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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

Centro das Ciências Biológicas e da Saúde


Curso de Psicologia

OUROBÓROS: AMPLIFICAÇÃO DO SÍMBOLO


ARQUETÍPICO E SUAS CORRELAÇÕES COM A
ALQUIMIA E O PROCESSO DE INDIVIDUAÇÃO.

Ricardo Assarice dos Santos

São Paulo
2013
Ricardo Assarice dos Santos

OUROBÓROS: AMPLIFICAÇÃO DO SÍMBOLO ARQUETÍPICO E


SUAS CORRELAÇÕES COM A ALQUIMIA E O PROCESSO DE
INDIVIDUAÇÃO.

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado


ao Curso de Psicologia, da Universidade
Presbiteriana Mackenzie, como exigência
parcial para a obtenção da formação em
Psicologia.

Orientadora: Profª. Drª. Cátia Cilene Lima

São Paulo
2013
AGRADECIMENTOS

Quero agradecer aqueles que acreditaram em mim, e aqueles que duvidaram.

Os que me disseram a verdade, e os que mentiram.

Os que me amaram, e os que me odiaram.

Os que ficaram presentes, e os que partiram.

Os que me olharam nos olhos, e os que desviaram o olhar.

Todos foram responsáveis por quem sou e aonde cheguei.

Guardo todos na memória, e metade no coração.

Ricardo Assarice dos Santos


DOS SANTOS, Ricardo Assarice, LIMA, Cátia Cilene Lima. Ourobóros:
Amplificação do Símbolo Arquetípico e suas correlações com a Alquimia e o
processo de Individuação. Trabalho de conclusão de curso de Psicologia.
Unieversidade Presbiteriana Mackenzie, 2013

RESUMO
A vida humana é calcada por ciclos. A primeira infância, segunda infância,
puberdade, adolescência, juventude e vida madura são as etapas comumente conhecidas
no desenvolvimento humano. Simbolicamente, cada ciclo pode ser interpretado como
uma nova vida, e o fim dos ciclos como uma morte. A vida, morte e ressureição, são
então, etapas arquetípicas do desenvolvimento psico-espiritual, no qual, para atingir um
novo nível de consciência, é necessário realizar sacrifícios e abdicar dos antigos
paradigmas da consciência. Eram estes sacrifícios que permeavam a vida dos antigos (e
dos contemporâneos) alquimistas, que buscavam através em seus laboratórios a
obtenção da pedra filosofal, do elixir da vida. A pedra filosofal é o resultado final de
todo um processo meticuloso que, apesar de ser representado fisicamente nos textos
alquímicos, são, também, etapas internas que um alquimista passa, na sua busca por
transformação. A metáfora alquímica portanto, diz respeito a transformação interna do
indivíduo em busca de Si-mesmo (Self) e está intimamente ligada ao conceito de
individuação proposto por Jung, e tal transformação é de nível moral e intelectual. O
ourobóros é uma imagem alquímica presente em diversas esferas sociais e religiosas, na
qual uma cobra, ou dragão, morde a sua própria cauda num movimento circular. A
imagem revela o paradoxo do infinito, onde tudo se inicia em seu próprio fim, e acaba
em seu próprio começo. O presente trabalho teve como objetivo traçar os paralelos entre
a opus alquímica e o processo de individuação, investigando o significado desta imagem
alquímica e arquetípica, suma do processo de individuação, o ourobóros. Através do
método de amplificação e de levantamentos bibliográficos, foram analisados escritos
que explicitavam a simbologia desta imagem arquetípica, suas correspondências dentro
da simbologia alquímica e as respectivas analogias com o processo de individuação
descrito por C. G. Jung. Foi concluído que, não só a imagem do ourobóros é análoga
com um determinado processo alquímico, o Conjunctio, como tal etapa alquímica
representa psicologicamente um importante momento do processo de individuação: a
integração dos opostos psíquicos complementares. O equilíbrio dos opostos seria uma
finalidade natural da psique, e essa integração ocorre quando se percebe diferentes
níveis de corpos, físico, onírico, sutil, e a manifestação dos arquétipos que ocorre
através destes. Quanto maior a capacidade do ego em organizar tais estruturas, mais
repertório este poderá desenvolver para enriquecer a troca com o self, e por conseguinte,
a manifestação do corpo será mais harmoniosa e menos ‘doente’, tendo como
consequência aumento da qualidade de vida, individual e social.

Palavras-chave: Alquimia; individuação; ourobóros; psicologia analítica


E-mail: ricardo_assarice@hotmail.com (autor)
catiacilene.rodrigues@mackenzie.br (orientador)
Sumário
INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 5

1. PSICOLOGIA ANALÍTICA E INDIVIDUAÇÃO .......................................................................... 9

2. ALQUIMIA .................................................................................................................................... 14

3. SÍMBOLOS E IMAGENS ARQUETÍPICAS ................................................................................ 27

5. ANÁLISE ........................................................................................................................................ 34

6. CONCLUSÃO ................................................................................................................................ 37

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................................... 40


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“Os alquimistas estão chegando”


– Jorge Ben

INTRODUÇÃO

O homem que volta ao mesmo rio, nem o rio é o mesmo rio, nem o homem é o
mesmo homem. Esta suma de Heráclito define bem a constante transformação do
indivíduo e denota como a transformação é um aspecto presente, tanto no homem
quanto na natureza. As coisas fluem, mudam, se transformam e transmutam.
Assim é a consciência, um sistema em constante transformação, porém com que
finalidade? O que busca o intelecto?
A vida humana é calcada por ciclos. A primeira infância, segunda infância,
puberdade, adolescência, juventude e vida madura são as etapas comumente conhecidas
no desenvolvimento humano. Simbolicamente, cada ciclo pode ser interpretado como
uma nova vida, e o fim dos ciclos como uma morte. A vida, morte e ressureição, são
então, etapas arquetípicas do desenvolvimento psico-espiritual, no qual, para atingir um
novo nível de consciência, é necessário realizar sacrifícios e abdicar dos antigos
paradigmas da consciência e se integrar.
Eram estes sacrifícios que permeavam a vida dos antigos (e dos
contemporâneos) alquimistas, que buscavam através em seus laboratórios a obtenção da
pedra filosofal, do elixir da vida.
Ao longo de sua prática clínica, o psicólogo suíço Carl Gustav Jung percebeu
uma correlação entre sonhos de seus pacientes com figuras alquímicas, e a partir daí,
traçou diversos paralelos entre as metáforas alquímicas com o processo que denominou
individuação (JUNG, 1999).
Dentro do universo alquímico foi escolhido uma imagem em especial, a do
Ourobóros: a serpente que morde a própria cauda, de forma circular.
O presente trabalho teve como objetivo traçar os paralelos entre a opus
alquímica e o processo de individuação, investigando o significado desta imagem
alquímica e arquetípica, suma do processo de individuação, o Ourobóros. Através do
método de amplificação e de levantamentos bibliográficos, foram analisadas obras
filosóficas e acadêmicas que explicitavam a simbologia desta imagem arquetípica, suas
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correspondências dentro da simbologia alquímica e as respectivas analogias com o


processo de individuação descrito por C. G. Jung.
Para Chaise e Viana (2011), o método de amplificação foi introduzido em 1912
na psicologia por Carl Gustav Jung em seu livro Símbolos da Transformação (JUNG,
1986), denotando a ruptura entre Jung e a psicanálise, cujo objetivo era “libertar a
psicologia médica do viés subjetivo e personalístico que caracterizava sua perspectiva
(…) e tornar possível à compreensão do inconsciente como uma psique coletiva e
objetiva” (CHAISE E VIANA apud JUNG, 2011, 12).
Ressaltam ainda que a amplificação promove associações diretas da consciência
frente a uma imagem, conteúdo ou símbolo explorado, cujo nome é circumbulação, ou
seja, um movimento circular em torno de um ponto, o próprio método é o uma
manifestação ourobórica. “a amplificação consiste simplesmente em estabelecer
paralelos” (JUNG, 1935, 172).
Estende-se ao ponto de considerar aspectos coletivos através de experiências
individuais, recorrendo a fontes de cunho cultural, histórico, mitos e filosóficos, afim de
“ampliar o conteúdo metafórico do simbolismo” (JUNG, 1935, 173).
Os símbolos como manifestações individuais são retirados deste contexto através
de imagens arquetípicas, conceito melhor elaborado no capítulo seguinte, mas que se
resumem como a manifestação do arquétipo na psique, não o representando
completamente, mas sugerindo seu potencial.
Portanto, a amplificação é executada em três fases distintas: a primeira seria o
contato com o símbolo e as observações experienciais do analisado; a segunda é a etapa
de amplificação coletiva, onde se pega um símbolo específico e o associa com outras
imagens arquetípicas, e por isso pode ser denominada de objetividade da imagem; a
terceira e última é o retorno ao subjetivo com o auxilio das analogias universais, em
outras palavras, o símbolo – primordialmente individual – manifestado passa por uma
variedade de possibilidades significativas através da associação com a coletividade,
após essa etapa, ele necessita do indivíduo – que utiliza como parâmetro o
reconhecimento afetivo dentro dos aspectos coletivos – para dar sentido ao símbolo. –
Entende-se que “qualquer estudo simbólico leva em conta duas vertentes, a
individual e a coletiva” (JUNG, 1999, 67). Sendo a primeira carregada de impressões
pessoais do indivíduo e a segunda o repertório de arquétipos da humanidade.
7

