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Étienne de La Boétie e sua Servidão

Voluntária: em busca das explicações


freudianas141
Rodrigo Régnier Chemim Guimarães142

Resumo: Este texto procura fazer uma análise da vida e da obra de Étienne de La
Boétie, autor do século XVI que, com apenas dezesseis anos de idade, escreveu o
famoso Discurso Sobre a Servidão Voluntária, identificando suas principais
contribuições para a compreensão da forma como o poder se estrutura e, mais do que
isso, como ele se mantém inabalado mesmo diante da aparente insatisfação do povo que
lhe é servil. Para tanto procede a uma abordagem freudiana do quanto se conhece da
história pessoal do autor (em particular das incoerências evidenciadas entre seu texto e
sua vida pessoal), e também das questões essenciais do seu texto. Apresenta, ainda, a
explicação psicanalítica de Sigmund Freud a respeito de como o ser humano opera
nesse quadro todo, identificando as dificuldades que a natureza humana apresenta, e
como, de alguma forma, as soluções de desobediência civil propostas por La Boétie,
que até servem para produzir resultados concretos, não são capazes de conduzir à
pretensa liberdade absoluta, não sendo possível abandonar-se o modelo de civilização
(ainda que nela se produza o mal-estar apontado por Freud).
Palavras-chave: La Boétie – Poder – Servidão voluntária – Freud – civilização –
desobediência civil – natureza humana.

“... não há necessidade alguma de separar o monarca da plebe: toda


autoridade é igualmente má. Há três espécies de déspota. Há o que
tiraniza o corpo. Há o que tiraniza a alma. Há o que tiraniza o corpo e
a alma. O primeiro chama-se Príncipe. O segundo chama-se Papa. O
terceiro chama-se Povo.”143
1. Introdução.

141
Artigo elaborado como requisito parcial para a disciplina de Crítica do Direito Processual Penal,
cursada no Programa de Pós-graduação em Direito, Doutorado, da Universidade Federal do Paraná -
UFPR, ministrada pelo Professor Jacinto Nelson de Miranda Coutinho. Trabalho apresentado no VI
Encontro 13 Luas, ocorrido entre os dias 09 e 11 de março de 2012, na Pousada Treze Luas, Ilha do Mel,
Paraná, patrocinado pelo Núcleo de Direito e Psicanálise e pelo Programa de Pós-Graduação em Direito
da UFPR.
142
Doutorando em Direito de Estado na UFPR, Mestre em Direito pela UFPR, Promotor de Justiça do
Ministério Público do Paraná, Professor de Direito Processual Penal do UNICURITIBA, da FAE,
FEMPAR, EMAP e ESMAFE/Pr.
143
WILDE, Oscar. A Alma do Homem sob o Socialismo. Tradução de Heitor Ferreira da Costa. Porto
Alegre: L&PM, 2003, p. 70.

88
No curso de sua adolescência, em meados do século XVI, Étienne de La Boétie
(ou “Estienne de laBoitie”144) escreveu um pequeno texto intitulado Discurso Sobre a
Servidão Voluntária onde questionou o porquê da população servir ao tirano mesmo ele
sendo uma pessoa que, vista sozinha, não aparenta força ou comando e jamais seria um
modelo a ser seguido. No mesmo texto La Boétie apresentou uma resposta genial para
seu questionamento, identificando a chave que permite compreender porque esse tirano
se mantém no poder ao longo dos tempos: existe uma estrutura piramidal de
apadrinhamento que é construída ao seu redor e escalonada para baixo em diversos
seguimentos intercalados. E indicou que essa estrutura é mantida pela ganância natural
do ser humano. La Boétie, então, pregou a desobediência civil como alternativa para o
povo alcançar a liberdade plena, não obstante ele mesmo, ao longo de sua vida, tenha
agido de forma incoerente em relação ao seu Discurso. É esse autor e sua principal obra,
que se pretende agora analisar sob a ótica de Freud.
Já de início cumpre anotar que a atualidade do texto de La Boétie é marcante e
torna possível compreender – até mesmo nos atuais modelos de estado de direito
republicanos e democráticos – porque muitos daqueles que chegam ao poder, não raras
vezes, acabam criando redes de proteção e de apadrinhamento escalonadas ao seu redor.
O desejo desses modernos tiranos da democracia, à custa da ignorância, da ganância e
da consequente servidão do povo, é perpetuar-se no poder e, se possível, transmiti-lo
aos herdeiros, como percebia com clareza peculiar e atemporal – mesmo noutra
realidade histórica – o próprio Étienne de La Boétie145. Assim, da constatação empírica
de diversas práticas frequentes nesse sentido, e com os auxílios de La Boétie e de Freud,
é possível afirmar que são justamente as redes piramidais de apadrinhamento que
mantém inabaláveis as estruturas corrompidas do poder e que permitem aos seus
ocupantes continuar mantendo o status e o poder por longos períodos, gozando do
dinheiro e das benesses que os cercam, sem serem efetivamente inviabilizados em
relação ao poder, mesmo diante de possíveis descobertas de suas ações corrompidas.

144
A grafia de seu nome oscila nos livros e documentos, tanto de sua época, quanto dos dias de hoje. Seu
amigo, Michel de Montaigne, utilizava a grafia de Estienne de laBoitie, mas as publicações atuais tem
preferido a grafia Étienne de La Boétie, a qual, por ser hoje a mais usual, aqui será adotada.
145
LA BOÉTIE, Étienne de. Discurso Sobre a Servidão Voluntária. Tradução para o português de J.
Cretella Jr. e Agnes Cretella, 2ª ed., São Paulo: RT, 2009, pp. 41-42: “Aquele a quem o povo deu o estado
deveria ser, ao que me parece, mais suportável e creio que o seria, não sendo elevado acima dos outros,
adulado por não sei o que se chama de grandeza, decide não se abalar; comumente transmite aos filhos
o poder que o povo lhe deu e desde que adotaram essa opinião, é estranho como excedem, em todo tipo
de vícios e mesmo na crueldade, aos outros tiranos, não vendo outros meios de assegurar a nova tirania
senão estendendo a servidão e afastando tanto os súditos da liberdade que, embora a memória disso
esteja fresca, podem fazê-la perder-se.”

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Este quadro de atualidade do texto de La Boétie reforça a necessidade de se bem
compreender como o modus operandi do tirano e do povo que lhe é servil operavam no
século XVI e como a percepção de La Boétie a esse respeito continua servindo para
explicar o modelo de democracia tirânica do presente. E, considerando que em boa
parte a questão também se insere na análise da natureza do ser humano e no modo como
ele compreende a civilização, resta imprescindível que se procure em Sigmund Freud as
respostas que explicam tanto as questões levantadas no texto de La Boétie, quanto em
sua vida um tanto incoerente.
Com estes objetivos e levando em conta o alerta de Pietro Costa146, de que, ao
se analisar o passado, exige-se que ele seja inserido – com o perdão da redundância –
em “algum momento do passado”, ou seja, num momento diverso do tempo presente,
para compreender a exata dimensão do quanto representou o capolavoro de Étienne de
La Boétie no tempo em que foi escrito e o quanto – mesmo depois de Freud – seu
Discurso Sobre a Servidão Voluntária ainda tenha utilidade no presente, é preciso
analisar, ainda que de forma sucinta, quais disputas discursivas precederam a formação
intelectual de La Boétie e em qual contexto histórico ele elaborou o seu Discurso,
avançando, inclusive, para verificar se as sugestões nele inseridas foram observadas na
prática por seu autor.
Num segundo momento, ainda que o texto “não encerre um e somente um
significado”147, dentre as mais variadas possibilidades coexistentes é imprescindível
procurar extrair-lhe a essência e atribuir-lhe aqui um ou mais sentidos centrais, os quais
possam ao menos servir para compreender, também hoje e com o auxílio de Freud,
como o poder se estrutura e se mantém.
Para tanto se exige conhecer e contextualizar quem foi e como viveu Étienne de
La Boétie, procurando, com essa análise, também verificar como se estruturou sua
consciência e se ele, ao longo de sua vida, conseguiu ser coerente com sua teoria,
fazendo os contrapontos discursivos com Freud.
2. Vida curta, obra eterna.
Étienne de La Boétie nasceu na localidade de Sarlat, na região de Périgord,
sudoeste da França, em 01 de novembro de 1530148, em família culta, abastada e

146
COSTA, Pietro. O Conhecimento do Passado: dilemas e instrumentos da historiografia. Tradução
de Ricardo Marcelo Fonseca. Curitiba: Juruá, 2007, p. 10.
147
COSTA, Pietro.Ob. Cit., p. 11.
148
MONTAIGNE, Michel. EssaisI.Paris: Gallimard, 2009, p. 646.

90
vinculada à Corte. Seu pai, Antoine de La Boétie, era formado em Direito149 e tenente
assistente do senescal (sénéchal150) de Perigord151. Morreu prematuramente quando La
Boétie tinha apenas dez anos de idade152. Étienne de La Boétie, então, foi educado pelo
tio de mesmo nome, Estienne de La Boétie, um “eclesiásitico apaixonado pelo
direito153”, a quem o próprio La Boétie reconheceu, em seu testamento, como o
responsável pela sua criação, dizendo que “deve a ele sua instituição e tudo que ele é ou
poderia ter sido”154. Seu outro tio, irmão de sua mãe, Jean de Lherm, era o então
Presidente do Parlamento de Bordeaux155. Nasceu, portanto, numa família de pessoas
ligadas ao direito e ao poder monárquico, circunstância que o impulsionou a também
cursar direito na Université d’Orléans formando-se no dia 23 de setembro de 1553 (com
22 anos de idade)156. Neste mesmo ano foi nomeado pelo Rei Henrique II, como
Conselheiro no Parlamento de Bordeaux157, ocasião em que conheceu seu melhor
amigo: Michel de Montaigne, responsável pela publicação e preservação da memória
dos seus textos, que lhe foram confiados em herança, ainda sob a forma de
manuscritos158.
La Boétie traduziu obras gregas antigas de Xenofonte e Plutarco, produziu
dezenas de sonetos e alguns poucos textos ao longo de sua rápida existência. Seu
trabalho mais conhecido e que aqui passa a ser analisado, foi um artigo enxuto e de
protesto contra a subserviência de toda a população ao poder de uma única pessoa (o
monarca/tirano), conhecido como Discurso Sobre a Servidão Voluntária. Michel de

149
BONNEFON.Paul. La Boétie. Ouevrescompletes. Bourdeauxet Paris: G. Gounouilhou; J. Rouam&
Cie., 1892, p. I, obra digitalizada, disponível em www.fr.wikisource.org, acesso em: 13 de fevereiro de
2012., pp. 390-391.
150
Uma espécie de oficial do Rei com poder jurisdicional e competência concorrente com a justiça
senhorial. Nesse sentido vide: CARBASSE, Jean-Marie. Histoiredudroit penal et de la justice criminelle.
2ª ed., Paris: PressesUniversitaries de France, 2000, pp. 147 e ss.; e também VELIOT, Raphaël.L’histoire
du juge en France: la quêted’uneindépendance. In: Histoire du droitet de la justice en France.
FRANÇOIS, Eve (org.). Issy-les-Moulineaux, France: Aubinimprimeur, 2007, p. 44).
151
FABRE, Simone Goyard. Introdução. In: LA BOÉTIE, Étienne de. Discurso Sobre a Servidão
Voluntária. Tradução para o português de J. Cretella Jr. e Agnes Cretella, 2ª ed., São Paulo: RT, 2009, p.
09.
152
BONNEFON. Paul. Ob. Cit.. LINARTH, Casemiro. Um Grito de Liberdade. In: Discurso da Servidão
Voluntária. Tradução de Casemiro Linarth, São Paulo: Martin Claret, 2009, p. 15.
153
LINARTH, Casemiro. Ob. Cit., p. 15.
154
BONNEFON. Paul. Ob. Cit., p. I. Tradução livre. No original, em francês: “ildoitsoninstituition et tout
cequ’il est et pouvaitêtre”
155
LINARTH, Casemiro. Ob. Cit., p. 15.
156
BONNEFON. Paul. Ob. Cit., p. XV. FABRE, Simone Goyard. Introdução. In: LA BOÉTIE, Étienne
de. Ob Cit., p. 10 e NAYA, Emmanuel, REGUIG, Delphine e TARRÊTE, Alexandre. Notes. In:
MONTAIGNE, Michel. Ob. Cit., p. 645.
157
BONNEFON. Paul. Ob. Cit., p. XVIII. FABRE, Simone Goyard. Introdução. In: LA BOÉTIE, Étienne
de. Ob Cit., p. 10.
158
MONTAIGNE, Michel. Ob. Cit., p. 367. FABRE, Simone Goyard. Introdução. In: LA BOÉTIE,
Étienne de. Ob Cit., p. 22.

91
Montaigne ao comentar a respeito de La Boétie, em seus Ensaios, esclareceu que o
nome dado ao referido artigo, ainda sob a forma de manuscrito, por La Boétie, foi La
servitudevolontaire (A Servidão Voluntária), porém, outras pessoas que tiveram prévio
acesso ao manuscrito e ignoravam esse nome, acabaram apelidando o texto de Le
Contreun (O Contra Um)159. Não há um registro histórico preciso da data em que
Étienne de La Boétie escreveu o Discurso Sobre a Servidão Voluntária, mas o mesmo
Michel de Montaigne também anotou em seus Ensaios que La Boétie o teria produzido
“em sua primeira juventude, em homenagem à liberdade contra os tiranos”160 sendo
que, mais adiante, referiu que ele teria apenas 16 anos na ocasião161, ou seja, teria
produzido o manuscrito no ano de 1546162.

