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C AU / S P

D O
R E V I S TA

#2 OUTUBRO DE 2014
A

Arquitetura Pública
Dossiê investiga os rumos do desenvolvimento
brasileiro e o papel do arquiteto. Observatórios
discutem obras públicas, cidades, direitos urbanos,
meio ambiente e educação. Ermínia Maricato
explica, em entrevista, como a arquitetura pode ir na
contramão da hegemonia
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Admitamos, por ora, que arquitetura seja coi- SILKE KAPP | Professora da Universidade Federal de Minas Gerais Na tradição ocidental, a ar- ABILIO GUERRA | Arquiteto, editor e professor da FAU Mackenzie
sa feita por arquitetos. Tal como a exercemos, a quitetura é uma das três artes
profissão dos arquitetos pressupõe uma socieda- A ARQUITETURA plásticas: como na pintura e na ARQUITETURA
de desigual, porque se funda na separação entre
trabalho material e trabalho intelectual e se ins-
DO ARQUITETO escultura, a rotina e o intelec-
to convertem matéria em objeto
PARA HOJE
titucionaliza num processo histórico de especia- artístico. No século I a.C, Vitrú-
lização que Bourdieu chamou de “divisão do tra- vio ressalta que além da venus-
balho de dominação”. Nesse sentido, não existe tas (beleza) e da firmitas (solidez), seiva da cultura nacional, enraiza- do a discussão sobre o contexto
boa arquitetura. a arquitetura tem compromisso da no território. No início do sé- urbano e o respeito pela cidade
No entanto, a divisão do trabalho de domina- também com a utilitas (utilidade). culo 20, as vanguardas acusam a tradicional. O segundo é a entra-
ção gera um aparato tão sofisticado e emaranha- Durante séculos, este elemen- arquitetura de anacronismo: seus da em cena da agenda hipertro-
do que seus agentes perdem a noção daquilo que to de distúrbio fica sob controle, valores estéticos e rotina artesa- fiada dos grupos sociais de base,
realizam socialmente. São levados a tomar suas pois a função social da arquitetu- nal são incompatíveis com a era que se desdobra em experimen-
próprias fantasias e (boas) intenções subjetivas ra era demasiado estreita. da máquina; sua ambição social tos técnico-construtivos na área
por resultados sociais objetivos. Um passo na di- A cena muda com a Revolu- burguesa não atende as deman- da habitação social. O terceiro é
reção de uma arquitetura melhor seria suspender ção Francesa. As artes ocupam das das camadas média e prole- a sustentabilidade, pauta oriun-
tais ilusões e compreender os reais papéis sociais papel ideológico estratégico na tária emergentes. Surge a arqui- da da Eco 92, que não só recu-
da arquitetura dos arquitetos, isto é, as hetero- conformação do Estado moder- tetura moderna. pera como torna central a preo-
nomias que ela impõe ou para as quais contribui no burguês. A escrita das histó- O Brasil aristocrático do início cupação ecológica que habita a
substancialmente. rias nacionais vai ter na arqui- do século 20 vive de forma com- arquitetura brasileira desde sua
Penso que essa empreitada crítica abran- tetura vigoroso sustentáculo na pacta a cena descrita. A incorpo- origem. Reciclagem de edifícios
ge pelo menos quatro dimensões. A primeira é defesa de uma arte onde corre a ração dos valores modernistas se obsoletos, proteção do patrimô-
a heteronomia imposta à produção no canteiro, sobrepõe aos desafios da nação nio, reurbanização de favelas, ex-

O QUE
cuja teorização a partir de Marx devemos sobre- jovem, recém saída do Império perimentos de habitação social e
tudo a Sérgio Ferro. A segunda é a heterono- e da escravidão. É necessário ser desenvolvimento sustentável das
mia no ordenamento espacial da sociedade, tal moderno, mas também brasilei- cidades são atividades em curso,

É BOA
como analisada por Henri Lefebvre. A terceira ro. As agendas do universalismo mesmo que incipientes. A obra de
é a heteronomia das distinções simbólicas, que moderno e do localismo românti- Lelé – inspiradora por seu enga-
não apenas ilustram diferenças de classes, mas co se amalgamam em uma visão jamento sociocultural, desenvol-

ARQUI
são diferenças de classes, como mostrou Pierre de mundo peculiar, matizada mas vimento tecnológico apropriado
Bourdieu. E a última é a heteronomia do ades- não superada pela ideologia de e preocupações ambientais – é
tramento funcionalista de corpos e gestos, que esquerda dos anos 1960 e 1970. O exemplo maior de uma arquite-

TE
foi tematizada por muitos autores ao longo do moderno vira tradição, reiterada tura obrigada a renovar sua tra-
século XX (talvez por ser a de combate mais fá- por um modus operandi estabili- dição.
cil). Sem as atividades que os arquitetos exercem zado por gerações de arquitetos e É possível agora responder a

TURA
agora, os trabalhadores do canteiro talvez deci- consagrado por mecanismos cul- questão: a boa arquitetura é a que
dissem por sua conta o que fazer e como, os cida- turais e ideológicos – teses acadê- enfrenta de forma inventiva as
dãos negociariam entre si o território coletivo, o micas, livros, bienais, exposições, necessidades espirituais e mate-
repertório simbólico seria fruto de imaginação e congressos etc. riais de uma coletividade em uma
juízos livres, e não haveria cockpits e Disneylân- Contudo, desde os anos 1980 determinada época. Ela é enge-
dias em que cada movimento dos ‘usuários’ foi AFINAL, A QUEM SERVE A ARQUITETURA? ao menos três elementos impe- nho e compromisso. A agenda e
previamente determinado por alguém. ELA DEVE ENFRENTAR DE FORMA INVENTIVA dem a esterilidade desse proces- os bons exemplos estão aí, mas
Toda arquitetura que abra brechas nesses me- A COLETIVIDADE DE DETERMINADA ÉPOCA so de formação. O primeiro é a a escala de nossas deficiências é
canismos de dominação é boa – pelos menos nos OU ABRIR BRECHAS NOS MECANISMOS DE voga pós-moderna, inicialmen- enorme. E a responsabilidade?
limites de uma sociedade não emancipada. DOMINAÇÃO DA SOCIEDADE? te caricata, mas que leva a fun- Bem, esta é coletiva.

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