De acordo com RAMOS (1990), no passado, o método utilizado na interpretação


dos processos e dinâmicas mente-corpo eram feitos de forma reducionista e causal,
derivada de uma visão cartesiana e newtoniana, e que, com o passar do tempo, frente a
fenômenos como a globalização, a inter-relação de fatores, levou a necessidade do
desenvolvimento de uma visão holística e simbólica para compreender os fenômenos da
saúde.
Neste sentido, o presente trabalho fundamenta sua base metodológica como
forma de ampliar a percepção dos pesquisadores, o estudo comparativo de sociedades e
religiões facilitou para uma compreensão mais integral de saúde. É percebido que, a
base inúmeras religiões para o adoecimento era a saía do indivíduo de seu eixo divino, e
por isso, a enfermidade, encarada como uma oportunidade e não uma doença
ocidentalmente dizendo, seria a manifestação de uma desarmonia interna.
A compreensão dos aspectos religiosos e simbólicos na psique se mostram,
portanto, de grande importância, uma vez que possibilitam o melhor entendimento da
subjetividade humana, permitindo, por exemplo, melhorias na saúde do indivíduos.
Ramos (1999) nos introduz aos precursores do símbolo como um organizador e
centralizador da psique: C. G. Jung e G. Groddeck, sendo este último o defensor da
doença como um sinalizador da psique de que alguns aspectos internos precisam ser
expressos, ou então expressados de uma nova forma. É de interesse a percepção
junguiana do processo, que percebe a doença como uma manifestação do processo de
individuação.
A autora ainda define como um dos principais conceitos que orientam essa
afirmação, a intermediação de um terceiro fator na relação psique-corpo: o símbolo.
O equilíbrio dos opostos seria uma finalidade natural da psique, e essa integração
ocorre quando se percebe diferentes níveis de corpos, físico, onírico, sutil, e a
manifestação dos arquétipos que ocorre através destes. Quanto maior a capacidade do
ego em organizar tais estruturas, mais repertório este poderá desenvolver para
enriquecer a troca com o self, e por conseguinte, a manifestação do corpo será mais
harmoniosa e menos ‘doente’.
O símbolo estaria carregado com os significados arquetípicos de uma forma
apresentável para o ego, e seria então o terceiro fator da relação psique-corpo, um
intermediador que facilitaria o equilíbrio e manifestação da individualidade,
possibilitando uma vida menos sintomática. Uma vez que a psique tem dificuldade de
8

perceber e atuar com diferentes polaridades, a doença de manifesta como uma forma de
chamar a atenção para a unilateralidade da psique, e convidá-la a integrar outros
aspectos.
Será, portanto, a ferramenta principal da psique para se manifestar e se
transformar, e que, as religiões são carregadas destes símbolos que ajudam o homem a
se religar com o divino, ou com seu próprio self, uma forma de vir-a-ser mais natural e
fluída. Toda manifestação de doenças exigiria uma compreensão e investigação
simbólica, que facilitaria a dissolução da mesma.
Em síntese, considerando o paradigma social de unilateralidade, manifestado
entre outras esferas, na psique, produz adoecimentos nos indivíduos, em níveis mentais
e físicos. Através do método de amplificação, que consiste ressaltar as impressões
individuais acerca de um símbolo, em seguida associá-lo com outras imagens
arquetípicas e por fim resignificá-lo a partir dos vieses individuais e coletivos será
analisado o símbolo arquetípico do Ourobóros e suas correlações com os processos
alquímicos e a o conceito de individuação de Jung, permitindo uma maior compreensão
do processo de individuação e a potencialidade da alquimia como forma de integrar a
psique.
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“Só o que está separado pode ser devidamente unido.”

- Alquimista desconhecido

1. Psicologia Analítica e Individuação


1.1 Individuação

Na escola analítica, compreende-se que a psique seja maior que a consciência


em si, ou seja, a existência de todo um campo inconsciente que interfere e interage com
a mente consciente. Além do inconsciente pessoal, Jung (2011) defende a existência de
um inconsciente coletivo, um plano de consciência no qual ficariam armazenados toda a
herança cultural da sociedade, acessível ao nível consciente, cujo encontro, através de
arquétipos, acrescentam e expandem a consciência.
Arquétipos podem ser definidos como temas típicos que aparecem em toda
forma de sociedade e cultura, que abriga um significado primordial de estruturas
psíquicas, os quais os indivíduos experienciam em níveis pessoais. Em Os arquétipos e
o Inconsciente Coletivo (JUNG, 2011), o autor define que “O arquétipo representa
essencialmente um conteúdo inconsciente, o qual se modifica através de sua
conscientização e percepção, assumindo matrizes que variam de acordo com a
consciência individual na qual se manifesta” (JUNG, 2011, 54).
De acordo com Jung (1999), apesar da expressão social e coletiva de imagens e
energias ligadas à idéia de divino, em nível individual, é necessário que o ser humano
permita-se atravessar por tais idéias, pois isso ajuda sua natureza no processo de
transcendência e auto-conhecimento - processo chamado de individuação. Em “O Poder
do Mito” (CAMPBELL, 1999), o autor cita Nietzsche e toda sua teoria do eterno
retorno, para demostrar a existência humana como cíclica. Nesta teoria, há a defesa de
que as vivências humanas se dão através da polarização complementar dos aspectos
pessoias que se repetem interminavelmente ao longo da existência, demarcando também
a noção de infinito, porém ligada a psique humana e não em alguma entidade fora dela.

“Podemos dizer que a


personalidade humana é constituida de duas partes: a primeira é
a consciência e tudo o que ela abrange; a segunda é o interior de
amplidão indeterminada da psique inconsciente. A
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personalidade consciente é mais ou menos definível e


determinável. Mas, em relação à personalidade humana, como
um todo, temos de admitir a impossibilidade de uma descrição
completa dela. Em toda personalidade existe inevitavelmente
algo de indelíneavél e de indefinível, uma vez que ela apresenta
um lado consciente e observável, que não contém determinados
fatores, cuja existência, no entanto é forçoso admitir, se
quisermos explicar a existência de certos fatos. Estes fatores
desconhecidos constituem aquilo que designamos como o lado
inconsciente da personalidade” (JUNG, 1989, 47).

Realizar a síntese destes opostos no Si-mesmo é a meta do processo de


individuação. Isso ocorre com a discriminação e a conseqüente integração de conteúdos
inicialmente inconscientes e que fazem parte de um processo de transição da
consciência comum (vigília) para um estado psíquico mais amplo, na busca do homem
consciente, o homem total.
Evidentemente, esta é uma experiência incomum e vivida por poucas pessoas
geralmente não antes da segunda metade da vida. A Individuação é um processo que
ocorre durante toda a vida, mas, às vezes, há uma intensificação antes da maturidade da
idade adulta e, quando isso acontece, há uma mudança na forma da pessoa encarar sua
vida, fazendo-a manifestar, às vezes, alguns “comportamentos místicos”, num
sentimento de comunhão e harmonia com a vida.
É de suma importância que as pessoas consigam refletir e entrar em contato com
tais aspectos de suas personalidades, uma vez que, compreendendo-as, é possível
integrá-las, tendo como consequência uma existência mais saudável e prazeirosa,
transcendendo a patologia e permitindo que suas verdadeiras essências venham à tona e
se transformem.

1.2 Os Arquétipos Complementares

Jung descreve alguns arquétipos, universais e necessários para a compreensão da vida


psíquica do homem. Alguns básicos discutidos pelo autor são os arquétipos da anima,
animus, persona e sombra. A integração destes são de suma importância para o processo
de individuação.
Jung consegue perceber a natureza polarizada na psique humana, e admite no
homem uma natureza feminina, dando ao nome de anima, e seu complementar, a
11

natureza masculina na mulher, de animus. “[...] Desde tempos imemoriais, o homem


nos mitos, sempre exprimiu a idéia da coexistência do masculino e do feminino num só
corpo” (JUNG, 1989, 38).
A ideia andrógina de Deus, faz com que, na busca pelo divino (individuação), a
psique humana precise vivenciar, mesmo que em planos oníricos, personalidades
complementares, cujas orientações muitas vezes sejam contrárias aquelas consicientes,
trazendo ao sonhador, novos e diferentes pontos de vista que facilitam uma
compreensão mais panorâmica de si mesmo.
Anima e animus seriam então os aspectos complementares de gênero na psique,
personalidades inferiores que habitam a mente e são necessários para a dialética das
polaridades consciente e inconsciente.
Persona pode ser definido como o arquétipo social. Aquele que abrange o tato
das relações interpessoais e coletivas, e relação com o outro. É um conjunto de normas e
condutas culturais que o indivíduo assimila e constrói uma identidade complementar.