159
MONTAIGNE, Michel. Ob. Cit., pp. 366 e 367.
160
MONTAIGNE, Michel. Ob. Cit., p. 367. Tradução livre. No original, em francês: “ensa première
jeunesse, à l’honneur de la liberte contrelestyrans”.
161
MONTAIGNE, Michel. Ob. Cit., p. 381.
162
No mesmo sentido, vide FABRE, Simone Goyard. Introdução. In: LA BOÉTIE, Étienne de. Ob Cit., p.
23, a qual pondera que La Boétieteria na ocasião entre 16 a 18 anos de idade. Essa dúvida decorre
essencialmente do fato de que Michel de Montaigne, em suas primeiras edições dos Ensaios, referiu que
La Boétie teria 18 anos ao escrever o Discurso e, nas edições posteriores, o mesmo Michel de Montaigne,
alterou esse dado para referir que ele teria apenas 16 anos de idade (nesse sentido: NAYA, Emmanuel,
REGUIG, Delphine e TARRÊTE, Alexandre. Notes. In: MONTAIGNE, Michel. Ob. Cit., p. 646). Há
também quem questione se de fato La Boétie teria escrito o texto assim tão jovem, a exemplo do que faz
CHAUÍ, Marilena. Amizade, Recusa do Servir. In: BOÉTIE, Etienne de la. Discurso da Servidão
Voluntária. Tradução de Laymert Garcia dos Santos, São Paulo: Brasiliense, 1999, pp. 173-239.
Marilena Chauí considera que o texto teria sido escrito muito tempo depois, levando em conta um dado
histórico que para ela seria irrefutável: La Boétie mencionaria “as obras da Plêiade”, isto é, do Grupo da
Plêiade, como eram conhecidos os poetas do século XVI na França, notadamente Pierre de Ronsard
(1524-1585), Lázaro de Baïf(1496-1547) e Joachim Du Bellay (1522-1560). No entanto, bem analisada a
versão do texto mais difundido da obra de La Boétie, o que se percebe é que não se trata da versão
original do texto por ele escrito e que essa versão foi alterada por Montaigne, após a morte de La Boétie.
Aliás, é possível constatar que Montaigne acrescentou, ao texto do amigo, novos elementos de retórica,
melhorando-lhe a robustez e a erudição, sendo possível afirmar isso por dois fatores que passa a expor. O
primeiro porque existe uma versão do texto atribuído à La Boétie, na essência com o mesmo conteúdo,
porém muito mais enxuto e sem fazer qualquer menção aos poetas do “Grupo da Plêiade”, que é
justamente a primeira versão publicada pelos huguenotes, inserida no contexto de um suposto diálogo
entre um Político e um Historiador franceses, publicada em 1574 (COSMOPOLITE, EusebePhiladelphe.
Dialogue SecondduReveille-Matindesfrancois et de leursvoisins. Composé par
EusebePhiladelpheCosmopolite, & mis de nouveau enlumiere. Edimbourg: De l’imprimerie de Jaques
James, avecpermission, 1574, obra digitalizada, disponível em www.books.google.com, acesso em: 08 de
março de 2012. Versão integral traduzida para o português encontrada em LA BOÉTIE, Étienne de.
Discurso Sobre a Servidão Voluntária. Tradução para o português de J. Cretella Jr. e Agnes Cretella, 2ª
ed., São Paulo: RT, 2009, pp. 93-100). Em segundo lugar, porque o texto que é mais conhecido e que foi
usado por Marilena Chauí, contém, agora sim, um dado irrefutável que revela interferência post mortem
de Montaigne, justamente na parte em que são referidos os poetas do Grupo da Plêiade, que é a alusão
expressa à obra Franciade, de Ronsard, a qual somente foi publicada no ano de 1572, ou seja, nove anos
depois do falecimento de La Boétie (quanto à data de publicação da Franciade, dentre outros:
CRETELLA Jr., J. Notas. In: LA BOÉTIE, Étienne de. Ob. Cit., p. 87). Assim, insiste-se em considerar
que La Boétie escreveu mesmo seu texto original em sua adolescência, aos dezesseis anos como definiu
seu amigo Montaigne e, depois de sua morte, para dar um ar de maior erudição no texto, o próprio
Montaigne inseriu novas referências e ampliou-lhe a retórica. Não bastasse, na página 175 do artigo de
Marilena Chauí (Ob. Cit), ela transcreve um trecho da obra de Montaigne, cuja tradução do francês para o
português (feita por outro), ousa-se dizer, ou está errada ou foi baseada numa versão não oficial do texto
de Michel de Montaigne, já que não corresponde ao original em francês. Essa tradução equivocada

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A primeira edição foi publicada post mortem, em 1580 e o texto foi logo
recepcionado como um “libelo huguenote”163 contra os reis católicos franceses, em
decorrência do famoso massacre de que foram vítimas algo em torno de dez mil 164
protestantes (huguenotes165) na trágica “noite de São Bartolomeu” (23 e 24 de agosto de
1572). Desde então, vem recebendo diversas outras edições e ganhando fama por ser
considerado o primeiro escrito crítico que identifica a razão pela qual as pessoas se
submetem a servir ao tirano ao invés de buscar viver livremente.
La Boétie teve uma vida relativamente curta, falecendo aos 32 anos de idade, em
18 de agosto de 1563166, decorrência de doença contraída167. Não obstante não tenha

acabou conduzindo a intérprete a uma compreensão igualmente errada do que teria escrito Montaigne a
respeito da obra de La Boétie. Assim, Marilena Chauí laborou em cima de uma tradução não adequada do
francês para o português de um trecho da obra de Michel de Montaigne, a qual lhe induziu a acreditar que
Montaigne teria considerado que La Boétie “pensava o que escrevia” e que ele – Montaigne –
considerava um “divertimento” o trabalho de La Boétie. Não é nada disso o sentido que se extrai da
leitura do texto original em francês. O tradutor confundiu “pensar” com “não acreditar” e confundiu
“jogo” com “divertimento”, dando à frase um sentido que ela não possui. O trecho que interessa para a
compreensão do quanto Montaigne referiu, um pouco mais amplo do que aquele transcrito por Marilena
Chauí, no original em francês, diz o seguinte:“Et a fin que lamémoire de l’auteur
n’ensoitintéresséeenl’endroit de ceux, qui n’ontpuconnaître de prèssesopinions et sesactions. J eles avise
que cesujetfuttraité par luiensonenfance, par manière d’exercitationseulement, commesujetvulgaire et
tracasséenmilleendroitsdes livres. Je ne faisnuldoutequ’il ne crûtcequ’ilecrivait,
carilétaitassezconsciencieux, pour ne mentir pasmêmeen se jouant: Et sais davantage que s’ileût eu à
choisir, ileûtmieuxaiméêtre né a Venisequ’aSarlac: et avecraison: Mais ilavait une autre máxime
souverainementempreinteensonâme, d’obéir et de se soumettre três religieusementauxlois,
souslesquellesilétait né.” E a tradução, livre, que ora se faz e, com o devido respeito, se considera mais
correta, é a seguinte: “E considerando que a memória do autor possa não ser do interesse daqueles que
não puderam conhecer de perto suas opiniões e suas ações, eu os aviso que este tópico foi tratado por ele
em sua infância, a título de exercício somente, como assunto vulgar e explorado em meio a milhares de
livros. Eu não tenho a menor dúvida que ele não acreditava naquilo que escrevia, porque ele era
suficientemente consciencioso, para não mentir até mesmo quando jogava. E saibam mais, que se tivesse
escolha, ele teria preferido ter nascido em Veneza, ao invés de Sarlac162: e com razão. Mas ele tinha
outra máxima soberanamente impressa em sua alma: de obedecer e de submeter-se muito religiosamente
às leis, sob as quais havia nascido”.(MONTAIGNE, Michel de. Ob. Cit., p. 382).
163
NAYA, Emmanuel, REGUIG, Delphine e TARRÊTE, Alexandre. Notes. In: MONTAIGNE, Michel.
Ob. Cit., p. 646.
164
O número de protestantes mortos não é um consenso, assim, opta-se pela “média”. Alguns chegam a
falar em trinta mil mortos (ex: FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe e WILSON, Derek. Reforma: o
cristianismo e o mundo 1500-2000. Tradução de Celina Cavalcante Falck, Rio de Janeiro: Record, p.
317). Outros indicam o número de vinte mil mortos (ex: HILL, Jonathan. História do Cristianismo.
Tradução de Rachel Kopit Cunha, Juliana A. Saad, Marcos Capano, São Paulo: Edições Rosari, 2008, p.
272) Outros, ainda,referem números entre três e dez mil mortos (ex: DUFFY, Eamon. Santos e
Pecadores. História dos Papas. Tradução de Luiz Antônio Araújo. São Paulo: Cosac &Naify Edições,
1998, p. 177; DREHER, Martin N. A Crise e a Renovação da Igreja no Período da Reforma, 4ª ed.,
São Leopoldo: Sinodal, 1996, p. 115). A maioria não arrisca um palpite preciso referindo apenas a
“milhares de mortos” (ex: HART-DAVIS, Adam. History. London: DorlingKindersly, 2007, p. 259).
165
A palavra “huguenote” vem do alemão Eidgnossen, e significa “confederados”. Na época, os
huguenotes representavam “um partido político, unido pela fé” sob o discurso calvinista (cf. SUFFERT,
Georges. Tu és Pedro. Tradução para o português de Adalgisa Campos da Silva. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2001, p. 269).
166
FABRE, Simone Goyard. Introdução. In: LA BOÉTIE, Étienne de. Discurso Sobre a Servidão
Voluntária. Ob. Cit., p. 22. Nesta introdução ao texto de La Boétie, Simone GoyardFabre considera que
o autor morreu com 33 anos de idade, mas não informa precisamente sua data de nascimento, que vem

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tido o mesmo destaque histórico de seu amigo Montaigne e de outros autores de seu
tempo, deixou um importante legado numa obra de referência na compreensão de como
funciona e como se mantém o poder, a qual é fruto de sua formação, de sua cultura e de
sua época.
3. Os precursores da ideologia de La Boétie.
Analisando sua principal obra (Discurso Sobre a Servidão Voluntária, seja da
versão publicada com as interferências de Montaigne, seja da versão original) percebe-
se que La Boétie deixou transparecer a grande influência que teve dos clássicos gregos
antigos, citando, dentre outros, Homero168, Platão169, Tácito170, Virgílio171 e
Xenofonte172. Aliás, como destacado acima, chegou a traduzir textos gregos antigos de
Xenofonte e Plutarco173. De todos esses clássicos, Platão foi aquele que mais
influenciou o modo de pensar de La Boétie, inclusive no que concerne à ideia de
“servidão” como tema central de sua abordagem em relação ao poder. La Boétie indicou
ter lido A República de Platão, e nela se observa constante referência à ideia de
“servidão”, a exemplo do que ocorre num dos diálogos onde Sócrates indaga a Glauco
se ele vê senhores e homens livres, e este responde: “Vejo, mas em pequeno número,
pois que quase todos os cidadãos, inclusive os mais honrados, são reduzidos a uma
indigna e miserável servidão”, ao que Sócrates questiona novamente: “Se o indivíduo
se assemelha à cidade, não é inevitável que se encontre nele o mesmo estado de coisas,
que a sua alma esteja cheia de servidão e baixeza, que as partes mais nobres dessa
alma sejam reduzidas à escravidão e que uma minoria, formada pela parte pior e mais
furiosa domine?”174. Platão, aliás, também fez a crítica do modelo de povo submisso,
destacando que este desconhecia a força de sua união. Identificou, ainda, que o tirano se
mantinha no poder por culpa desse mesmo povo servil e ganancioso, conforme se extrai
de outro diálogo reproduzido entre Sócrates e Adimanto, onde o primeiro afirma: “A
terceira classe é o povo, todos os que trabalham com as mãos e os que são estranhos
aos negócios e não possuem quase nada. Numa democracia, esta classe é a mais

indicada nas notas dos Ensaios de Montaigne como sendo 01 de novembro de 1530. Logo, diversamente
do apontado por Simone, La Boétie faleceu antes de completar 33 anos de idade.
167
LINARTH, Casemiro. Ob. Cit., p. 19.
168
LA BOÉTIE, Étienne de. Discurso Sobre a Servidão Voluntária. Ob. Cit., pp. 31 e 58.
169
LA BOÉTIE, Étienne de. Discurso Sobre a Servidão Voluntária. Ob. Cit., p. 52.
170
LA BOÉTIE, Étienne de. Discurso Sobre a Servidão Voluntária. Ob. Cit., p. 53.
171
LA BOÉTIE, Étienne de. Discurso Sobre a Servidão Voluntária. Ob. Cit., pp. 55 e 57.
172
LA BOÉTIE, Étienne de. Discurso Sobre a Servidão Voluntária. Ob. Cit., p. 50.
173
FABRE, Simone Goyard. Introdução. In: LA BOÉTIE, Étienne de. Ob Cit., p. 23.
174
PLATÃO. A República. Tradução de Enrico Corvisieri, (Os Pensadores) São Paulo: Nova Cultural,
2004 , p. 299.

