos interior e exterior e ao
alinhamento da vontade pessoal com a vontade divina. Alinhamento que ocorre a partir de
um ato de profunda entrega e confiança (ou seja, de abrir mão do controle) no fluxo da vida.
Seu elemento é o ar. Ar que vira voz, canto, palavra, linha no papel, tinta na tela.

A vagina guarda registros longínquos: resíduos sexuais do passado, culpas, medos,


vergonhas, traumas, repressões e imposições sociais, dores ancestrais e tantas outras
coisas que bloqueiam o livre fluxo da energia vital. Ela dá acesso ao nosso âmago, à nossa
psique. Não por acaso o sexo é tantas vezes utilizado para adentrar o inconsciente, abrir a
caixa de Pandora e dar vazão às raivas individuais ou coletivas, às fantasias de dominação,
às feridas não curadas, para citar o mínimo.

A garganta relaciona-se à produção de som, à expressão do ser, de suas emoções, ideias,


da verdade que vem do coração, dentre outros. Ela acumula as palavras não ditas, as
permissividades decorrentes de limites não impostos, o silenciamento do direito de existir,
de sentir e de expressar tal existência. Está intimamente conectada com o sentir do 2º
chakra. Assim, a depender do tipo de respiração empregada, combinada à liberação de
sons e gemidos, é possível promover a ativação e circulação da energia pelo corpo,
possibilitando o acesso a um estado de presença e entrega fundamentais para as
experiências de orgasmo expandido e de estados alterados de consciência.

Orgasmo é energia em movimento. Os orgamos mais intensos não ficam adstritos ao órgão
genital. A energia despertada sobe pelo corpo e se espalha, transbordando. Mobiliza as
cargas psíquicas concentradas e leva consigo o que está no caminho, lavando a alma e
conduzindo-a, por vezes, a um estado oceânico de delicada interconexão com a teia
cósmica, com os mundos visível e invisível.

Assim, se eu travo minha respiração ou se eu me calo, eu sufoco o fluxo de energia e


também o meu sentir. Sufoco minha voz e sufoco o orgasmo. Não permito que ele me tome.
No sentido inverso, se minha expressão sexual é contida, provavelmente também o será
minha expressão no mundo. Se, conscientemente ou não, sofri restrições sistemáticas
sobre minha sexualidade, é provável que também minha garganta esteja trancada,
sufocada.

Recentemente passei por uma situação que ilustra bem o que trago aqui. Moro em uma
casa, que divido com um amigo de longa data e que é uma forte referência masculina em
minha vida. Eu estava na minha 2ª aula de canto (à distância, por conta da pandemia) e
achei um lugar na casa onde eu poderia me “esconder” e ficar completamente à vontade
para me expressar. A aula estava fluindo bem e eu estava alegre por conseguir relaxar e
me soltar em exercícios vocais que eram desafiadores para mim. Cantar com o útero, com a
vagina, com o corpo todo, assim a professora me ensinava. Meu amigo estava cuidando do
jardim há alguns metros dali e, em dado momento, “senti-o” invadindo o espaço imaginário
que eu havia delimitado para entregar-me e abrir-me em minha vulnerabilidade. Foi quando
um estado irracional de desespero e medo tomou conta de mim, como se minha vida
estivesse sob ameaça iminente. Percebendo-me naquela situação, chamei minha “adulta
interna”, abri os olhos, firmei os pés no chão e respirei, enquanto me permitia fluir nas
marés de emoções desencadeadas a partir desse acontecimento. Chorei o dia todo,
liberando emoções represadas. Não conectei essa experiência interna a nenhum evento
externo imediato. Eu nunca fui ameaçada de morte ou agredida por ousar expressar minha
verdade, minha voz, minha força. Mas aquele trauma estava ali comigo. De onde vinha? De
uma vida passada? Da minha linhagem? Do coletivo? Não sei. Nem preciso. Mas nós
sabemos. Certa vez li a seguinte frase, de autoria desconhecida, em referência à vagina e à
garganta: “além de guardarem uma relação muito profunda entre si, são casualmente dois
aspectos da mulher que foram historicamente censurados: sua voz e sua sexualidade”.

texto de Ariadne Tezelli

Você também pode gostar