“A partir de Jung, o conceito de ‘persona’ significa mais


precisamente o eu social resultante dos esforços de adaptação
realizados para observar as normas social, morais e educacionais
de seu meio. A persona lança fora de seu campo de consciência
todos os elementos – emoções, traços de caráter, talentos,
atitudes – julgados inaceitáveis para as pessoas significativas do
seu meio. Esse mecanismo produz no inconsciente uma
contrapartida de si mesmo que Jung chamou de ‘sombra”.
(OCANÃ, 2008, 04) .

A sombra pode ser caracteriazada como o arquétipo da negação. Na sombra é


personificado tudo aquilo que se tem resistência ou dificuldade para assimilar como
próprio. A sombra é o amargurado ou reprimido que clama por expressão. Não só se
opõe a persona, no constructo social, mas também em nível individual do sujeito e seus
instintos e potenciais negligenciados pela sociedade.

“Diversas pessoas que trilham o


caminho do aperfeiçoamento individual acreditam que
completaram o processo, mas são incapazes de enxergar a
verdade sobre si mesmas. Muitos de nós almejam ver a luz e
viver na beleza do seu eu mais elevado, mas tentamos fazer isso
12

sem integrar nosso ser. Não podemos ter a experiência completa


da luz sem conhecer a escuridão. O lado sombrio é o porteiro
que abre as portas para a verdadeira liberdade. Todos devem
estar atentos para explorar e expor continuamente esse aspecto
do ser. Quer você goste ou não, sendo humano, você tem uma
sombra.” (FORD, 1998, 23).

A integração desses aspectos psicológicos inicialmente opostos seria, portanto a


chave da chamada individuação. Através destes, seria possível atingir um estado
psicológico centrado, no qual o maniqueísmo neurótico não mais afetaria negativamente
a vida dos indivíduos.

“É de suma importancia que um indivíduo se relacione


com esses aspectos nebulosos de sua psique e possa, no encontro
com esses arquétipos, canalizar sua energia psíquica a fim de
construir uma identidade plena, consciente de si-mesmo. Essa
construção de identidade é um processo chamado por Jung
(1986) de individuação. É um fenômeno que ocorre em todo o
decorrer da vida, quando um sujeito ascende a níveis menos
infantis de funcionamento em busca da integração de sua
personalidade. A matriz dessa personalidade individual provém
do conceito junguiano de self ou si-mesmo que pode ser
definido como o arquétipo da totalidade e centro regulador da
psique, oculto por trás da personalidade total e encarregado de
levar à prática o projeto de vida e de guiar o processo de
individuação. Por isso, Jung dizia que sua vivência poderia
sentir-se psicologicamente como o “Deus dentro de nós”
(SHARP apud JUNG, 1994,181).

O processo de individuação tem como finalidade paradoxal aproximar o homem


da idéia de divino através da aproximação do homem com sua própria natureza.

“O homem é composto biológica, e psicologicamente, de


aspectos masculinos e femininos, para se desenvolver
plenamente deve passar por fases: infância, adolescência, idade
madura e velhice. Neste processo precisa integrar partes
essenciais de sua personalidade como seu lado guerreiro, seu
lado sensível, seu lado legislador e líder. A este processo de ir à
busca da totalidade, Jung denominou individuação, e implica
num grau de diferenciação de seus aspectos masculinos e
femininos” (ULSON, 1997, 76).
13

A individuação, portanto, diz respeito ao processo cíclico de integração dos opostos


psíquicos para transcender e atingir um contato mais significativo com suas essências e
se aproximar do arquétipo divino, o Si-mesmo (Self), e está intimamente ligada com os
processos e etapas alquímicas.

“A serenidade no velho e o estar consciente dos problemas


à sua volta é a melhor maneira de se aferir seu processo de
amadurecimento se completou. A total entrega e submissão aos
designíos da natureza, do Self, ou de Deus, é objetivo e fim de
todos aqueles que conseguem harmonizar os pares de opostos
internos. É o coniunctio oppostorium dos alquimistas, ou a pedra
filosofal, o lápís, ou tantos outros nomes que eles criaram para
expressar o estado de totalidade e plenitude que apenas os
sábios, santos e heróis conseguem atingir de uma forma mais
intensa e duradoura” (ULSON, 1997, 79).

A alquimia, como veremos no capítulo seguinte é um antigo método para a obtenção


desse re-ligare com o Self e permitir o amadurecimento da psique através de metáforas
que permitam a integração de opostos complementares.
14

“Senta-te ao sol. Abdica


E sê rei de ti próprio”
- Ricardo Reis

2. Alquimia

2.1. Arquétipo de Hermes Trismegisto

A alquimia é uma ciência antiga, cujos primórdios são incertos, porém


encontrados ao longo de muitos anos e civilizações, como uma arte. Os objetivos da
realização do trabalho alquímico são, entre outros, transformar metais densos em ouro, e
obter o elixir da vida, a pedra filosofal, que garante a vida eterna, através da
manipulação da prima matéria.
As origens da Alquimia são associadas a figura emblemática de Hermes
Trismegisto. Para António Fadista Rocha, Hermes Trismegisto é uma complexa
divindade, a qual é atribuída diversos atributos. Inicialmente era associado como um
deus agrário, protetor de pastores e rebanhos. Na mitologia grega, regia as estradas, e
tinha grande velocidade, pois utilizava sandálias com asas. Como conhecia os
caminhos, não se perdia nas trevas, e se transformou no mensageiro direto dos deuses,
com livre acesso aos níveis inferno, terra e paraíso, alegoricamente associados a estados
de consciência.

“A astúcia, a inventividade, o poder de tornar-se invisível e de


viajar por toda a parte, aliados ao caduceu com o qual conduzia
as almas na luz e nas trevas, são os atributos que exaltam a
sabedoria de Hermes, principalmente no domínio das ciências
ocultas, que se tornarão, na época helenística, as principais
qualidades do deus“ (ROCHA, 2008, 07).

Hermes se transforou então, no representante das ciências ocultas e esotéricas.


Aquele que sabe e transmite as sabedorias ocultas.
Na literatura Medieval e do Renascimento existem várias referências à Hermes
Trismegisto e os escritos herméticos, que foram profundamente estudados por
alquimistas e rosa-cruzes. Rocha afirma que
15

“na realidade, Hermes Trismegisto resultou de um


sincretismo com o Mercúrio latino e com o deus egípcio Thoth,
o escrivão no julgamento dos mortos no Paraíso de Osíris, e
patrono de todas as ciências na Grécia Antiga.

Hermes Trismegistos é o nome grego dado ao deus


egípcio Thoth, considerado o inventor da escrita e de todas as
ciências a ela ligadas, inclusive a medicina, a astronomia e a
magia. Segundo o historiador Heródoto, já no séc. V A.C. Thoth
era identificado e assimilado a Hermes Trismegisto, i.e., ao Três
Vezes Poderoso Hermes“ (ROCHA, 2008, 12).

Nos primeiros séculos da Roma cristã, surgiu uma série de tratados de cunho religioso e
esotérico, que se diziam influenciados na religião egípcia, neoplatonismo e neopitagorismo. O
conjunto desses escritos é chamado Corpus Hermeticum, e reúne a Hermética e a Tábua de
Esmeralda. Estas duas obras são trabalhos estritamente herméticos sobre os quais se
fundam a ciência e a filosofia alquímicas. Na análise deste trabalho serão investigadas
as possíveis ligações com o Ourobóros e as leis herméticas. No anexo 1 encontramos a
compilação das sete leis herméticas, e no anexo 2 a tradução livre da tábua de
esmeralda. E mais, como símbolo máximo associado a Hermes, encontramos o caduceu:

“Símbolo dos mais antigos, sua imagem já se acha


gravada, desde o ano 2.600 a.C., na taça do rei Gudea de
Lagash. São várias as formas e múltiplas as interpretações do
caduceu. Insígnia principal de Hermes, é um bastão em torno do
qual se enrolam, em sentidos inversos, duas serpentes”
(ROCHA, 2008, 13).

Enrolando-se em torno do caduceu, elas simbolizam o equilíbrio das tendências


contrárias em torno do eixo do mundo, o que leva a interpretar o bastão do deus de
Cilene como um símbolo de paz. A serpente é um símbolo encontrado na Mitologia de
todos os povos. Todas as grandes ideias surgidas no início da Civilização foram
representadas pela serpente: o Sol, o Universo, Deus, a Eternidade.