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numerosa e a mais poderosa, quando está unida”, ao que o segundo responde: “É
verdade. Mas não se dispõem muito à união, a menos que lhe caiba uma parte de mel.”.
E, mais adiante, Sócrates pergunta: “Agora, o povo não tem o costume invariável de pôr
à sua frente um homem cujo poder alimenta e engrandece?,eAdimanto responde: “Com
efeito, tem esse costume.”, ao que Sócrates arremata: “Então, é claro que, se o tirano
surge em alguma parte, é na raiz desse protetor, e não em alguma outra, que fixa o seu
caule.” 175
Analisando o Discurso de La Boétie vê-se que ele repete exatamente a mesma
estrutura crítica de Platão.
Para além da influência que recebeu dos gregos antigos também é relevante
compreender que La Boétie viveu num período em que, se por um lado os abusos de
poder atingiam seu ápice em toda a Europa continental, por outro, as críticas estavam
cada vez mais incisivas em variados setores daquela sociedade que tentava desvincular-
se do modelo medieval clássico. Como destaca Paolo Grossi176, “a partir do século XIV,
a partir desse século ainda marcado por profundos traços de continuidade com o
passado, mas percorrido por fermentos com acres sabores novos e por gérmens que
seguramente se desenvolveriam no futuro, a linha histórica é todo um emanar e um
escalar de entidades políticas (...) que pretendem ser ruptura, ruptura definitiva, de um
tecido político universal.”
Assim, como ser-no-mundo177, uno e complexo ao mesmo tempo, o modo de La
Boétie pensar foi fruto de uma série de vivências pessoais e influências de formação e,
portanto, sua visão crítica a respeito da chamada servidão voluntária e do poder não
nasceu espontaneamente, pronta, “já adulta”, a exemplo do que sucedeu com a deusa
Atena da mitologia grega, que teria nascido já crescida da cabeça de seu pai Zeus178.
Pode-se dizer, então, que a construção do Discurso de La Boétie, decorreu, em
grande parte, da instrução que recebeu de seu tio na juventude, a qual lhe facilitou o
acesso a uma série de autores críticos que o antecederam e lhe formaram a visão

175
PLATÃO. Ob. Cit. pp. 284 e 285.
176
GROSSI, Paolo. Primeira Lição Sobre Direito. Tradução de Ricardo Marcelo Fonseca. Rio de
Janeiro: Forense, 2006, pp. 48-49.
177
“A expressão composta “ser-no-mundo”, já na sua cunhagem, mostra que pretende referir-se um
fenômeno de unidade. Deve-se considerar este primeiro achado em seu todo. A impossibilidade de
dissolvê-la em elementos, que podem ser posteriormente compostos, não exclui a multiplicidade de
momentos estruturais que compõem esta constituição.” (HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. 2ª ed.,
tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback, Petrópolis: Vozes, 2006, pp. 98-99).
178
WILKINSON, Philip. O Livro Ilustrado da Mitologia. 2ª ed., tradução de Beth Vieira, São Paulo:
Publifolha, 2001, p. 56.

95
igualmente crítica que lhe permitiu uma constatação empírica inédita179 de como se
forma e, principalmente, de como se mantém o poder tirânico.
Para bem compreender o caldo cultural então vivenciado no século XVI por La
Boétie é preciso levar em conta que esse modelo excessivamente abusivo, por um lado,
e paradoxalmente subserviente, por outro, que ele bem identificou, tem como ponto
central decisivo de estruturação,o exercício de poder pautado pela mescla da Igreja
Católica com o poder secular monárquico. La Boétie inclusive não ignorou essa
questão, destacando em seu Discurso que “os próprios tiranos achavam bem estranho
que os homens pudessem aturar outro homem que lhes fazia mal; desejavam muito
colocar a religião na frente, como proteção, e, se possível, tomar emprestadas algumas
amostras da divindade, para manter sua vida miserável.”180
Como se sabe, esse lento processo181 de simbiose entre a Igreja Católica e o
poder secular iniciou-se com a conversão do imperador romano Constantino (312
d.C.182), passou pela oficialização de culto patrocinada pelo também imperador romano
Teodósio (380 d.C.183), reforçou-se com a conversão de Clóvis184,rei dos francos, em

179
De certa forma, como visto um pouco acima, Platão já havia observado o problema. O ineditismo de
La Boétie está no aperfeiçoamento da constatação platônica, da percepção empírica até de como o poder
se mantém com as estruturas de interesses interligadas para baixo, como se verá ao longo do texto. De
qualquer forma, para seu tempo e sua realidade e, ainda, para a realidade dos dias atuais – bem diversas
daquela da Grécia antiga – de submissão ao poder da Igreja e do Estado, a abordagem tem seuineditismo
e sua importância.
180
LA BOÉTIE, Étienne de. Discurso Sobre a Servidão Voluntária. Tradução para o português de J.
Cretella Jr. e Agnes Cretella, 2ª ed., São Paulo: RT, 2009, p. 55.
181
Não se descura, por óbvio e mais uma vez, do alerta de Paolo Grossi (GROSSI, Paolo. O Direito entre
Poder e Ordenamento. Tradução do italiano de Arno Dal Ri Junior. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p.
43), no sentido de que, ao não se estar atento à constante “continuidade/descontinuidade”, incorre-se no
problema mais grave da investigação histórica. Assim, ao se adotar a visão propositadamente reducionista
acima destacada, não se quis simplificar a questão a um discurso “crescente”, mas apenas, por exigência
de espaço, destacar os pontos centrais onde o poder foi sendo consolidado nessa simbiose Igreja/Poder
secular.
182
Segundo LEME FILHO, Trajano. Os 50 Maiores Erros da Humanidade. Rio de Janeiro: Axcel
Books do Brasil, 2004, página 46, foi neste ano de 312 d.C. que Constantino declarou o domingo como
feriado, como forma de demonstrar suas convicções cristãs. Outros autores apontam o Édito de Milão,
também promovido por Constantino, em 313 d.C. Neste sentido, dentre outros, DEL ROIO, José Luiz.
Igreja Medieval: a cristandade latina. São Paulo: Ática, 1997, p. 17.
183
Foi com Teodósio que se oficializou a religião católica, segundo, dentre outros, DEL ROIO, José Luiz.
Ob. Cit., p. 17. A demonstrar a ampliação do poder da Igreja frente à população, encontram-se inúmeros
decretos que foram alterando o Código Teodosiano, como o do ano de 388, que proibiu os debates
públicos a respeito da religião e proibiu o casamento entre judeus e cristãos; o de 392, que proibiu todos
os cultos pagãos; o de 412, que isentou de impostos as terras da Igreja; e o de 435 que estabeleceu penas
mais severas (morte) para pagãos, não obstante já se encontrasse a Igreja no auge do processo
representativo da “queda” do Império romano,conforme se vê dos textos originais transcritos por
HILLGARTH. J.N. Cristianismo e Paganismo, 350-750, A Conversão da Europa Ocidental.
Tradução de Fábio Assunção Lombardi Rezende. São Paulo: Madras, 2004, pp. 60 a 66.
184
La Boétie chega a citar Clóvis em seu texto (LA BOÉTIE, Étienne. Discurso Sobre a Servidão
Voluntária. Ob. Cit., p. 56). Sobre a conversão de Clóvis vide, dentre outros GALLO, Max. Os
Cristãos: o batismo do rei, Volume II, tradução de Eloá Jacobina, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.

96
496/497 d.C.185, ampliou-se com a consagração de Carlos Magno e o Sacro Império
Romano Germânico no ano 800 d.C186, e seguiu consolidando-se principalmente a partir
dos séculos X, XI e XII, quando a Igreja Católica já adotava um modelo de inquisitio187
na inquirição dos pecados iniciado em decorrência da má fama do sujeito, atingindo
ponto culminante no discurso patrocinado pelo Papa Inocêncio III188 no âmbito do IV
Concílio de Latrão, em 1215.
Nesse período muitos padres da Igreja Católica, gananciosos por excelência e
corrompidos no agir, preocupados que estavam em enriquecer às custas da ignorância
do povo, haviamdeixado de pregar a religião com a frequência necessária à manutenção
de sua crença, o que contribuiu para proliferação de diferentes seitas religiosas, algumas
vistas como “inofensivas” ao poder central, a exemplo dos franciscanos e dos
dominicanos189, outras ameaçadoras e dissidentes da própria Igreja Católica190.
Osresultados desse modo de ignorar os fiéis da Igreja apresentaram-se no início do
século XIII191, em decorrência, sobretudo, do crescimento de uma determinada corrente
de “hereges”192, cujos integrantes passaram a ser conhecidos como “cátaros”193,

185
Conforme se extrai de LE GOFF, Jacques. As Raízes Medievais da Europa. Tradução de Jaime A.
Clasen. Petrópolis, R.J.: Vozes, 2007, p. 38 e também de HILLGARTH. J.N. Ob. Cit., pp. 86 e ss.
186
Vide, dentre outros, QUINTANA, Juan Carlos Rivera. Breve Historia de Carlomagno y el Sacro
Imperio Romano Germanico. Madrid: EdicionesNowtillus, 2009, pp. 138 e ss.
187
Vide, dentre outros, FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas. 3ª ed., tradução de
Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais, Rio de Janeiro: Nau Editora, 2008, pp. 70 e
ss.
188
A respeito do papel desempenhado pelo Papa Inocêncio III nesse processo, vide, dentre outros o
excelente romance histórico: LAVEAGA, Gerardo. O Sonho de Inocêncio: ascensão e queda do Papa
mais poderoso da história. Tradução de Sandra Martha Dolinsky, São Paulo: Editora Planeta do Brasil,
2007.
189
Não obstante Francisco de Assis e, depois, Dominic de Guzmán, e seus seguidores, pregassem a
pobreza e o desapego material, reconheciam a autoridade da Igreja e a ela se submetiam, sendo suas
Ordens oficialmente reconhecidas e autorizadas pelo Papa que, inclusive, as utilizava politicamente, como
a querer legitimar os ataques que fez às demais seitas que pregavam o mesmo desapego material, mas não
reconheciam a autoridade papal. Sobre o tema, dentre outros, mais uma vez recomenda-se a leitura
deLAVEAGA, Gerardo. Ob. Cit.
190
Conforme, dentre outros: BAIGENT, Michael e LEIGHT, Richard. A Inquisição. Tradução de Marcos
Santarrita, Rio de Janeiro: Imago, 2001, p. 26 e também READ, Piers Paul. Os Templários. Tradução de
Marcos José da Cunha, Rio de Janeiro: Imago, 2001, p. 206 e ss. Ainda nos mesmos termos: RIBEIRO
JR., João. Pequena História das Heresias. Campinas, S.P.: Papirus, 1989, p. 70.
191
BAIGENT, Michael e LEIGHT, Richard.Ob. Cit. p. 22 e ss..
192
A própria denominação de “hereges” já implica em preconceito. A palavra significa “eleição” e é
posta, inicialmente, em decorrência da eleição diversa daquela católico-cristã. Num segundo momento
passa a denominar todos os que seriam “inimigos” da Igreja. A definição é encontrada até mesmo em
EYMERICH, Nicolau. DirectoriumInquisitorum – Manual dos Inquisidores, escrito em 1376,
traduzido por Maria José Lopes da Silva, Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1993, que se ocupa do tema
em seus primeiros capítulos, chegando até a catalogar os hereges em “manifestos” e “disfarçados” e
também “afirmativos” ou “negativos”.
193
Há controvérsia quanto à origem da palavra. Segundo O’SHEA, Stephen. A Heresia Perfeita: a vida
e a morte revolucionária dos Cátaros na Idade Média. Tradução de André Luiz Barros, Rio de
Janeiro: Editora Record, 2005, p. 23 e também BURL, Aubrey. Hereges de Deus: a cruzada dos
Cátaros e Albigenses. Tradução de Ana Carolina Trevisan Camilo. São Paulo: Madras, 2003, p. 14, a

97
centrada no sul da França. Essa seita passou a ser vista pela Igreja Católica como
ameaça ao predomínio católico-cristão, principalmente sob o plano político, até porque
os cátaros não procuravam esconder seu ódio pela Igreja, tendo chegado a expulsar o
bispo católico da cidade de Carcassonne194, já então igualmente corrompido.
Assim, para manter o poder e eliminar os discursos contrários àquele “oficial”, a
Igreja e o poder secular reforçaram seus laços de união e, diante das condições que eles
mesmos provocaram, adotaram modelos tirânicos de poder, em boa parte mantidos
graças às atuações das Inquisições da Igreja Católica.
Inicia-se um longo período de paura generalizada, uma “neurose cristã e
coletiva de culpabilidade”, como refere Jean Delumeau195, onde qualquer
comportamento que pudesse ser interpretado como ameaçador ao domínio da Igreja era
forte e exemplarmente reprimido, inclusive com uso frequente de mecanismos de
tortura, colaborando para a construção de uma sociedade paranoica, autofágica e,
portanto – e também por isso – , subserviente.
Ainda vale considerar que não obstante a Igreja tenha iniciado sua atuação
inquisitorial mais urgente contra os cátaros, concomitantemente, já tinha preocupação
focada contra os judeus (decorrência, em grande parte, do lucro que o confisco de seus
bens representava) para, como se verá mais adiante, com a mesma intensidade, também
voltar-se contra as mulheres, culminando, enfim, por neutralizar ou eliminar todo aquele
que ousasse pensar ou se comportar de forma diversa da doutrina oficial. Ou seja, a
preocupação se expandiu para toda a coletividade, sempre com enfoque explícito
religioso e implícito de exercício de poder tirânico.
Nesse contexto, não obstante o discurso religioso predominante fosse garantido
pelo modelo repressivo inquisitorial, mantendo o povo em geral numa posição de
“servidão”, até mesmo por temer as “consequências divinas” que poderiam advir após a
morte em caso de comportamento “herético”, ainda no século XIII começaram a surgir
críticas contra o poder absoluto.
Interessante o papel de São Tomás de Aquino nessa nova composição do poder.
Se por um lado ele contribuiu para legitimar a servidão, ao considerar que seria correto

denominação tem origem em jogo de palavras alemãs do século XII, significando literalmente “cultuador
do gato”. Já RIBEIRO JR., João. Ob. Cit., p. 72, sustenta que ela tem origem no grego “katarós” que
significa “puro”. De uma forma ou de outra, há consenso quanto ao seu emprego estar significando
justamente como sendo “purificados”, “perfeitos”.
194
READ, Piers Paul. Ob. Cit., p. 207.
195
DELUMEAU, Jean. O Pecado e o Medo: A culpabilização no Ocidente (Séculos 13-18), vol. I.
Tradução de Álvaro Lorencini, Bauru, SP: EDUSC, 2003, pp. 564 e ss.

98
que um homem exercesse posição de comando sobre os outros, desde que visando o
bem comum (“O domínio de um homem livre por outro é exercido quando esse outro o
dirige para seu próprio [o do primeiro]bem ou para o bem comum. (...) Se um homem
sobrepujar muito um outro em conhecimento e justiça, seria errado que ele não
desempenhasse essa função [de reitor ou diretor] para o benefício dos outros”196), por
outro também atacou a tirania, dizendo que “se um povo tem o direito de tomar para si
um rei, e se esse rei abusa tiranicamente do poder real, não há injustiça se a
comunidade depõe ou controla aquele que levou à realeza, nem pode ser acusada de
deslealdade por abandonar um tirano, mesmo que antes o povo se houvesse ligado a ele
perpetuamente; porque, por não se conduzir lealmente no governo como a dignidade
real exige, terá sido ele mesmo a causa da rejeição, por seus súditos, do pacto com ele
firmado”197
E em 1340 surgiu a primeira crítica incisiva contra o poder da Igreja (do Papa
em particular), em favor da liberdade dos indivíduos, desenvolvida pelo inglês
Guilherme de Ockham, denominada EightQuestionsonthe Power ofthe Pope198(Oito
Questões Sobre o Poder do Papa), onde Ockham afirmou que “a autoridade do líder é
limitada pelo direito natural e pela liberdade dos liderados”. Aliás, Guilherme de
Ockham também publicou diversos outros textos igualmente críticos:A
199
LettertotheFriarsMinor (Uma Carta para os Freis Menores), A Short
200
DiscourseonTyrannicalGovernment (Um Curto Discurso Sobre o Governo Tirânico),
Dialogue onthe Power ofthe Pope andtheEmperor201 (Diálogo Sobre o Poder do Papa e
do Imperador) e Onthe Power ofEmperorsandPontiffs202 (Sobre o Poder dos
Imperadores e Pontífices), esta considerada sua última obra, publicada em1347.

196
AQUINO, São Tomás de. SummaTheologica, 1ª 2ª 96.4, apud KELLY, John M. Uma Breve História
da Teoria do Direito Ocidental. Tradução de Marylene Pinto Michael, São Paulo: Martins Fontes, 2010,
p. 163.
197
AQUINO, São Tomás de. De regimineprincipium, 1.6. apudKELLY, John M. Ob. Cit., p. 169.
198
OCKHAM, William of. Eight Questions on the Power of the Pope. In: A Letter to the Friars Minor
and Other Writings, Cambrigde Texts in the History of Political Thought. Traduzido do latim para o
inglês por John Kilcullen, Cambridge: Cambridge University Press, 1995, pp. 300 e ss. Traduçãolivre.
199
OCKHAM, William of. A Letter to the Friars Minor and Other Writings.Cambrigde Texts in the
History of Political Thought.Traduzido do latimpara o inglêspor John Kilcullen, Cambridge: Cambridge
University Press, 1995. Traduçãolivre.
200
OCKHAM, William of. A Short Discourse on Tyrannical Government.Traduzido do latim para o
inglês por John Kilcullen, Cambridge: Cambridge University Press, 1992.Tradução livre.
201
OCKHAM, William of. Dialogue on the Power of the Pope and the Emperor.Disponível em
www.nlnrac.org, acesso: em 21 de fevereiro de 2012.Traduçãolivre.
202
OCKHAM, William. On the Powers of Emperors and Pontiffs.Bristol, England: Thoemmes Press,
1998, p. 07, obra digitalizada, disponível em www.books.google.com, acesso em: 21 de fevereiro de
2012.Traduçãolivre.

99
EmA Short DiscourseonTyrannicalGovernmentGuilherme de Ockhamexternou
os limites que enxergava no poder do Papa, o que também contribuiu para formar o
modo de pensar de La Boétie203:
“O Papa deveria, portanto, saber que poder ele tem sobre os outros, que ele pode não estar
pronto para fazer uma investigação por conta do seu poder, assim como de sua fé [I Pet. 3:15];
que ele não pode perturbar os direitos dos outros, mas sim protege-los (Extra, De iudiciis, c.
Novit); que ele não pode aumentar sua própria honra diminuindo os direitos dos outros (dist.
99, Ecce); que ele pode proteger os outros em seus direitos e honras mesmo contra ele (25, q., I,
Quod vero); e que ele pode saber, como convém, como “dar a cada um o que é seu” (Extra, in
prol.)”.
No mesmo texto Ockham ainda afirmou que os súditos deveriam saber quanto
poder o Papa tem sobre eles e quais são os seus direitos, defendendo a necessidade de
existência de um poder temporal:
“O Poder, portanto, de se apropriar de coisas temporais de uma pessoa, ou de pessoas, ou de
uma coletividade, foi dado para a raça humanapor Deus. E, por razão similar, Deusdeu, sem
qualquer ministério humano ou cooperação, o poder de estabelecer governantes com jurisdição
temporal, porque a jurisdição temporal é uma das coisas necessárias e úteis para viver bem e
politicamente: como Salomão atestou, “Quando não existe governante, as pessoas estão
arruinadas” (Provérbios 11:14)”204.

O exercício do poder tirânico então exercido pela Igreja não se abalou com essas
críticas iniciais e isoladas, e ainda no mesmo século XIV, em 1376, Nicolau
Eymerich205 publicou o DirectoriumInquisitorum(Manual dos Inquisidores), verdadeira
doutrina que interpretava e ampliava o alcance da Bula Ad Extirpanda elaborada pelo

203
OCKHAM, William of. A Short Discourse on Tyrannical Government.Tradução para o inglês de
John Kilcullen, Cambridge: Cambridge University Press, 1992, p. 09. Traduçãolivre.No original,
eminglês: “The pope should therefore know what power he has over others, that he may be ready to give
any inquirer an account of his power, as also of his faith [I Pet. 3:15]; that he may not disturb others’
rights but protect them (Extra, De iudiciis, c. Novit); that he may not increase his own honor by
diminishing the rights of others (dist. 99, Ecce); that he may protect others in their rights and honors
even against himself (25, q., I, Quod vero); and that he may know, as he ought, how “to render to each
his right” (Extra, in prol.).”
204
OCKHAM, William. Ob. Cit., p. 90. Traduçãolivre.No original eminglês: Power,therefore, to
appropriate temporal things to a person or of persons or to a collectivity was given to the human race by
God. And for a like reason God gave, without human ministry or cooperation, power to establish rulers
with temporal jurisdiction, because temporal jurisdiction is one of the things necessary and useful for
living well and politically, as Solomon attests, “Where there is no ruler, the people will be ruined”
(Proverbs 11:14).”
205
EYMERICH, Nicolau. DirectoriumInquisitorum – Manual dos Inquisidores, escrito em 1376,
traduzido por Maria José Lopes da Silva, Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1993, p. 210 e 211.

100
Papa Inocêncio IV, em 1252206, particularmente no que se refere ao uso da tortura como
mecanismo de obtenção da confissão.
Em seguida, decorrência de outra bula papal, agora de Inocêncio VIII, de 05 de
dezembro de 1484, que declarava serem as bruxas “um perigo claro e imediato”207,
sobressaiu uma obra que também pode ser considerada um “manual de processo penal”
para inquisidores da época, com especial foco nas mulheres, escrito em 1487 pelos
alemães Heinrich Kramer e James Sprenger, chamado MalleusMaleficarum(O Martelo
das Feiticeiras)208, revelando toda a perversidade e capacidade de insanidade daqueles
que estavam a serviço do poder pelo poder. O Malleus, portanto, estava em pleno uso
quando La Boétie nasceu e era um dos instrumentos daquele modelo de atuação que
Jacinto Nelson de Miranda Coutinho sintetizou como sendo “o maior engenho jurídico
que o mundo conheceu, e conhece”209.
Esse modelo inquisitorial presente em grande parte da Europa continental
ensejou, por outro lado, reações que se intensificaram justamente a partir do início do
século XVI em diante, pouco antes de La Boétie nascer,no que se usou denominar de
“renascimento quinhentista”210, fortemente pautado pela ideia de “secularização”,
palavra aqui tomada como equivalente à “dessacralização”, isto é, como a necessidade
de desapego com o divino e com a preocupação no ser humano e não apenas no sentido
de transmissão forçada dos bens da Igreja à autoridade do Estado, conforme refere
Habermas211.
As críticas desta época nasceram, em grande parte, dentro da própria Igreja, com
as ideias reformistas delineadas nas 95 teses publicadas por Martinho Lutero, em

206
Segundo relatam, dentre outros: HAUGHT, James A. Perseguições Religiosas. Tradução de Bete
Torii, Rio de Janeiro: Ediouro, 2003, p. 59 e GONZAGA, João Bernardino. A Inquisição em seu
Mundo. 2 ed., São Paulo: Saraiva, 1993, p. 88.
207
Conforme ADLER, Robert E. Médicos Revolucionários. De Hipócrates ao Genoma Humano.
Tradução de Iva Sofia Gonçalves Lima, Rio de Janeiro: Ediouro, 2006, p. 82.
208
KRAMER, Heinrich e SPRENGER, James.MalleusMaleficarum – O Martelo das Feiticeiras, 16ª
ed., tradução de Paulo Fróes, Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2002.
209
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O Papel do Novo Juiz no Processo Penal. In: Crítica à
Teoria Geral do Direito Processual Penal. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (Org.), Rio de Janeiro:
Renovar, 2001, p. 18.
210
Vide, dentre outros, MANCHESTER, William. Fogo sobre a Terra: a mentalidade medieval e o
renascimento. Tradução de Fernanda Abreu, Rio de Janeiro: Ediouro, 2004. Não se olvida, com isso, a
importância da redescoberta dos textos de Aristóteles, quatro séculos antes, como o dado igualmente
revolucionário da cultura medieval, como destaca RUBENSTEIN, Richard. E..Herdeiros de Aristóteles,
como cristãos, muçulmanos e judeus redescobriram o saber da Antiguidade e iluminaram a Idade
Média. Tradução de Vera Ribeiro, Rio de Janeiro: Rocco, 2005, p. 15 e ss..
211
HABERMAS, Jürgen. O Futuro da Natureza Humana. Tradução de Karina Jannini, São Paulo:
Martins Fontes, 2004, p. 138.

101
1517212, e ampliadas em seu texto Da Autoridade Secular: até que ponto se lhe deve
obediência, de 1523213. Aliás, considerando que estes textos de Lutero foram publicados
em datas próximas ao nascimento de La Boétie, aliado à formação qualificada que
recebeu ainda na adolescência por parte seu tio, seguramente também o influenciaram já
que permearam o seu tempo, ou seja, envolviam o discurso que era a representação do
espírito de seu tempo: Zeitgeist. Assim, da obra Da Autoridade Secular: até que ponto
se lhe deve obediência extraem-se algumas passagens que, pela similitude do discurso,
poderiam ser atribuídas ao próprio La Boétie:
“Pois Deus, o onipotente, enlouqueceu os nossos príncipes, de sorte que pensam poderem fazer
e ordenar a seus súditos o que quiserem; e também os súditos se enganam, quando crêem
estarem obrigados a cumprir tudo isso plenamente.214
(…)
E se todas as pessoas fossem cristãos autênticos, isto é, verdadeiros crentes, não seriam
necessários nem de proveito príncipe, rei ou senhor, nem espada nem lei. Pois para que lhes
serviriam? Eles têm no coração o Espírito Santo que os ensina e efetua que não façam mal a
ninguém, que amem a todos e que sofram, de bom grado e alegremente, injustiças, sim, inclusive
a morte da parte de qualquer pessoa.215
Na mesma linha crítica, centrada no poder da Igreja, encontram-se o Manifesto
de Praga de Tomás Müntzer em 1521,o discurso de Calvino em 1535 (em que pese este
último também tenha servido aos interesses dos detentores do dinheiro – e, nessa
medida, de parcela do poder –, ao justificar a riqueza terrena)216, e também, oElogio da
Loucura, escrito em 1509217pelo “quase padre” Erasmo de Rotterdam.

212
Dentre as 95 teses de Lutero algumas são ajustadas ao modo de pensar do jovem francês, a exemplo da
Tese 24: “Por isso, a maior parte do povo está sendo necessariamente ludibriada por essa magnífica e
indistinta promessa de absolvição da pena” e a Tese 86: “Por que o papa, cuja fortuna hoje é maior que
a dos mais ricos Crassos, não constrói com seu próprio dinheiro ao menos esta uma Basílica de São
Pedro, em vez de fazê-lo com o dinheiro dos pobres fiéis? Quanto a esta e a perguntas semelhantes, eu
digo: não nos cabe julgar a vontade do papa, mas apenas suportá-la, ainda que por vezes fosse
iniquíssima. Não obstante, ele e os pregadores de indulgências devem ser advertidos, para que não se dê
ao povo ocasião tão manifesta para falar (…)” (LUTERO, Martinho. Noventa e cinco teses: 1517.
Obras Completas, v. 1, pp. 63-190, apud SEFFNER, Fernando. Reforma à Contra-Reforma: o
cristianismo em crise. 10ª ed., São Paulo: Atual, 1993, pp. 36-37).
213
Texto transcrito em: DE BONI, Luis Alberto. Escritos Seletos de Martinho Lutero, Tomás Müntzer
e João Calvino. Tradução de Ilson Kayser, Martin N. Dreher, Helberto Michel, Arno F. Steltzer e
Sabatini Lalli. Petrópolis: Vozes, 2000, pp. 81 e ss.
214
LUTERO, Martinho. Da Autoridade Secular: até que ponto se lhe deve obediência. Apud DE
BONI, Luis Alberto. Ob. Cit., p. 83.
215
LUTERO, Martinho. Da Autoridade Secular: até que ponto se lhe deve obediência. Apud DE
BONI, Luis Alberto. Ob. Cit., pp. 87-88.
216
Sobre Martinho Lutero, Tomás Müntzer e Calvino videDE BONI, Luis Alberto. Ob. Cit.,e também,
dentre outros, DELUMEAU, Jean. O Pecado e o Medo: A culpabilização no Ocidente (Séculos 13-18),
vol. II. Tradução de Álvaro Lorencini, Bauru, SP: EDUSC, 2003, p. 371 e ss..
217
ROTTERDAM, Erasmo. Elogio da Loucura. Tradução de Ana Paula Pessoa, São Paulo: Sapienza,
2005.