Também se pode interpretar o caduceu como sendo o


símbolo do falo ereto, com duas serpentes acopladas. Esta
interpretação do caduceu é uma das mais antigas representações
indo-europeias, sendo encontrado na Índia antiga e moderna,
associado a numerosos ritos, bem como na Grécia, onde se
tornou a insígnia de Hermes. Espiritualizado, esse falo de
16

Hermes penetra no mundo desconhecido em busca de uma


mensagem espiritual de libertação e de cura.“ (ROCHA, 2008,
16).

Na figura 1(a), vemos o deus Hermes e seu caduceu, na figura 1(b), o caduceu
com as serpentes circulares em movimento:

Imagem 1(a) Imagem 1(b)

A associação com a figura do Ourobóros é facilmente realizada. No capítulo


seguinte veremos os possíveis paralelos arquetípicos que correspondem a esses
sincretismo, da serpente, o movimento circular e seus possíveis significados.

2.2 Alquimia Contemporânea

É de destaque na história da alquimia os séculos XVI e XVII, quando a alquima


atingiu seu ápice através dos estudos de Paracelso e se dissolveu a partir do Iluminismo,
uma vez que o pressuposto básico da obra “o obscuro pelo obscuro, o desconhecido
pelo desconhecido” não cabia dentro do pensamento iluminista e centífico ascendente
do século XVIII.
17

Coube a C. G. Jung retornar a este vasto material arquetípico e introduzir um


novo olhar para a alquimia. O autor relê os tratados alquímicos e conclui que o
simbolismo alquímico conserva na atualidade seu significado simbólico e consegue
traçar paralelos entre a opus alquímica e o processo de individuação clínico, e percebe a
arte alqumica como um “fértil instrumento de compreensão e de comunicação para as
manifestações do inconsciente coletivo na psique indivdual”, como afirma Frederico
Eckschmidt.

“Todo procedimento alquímico pode muito bem


representar o processo de individuação num indivíduo
particular, embora com a diferença não desprovida de
importância de que nenhum indivíduo particular abarca a
riqueza e o alcance do simbolismo alquímico. Este tem a seu
favor o fato de ter sido construído ao longo dos séculos. É tarefa
muito difícil e ingrata a tentativa de descrever o processo de
individuação a partir de materiais de casos. Na minha
experiência, nenhum caso é suficientemente amplo para revelar
todos os aspectos com uma riqueza de detalhes que o leve a ser
considerado paradigmático. A alquimia, por conseguinte,
realizou para mim o grande e inestimável serviço de fornecer o
material em que minha experiência pudesse encontrar espaço
suficiente, o que me possibilitou descrever o processo de
individuação, ao menos em seus aspectos essenciais” (JUNG,
2000, 134).

Para os mais descuidados, é necessário apontar que o processo para obter tais feitos, não
só é simbólico, como o próprio objetivo em si, é uma metáfora. Os metais densos
podem ser caracterizados como aspectos da personalidade, a serem tranformados,
transmutados, ou seja, lapidados até sua forma mais pura, o ouro. A pedra filosofal é o
resultado final de todo um processo meticuloso que, apesar de ser representado
físicamente nos textos alquímicos, são, também, estapas internas que um alquimista
passa, na sua busca por individuação. A metáfora alquímica, portanto é diz respeito a
transformação interna do indivíduo em busca de sí-mesmo e esta intimamente ligada ao
conceito de indivduação proposto por Jung, tal transformação é de nível moral e
intelectual. Von Franz elucida o paralelo evidente destes dois processos:

“O processo de individuação que se reflete no simbolismo


alquímico é, num certo sentido, uma preparação para a morte.
Esta constitu com efeito o termo natural de um processo cuja
meta é o desenvolvimento mais completo possível de todas as
18

potencialidades inerentes a personalidade” (VON FRANZ,


1985, 248).

Este potencial a ser atingido, é chamado de Opus Philosophorum, que


corresponde analogamente à tentativa de integração da psique. Tal integração se dá com
quando a conscência se depara com o inconscente e, na busca de harmonização desta
dalética, surgem os símbolos em forma mandálica, anunciando a união de opostos.
Consciente e inconsciente então, trabalham juntos afim de permitr a síntese, permitindo
o indíviduo atingir o máximo de seu potencial. Podemos aí, realizar uma associação
com a imagem arquetípica analisada no capítulo seguinte do Ourobóros.
Vale a pena frisar que as metáfora alquímicas compreendem um vasto
simbolismo, que varia entre os alquimistas e pesquisadores, porém todos resultam no
mesmo objetivo: a obtenção da pedra filosofal.
Em resumo Jung (2008) através da manipulação da prima matéria,
correspondente aos aspectos inconscientes dissociados, o alquimista tem que realizar a
Opus Alquimica (processo de individuação) transformando seus conteúdos internos
através de quatro momentos psíquicos: enegrecimento (ou nigredo), embranquecimento
(ou albedo), amarelamento (ou xanthosys) e enrubescimento (rubedo ou iosis).
Dentro destes momentos, pode-se dividir a Opus em diferentes estágios, que
variam dentro do arcabouço alquímico, mas que neste trabalho, será utilizado as
definições de Hauck 1999, podendo ser resumidas em sete estágios de transformação:
calcinação, dissolução, separação, conjunção, fermentação, destilação e coagulação.

Imagem 2: Corresponde à três, dos quatro momentos descritos: nigredo, albedo e rubedo.
19

A imagem 2 nos irá guiar frente ao simbolismo utilizado na metáfora alquímica.


No centro da imagem temos o homem, alquimista. A sua direita, um rei, princípio
masculino, solar, a sua esquerda uma rainha, princípio feminino, lunar. A dicotomia já
nos é evidente, sugerindo que a integração destes aspectos seriam necessários para
atingir a Opus.
Podemos notar a presença dos quatro elementos, como manifestação quaternária
da todo, associados à tipologia junguiana. Vemos na imagem, o pé direito do homem na
terra, seu pé esquerdo na água, sua mão direta segurando uma tocha, associada ao fogo,
e sua mão esquerda segurando uma pena, associada ao elemento ar. Há também os
triângulos adjacentes a roda, representando a manifestação trina do corpo, alma e
espírito.
Na parte superior da figura, é possível ver uma estranha figura alada, que pode
ser associada com o disco solar egípicio ou o topo do caduceu de Hermes (Mercúrio),
analisado anteriormente. No centro dessas asas existe uma figura, representando a
glândula pineal. Todo este simbolismo será melhor elaborado no capítulo seguinte.
Por fim, temos a circular dos raios, associados com diferentes cores, que
representam os estágios alquímicos. Estes estágios serão nosso foco daqui pra frente.
20

Imagem 3

O primeiro raio está associado à calcinação, ou calcinato, intrínseca ao elemento


fogo. Para Hauck, esta etapa está psicologicamente associada a morte do ego e
destruição dos mecanismos de defesa, a extinção do interesse no mundo material, e as
respectivas ilusões associadas a este. Inicia-se o processo de enegrecimento, podemos
citar como ilustração desta etapa, "Escuro e nebuloso é o início de todas as coisas, mas
não o seu fim".
Para Masan (2009), esta operação é realizada na Sombra, onde permanecem os
desejos instintivos e não integrados. O fogo é está ligado com a frustração dos desejos,
aspecto natural do processo de desenvolvimento associado ao Si-mesmo.

“Os aspectos do ego identificados com as energias


transpessoais da psique (Self ou mesmo, o fogo Divino) e
utilizados para fins pessoais, sejam de poder ou de prazer, serão
calcinados. Quanto maior a dicotomia entre bem e mal, certo e
errado, ou seja, quanto maior a polarização desses aspectos
neuróticos, mais longa será a calcinação desses elementos, até
que o fogo da própria culpa esvazia a balança do julgamento por
21

essa imagem punitiva e compensatória, representada pela ira


divina, enquanto imagem arquetípica constelada no psiquismo”
(MASSAN, 2009, 26).

O segundo raio está associado com a etapa de dissolução, ou solutio,


representada pelo elemento água. Psicologicamente dizendo, está atrelada com a quebra
das estruturas artificiais da psique, através da imersão no inconsciente, ou das partes
irracionais e rejeitadas. O elemento água como uma abertura das comportas e inundação
de energias pessoais antes cristalizadas, dissolução de aspectos fixos da personalidade.