102
No plano da ciência igualmente se encontram importantes personagens que, a
partir desse século, contrariaram vários dogmas da Igreja e, assim, contribuíram para a
necessidade de impor-se freio ao poder absoluto da Igreja católica. Esseprocesso
científico, como se sabe, teve marco importante na mesma época em que viveu La
Boétie, com Nicolau Copérnico (1473 a 1543)e seu sistema heliocêntrico, que pôs “em
xeque” a visão de mundo geocêntrico cristão até então tida como absoluta, ameaçando a
hegemonia discursiva do detentor do poder218.
Ademais, contribuindo para agravar o quadro de declínio do poderio da Igreja,
no ano seguinte ao nascimento de La Boétie, em 1531, o Rei inglês Henrique VIII
rompeu definitivamente com a Igreja Católica, fundando sua própria Igreja, denominada
Anglicana, tudo em nome da possibilidade de anular seu primeiro casamento e, em
1533, casar-se com Ana Bolena 219. Dois anos depois (1535) Henrique VIII determinou a
execução de Thomas More, autor de a Utopia em 1516, acusado de traição.
Diante dessa avalanche de reclamos, a Igreja organizou sua reação e, como
movimento de contrarreforma, reuniu-se no famoso Concílio de Trento para discutir
seus dogmas, o qual representou uma espécie de “refundação” da Igreja Católica, tendo
início em 1545, cerca de um ano antes de La Boétie escrever seu manuscrito sobre a
Servidão Voluntária, e só foi considerado finalizado coincidentemente no mesmo ano da
morte de La Boétie (1563).
Como se vê, portanto, poucos anos antes de La Boétie vir ao mundo e também
no curso de seus primeiros anos de vida, diversas manifestações de repulsa ao exercício
do poder tirânico dos soberanos e, particularmente,da Igreja Católica, já haviam se
tornado públicas e devem ter servido de estímulo ao jovem La Boétie na identificação
dos problemas e na análise que realizou em seu Discurso Sobre a Servidão Voluntária.
No entanto, todo esse movimento crítico da época, assim como suas reflexões e
conclusões documentadas no Discurso, não foram capazes de conduzir os passos de La
Boétie para longe das benesses do poder ao longo de sua curta jornada terrena, como se
passa a expor.
4. Incoerências entre o Discurso e prática.
Relembrando o quanto já destacado no início deste artigo, La Boétie era bastante
jovem (dez anos de idade) quando perdeu o pai e teve que ser educado pelo tio. E foi
nessa mesma juventude, ainda no curso da adolescência, com apenas dezesseis anos de

218
Sobre a “revolução copernicana” vide, dentre outros, JAPIASSU, Hilton. Galileu: o Mártir da
Ciência Moderna, São Paulo: Letras & Letras, 2003, p. 13 e ss..
219
DORAN, Susan. The Tudor Chronicles. 1485-1603. London: Querqus, 2008, pp. 148 e ss..

103
idade, que escreveu o Discurso Sobre a Servidão Voluntária. Estas circunstâncias
pessoais talvez expliquem algumas posturas incoerentes entre o que escreveu e seu
comportamento na vida adulta.
No Discurso Sobre a Servidão Voluntária La Boétie sentenciou que “é extrema
infelicidade estar sujeito a um senhor, do qual jamais se sabe se pode assegurar se é
bom, pois está sempre em seu poder ser mau, quando quiser”220. Externava, portanto,
seu inconformismo com a ideia de que alguém tenha que se sujeitar a outro e que deva
obediência a este outro, o qual ainda “pode ser mau quando quiser”. No entanto, além
de nascer em família abastada e tradicional, próxima da realeza, La Boétie sempre
esteve próximo e sujeito a um senhor, seja na figura de seu tio, seja em relação ao
monarca, desconsiderando seu próprio alerta de que isso poderia representar uma
“extrema infelicidade”.
Assim, diferente de sua pregação contra a servidão voluntária no Discurso, o que
se percebe dos registros de sua vida adulta é que sua proximidade e dever de obediência
com o soberano foi marcante. Tanto foi assim, que quando La Boétie contava com
apenas 22 anos de idade e, portanto, não alcançava a idade mínima de 25 anos exigida
para assumir as funções de Conselheiro no Parlamento de Bordeaux, foi beneficiado
pelos favores do Rei que lhe concedeu uma licença especial para o cargo221. Não é
demais frisar que não se tratava de um cargo qualquer. Ao contrário: o cargo de
Conselheiro no Parlamento equivalia ao exercício da magistratura em seu mais elevado
nível hierárquico na região de Bordeaux222, muito superior ao cargo sénéchaldo qual seu
pai havia sido “apenas” o assistente/tenente223. Passou, portanto, a ter ele também uma
parcela significativa de poder, mantendo a “tradição” da família, atuando como
magistrado supremo na região de Bordeaux, onde foi designado por seus pares para
algumas “missões especiais”224. Em dezembro de 1560, por exemplo, foi encarregado
de apresentar ao Rei Henrique II “uma petição solicitando medidas especiais para o

220
LA BOÉTIE, Étienne de. Ob. Cit., pp. 31-32.
221
LINARTH, Casemiro. Ob. Cit., pp. 16 e 17.
222
Os Reis franceses dos séculos XIV e XV, querendo diminuir a importância e a intromissão do
Parlamento de Paris, dividiram sua competência territorial, criando, em 1420, o Parlamento de Toulouse
(Charles VII), em 1462o Parlamento de Bordeaux, em 1477 ode Dijon, em 1510 o de Aix, em 1515 o de
Rouen (Louis XII), e, finalmente, em 1554 o Parlamento de Rennes(Henri II) (cf. VELIOT, Raphaël. Ob.
Cit., p. 48).
223
Na época a justiça do Rei era estruturada em três níveis: os prévôts e viguiers decidiam em primeiro
grau; o recurso da decisão destes se dava para os baillis e sénéchaux; e as apelações destes eram julgadas
pelo parlement (cf. CARBASSE, Jean-Marie. Ob. Cit., p. 147).
224
LINARTH, Casemiro. Ob. Cit., p. 18.

104
pagamento regular dos emolumentos dos magistrados”225. Algo que hoje poderia ser
visto como natural ao Presidente da Associação dos Magistrados ao peregrinar no
Congresso Nacional reivindicando benefícios classistas...
Segundo consta de sua biografia, nesse mesmo ano de 1560, La Boétie já havia
alterado seu modo de pensar, pois afirmava “ser um ‘bom cidadão’, que, curado da
primeira febre, pretendeu ser amigo e guardião das leis francesas”226.
Mesmo sendo um “protegido” real, nas poucas oportunidades que teve em sua
curta carreira, revelou discordar de posturas políticas do soberano, sem, contudo, deixar
de aproveitar as benesses da proximidade com o poder. Ou seja: La Boétie também
praticou a criticada “servidão voluntária” e igualmente serviu de base e amparo para
manter a realeza em seu lugar, como ele próprio identificara. A postura servil de La
Boétie e o abandono intelectual do quanto havia escrito em sua juventude tornaram-se
públicos pelas mãos de seu amigo Michel de Montaigne que registrou em seus Ensaioso
que considerava em favor da memória do falecido La Boétie, avisando aos interessados
que o próprio La Boétie não acreditava no que tinha escrito. São palavras de Michel de
Montaigne:
E considerando que a memória do autor possa não ser do interesse daqueles que não puderam
conhecer de perto suas opiniões e suas ações, eu os aviso que este tópico foi tratado por ele em
sua infância, a título de exercício somente, como assunto vulgar e explorado em meio a milhares
de livros. Eu não tenho a menor dúvida que ele não acreditava naquilo que escrevia, porque ele
era suficientemente consciencioso, para não mentir até mesmo quando jogava. E saibam mais,
que se tivesse escolha, ele teria preferido ter nascido em Veneza, ao invés de Sarlac227: e com
razão. Mas ele tinha outra máxima soberanamente impressa em sua alma: de obedecer e de
submeter-se muito religiosamente às leis, sob as quais havia nascido.228
Não é demais recordar que a sociedade medieval daquele tempo era uma
sociedade hierarquizada, organizada em estamentos culturalmente pré-definidos e as

225
BONNEFON. Paul. Ob. Cit., p. XXIII.LINARTH, Casemiro. Ob. Cit., p. 18.
226
FABRE, Simone Goyard. Introdução. In: LA BOÉTIE, Étienne. Discurso Sobre a Servidão
Voluntária. Ob. Cit., p. 20.
227
O nome correto da localidade onde nasceu La Boétie é Sarlat e não Sarlac, mas como no texto de
Montaigne ele usa a grafia errada, mantém-se aqui o original.
228
MONTAIGNE, Michel de. Ob. Cit., p. 382. Tradução livre. No original, em francês: “Et a fin que
lamémoire de l’auteur n’ensoitintéresséeenl’endroit de ceux, qui n’ontpuconnaître de prèssesopinions et
sesactions. J eles avise que cesujetfuttraité par luiensonenfance, par manière d’exercitationseulement,
commesujetvulgaire et tracasséenmilleendroitsdes livres. Je ne faisnuldoutequ’il ne crûtcequ’ilecrivait,
cari l étaitassezconsciencieux, pour ne mentir pasmêmeen se jouant: Et sais davantage que s’ileût eu à
choisir, ileûtmieuxaiméêtre né a Venisequ’aSarlac: et avecraison: Mais ilavait une autre máxime
souverainementempreinteensonâme, d’obéir et de se soumettre três religieusementauxlois,
souslesquellesilétait né.”

105
pessoas tendiam a conformar-se com sua posição229, fruto, em grande parte, do discurso
cristão fortemente incrustrado no inconsciente coletivo. Assim, se La Boétie teve o
“privilégio” de ser “bem nascido”, num estamento social que o aproximava das
benesses do poder, não seria de estranhar que estivesse disposto a continuar gozando de
sua condição pessoal e não pensasse, seriamente, em rebelar-se contra essa mesma
estrutura, como sugeria em seu texto sobre a servidão voluntária.
Aliás, depois de ter defendido em seu Discurso Sobre a Servidão Voluntária que
o povo deveria se libertar da tirania do monarca, bastando, para tanto, que parasse de
obedecê-lo, pregando, em síntese, “sedes resolutos em não servir mais e eis-vos
livres”230, La Boétie escreveu outro artigo, menos conhecido do público, um manuscrito
intitulado Memoiresurlapacificationdestroubles231 (Memórias sobre a pacificação dos
problemas), depois publicado como Memoiretouchantl’edit de janvier 1562 (Memórias
sobre o Édito de janeiro de 1562232). Nestas Memórias defendeu que o rei usasse de sua
autoridade para implantar a paz entre católicos e huguenotes. Ou seja, casando o
Discurso com as Memórias, é possível compreender que, na visão de La Boétie, se o
povo não se libertava por iniciativa própria, como deveria, era preciso que o rei usasse
seu poder para impor a “liberdade” a esse mesmo povo. Uma “liberdade” conseguida
nesses termos, no entanto, evitava que o povo se colocasse contra o poder central;
mantinha o povo em sua “acostumada” servidão e, em última análise, acabava
representando a vontade e o desejo do monarca, contribuindo para reafirmá-lo no poder
de comando. Vê-se, claramente, que a força do Discurso havia sido deixada de lado por
um La Boétie que optava por outros caminhos de acomodação.
Esse “novo discurso” de La Boétie, de certa forma e por paradoxal que possa
parecer, lembra O Príncipe, de Maquiavel (1513), obra que ele seguramente leu,
considerando que ela era muito difundida e quase uma leitura obrigatória naqueles
tempos. A respeito de Maquiavel ter influenciado La Boétie, JosephBarrère escreveu
uma tese intitulada L’Humanisme et la Politique dansleDiscours de La
ServitudeVolontaire: etudesurles origines dutext et l’objetduDiscours D’Estienne de La

229
Sobre o tema vide, dentre outros, HUIZINGA, Johan. O Outono da Idade Média: estudo sobre as
formas de vida e de pensamento dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos. Tradução para
o português de Francis Petra Janssen. São Paulo: Cosac Naify, 2010, pp. 85 e ss.
230
LA BOÉTIE, Étienne. Ob. Cit., p. 38.
231
LA BOÉTIE, Esttiene de. Memoiresurlapacificationdestroubles. Edité ave introductionet notes par
Malcom Smith, Paris: Droz, 1983.
232
SMITH, Malcom. Introdução. In: LA BOÉTIE, Esttiene de. Memoire sur la pacification des
troubles.Ob. Cit., p. 10. O Édito de janeiro de 1562 ficou conhecido por ter sido o primeiro documento a
autorizar a prática de outra religião na França.