“A operação apresenta, no aspecto negativo e sombrio, um


sentido de dissolução da matéria diferenciada ou conteúdo do
ego [...]. Por outro lado, em seus aspectos superiores, onde
ocorre à transposição de opostos, consolida-se o espírito, ou
seja, os aspectos transpessoais da pisque objetiva, o Si-mesmo.
É o encontro com o Numinoso, que reestabelece a saúde da
relação ego-Self, salvando apenas o que vale ser salvo, os
conteúdos realmente alinhados com o Si-mesmo, e redimindo os
conteúdos comprometidos, derretendo-os ou reordenando-os em
novas estruturas” (MASAN, 2009, 14).

O terceiro raio diz respeito à separação, ou separatio. É o momento de captar


tudo aquilo que sobrou das etapas anteriores e selecionar. É recuperar a energia
congelada dos hábitos e pensamentos cristalizados (pré-conceitos, crenças, fobias).
Refere-se à essência e energia separada das amarras da matéria. Esta psicologicamente
associada à escolha dos aspectos dissolvidos anteriormente, desapegando daquilo que
não mais apresenta valor psíquico, explicitando a essência e valores espirituais,
portanto, associado ao elemento ar.

“Surge aí à necessidade de dissecar esses conteúdos do


inconsciente pessoal e coletivo e realizar a escolha, a separatio,
trazendo a consciência, através do ato de julgar, uma vinculação
com o Self. Isso requer um poder para arcar com o ônus dessa
escolha, uma desvinculação da necessidade de atender aos
critérios do outro, mas sim de ser fiel àquilo para o que aponta o
Si-mesmo, da mesma forma como não se pode servir a dois
senhores, só que sem o domínio neurótico da unilateridade”
(MASAN, 2009, 25).
22

A conjunção, ou coniunctio, é análoga ao quarto raio da figura. Conjunção é a grande


guinada do opus alquímico. Notemos que na figura, através do movimento circular,
existe o deslocamento das forças da alma (na direita), para o espírito (na esquerda). Em
nível pessoal, a conjunção é o fortalecimento do nosso verdadeiro Self, a união dos
aspectos masculinos e femininos de nossa personalidade em um novo sistema psíquico.
Esta etapa corresponde à ‘pequena pedra’, ou o primeiro esboço do que seria a pedra
filosofal atingida no final da operação.

“Conjunção pode ser vista com a criação de um self


superior e a conquista do que Carl Jung nomeou de
individuação, no qual o self fragmentado é reunido à um todo
original. A criação desta pessoa completa e harmoniosa significa
que atingimos nosso máximo no plano terrestre”. (HACUK,
1999, 162)

Associada então com o elemento terra, a conjunção pode ser divida em duas sub-
etapas, segundo Masan: coniunctio inferior e superior. Na primeira, a união dos opostos
separados de forma imperfeita, resulta em algo que deverá ser submetido a novos
procedimentos.
Masan define que a coniunctio inferior acontecerá sempre que o ego identificar
aspectos inconscientes, como a sombra, anima, ou mesmo o Si-mesmo (Self), através de
uma perspectiva introvertida ou coletiva. Essa identificação deve ser ‘purificada’, ou
seja, eliminada, redimida, para dar continuidade ao processo de individuação. A
coniunctio superior representa a conjunção mor dos aspectos previamente impossíveis
de serem integrados. Após passar pelos estágios anteriores da Opus, a prima matéria
pode finalmente ter seus opostos complementados.

“Assim como na alquimia, a psique, dentro do processo


analítico, vai transformando-se, ora dispondo-se num lado e ora
de outro, no sentido das suas polaridades, até que lhe seja capaz
a absorção de uma terceira figura, gradativa e construída,
surgida de dentro da sua própria alma que lhe traduz essa
expressão de convivência com o dual. A dissolução do conflito,
gerado pelas dicotomias neuróticas, concebe o cenário onde essa
pedra, em cujo seio se fixa o espírito, se manifesta. [...] O
casamento Divino, que somente existirá se ali houver o Amor,
sua causa e seu efeito. Enquanto na coniunctio inferior o amor é
concupiscente, aqui, na coniunctio superior, esse amor é
transpessoal. Revela-se no mundo como o altruísmo em seu
23

sentido extrovertido e na psique, como a conexão com o Si-


mesmo, gerando a unidade” (MASSAN, 2009, 34).

Masan apresenta o Amor como uma das chaves para a integração psicológica
dos opostos. Seria insensato pensar em amor se associá-lo com o coração. A simbologia
do coração é estudada no livro “A Psique do Coração”, de Denise Ramos . A autora
apresenta mitos e imagens de culturas americanas que tinham como centro o coração,
sendo ele, em quase todas as histórias um ícone do sagrado ou oferecido ao sagrado.
No capítulo “Elegias Para Acalmar o Coração”, é somado às ideias de rezas para
‘abrir’ o coração e permitir o esvaziamento do sofrimento com o preenchimento de
Deus. No capítulo “O Coração em Julgamento” é recapitulado toda a simbologia do
coração no antigo Egito, como este sendo um exemplar da alma do indivíduo.
Ao morrer, o coração era pesado numa balança, onde na contraparte ficava a
pena de Maat. Neste julgamento especial, se o coração fosse mais pesado que a pena, ou
seja, estivesse carregado das impurezas do ego, não era permitido ao falecido integrar-se
a completude. No sub-capítulo “O Lugar Secreto” é destacado o valor simbólico do
coração na tradição hindu, e como o coração está associado nestas culturas como o
‘lugar da consciência”, sendo o self em si, o lugar que o homem emana a si mesmo, um
guia de luz.
Ainda segundo a autora, Anãhata é a representação do chakra¹ cardíaco no
Tantra Yoga, que une os chakras (ver capítulo 3) superiores com os inferiores, o Tantra
Yoga tem como objetivo alinhar e equilibrar as polaridades masculinas e femininas. Tal
equilíbrio acontece no coração, e quando acontece, o praticante da técnica consegue
ouvir o som ‘hum’, do vazio, que emana por todo o tempo e espaço. Essas informações
aparecem no sub-capítulo “O Lugar do Som Universal”. Uma frase que pode
exemplificar o amor como via de integração das polaridades é a de Nietzsche: “Aquilo
que se faz por amor está sempre além do bem e do mal.
Hauck (1999) sincretiza o processo alquímico da conjunção da seguinte forma:
“Psicologicamente, Conjunção é usar a energia sexual dos corpos para transformação
pessoal. Conjunção se ocupa no corpo no nível do coração” (HAUCK, 1999,220).

Notemos a figura 2, é uma foto tirada no dia 06/06/2013 no Elevado Presidente


Costa e Silva, São Paulo, conhecido também como “Minhocão”:
24

Imagem 4

É possível perceber inúmeras analogias com os temas tratados neste trabalho. A


expressão artística urbana expressando a angústia de uma sociedade doente, cindida.
Amor e Ourobóros como resoluções arquetípicas coletivas. Apesar de toda a fertilidade
do tema social em questão, voltemos a descrição das etapas alquímicas.
Podemos perceber, portanto, que apesar de todo o processo alquímico estar
intimamente ligado ao processo de individuação, a etapa de Conjunção é a que
representa o ápice do processo, que é a integração dos aspectos complementares.
A quinta etapa do processo alquímico descrito por Hauck, observado na imagem
é a fermentação. É a introdução de uma nova perspectiva de vida, resultado da etapa
anterior – Conjunção – que é a ascensão para um novo estado de consciência, a
transição para um estado mental elevado. Nesta etapa, existe a transição do
escurecimento para o amarelamento, ou leukosis, resultando no aparecimento da cauda
pavonis (imagem 5), metáfora para imaginação ativa e ‘coloração da vida’. Representa
psicologicamente a transição da psique para um estado mais conectado com o espírito,
ou na nomenclatura junguiana, Si-mesmo (Self).
25

Imagem 5

O penúltimo raio é análogo à etapa de destilação. Neste estágio a metáfora que


se apresenta é o aumento da pureza, associado com a cor branca, ou albedo.
Psicologicamente, representa o esforço para que as impurezas do ego e do id não sejam
incorporadas no último estágio. Representa a eliminação dos sentimentalismos e
emoções, ou ainda melhor, das paixões egoístas e infantis, aspectos que na manifestação
do verdadeiro Self, não são pertinentes, uma vez que se procura um estado pleno de
espiritualidade.

O sétimo e último estágio é chamado de coagulação, ou coagulatio. Representa a


ressurreição do espírito, materializado no corpo.

“A Coagulatio é uma operação que expressa, pelas suas


imagens, o processo de formação do ego e sua ligação com os
aspectos da vida, as forças ctônicas, através da vivência da
carnalidade no seu sentido mais amplo, construindo, pelas
experiências, a terra onde se lastreia o ego em seu caminhar e,
logicamente, configurando, por essas mesmas vivências, a
relação do eixo Ego-Self” (MASAN, 2009, 34)

É a representação da pedra filosofal, ou Grande Pedra, antes anunciada pela


coniunctio. O alquimista adentra o estágio de rubedo, e pode “curar-se de todas as
feridas e enfermidades” (HAUCK, 1999, 140). Esta etapa é utilização da libido dentro
26

de sua forma plena, integrada com a impulsão da consciência para os estados mais
elevados do vir-a-ser.