106
Boétie (O Humanismo e a Política no Discurso da Servidão Voluntária: estudo sobre as
origens do texto e o objeto do Discurso de Estienne de La Boétie)233, onde indicou que
“La Boétie encontrou em Thucydide e em Maquiavel uma teoria toda contrária e
singularmente reconfortante, ou seja, que a servitude política é para muitos a obra do
próprio oprimido”234. Não obstante a opinião em sentido contrário de Simone
GoyarFabre235, há que se considerar que existe um tanto de mito236 na análise da
principal obra de Maquiavel e, numa análise isenta de preconceitos e contextualizada
com o que se dava na Itália daquele tempo, é possível identificar pontos de
concordância entre os textos de Maquiavel e La Boétie, notadamente se lidos contrario
sensu. De fato, quando Maquiavel atesta que “o pior que pode um príncipe esperar do
povo hostil é ser por ele abandonado”237, acaba conduzindo, às avessas, ao quanto
percebido por La Boétie.
Seja como for, para procurar compreender o alcance atual da obra de La Boétie,
bem como entender a maneira pela qual se operou essa incoerência entre o que foi

233
BARRÈRE, Joseph. L’Humanisme et la Politique dansleDiscours de La ServitudeVolontaire:
etudesurles origines du texto et l’objetduDiscours D’Estienne de La Boétie. Paris:
LibraireAncienneÉdouard Champion, 1923, obra digitalizada e disponível em www.archive.org, acesso
em: 26.02.2012.
234
BARRÈRE, Joseph. P. 15. Tradução livre. No original em francês: “La
BoétietrouvaitdansThucydideetdans Machiavel une théorietoutecontraire et singulièrementréconfortante,
à savoir que laservitude politique est pourbeaucoupl'œuvremême de l'opprimé.”
235
Porque, segundo a autora, “La Boétie contesta, diretamente, a posição do autor italiano, que era
favorável à tirania” (FABRE, Simone Goyard. Introdução. In: LA BOÉTIE, Étienne. Ob Cit., p. 21).
236
Tornou-se um quase-consenso usar o adjetivo “maquiavélico” quando se refere a alguém tão astuto
quanto perverso. Tamanha é a consagração dessa ideia que os dicionários definem o “maquiavelismo”,
como algo desleal, traiçoeiro (cf., por ex., se vê do Minidicionário Houaiss da Língua Portuguesa. 4ª
ed., Rio de Janeiro: Objetiva, 2010, pp. 503-504). Essa referência decorre de atribuir-se a
NiccolòMachiavelli (Nicolau Maquiavel) a ideia de que “os fins justificam os meios”, frase que se
consagrou como síntese do pensamento de Maquiavel, não obstante ele mesmo nunca tenha usado esta
expressão literalmente. Seu texto mais conhecido e que deu ensejo a essa síntese – “O Príncipe” (1513) –
mesmo escrito no século XVI, é uma constatação empírica e crua da forma de se exercer o poder ao longo
dos tempos e serve para entender como a política, ainda hoje, costuma se comportar. Sua análise, no
entanto, deve ser compreendida no contexto em que foi produzida: na Itália do início dos quinhentos, a
qual se encontrava dividida em pequenos reinos e repúblicas, muitos dos quais dominados por
mercenários (condotieri), sofrendo constantes ameaças externas. Maquiavel, que viveu em Firenze e
ocupou cargo de destaque no governo dos Médici (cf. MONTEIRO, Henrique Amat Rêgo. Notas. Ob.
Cit., p. 10) ao escrever “O Príncipe”, muito mais do que elaborar uma doutrina da perversão política,
pretendia, além de agradar aos Médici (a obra é dedicada a Lorenzo di Piero diMedici), instrumentalizar e
orientar politicamente aquele que viesse a promover a unificação da Itália, como se vê, principalmente,
dos capítulos finais do seu texto. Tanto é assim, que, conforme destaca Henrique Amat Rêgo Monteiro,
nas notas introdutórias à sua tradução do texto original, a cidade de Firenze lhe dedicou “uma placa
comemorativa na igreja de Santa Croce, ao lado de conterrâneos mais célebres. Independentemente do
que outros países possam considerar, a Itália, ao prestar esse reconhecimento a Maquiavel, admite que
descobriu em suas obras a ideia de sua unidade e os germes de seu renascimento entre as nações da
Europa”(cf. MONTEIRO, Henrique Amat Rêgo. Notas. Ob. Cit., p. 12) .
237
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Tradução de Henrique Amat Rêgo Monteiro, São Paulo: Clio
Editora, 2009, p. 90.

107
incisivamente por ele escrito em sua juventude, e o que ele praticou em sua curta
jornada terrena, a psicanálise de Freud parece o caminho a ser seguido.
5. Freud (e Jung) explicam La Boétie.
É evidente que se propor a fazer uma análise psicanalítica do aproveitamento
contemporâneo das ideias e do comportamento incoerente de um autor do século XVI a
partir de fragmentos de seus textos e dos poucos registros de sua vida pessoal, implica
em correr elevados riscos e reconhecer de antemão que tudo o quanto se passe agora a
dizer do comportamento e da obra de La Boétie, à luz do pensamento de Freud (com o
auxílio de Jung), possa não passar de mera especulação. Ciente, portanto, dos riscos,
mas julgando necessário enfrentar essa abordagem, registra-se esse alerta, esperando
contar com a benevolência crítica do leitor.
Buscando compreender como possa ter se estruturado a incoerência na postura
vivida por La Boétie destaca-se, já de início e mais uma vez, a morte prematura do pai e
sua substituição pela figura do tio que assume o papel paterno. Com Freud é possível
evidenciar que o luto238 sentido por La Boétie ao perder o pai ainda na infância, e sua
rápida repressão sob a influência da autoridade do tio, possam ter contribuído para
firmar-lhe um exacerbado complexo de Édipo239, fazendo com que o “superego”
passasse a dominar o “ego” “como consciência moral, talvez como inconsciente
sentimento de culpa”. E, como explica Freud, o “superego” em sua relação com o “ego”
apresenta uma dupla face, uma tensão entre a advertência de que “Assim (como o pai)
você deve ser” e a proibição de que “Assim (como o pai) você não pode ser, isto é, não
pode fazer tudo o que ele faz; há coisas que continuam reservadas a ele”240. Essa
ambivalência evidenciada, do “superego” em relação ao “ego”, pode ser a chave para
explicar a incoerência entre o primitivo texto de protesto de La Boétie contra o rei/tirano
(que através dele externa que “não pode ser como o pai”), com sua posterior
aproximação desse mesmo poder monárquico (revelando que “assim como o pai você
deve ser”).
De resto, a identificação negativa de La Boétie em relação ao tio, isto é, o temor
de vir a perder mais um referencial paterno, talvez explique a amizade exacerbada que
ele passou a nutrir com Michel de Montaigne, também ele Conselheiro do Parlamento

238
FREUD, Sigmund. Obras Completas, vol. 12: Introdução ao Narcisismo, Ensaios de Metapsicologia
e outros textos (1914-1916). Tradução de Paulo César de Souza, São Paulo: Companhia das Letras,
2011, p. 170 e ss..
239
FREUD, Sigmund. Obras Completas, vol. 16: O eu e o id, “autobiografia” e outros textos (1923-
1925). Tradução de Paulo César de Souza, São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
240
FREUD, Sigmund. Ob.Cit., pp. 42-43.

108
de Bordeaux. Sobre o papel do pai na vida da criança Freud sentenciou: “Não consigo
pensar em nenhuma necessidade da infância tão intensa quanto a proteção de um
pai.”241. Assim, a falta do pai foi substituída por sua amizade com Montaigne, o que
pode ter contribuído para La Boétie usar o seu mesmo modo de agir e pensar, como um
espelho. Para tentar compreender como isso possa ter operado, vale-se aqui dos
esclarecimentos de Freud em A Dinâmica da Transferência242 onde ele esclareceu que a
“disposição inata” do sujeito, aliada às experiências acidentais da infância (a exemplo
da morte prematura do pai e o medo de perder o referencial substitutivo do tio), moldam
o “modo característico de conduzir a vida amorosa, isto é, as condições que estabelece
para o amor” e os “objetivos que se coloca”, conduzindo o comportamento da pessoa
para um, ou vários, “clichês” que ao longo da vida tendem a se repetir, “na medida em
que as circunstâncias externas e a natureza dos objetos amorosos acessíveis o
permitem”.
Pelo que se lê dosEnsaios de Montaigne, no capítulo dedicado à amizade de La
Boétie, é possível ver que a relação dos dois alcançava o amor mútuo, favorecido por La
Boétie muito provavelmente em razão de sua condição inata e do seu fator acidental da
infância. O amor entre os dois era de uma categoria única. Montaigne, depois de
discorrer sobre várias formas de amizade (entre pai e filho, entre nações, entre filósofos,
entre irmãos e entre homem e mulher), esclareceu que ele e La Boétie compartilhavam a
mesma alma em dois corpos distintos243, sintetizando o sentimento que tinha por ele,
dizendo: “Se me pressionarem a dizer por que o amava, eu sinto que não há como
deixar de exprimir em resposta: porque era ele; porque era eu”244. Esse grau de
aproximação dos dois revela que La Boétie deveria esforçar-se em corresponder às
expectativas de comportamento de Montaigne e vice-versa.
Assim, no apoio mútuo de amizade diferenciada entre dois magistrados da
mesma Corte, ambos em pleno gozo do exercício do poder jurisdicional supremo na
região de Bordeaux, é razoável não esperar deles, como solução para suas vidas, a

241
FREUD, Sigmund.Obras completas, Vol. 21: O Futuro de uma Ilusão, O Mal Estar da Civilização
e outros trabalhos (1927-1931). Edição standard brasileira das. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1996, p.
80.
242
FREUD, Sigmund. Obras Completas, vol. 10: Observações Psicanalíticas Sobre um Caso de
Paranoia Relatado em Autobiografia (“O Caso Schreber”), Artigos Sobre Técnica e outros textos
(1911-1913). Tradução de Paulo César de Souza, São Paulo: Companhia das Letras, 2010, pp. 134-135.
243
MONTAIGNE, Michel. Ob. Cit., p. 375.
244
MONTAIGNE, Michel. Ob. Cit., p. 373.Tradução livre. No original, em francês: “Si on me presse de
direporquoijel’aimais, jesens que cela ne se peutexprimerqu’enrépondant: Parce que c’etaitlui; parce
que c’était moi.”

109
aplicação prática de condutas de desobediência civil como pregava La Boétie em sua
adolescência.
Ao contrário, pelo que se sabe do histórico de vida pessoal de La Boétie, é
possível constatar que depois que ele encontrou sua “alma gêmea” em Montaigne, não
precisou mais dedicar-se aos discursos contra o poder e preferiu voltar-se a escrever
sonetos de amor. É como sintetiza Freud: “aquele cuja necessidade de amor não é
completamente satisfeita pela realidade se voltará para toda pessoa nova com
expectativas libidinais”245.
Operou-se, enfim, uma transferência daquele modo de pensar contra o tirano,
para o amor que nutria por seu amigo Montaigne e essa transferência, pela via reflexa,
como espelho246, implicou numa mudança de ponto de vista em La Boétie, uma
metanoia, como refere Jung247.
A metanoia, palavra de origem grega que significa arrependimento, no sentido
de mudar de ideia, foi empregada fortemente na Torá judaica (Velho Testamento, para
os cristãos), com traduções que ao longo do tempo até deturparam seus sentido,
chegando a ser considerada como equivalente a penitência248.
Na análise do que se operou na vida de La Boétie, é possível dizer, também com
Jung, que La Boétie não foi propriamente “incoerente”, mas sim que “mudou de ideia”,
decorrência da metanoia.
Nesse sentido, inclusive, a evidente influência de Xenofontes, autor grego antigo
que teve textos traduzidos por La Boétie. Xenofontes utilizou o termo metanoia
(“mudar de opinião”) justamente para admitir que, depois dele ter refletido a respeito da
vida de Ciro, ele teria mudado de ideia para considerar possível um homen dominar
todos os demais homens, num verdadeiro modelo de servidão:
“Como meditamos nessa analogia, estamos inclinados a concluir que para o homem, como ele é
constituído, é mais fácil governar cada uma e todas as demais criaturas, do quegovernar os
homens. Mas, quando nós refletimos a respeito de Ciro, o Persa, que reduziu à servidão um
vasto número de homens, cidades e nações, nós somos compelidos a mudar nossa opinião
(metanoia) e decidir que para governar os homens pode ser uma tarefa que não seja nem
impossível, nem difícil, se alguém estiver disposto a isso de uma forma inteligente.249

245
FREUD, Sigmund. Ob. Cit., p. 135.
246
CHAUÍ, Marilena. Ob. Cit., pp. 186 e ss.
247
JUNG, Carl Gustav. Obra Completa. 7/1. Psicologia do Inconsciente. 20ª ed., tradução de Maria
Luiza Appy, Petrópolis: Vozes, 2011, p. 71.
248
JUNG. Carl Gustav. ObraCompleta. 9/2. Aion. Estudo Sobre o Simbolismo do Si-mesmo. 8ª ed.,
tradução de Dom Mateus Ramalho Rocha, Petrópolis: Vozes, 2011, p. 228.
249
XENOFONTES.Cyropedia. 1.1.3, apud NAVE JR., Guia D. The Role and Function of Repentance in
Luke-Acts.Boston; Köln: Brill, 2002, p. 42. Traduçãolivre.No original, eminglês: “Thus as we meditated

110
Por coincidência, foi justamente a metanoia – postura natural em boa parte dos
seres humanos em sua meia idade – o que se operou ao longo da curta vida de La
Boétie. Tão logo conheceu seu amigo íntimo Montaigne, transferiu para ele sua
afetividade (Freud) e, como num espelho, decorrência de sua precoce maturidade
intelectual, refletiu-se a mudança de opinião a respeito da servidão, submetendo-se
também ele – La Boétie – de bom grado à servidão do tirano.Essa reavaliação de
postura não é sequer escondida, ao contrário, é revelada, expressamente, num de seus 29
sonetos publicados post mortem por seu amigo Montaigne:
“Isso fez meu coração, deixar a liberdade.
Para que, hoje, serviria a defesa,
senão para aumentar a pena e a ofensa?
Não sou mais forte, assim como já fui.

A razão esteve um tempo ao meu lado,


hoje revoltada ela vê o que eu penso,
que é preciso servir, e pegar em recompensa
que jamais num tal nó alguém foi preso.

Se é preciso render-se, então é chegado o tempo,


quando não temos mais dever sobre a razão.
Eu não quero nada além do amor,
sem o que eu já não sirvo,

Sem qualquer direito, o que vai ser de mim?


E ver que ainda se deve a este grande Rei,
250
quando ele está errado, é que a razão lhe serve.”

on this analogy, we were inclined to conclude that for man, as he is constituted, it is easier to rule over
any and all others creatures than to rule over men. But when we reflected that there was one Cyrus, the
Persian, who reduced to obedience a vast number of men and cities and nations, we were then compelled
to change our opinion (metanoia) and decide that to rule men might be a task neither impossible nor even
difficult, if one should only go about it in an intelligent manner.”
250
LA BOÉTIE, Étienne. Sonnets d’Estienne de la Boetie.In: MONTAIGNE, Michel. Essais I. Paris:
Gallimard, 2009, p. 566. Tradução livre. No original em francês:
“C’est fait moncoeur, quittons la liberté.
De quoimeshuiserviratladéfense,
Que d’agrandiretla peine et l’ofense?
Plus ne suis fort, ainsi que j’aiété.,

La raison fut un temps de moncoté,


Orrévoltéeelleveut que je pense
Qu’ilfaut servir, etprendreen recompense
Qu’oncq d’untelnoeudnulnefutarête.