“Vale ressaltar que o desejo é o agente da coagulatio. Esta


operação é necessária não para aqueles que já se movimentam
adequadamente dentro de sua libido, mas para aqueles outros
com uma inconsistência em seu querer e o temor de colocar os
pés na vida, com dificuldade, inclusive de sorver os cálices que
ela dispõe. O desenvolvimento do ego nestes casos passa pelo
lugar dessa consciência e realização do desejo, a fim de que haja
a movimentação da energia psíquica” (MASAM, 2009, 22).

Hauck define que, ao atingir este estágio, o raio de transformação se volta a


terra, e é iniciado novamente o ciclo previamente proposto, indicando que os estágios e
transformações são processos eternos e constantes, assim como a lapidação do Self, ou
o processo de individuação proposto por Jung, fazendo com que o alquimista volte à
etapa de nigredo, e continue seu processo.

“Tudo o que coagula está sujeito a transformar-se. Dai


decorre que após a coagulatio, os processos e putrefactio e
mortificatio se realizam também, até porque, o fim da
encarnação é o desencarne, visto que está sujeito às injunções do
tempo e do espaço” (MASAN, 2009, 27).

Percebemos que o processo alquímico é cíclico, e, assim como o processo de


individuação, exige um constante processo de atuação do indivíduo para com seus
conteúdos, processo este que Jung define acontecer por toda a vida.
A mesma metáfora pode ser utilizada para definir o Ourobóros, um processo
cíclico e constante, que representa a integração de opostos e a volta para a unidade. No
capítulo seguinte iremos analisar a figura arquetípica do Ourobóros e avaliar suas
correspondências com o processo alquímico e o de individuação mais a fundo.
27

“Vivo minha vida em círculos cada vez maiores que se estendem sobre as coisas.

Talvez não possa acabar o último, mas quero tentar.”

- Reiner Rilke

3. Símbolos e Imagens Arquetípicas

3.1 Símbolo

A palavra símbolo remete ao do grego symbolon, derivado do verbo sym-


ballein, que significa “lançar com, pôr junto com juntar”. A etimologia da palavra
remete que símbolo é, a priori, uma dualidade, que se forma uma. A própria definição
da palavra já remete a integração dos opostos e pode ser associada com a imagem do
Ourobóros.
Para XXX (1998) os conceitos simbólicos foram desenvolvidos em diversas
religiões como reflexo de diferentes concepções do mundo e de novas linguagens.

“No seio da multiplicidade de crenças desenvolvidas pelo


ser humano, a primeira distinção efetuada pelo homem foi entre o
Bem e o Mal. Nas culturas pagãs, este conceito de dualidade
moral poderia ser identificado nos símbolos positivos com o lado
masculino, o Sol ou o céu, e nos símbolos negativos como o
preto, o lado feminino, a Lua, a água ou o inferno. Da mesma
forma, nas religiões, como por exemplo o cristianismo, o poder do
Bem encontra-se simbolizado em Deus e em Cristo, e a força do
Mal em Satanás. No que respeita a mitologia, tal como acontece
no hinduísmo, a luta travada entre as forças superiores e as força
inferiores é representada através do conflito entre a ave solar
Garuda e as serpentes Nagas, hindus e, na tradição ocidental,
entre a águia e o dragão. Na maioria das culturas a verdadeira
perfeição apenas poderá ser alcançada através da conciliação e da
união das forças opostas do universo. Nesta sequência, o símbolo
taoista de Yin-Yang e, na alquimia, a figura do Andrógino
28

representam ambos estes ideais, à semelhança do que acontece na


psicologia.” (CHEVALIER, 2008, 10)

Jung (1964) introduz a noção de símbolo como um conjunto de significados que


transcendem sua própria imagem concreta. Um símbolo remete a algo maior que o
próprio símbolo; um conjunto de ideias orientadas através de um sutil emaranhado de
padrões.
Como possível gênesis de símbolos, Jung compreende que os sonhos revelam
através de suas férteis imagens arquetípicas, grande parte do mistério do símbolo, e que,
ao sonhar, o homem bebe da fonte do desconhecido e inicia sua jornada pelo
conhecimento. Compreendendo os sonhos como manifestados também por conteúdos
inconscientes, logo se percebe que a busca de conhecimento através dos sonhos, nada
mais é do que buscar conhecer a si mesmo. Através de sua consciência, o homem
aprendeu a viver através da parcial previsibilidade das coisas, mas seu inconsciente
demonstra ao menos metade de um grande escopo de possibilidades antes fora do seu
campo de compreensão.
Jung rompe com a escola psicanalítica quando define que o valor do conceito de
“libido não está em sua definição sexual, mas no seu ponto de vista energético” (JUNG,
1989, p. 127-8), ou seja, define como energia psíquica todas as pulsões provenientes da
psique e do inconsciente, estabelecendo que a libido freudiana é só mais um dos canais
de expressão desta energia. O que difere empiricamente na interpretação do fênomeno é
que na teoria freudiana parte-se da causa para o efeito, engessando a percepção
interpretativa num molde teórico, a teoria da sexualidade. Ao partir dos efeitos para
depois compreender as causas, Jung consegue analisar a psique de forma dinâmica, e
superar a teoria sexual. A energia psíquica é a fonte de toda a movimentação humana
em busca de crescimento.

3.2 Ourobóros

Quem nunca ouviu a expressão ‘morder a própria cauda’? É normalmente


utilizada para descrever o momento em que alguém, inconsciente de si, repete ações
sem atingir os objetivos estabelecidos, e por isso, exige um olhar para si, reavaliando
seus métodos de ação.
29

O Ourobóros é a resolução do conflito dialético atingido na busca da


Individuação a unidade da separação, ou solve et coagula (dissolve e solidifica),
representando metaforicamente todo o processo alquímico descrito no capítulo anterior.
É uma imagem alquímica presente em diversas esferas sociais e religiosas, na qual uma
cobra, ou dragão, morde a sua própria cauda num movimento circular. A imagem revela
o paradoxo do infinito, onde tudo se inicia em seu próprio fim, e acaba em seu próprio
começo.

Imagem 6

Segundo Erik Hournung (1999), a primeira aparição conhecida do símbolo


Ourobóros está no Netherworld, um texto funerário egípcio encontrado na tumba de
Tutancâmon, no século 14 AC. Referindo-se a união do deus Ra e Osíris no submundo.
Em uma ilustração deste texto, duas serpentes, mordendo as caudas. Ambas as serpentes
são manifestações da divindade integrada que representa o início e o fim do tempo.
O texto alquímico “Chrysopoeia de Cleópatra”, datado do século está grafado
com o os dizeres ‘hen to pan’, em tradução livre: “o um é o todo” além de uma imagem
de uma cobra, metade branca, metade preta, mordendo a própria cauda. Novamente a
figura circular ofídia como uma dinâmica polarizada, cíclica que se integra tornando-se
Um. O Ourobóros de Chrysopoeia poderia ser interpretado como o equivalente
ocidental do símbolo taoista Yin-Yang.

“El signo del Yin-Yang, según la filosofía oriental,


simboliza un concepto fundamentado en la dualidad de todo lo
existente en el universo. Describe las dos fuerzas fundamentales,
30

aparentemente opuestas y complementarias que se encuentran en


todas las cosas” (BADANO, 2010).

As figuras 7(a) e 7(b) podem ilustrar com exatidão tal sincretismo:

Figura 7(a) Figura 7(b)

Outra alegoria religiosa que podemos associar com a simbologia da serpente e


seus movimentos circulares estão na cultura Hindu, através da serpente Kundalini, que
em sânscrito significa “serpente enrolada”. Nesta cultura yogue, o corpo humano é
divido em sete centros básicos de manifestação de energia, ou Chakras, e Kundalini, a
origem desta manifestação energética, estaria ‘adormecida’ no primeiro centro, abaixo
da coluna vertebral.
Conforme o indivíduo se purifica e pratica as técnicas que envolvem controle da
respiração, postura e meditação, ele ‘desperta’ a ‘serpente’ que sobe pelos centros de
energia, fazendo com que o praticante atinja a iluminação, ou individuação. A figura
8(a) representa este processo enquanto a figura 8(b) ilustra os centros de energia.
31

Imagem 8(a) Imagem 8(b)

Esse mesmo simbolismo pode ser encontrado no Caduceu de Hermes, símbolo


da medicina, visto no capítulo anterior. Curioso a correspondência entre os sete centros
de energia e suas respectivas cores da figura 8(b) com as sete etapas alquímicas e suas
respectivas cores da imagem 2. Na figura 2 também vemos no topo da imagem, as
representação das asas do Caduceu, e em seu centro o que pode ser definido como a
glândula pineal, que corresponde na cultura yogue ao penúltimo centro de energia.