S’il se faut render, alorsil est saison,

111
Assim, ao perceber que a vida lhe trazia a amizade/amor de Montaigne, e que
esta, nos moldes em que dela gozava, provocava-lhe felicidade, La Boétie compreendeu
que seria necessária uma mudança de sentido em sua própria vida, uma mudança dos
conceitos e das ideias que tinha a respeito da tirania e de seu modo de vida. A metanoia,
portanto, é que gerou essa aparente incoerência entre o que pensava o jovem
adolescente e o que amadureceu o adulto precoce.
6. Freud explica o Discurso Sobre a Servidão Voluntária.
Localizadas aquelas que parecem ser as possíveis explicações
freudianas/junguianas para a postura um tanto quanto incoerente adotada em vida por
La Boétie, busca-se agora compreender o quanto o texto principal de La Boétie –
Discurso Sobre a Servidão Voluntária – possa, também aqui, ser “discutido” com
Freud.
O Discurso Sobre a Servidão Voluntária de La Boétie apresentou ao menos três
aspectos essenciais que merecem ser considerados nessa pretensão analítica: o primeiro
resume-se ao fato de que o texto é um libelo contra a tirania e identificou o mecanismo
que permite que ela se mantenha; o segundo reside no fato de que La Boétie sustentou a
desobediência civil como forma de evitar a manutenção da tirania; e o terceiro é que La
Boétie apostou que a ausência absoluta de governo central possa ser equivalente à ideia
de liberdade plena a ser almejada pelo povo.
Pretende-se, agora, confrontar estes três pontos centrais do Discurso com os
textos de Freud.
Quanto ao primeiro aspecto acima destacado, La Boétie iniciou sua abordagem
externando que “gostaria apenas de compreender como é possível acontecer, que tantos
homens, tantos burgos, tantas cidades, tantas nações, suportem às vezes um único
tirano, que só tem o poder que lhe outorgam, que não tem poder para ofendê-los, senão
que tenham o poder de suportá-lo; que não saberia fazer-lhes mal algum, senão que
prefiram suportá-lo a contradizê-lo”251. Em seguida complementou dizendo que não
compreendia como milhares de homens admitiam “sofrer as pilhagens, a libertinagem,
as crueldades, não de um exército, não de um campo de bárbaros contra o qual tinham

Quand on n’a plus deverssoi la raison.


Jevoisqu’amour, sans que jele desserve,

Sansaucundroit, se vientsaisir de moi?


Etvoisqu’encorilfaut à cegrandRoi
Quandil a tort, que laraisonlui serve.”
251
LA BOÉTIE, Étienne de.Ob. Cit., p. 32.

112
de derramar o sangue e a vida futura, mas de um só! Não de um Hércules, nem de um
Sansão, mas de um único homúnculo e muitas vezes, o mais covarde e efeminado da
nação”252.
O mesmo La Boétie acabou dando uma resposta ao seu questionamento inicial,
argumentando, num primeiro momento, que a primeira razão da servidão voluntária é o
costume, ou seja, “nascem servos e são criados como tais”253, para depois revelar o que
de fato considerava como sendo “a mola e o segredo da dominação, sustentáculo e
fundamento da tirania”254:
“Sempre houve cinco ou seis que tiveram acesso ao ouvido do tirano, e se aproximaram dele
mesmo, ou foram por ele chamados, para serem cúmplices de suas crueldades, companheiros de
seus prazeres, alcoviteiros de suas luxúrias e parceiros nos bens que pilhava. Esses seis
comunicam-se tão bem com o chefe, que é preciso, para a sociedade, que ele seja mau, não
apenas pelas suas maldades, mas ainda pelas deles. Esses seis têm seiscentos que se aproveitam
deles e fazem desses seiscentos o que os seis fazem com o tirano. Esses seiscentos dominam seis
mil, a quem promoveram e aos quais dão ou o governo das províncias ou o manuseio do
dinheiro e que eles mantém à mão pela avareza e crueldade e a quem executam quando chega o
tempo; fazem-lhes tanto mal que não possam durar senão sob a sombra deles, nem eximir-se das
leis e das penas a não ser por seu intermédio. Grande é a sequencia que se segue e quem quiser
divertir-se descobrindo essa traição, verá que, não os seis mil, mas os cem mil, os milhões, por
esse caminho, apoiando-se nele, chegam ao tirano…”255
Essa é realmente a sacada genial de La Boétie que teve a clareza de identificar
como se estrutura e como se mantém o tirano no poder. Ou seja: não é o tirano quem
usa da força para manter-se no poder, mas são os “cinco ou seis” em torno dele e, num
escalonamento progressivo e hierarquizado, é o povo em geral que o mantém lá, todos
esperando, com isso, algum benefício pessoal. Inverte-se a lógica de Maquiavel, de que
para manter-se no poder “o Príncipe não deve temer a má fama de cruel”256. Aqui, a
servidão precede a tirania. La Boétie lembrou, inclusive, que as pessoas “querem servir
para ter bens”, o que Freud séculos mais tarde identificaria como fruto do desejo gerado
pela falta, onde a falta, quando superada pela conquista do que se desejava, gera o gozo.
É a continuidade desse mecanismo que move o mundo, que dá graça à vida e que
permite ao homem seguir em frente, sem desejar apenas a morte. Para o homem viver é
imprescindível que sempre lhe falte alguma coisa, pois assim, ele estará em constante
busca do gozo e não da morte.
252
LA BOÉTIE, Étienne de.Ob. Cit., p. 33.
253
LA BOÉTIE, Étienne de.Ob. Cit., p. 49.
254
LA BOÉTIE, Étienne de.Ob. Cit., p. 57.
255
LA BOÉTIE, Étienne de.Ob. Cit., pp. 57 e 58.
256
MAQUIAVEL, Ob. Cit., p. 145.

113
Talvez a explicação para o quanto o homem acabe admitindo sofrer em nome de
suprir a falta e de gozar (o que não lhe é dado de forma pronta e imediata toda vez que
ele deseja), é o que Freud ponderou a respeito do conflito entre o “princípio do prazer”
e sua eventual substituição temporária pelo “princípio da realidade”.257 Freud
esclareceu que não obstante não seja correto dizer que o princípio do prazer domina o
curso dos processos psíquicos, há “na psique uma forte tendência ao princípio do
prazer, à qual se opõem determinadas forças ou constelações, de modo que o resultado
final nem sempre corresponde à tendência ao prazer”. E complementou dizendo que
isso se deve por conta da substituição do “princípio do prazer” pelo “princípio da
realidade”, esclarecendo que o primeiro, “por influência dos instintos de
autoconservação do Eu, é substituído pelo “princípio da realidade”, que, sem
abandonar a intenção de obter afinal o prazer, exige e consegue o adiamento da
satisfação, a renúncia a várias possibilidades desta e a temporária aceitação do
desprazer, num longo rodeio para chegar ao prazer.”258
Esse mecanismo psíquico de substituição temporária de um princípio por outro
explica a razão pela qual boa parte das pessoas, mesmo tendo “desprazer” em servir,
continua a fazê-lo “voluntariamente”, agindo, como destacado por Freud,“num longo
rodeio para chegar ao prazer”. Muitos, aliás, como também refere Freud em O Mal
Estar na Civilização, acostumam-se, conformam-se, com o predomínio do “princípio
da realidade” sobre aquele do prazer, contentando-se ao ponto de pensar “ser ele
próprio feliz, simplesmente porque escapou à infelicidade ou sobreviveu ao sofrimento,
e que, em geral, a tarefa de evitar o sofrimento coloque a de obter o prazer em segundo
plano”259. La Boétie, portanto, tem razão, ao identificar como motivo primeiro da
servidão o costume, o comodismo.
De resto, e mesmo diante de circunstâncias de vida submissas e “não
prazerosas”, o homem em geral se mostra insaciável na busca pelo gozo constante a
partir do desejo daquilo que ele não tem. Assim, levando em conta que ele não tem o
poder e as benesses materiais e carnais desse mesmo poder, deseja-o, e são esses os
mecanismos psicológicos que, para além de um mero comodismo, impulsionam o

257
FREUD, Sigmund. Obras Completas, volume 14. História de uma Neurose Infantil (“O homem dos
Lobos”), Além do Princípio do Prazer e Outros Textos (1917-1920), tradução de Paulo César de
Souza, São Paulo: Companhia das Letras, 2010, pp. 162 e ss..
258
FREUD, Sigmund. Ob. Cit., pp. 164 e 165.
259
FREUD, Sigmund. Obras Completas, Vol. 21: O Futuro de uma Ilusão, O Mal Estar na Civilização
e outros trabalhos (1927-1931). Edição standard brasileira das obras completas. Rio de Janeiro: Imago
Editora, 1996, p. 85.

114
homem a revelar-se pronto a servir e submeter-se aos limites impostos pelo detentor do
poder. Apresenta-se, portanto, como um jogo de mão dupla, onde o tirano dá o limite e
o servo, porque é reprimido, deseja ter o que não tem. É como recorda Jacinto Nelson
de Miranda Coutinho: “desejo é fruto do limite, dado que se deseja o que não se
tem”260.
Assim, o homem insere-se voluntariamente nessa servidão ao tirano pensando,
em ultima ratio, em servir a si mesmo e não ao soberano. Nesse aspecto mais uma vez
destaca-se Freud, agora em O Futuro de uma Ilusão, quando afirma que “essa
identificação das classes oprimidas com a classe que as domina e explora é, contudo,
apenas uma parte de um todo maior. Isso porque, por outro lado, as classes oprimidas
podem estar emocionalmente ligadas aos seus senhores; apesar de sua hostilidade para
com eles, podem ver neles os seus ideais”261.
No primeiro escalão não se trata, portanto, de apenas desejar ser amigo “do Rei”;
deseja-se ser o próprio Rei. Só num escalonamento para baixo, como bem mostra La
Boétie, é que as pessoas se contentam em ser amigo do Rei e, depois, em ser amigo-do-
amigo do Rei e assim por diante, numa estrutura entrelaçada de interesses e desejos não
satisfeitos pelos limites impostos por aqueles que estão logo acima. E, enquanto não for
possível ser o próprio Rei e superar as barreiras limitativas impostas por este e pelos que
estão a ele ligados, goza-se com as benesses da proximidade, como fez, aliás, o próprio
La Boétie.
O problema revela-se, no entanto, quando o povo toma consciência de que essa
“espera” pelo acesso ao poder tende a ser perene, a não findar. Nesse caso, como
destaca Lacan, apoiado em Hegel, o que acontece é que “Ao exigir ser reconhecido ali
onde sou reconhecido, sou reconhecido apenas como objeto. Obtenho o que desejo, sou
objeto, e não consigo me suportar como objeto, já que esse objeto que sou é, em sua
essência, uma consciência, uma ‘Selbstbewsstsein’”262 É normalmente aí que a
desobediência civil aparece como solução urgente, porém temporária, como se passa a
expor.
O segundo ponto de destaque da obra de La Boétie, como dito, é a desobediência
civil, apresentada como solução para evitar a continuidade da tirania. A síntese dessa
ideia foi dada pela frase de La Boétie: “sede resolutos em não servir mais e eis-vos
260
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Perspectivas para o futuro do Direito. In: Jornal Carta
Forense, agosto de 2011, p. B26.
261
FREUD, Sigmund.Ob. Cit., p. 23.
262
LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 10. A Angústia. Tradução de Vera Ribeiro, Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2005, p. 33.Selbstbewsstsein, em tradução livre, é algo como“autoconfiança”.

115
livres”263. E mais adiante reforçou: “que ponham um pouco de lado a ambição e que se
livrem da avareza e depois se olhem a si mesmos e se reconheçam…”264. A libertação
da tirania adviria da desobediência, da recusa pública e pacífica em servir ao Rei,
situação que conduziria à ruína da estrutura do poder central e permitiria a libertação
plena do povo.
No entanto, ainda que o mecanismo da desobediência civil seja válido e por
vezes até eficaz, como já se viu em termos concretos com Mahatma Gandhi265 e Martin
Luther King, para ficar nos dois exemplos mais marcantes do século XX, há que se
considerar que a pretensão de liberdade plena não é passível de ser sustentada por muito
tempo, haja vista a vontade inerente a cada ser humano de ser ele também um tirano em
potencial. Nesse sentido Freud, em O Futuro de uma Ilusão266, alertava:
“Pensar-se-ia ser possível um reordenamento das relações humanas, que removeria as fontes de
insatisfação para com a civilização pela renúncia à coerção e à repressão dos instintos, de sorte
que, imperturbados pela discórdia interna, os homens pudessem dedicar-se à aquisição da
riqueza e à sua fruição. Essa seria a idade do ouro, mas é discutível se tal estado de coisas pode
ser tornado realidade. Parece, antes, que toda civilização tem de se erigir sobre a coerção e a
renúncia ao instinto; sequer parece certo se, caso cessasse a coerção, a maioria dos seres
humanos estaria preparada para empreender o trabalho necessário à aquisição de novas
riquezas. Acho que se tem de levar em conta o fato de estarem presentes em todos os homens,
tendências destrutivas e, portanto, anti-sociais e anticulturais, e que, num grande número de
pessoas, essas tendências são suficientemente fortes para determinar o comportamento delas na
sociedade humana.”
Ou seja: na anomia que possa se verificar logo após o sucesso de uma
empreitada de desobediência civil plena, a lacuna do poder não demoraria a ser
preenchida e, com ela, surgiria o risco de uma nova tirania impor-se, iniciando um novo
ciclo. É como lembra mais uma vez Jacinto Nelson de Miranda Coutinho: “Rei morto,
Rei posto: e viva o Rei!”267.
Assim, não obstante a desobediência civil seja um caminho importante contra a
tirania, e isso é preciso ser reconhecido, de outra sorte, também não é possível olvidar
da natureza humana que, ao gozar com a conquista do poder, conduz esse mesmo

263
LA BOÉTIE, Étienne de.Ob. Cit., p. 38.
264
LA BOÉTIE, Étienne de.Ob. Cit., p. 59.
265
Este, inclusive, influenciado pelo texto A Desobediência Civil,do norte-americano Henry David
Thoreau (THOREAU, Henry David. A Desobediência Civil. Tradução de Sérgio Karam, Porto Alegre:
L&PM, 1997).
266
FREUD, Sigmund. Ob. Cit., p. 17.
267
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Ensino do Direito na UFPR: Voto à Esperança! In: Revista
da Faculdade de Direito da UFPR, v. 36, 2001, p. 143.