Limitemos nossa análise a simbologia religiosa Alquímica, apesar de todos os


sincretismo encontrados em diversas culturas religiosas acerca da imagem do
Ourobóros.

“O Ourobóros é um símbolo dinâmico para a integração e


assimilação de opostos, i.e., da sombra... Simboliza o Um, que
resulta no conflito do opostos, e portanto constitui o segredo da
prima matéria...” (JUNG, 1976, 365)

Esta é uma imagem arquetípica bastante rica, contextualizado sob o paradigma de


integração, ou conjunção, de aspectos opostos. Fica evidente que a figura representa não
só a união dos opostos complementares da psique como todo o potencial do processo
alquímico.
32

“Os alquimistas, de sua própria maneira sabiam mais sobre a


natureza do processo de individuação que nós modernos, expressavam
este paradoxo através do símbolo do Ourobóros, a cobra que morde a
própria cauda. Do Ourobóros é dito ter o significado do infinito ou
completude. Na antiga imagem do Ourobóros está o pensamento de se
devorar e se transformar em um processo cíclico, pois era claro para os
alquimistas mais astutos que a arte da matéria prima era o próprio
homem. O Ourobóros é um símbolo dramático para a integração e
assimilação dos opostos, ou seja, da sombra. Este processo de "feed-
back" é ao mesmo tempo um símbolo da imortalidade, uma vez que é
dito dos Ourobóros que ele mata a si mesmo e se traz à vida, fertiliza a si
mesmo e dá a luz a si mesmo. Ele simboliza o Um, que procede do
choque de opostos, e, portanto, constitui o segredo da prima matéria que
[...] decorre, sem dúvida, do inconsciente do homem." (JUNG, 1976,
513)

No livro “A tábua de esmeralda: Alquimia para transformação pessoal”, Dennis Hauck


esplícita sobre o símbolo ourobórico e o associa com etapas alquímicas:

"Descrições mais alegóricas abundam na literatura


medieval e representações, entre as quais estão aqueles que
compreende tanto aspectos "esotéricos", quanto "exotéricos" da
Alquimia. Tal símbolo, cujas origens podem ser traçadas de
volta para o Egito Antigo é a dos Ourobóros, a serpente
mordendo a cauda, simbolizando a imortalidade, e os ciclos
eternos de mudança do mundo. Isso também pode ter
significado para refletir a integração e reversibilidade de certas
transformações alquímicas como a "destilação" e
"condensação". (HAUCK, 1999, 156)

Ou ainda nas palavras de Von Franz, no livro Introdução a Alquimia:

“Eu sou o ferro duro e seco e o fermento forte, todo o bom


vem por minha mediação e por mim se gera a luz do segredo dos
segredos, e nada pode afetar minhas ações. O que tem luz se cria
na escuridão da luz. Mas quando alcança sua perfeição,
recupera-se de suas enfermidades e debilidades e então
aparecerá esta grande corrente da cabeça e da cauda. Acredito
que a primeira parte está clara. Refere-se à geração de uma luz
nova, a uma terceira coisa que nasce ou que se gera na
coniunctio. É uma luz nova que nasce na escuridão, e então se
vão todos os sintomas neuróticos e a enfermidade e a debilidade;
aparece a coisa nova, a que agora se chama illud magnum
33

fluxum capitis et caudae*. Aqui é mister recordar ao Ouroboros,


que come a cauda, onde os opostos são um: a cabeça está em um
extremo e a cauda no outro. São um, mas têm um aspecto oposto
e quando a cabeça e a cauda, os opostos, encontram-se, nasce
uma corrente, que é ao que os alquimistas se referem ao falar de
água mística ou divina, o que eu descrevi como o fluir
significativo da vida. Com ajuda do instinto de verdade, a vida
prossegue como uma corrente significativa, como uma
manifestação do Si mesmo. Tal é o resultado da coniunctio neste
caso. Em muitos outros o descreve como a pedra filosofal, mas,
como dizem também muitos textos, a água da vida e a pedra são
uma mesma coisa” (VON FRANZ, 1985, 134).

*O grande fluxo de cabeças e caudas.

A partir deste levantamento bibliográfico e imagético da simbologia mandálica e


da serpente, fica claro as correspondências arquetípicas encontradas entre o processo de
individuação e a figura do Ourobóros. Porém, tais associações serão melhor elaboradas
no capítulo seguinte, assim como os paralelos destes dos temas (individuação e
Ourobóros) com os processos alquímicos e hermetistas.
34

“Running forward/ Falling back/ Spinning round and round/


Looking outward/ Reaching in/ Scream without a sound/ Leaning
over/ Crawling up/ Stumbling all around/ Losing my place/ Only
to find I've come full circle”

- Dream Theater

5. ANÁLISE

5.1 Amplificação

Como descrito anteriormente, o método de amplificação consiste em três etapas


principais: o contato com o símbolo e as observações experienciais, amplificação
coletiva e a associação com outras imagens arquetípicas, e o retorno do símbolo e seu
valor individual associado com o valor coletivo e arquetípico.

“Portanto, a amplificação é executada em três fases


distintas: a primeira seria o contato com o símbolo e as
observações experienciais do analisado; a segunda é a etapa de
amplificação coletiva, onde se pega um símbolo específico e o
associa com outras imagens arquetípicas, e por isso pode ser
denominada de objetividade da imagem; a terceira e última é o
retorno ao subjetivo com o auxilio das analogias universais, em
outras palavras, o símbolo – primordialmente individual –
manifestado passa por uma variedade de possibilidades
significativas através da associação com a coletividade, após
essa etapa, ele necessita do indivíduo – que utiliza como
parâmetro o reconhecimento afetivo dentro dos aspectos
coletivos – para dar sentido ao símbolo” (CHAISE E VIANA
apud JUNG, 2011, 12).

5.2 Contato com o Símbolo

É de valor significativo então explicitar que individualmente, passei a me interessar pela


imagem arquetípica do Ourobóros quando situações da minha vida exigiam mudanças de atitude
e paradigma. Eu simplesmente enxergava a imagem em tudo que via formas circulares, letras de
músicas, poemas, poesias, ou seja, realizei espontaneamente associações que fizeram com que a
imagem simplesmente conversasse comigo, chamando minha atenção para algo que, a priori,
era nebuloso para o meu eu consciente.
35

Comecei a procurar em todos os lugares literaturas que pudessem me ajudar a entender


o significado desta imagem, e como ela aparecera para mim. Ao meditar sobre a mesma, fui
tomado por sentimentos de mudanças e transformações, que eu, intuitivamente, sabia que
precisava reavaliar a forma que manifestava minha existência para atingir um crescimento que
defino como espiritual, ou seja, me alinhar com a manifestação real que emanava animicamente
do meu ser.
Sentia que me encontrava vazio, desorientado e sem forças para tomar qualquer atitude
de mudança quanto a minha própria situação. Com o passar do tempo, e incorporando literaturas
que variavam de esferas como psicologia, filosofia, mitologia e outras de cunho espiritual,
percebi uma pequena faísca de transformação começar a se manifestar em meu âmago.
Consegui com o tempo elaborar uma série de questões e embarcar numa aventura mitólogica e
pessoal que me permitiu acessar aspectos, não só desconhecidos de minha pessoa, como
também fantásticos, que me deram forças necessárias para realizar transformações pessoais, que
acabaram por afetar toda minha dinâmica social e individual.

5.3 Amplificação Coletiva e Analogias Universais

Cirlot (1974) consegue em seu Diccionario de los símbolos sintetizar a maioria das
analogias levantadas no trabalho:

“Este símbolo, que aparece principalmente entre os gnóstcos, é


um dragão ou serpente que morde a própria cauda. Em sentido mais
geral, simboliza o tempo e a continuidade da vida. Em suas
representação tem por complemento que diz: Hen to pan (o Um, o
Todo (imagem 3). Assim aparece no Codex Marcianus do século II
d.C. Foi interpretado como a união do princípio ctônico da serpente e
o princípio celeste do passáro (síntese que se pode aplicar ao dragão).
Segundo Ruland, isto o define como variante simbólica de Mercúrio, o
deus duplex. Em algumas representação a metade do corpo do animal
é clara e a outra escura, aludindo à contraposição sucessiva de
princípios, como o símbolo chinês Yang-Yin (figura 7[b]). Segundo
Evola, é a dissolução dos corpos: a serpente universal que, segundo os
gnósticos “caminha através de todas as coisas”. O veneno, víbora,
dissolvente universal, são símbolos do indiferenciado, do “princípio
invariável” ou comum, que passa entre as coisas e as liga. O dragão,
como o touro, luta contra o herói solar. Segundo E. Neuman, em seus
estudos sobre o simbolismo matriarcal, o símbolo primordial da
criação do mundo é a serpente que morde a sua própria cauda, ato que
significa autofecundação. No manuscrito veneziano de alquimia
vemos a serpente do Ourobóros com uma metade negra (símbolo da
terra) e a outra metade branca e salpicada de pontos que representam
estrelas (céu) [figura 7[a]), o que ratifica esse caráter de coniunctio e
hierogamia. Assinala o doutor Sarró, em seu artigo “El mito de la
serpiente Ouroboros y el simbolismo letamendiano del organismo”,
que este mito se refere a ideia de uma natureza capaz de renovar-se a
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sí mesma cíclica e constantemente, de acordo no Nietzsche em O


eterno retorno” (CIRLOT, DATA, 1974).