116
homem para caminhos que nem sempre correspondem ao que pretendia a imaginação,
aqui um tanto utópica, de La Boétie.
O terceiro aspecto essencial que também é possível extrair da obra de La Boétie
está relacionado à ideia de que a liberdade plena só aconteceria quando ninguém se
submetesse a qualquer espécie de poder central. A esse respeito disse La Boétie: “se
vivêssemos com os direitos que a natureza nos deu e com os ensinamentos que ela nos
forneceu, seríamos naturalmente obedientes aos pais, sujeitos à razão e servos de
ninguém”268.E prosseguiu: “é aí que a natureza, o ministro de Deus, o governante dos
homens, nos fez todos da mesma forma, e, como parece, do mesmo molde, para que
todos nos reconhecêssemos uns aos outros como companheiros, ou antes, como
irmãos”269. E, mais adiante, ainda reforçou seus argumentos, dizendo que:
“se da aventura nascessem hoje pessoas totalmente novas, não acostumadas à sujeição, nem
atraídas à liberdade, que não soubessem nem de um, nem de outro, nem mesmo os nomes; se
lhes propusessem ser servos ou viver livres, não concordariam com as leis daqueles: não há
dúvida de que prefeririam obedecer mais somente à razão, do que servir a um homem.”270
A explicação para esse natural inconformismo que La Boétie apresenta em sua
obra e que o conduz a acreditar que no estado de natureza tudo se resolveria, é dada por
Freud em O Mal-Estar na Civilização, onde ele identifica as três fontes de onde provém
o sofrimento do homem: “o poder superior da natureza, a fragilidade de nossos
próprios corpos e a inadequação das regras que procuram ajustar os relacionamentos
mútuos dos seres humanos na família, no Estado e na sociedade”271. A terceira fonte de
sofrimento é que leva Freud a admitir não ser incomum o ser humano considerar que “o
que chamamos de nossa civilização é em grande parte responsável por nossa desgraça
e que seríamos muito mais felizes se a abandonássemos e retornássemos às condições
primitivas”272. E em seguida Freud ainda sintetiza o que moveria o homem a alcançar
esse quadro de insatisfação, dizendo que ele vem à tona quando se descobre que uma
pessoa se torna neurótica porque não pode tolerar a frustração que a sociedade lhe
impõe, a serviço de seus ideais culturais, inferindo-se disso que a abolição ou redução
dessas exigências resultaria num retorno a possibilidades de felicidade”273.Ou seja: à
luz do entendimento freudiano é plenamente compreensível que La Boétie tenha
externado essa crítica.
268
LA BOÉTIE, Étienne de.Ob. Cit., p. 38.
269
LA BOÉTIE, Étienne de.Ob. Cit., p. 39.
270
LA BOÉTIE, Étienne de.Ob. Cit., p. 42.
271
FREUD, Sigmund. Ob. Cit., p. 93.
272
FREUD, Sigmund. Ob. Cit., p. 93.
273
FREUD, Sigmund. Ob. Cit., p. 94.

117
De outro lado, o mesmo Freud apresenta frontal discordância a esse
pensamento de La Boétie, levando em conta a condição psicológica da formação do ser
humano, pendente para a agressividade natural274 que, como explica em O Futuro de
uma Ilusão, só pode ser contida na civilização, mediante o controle de uma minoria: “É
tão impossível passar sem o controle da massa por uma minoria, quanto dispensar a
coerção no trabalho da civilização...”275.
Freud aqui seguiu a linha do contrato social presente desde os gregos antigos
em Platão276, e melhor estruturada, dentre outros,em Hobbes (1651)277, Locke
(1690)278,Montesquieu (1748)279 e Rousseau (1762)280. Destes autores Freud parece ter
preferido, na essência, Hobbes, Locke e Montesquieu, uma vez que Rousseau
considerava que o homem nasce bom e é “estragado” pelo meio, ao passo que os
demais, junto com Freud, entendiam justamente o inverso. Procedendo a uma análise do

274
“A existência da inclinação para a agressão, que podemos detectar em nós mesmos e supor com
justiça que ela está presente nos outros, constitui o fator que perturba nossos relacionamentos com o
nosso próximo e força a civilização a um tão elevado dispêndio [de energia]. Em consequência dessa
mútua hostilidade primária dos seres humanos, a sociedade civilizada se vê permanentemente ameaçada
de desintegração. O interesse pelo trabalho em comum não a manteria unida; as paixões instintivas são
mais fortes que os interesses razoáveis. A civilização tem de utilizar esforços supremos a fim de
estabelecer limites para os instintos agressivos do homem e manter suas manifestações sob controle por
formações psíquicas reativas”(FREUD, Sigmund. Ob. Cit., p. 117).
275
FREUD, Sigmund. Ob. Cit., p. 17.
276
Platão parece ter sido o pioneiro nessa análise: “Assim, quando os homens injustiçam e são
injustiçados e conhecem ambas as coisas, os que não têm poder para evitar uma e cometer a outra
determinam que, para seu próprio bem, devem fazer um pacto uns com os outros a fim de não cometer
nem sofrer injustiça; e esse é o princípio da legislação e dos convênios entre os homens, e de eles
chamarem lícito e justo o que a lei manda, e do fato de ser essa a gênese e a natureza da justiça, um
meio-termo entre o melhor, que é cometer a injustiça impunimente, e o pior, que é sofrer a injustiça e não
ter poder para se vingar.” (PLATÃO, Ob. Cit.).
277
HOBBES, Thomas. Leviatã ou material, formas e poder de um estado eclesiástico e civil.
Tradução de Rosina D’Angina. São Paulo: Martin Claret, 2009, p. 98: “Da lei fundamental da Natureza,
que ordena aos homens que procurem a paz, deriva esta segunda lei: o homem deve concordar com a
renúncia a seus direitos sobre todas as coisas, contentando-se com a mesma liberdade que permite aos
demais, na medida em que considerar tal decisão necessária à manutenção da paz e de sua própria
defesa.”
278
LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo. Tradução de Alex Marins, São Paulo: Martim
Claret, 2002, p. 61: “...o homem nasce com direito a perfeita liberdade e gozo ilimitado de todos os
direitos e privilégios da lei da natureza (...) “Contudo, uma vez que uma sociedade política não pode
existir nem manter-se sem ter em si o poder de preservar a propriedade e, para isso, punir as ofensas
cometidas contra qualquer dos seus membros, só podemos afirmar que há sociedade política quando
cada um dos membros abrir mão do próprio direito natural transferindo-o à comunidade, em todos os
casos passíveis de recurso à proteção da lei por ela estabelecida.”
279
MONTESQUIEU, Charles-Louis de Secondat, Barão de La Bréde e de. Do Espírito das Leis.Os
Pensadores, São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 122: “No seu estado natural, os homens nascem numa
verdadeira igualdade, mas não podem permanecer nela. A sociedade faz com que a percam e apenas
retornam à igualdade pelas leis.”
280
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social ou princípios do direito político. Tradução de
Lourdes Santos Machado, Os Pensadores, São Paulo: Abril Cultural, 1973, pp. 38 e 39.:“Encontrar uma
forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado com toda a força
comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedece contudo a si mesmo, permanecendo assim
tão livre quanto antes.” (...) cada um de nós põe em comum sua pessoa e todo o seu poder sob a direção
suprema da vontade geral, e recebemos, enquanto corpo, cada membro como parte indivisível do todo”.

118
quanto sucederia ao homem de natureza violenta no estado de natureza pregado por La
Boétie, Freud apresenta o seguinte cenário:
“se se imaginarem suspensas as suas proibições – se, então, se pudesse tomar a mulher que se
quisesse como objeto sexual; se fosse possível matar sem hesitação o rival ao amor dela ou
qualquer pessoa que se colocasse no caminho, e se, também, se pudesse levar consigo qualquer
dos pertences de outro homem sem pedir licença –, quão esplêndida, que sucessão de
satisfações seria a vida! É verdade que logo nos deparamos com a primeira dificuldade: todos
os outros têm exatamente os mesmos desejos que eu, e não me tratarão com mais consideração
do que eu os trato. Assim, na realidade, só uma única pessoa se poderia tornar irrestritamente
feliz através de uma tal remoção das restrições da civilização, e essa pessoa seria um tirano,
um ditador, que se tivesse apoderado de todos os meios de poder. E mesmo ele teria todos os
motivos para desejar que os outros observassem pelo menos um mandamento cultural: ‘não
matarás’. Mas quão ingrato, quão insensato, no fim das contas, é esforçar-se pela abolição da
civilização!”
Como se vê, portanto, da análise freudiana, a proposta de La Boétie, se bem
sucedida, em última análise provocaria o retorno ao combatido estado de tirania.
7. Conclusão.
De tudo quanto foi dito é possível concluir que o Discurso Sobre a Servidão
Voluntária, de Étienne de La Boétie, não obstante tenha sido escrito há quase
quinhentos anos e o próprio La Boétie não tenha conseguido aplica-lo na prática em
vida, ainda se mostra uma obra de imprescindível leitura, que permite bem compreender
como ainda hoje as estruturas de poder se mantém intactas. A clareza de percepção da
realidade do exercício do poder tirânico, externada por La Boétie, permite evidenciar
que o poder se mantém amarrado aos interesses pessoais de cada um, os quais, segundo
Freud, são gerados pela falta que origina o desejo e a necessidade de estar em constante
busca do gozo. É isso, em última análise, que conduz o homem a “servir
voluntariamente” ao tirano de plantão.
Não é à toa, portanto, que nos diversos escalões de governo nos dias de hoje, em
particular naqueles que se dizem democráticos e, assim, dependem do voto de uma
população servil para a perpetuação da tirania, se criem tantos Ministérios inúteis, tantas
Secretarias desnecessárias, tantas Agências inoperantes, tantos Municípios e respectivas
Câmaras deficitárias, tantas Assembleias Legislativas inchadas e que, em cada um
destes setores, se criem tantos e tantos cargos, preferencialmente em comissão,
distribuídos estrategicamente como moeda de barganha nos mais variados setores
públicos e privados, sem que da maioria dos seus ocupantes sequer se exija a presença e
o ponto. Não é à toa, ainda, que os participantes dessa estrutura, mesmo não agraciados

119
com o voto popular, sempre estejam, aqui ou ali, sendo favorecidos com novos cargos e
novas prebendas, perpetuando-se no poder. Essas estruturas de apadrinhamento
revelam-se, em sua grande maioria, absolutamente dispensáveis ao bem estar da
população, mas são essenciais para manter o soberano no poder, gozando e agindo com
descontrolada liberdade no trato da coisa pública. Quanto mais ampla, ramificada e
hierarquizada forem as estruturas do poder, como se vê do texto de La Boétie, mais
difícil será conseguir livrar-se de um poder absoluto e que tende a limitar cada vez mais
as liberdades do homem.
A pretendida saída da desobediência civil por vezes se mostra um caminho
interessante, capaz de levar a mudanças, mas não há como olvidar, com Freud, que os
homens, em geral – assim como sucedeu com o próprio La Boétie – acabam priorizando
suas ambições pessoais em detrimento de um difícil desprendimento material que
permita concretizá-la.
De outra sorte, ainda que se possa conseguir um clima capaz de impulsionar o
povo à desobediência civil coletiva, não se deve desconsiderar que o estado de natureza
também não é visto como solução adequada. É como se o Estado atuasse como o
superego da coletividade, um “superego cultural”, como diz Freud281.A liberdade,
então, deve acontecer sem o abandono da civilização, visto que o seu contrário seria a
barbárie, ou seja, a ausência absoluta de liberdade. Cria-se, então, um paradoxo, pois,
nessa quadra, o medo de algo pior que o modelo presente de tirania, também atua como
fator inibitório de novos rumos contribuindo para que “as pessoas cultas e honestas”
acabem “preferindo a servidão à anarquia”, reforçando ainda mais o poder tirânico,
como bem identificou Prévost-Paradol em seu Estudo Sobre os Moralistas Franceses282.
Assim, ao mesmo tempo em que o povo mais esclarecido se submete à tirania porque
não deseja a anarquia, também não tolera essa mesma tirania e deseja a liberdade plena,
não podendo, no entanto, descurar das conquistas da civilização. Gera-se, portanto, a
perene sensação de mal-estar na civilização, como bem sintetizou Sigmund Freud.

281
FREUD, Sigmund. Ob. Cit., p. 144.
282
PRÉVOST-PARADOL. Estudo Sobre os Moralistas Franceses. In:LA BOÉTIE, Étienne de. Discurso
Sobre a Servidão Voluntária. Tradução para o português de J. Cretella Jr. e Agnes Cretella, 2ª ed., São
Paulo: RT, 2009, pp. 110-111.: As pessoas cultas não se enganam tão facilmente quanto o vulgo, mas
podem desesperar-se ao separar duas coisas tão sutilmente mescladas; e se não vêem nenhum meio de
sujeitar-se à obediência; sem a qual a sociedade não pode viver, sua nobreza e pureza naturais, os mais
honestos dentre eles podem ser tentados a aguentá-la sob a forma mentirosa e pesada que lhe deram,
antes que abalar todo o Estado. É esse tipo de resignação que se denominou, em todos os tempos e em
todas as línguas, de ‘preferir a servidão à anarquia’”.

120
Assim, levando em conta a percepção genial de La Boétie a respeito de como o
poder se mantém intacto, aliada à condição gananciosa da natureza humana apontada
por Freud e, considerando a necessidade de não se abandonar a civilização em nome de
um estado de natureza, há que se procurar construir mecanismos que permitam evitar
que as atuais estruturas de poder possam continuar sendo eternizadas e conduzidas por
interesses exclusivamente vinculados à manutenção desse mesmo poder em detrimento
da liberdade do povo.
Um bom começo no contexto do Estado democrático de direito seria restringir a
reeleição e o apadrinhamento dos cargos públicos, eliminando os milhares de cargos
ociosos que, em última análise, servem apenas criar a rede de proteção que mantém o
status quo e o poder pelo poder, permitindo, a partir daí, melhor controle sobre a coisa
pública e a Constituição de uma sociedade mais livre, justa e solidária, objetivos
fundamentais, dentre outros,da República Federativa do Brasil.

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