Outras analogias possíveis a imagem arquetípica do Ourobóros é sua semelhança com a


simbologia e cultura Hindu, melhor explorada no capítulo X.
Pode ser associado também ao arcano X do tarot, correspondente à roda da fortuna, carta
definida pelo tarólogo Constantino Riemma como “os ciclos sucessivos na natureza e na vida
humana. As fases da manifestação, o movimento de ascensão e de declínio. A mobilidade das
coisas.”
Segundo o psiquiatra Paulo Urban, entre os astecas e outras cultural da América Central e
andina, Quetzacoatl, a serpente emplumada (uma combinação de Quetzal, pássaro e serpente), é
divindade solar e surge como elo entre os deuses e os homens, podendo ainda estar associada à
chuva, ao vento, aos raios e trovões, bem como ao sopro da vida, ou ainda ao tempo incriado.
Na mitologia africana, o Orixá (divindade) Oxumaré é caracterizado segundo Reginaldo
Prandi em “Mitologia dos Orixás” como “símbolo da continuidade e da permanência, algumas
vezes, é representado por uma serpente que morde a própria cauda”, podendo representar
aspectos tanto masculino quanto femininos, além de representar “a mobilidade, a atividade, uma
de suas funções é a de dirigir as forças que dirigem o movimento”.
Estas foram às analogias universais levantadas ao longo deste trabalho, é possível
concluir que a imagem do Ourobóros é extremamente rica e presente em diversas culturas e
momentos históricos, podendo ser caracterizada como arquetípica, portanto, universal.
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“Nosce te ipsum”
- Oráculo de Delfos

6. Conclusão

O presente trabalho teve como objetivo traçar os paralelos entre a opus alquímica e o
processo de individuação, investigando o significado da imagem alquímica e arquetípica, suma
do processo de individuação, o Ourobóros. Através do método de amplificação e de
levantamentos bibliográficos, foram analisadas obras filosóficas e acadêmicas que explicitavam
a simbologia desta imagem arquetípica, suas correspondências dentro da simbologia alquímica e
as respectivas analogias com o processo de individuação descrito por C. G. Jung.
A amplificação promove associações diretas da consciência frente a uma imagem,
conteúdo ou símbolo explorado, cujo nome é circumbulação, ou seja, um movimento circular
em torno de um ponto, o próprio método é o uma manifestação ourobórica. “a amplificação
consiste simplesmente em estabelecer paralelos” (JUNG, 1935, 172).
Estende-se ao ponto de considerar aspectos coletivos através de experiências
individuais, recorrendo a fontes de cunho cultural, histórico, mitos e filosóficos, afim de
“ampliar o conteúdo metafórico do simbolismo” (JUNG, 1935, 173).
O símbolo estaria carregado com os significados arquetípicos de uma forma
apresentável para o ego, e seria então o terceiro fator da relação psique-corpo, um intermediador
que facilitaria o equilíbrio e manifestação da individualidade, possibilitando uma vida menos
sintomática. Uma vez que a psique tem dificuldade de perceber e atuar com diferentes
polaridades, a doença de manifesta como uma forma de chamar a atenção para a unilateralidade
da psique, e convidá-la a integrar outros aspectos.
Seria, portanto, a ferramenta principal da psique para se manifestar e se transformar, e
que, as religiões são carregadas destes símbolos que ajudam o homem a se religar com o divino,
ou com seu próprio self, uma forma de vir-a-ser mais natural e fluída. Toda manifestação de
doenças exigiria uma compreensão e investigação simbólica, que facilitaria a dissolução da
mesma.
Em síntese, considerando o paradigma social de unilateralidade, manifestado entre
outras esferas, na psique, produz adoecimentos nos indivíduos, em níveis mentais e físicos.
A integração desses aspectos psicológicos inicialmente opostos, seria, portanto a chave
da chamada individuação. Através destes, seria possível atingir um estado psicológico centrado,
no qual o maniqueísmo neurótico não mais afetaria negativamente
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A individuação, portanto, diz respeito ao processo cíclico de integração dos opostos


psíquicos para transcender e atingir um contato mais significativo com suas essências e se
aproximar do arquétipo divino, o Si-mesmo (Self), e está intimamente ligada com os processos
e etapas alquímicas.
Realizar a síntese destes opostos no Si-mesmo é a meta do processo de individuação.
Isso ocorre com a discriminação e a consequente integração de conteúdos inicialmente
inconscientes e que fazem parte de um processo de transição da consciência comum (vigília)
para um estado psíquico mais amplo, na busca do homem consciente, o homem total.

“De acordo com Jung, o ser humano possuí


uma forte necessidade de auto conhecimento e de
obtenção de um equilíbrio psicológico e pessoal, e este
propósito universal reflete-se nos arquétipos e pode ser
identificado ao longo da história, em todas as religiões e
orientações religiosas.” (CHEVALIER, 1998, 11)

Evidentemente, esta é uma experiência incomum e vivida por poucas pessoas


geralmente não antes da segunda metade da vida. A Individuação é um processo que ocorre
durante toda a vida, mas, às vezes, há uma intensificação antes da maturidade da idade adulta e,
quando isso acontece, há uma mudança na forma da pessoa encarar sua vida, fazendo-a
manifestar, às vezes, alguns “comportamentos místicos”, num sentimento de comunhão e
harmonia com a vida.
É de suma importância que as pessoas consigam refletir e entrar em contato com tais
aspectos de suas personalidades, uma vez que, compreendendo-as, é possível integrá-las, tendo
como consequência uma existência mais saudável e prazerosa, transcendendo a patologia e
permitindo que suas verdadeiras essências venham à tona e se transformem.
A integração desses aspectos psicológicos inicialmente opostos seria, portanto a chave
da chamada individuação. Através destes, seria possível atingir um estado psicológico centrado,
no qual o maniqueísmo neurótico não mais afetaria negativamente a vida dos indivíduos.
O processo de individuação tem como finalidade paradoxal aproximar o homem da
idéia de divino através da aproximação do homem com sua própria natureza. A individuação,
portanto, diz respeito ao processo cíclico de integração dos opostos psíquicos para transcender e
atingir um contato mais significativo com suas essências e se aproximar do arquétipo divino, o
Si-mesmo (Self), e está intimamente ligada com os processos e etapas alquímicas.
A alquimia, como um antigo método para a obtenção desse re-ligare com o Self, permite
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o amadurecimento da psique através de metáforas, possibilitando a integração de opostos


psíquicos complementares. Masan apresenta o Amor como uma das chaves para a integração
psicológica dos opostos.
Percebemos que o processo alquímico é cíclico, e, assim como o processo de
individuação, exige um constante processo de atuação do indivíduo para com seus conteúdos,
processo este que Jung define acontecer por toda a vida.
A mesma metáfora pode ser utilizada para definir o Ourobóros, um processo cíclico e
constante, que representa a integração de opostos e a volta para a unidade.
O Ourobóros é a resolução do conflito dialético atingido na busca da Individuação a
unidade da separação, ou solve et coagula (dissolve e solidifica), representando
metaforicamente todo o processo da opus alquímica. É uma imagem alquímica presente em
diversas esferas sociais e religiosas. A imagem revela o paradoxo do infinito, onde tudo se inicia
em seu próprio fim, e acaba em seu próprio começo.
A partir deste levantamento bibliográfico e imagético da simbologia mandálica e da
serpente, fica claro as correspondências arquetípicas encontradas entre o processo de
individuação, a figura do Ourobóros e os processos alquímicos.
Sendo assim, o principal resultado deste trabalho aponta que a figura do Ourobóros é
uma ideia arquetípica que se refere a capacidade humana de se renovar e se superar,
solucionando os conflitos egóicos, e ampliando a consciência humana no sentido da
individuação, promovendo saúde mental. O segundo resultado é o aceite dos resultados da
pesquisa no IARP(Associação Internacional de Psicologia e Religião), e será apresentado em
agosto/2013 em Lausanne, Suíça.
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7. Referências Bibliográficas

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