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Autismo e Cérebro Social


Compreensão e Ação

Fátima Dourado

Fortaleza – 2012
Copyright © 2012 Fátima Dourado

Editoração Eletrônica e Capa Alexandre Costa e Silva


Revisão de Texto Rogeria de Assis B. Vasconcelos
Foto da Capa Paulo Canito

Impressão e Acabamento

GRÁFICA E EDITORA ASSIS ALMEIDA LTDA.


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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação na Fonte (CIP)

D739a Dourado, Fátima


Autismo e cérebro social: compreensão e ação/
Fátima Dourado.-Fortaleza: Premius, 2012.

208p.

ISBN 978-85-7564-570-3

1. Autismo. 2. Psiquiatria. 3. Educação especializada.


4. Psicologia. I.Título.

CDU 616.896
para Giordano e Pablo
APRESENTAÇÃO

Este livro não pode ser dissociado de uma pessoa — Fátima


Dourado — nem de uma organização — a Casa da Esperança. O au-
tismo, seu objeto, fica entrelaçado pelas experiências pessoais que de
quem criou e foi criada pela Casa da Esperança — a autora.
Falemos primeiro da pessoa e depois da obra. Fátima Doura-
do é e sempre foi uma pessoa entusiasmada e vibrante que contami-
na os outros com sua dedicação e compromisso com as causas que
abraça. Não poderia ser diferente com estas páginas nem com a Casa
da Esperança.
O tema do autismo, embora importante para toda a sociedade
tem sido pouco discutido no Brasil. O livro Autismo e Cérebro Social,
Compreensão e Ação, vem aprofundá-lo com a experiência da autora
de quase vinte anos na Casa da Esperança, produzindo e disseminan-
do conhecimentos sobre o tema.
O texto pode ser divido em três partes. A primeira, absoluta-
mente tocante, relata de forma emocionada as agruras vividas pela au-
tora buscando uma melhor assistência para seus dois filhos autistas, é
uma mensagem de esperança para as famílias que vivem essa situação.
A via crucis da autora é permeada de cenas que tocam profundamente
as mentes e os corações dos que têm oportunidade de lê-las.
Na segunda parte, a autora analisa os modelos teóricos de
compreensão do autismo e as propostas de atendimento baseadas
nos mesmos. As características comportamentais de uma criança
com autismo, nos primeiros anos de vida são descritos minucio-
samente, facilitando a identificação precoce dos desvios de desen-
volvimento. A seguir, há uma descrição dos critérios diagnósticos
adotados atualmente das várias formas de apresentação do autismo.
Nestes capítulos, há uma discussão das possiblidades e limites de
várias abordagens terapêuticas, inclusive a medicamentosa no autis-
mo. Um capítulo especial é dedicado à neurociência social e à des-
crição da neurobiologia do autismo.
Na terceira parte, um relato detalhado da história e modo de
funcionamento da Casa da Esperança, um dos maiores centros co-
nhecidos de estudos e atendimento de pessoas autistas, que traduz
para a clinica diária com autistas e familiares os conhecimentos cien-
tíficos produzidos no Brasil e no mundo.
A maneira como o livro foi escrito é envolvente. Inicia com o
relato da mãe desamparada, da médica ainda inexperiente em autismo
chegando ao termino com a esperança instalada não apenas na família
de Fátima Dourado, mas na de 400 famílias atendidas. O livro exorta
as pessoas à superação.
O que se lerá a seguir representa portanto uma declaração de
compromissos da autora com a ciência, a família, a sociedade e, prin-
cipalmente, com a Esperança.

Fabio Gomes de Matos e Souza


Professor associado de psiquiatria
da Universidade Federal do Ceará
Ph.D em psiquiatria
pela Universidade de Edimburgo
PREFÁCIO

Conheci Fátima Dourado em um daqueles momentos críticos da


vida em que uma pessoa está decidindo quem vai ser, logo que sai da
adolescência. Tinha 20 anos de idade. Na verdade, antes disso, conhecia
outra Fátima, a que aparecia na TV, inalcançável, a guerreira, a amazona.
Símbolo público da força da Mulher, sem nunca abdicar da do-
çura, ela era modelo de muitas outras mulheres de sua geração. Essa
mulher, eu já conhecia, e até admirava. Mas nunca aprendi a amar.
A mulher que me fez descobrir quem sou, e me definiu, de cer-
to modo, como profissional e como homem, não era heroína em abso-
luto. Era a mãe de quatro filhos pequenos, dois dos quais com autismo,
e agora é também a mãe dos meus dois filhos, Gabriel e Teresa.
Essa mulher é forte, tal como a outra, mas sua força advém de
uma corajosa aceitação de sua humanidade, de seus limites, de sua
fragilidade. É mais complexa que a outra, e incomparavelmente mais
apaixonante. É a mulher da minha vida.
Nestas páginas, você a conhecerá um pouco. Além disso, você
também será apresentado às tantas perguntas e algumas respostas
concretas que a ciência atual formulou sobre o autismo.
Fátima criou e é cria da Casa da Esperança, uma oficina de te-
rapeutas geniais que a têm como modelo e a nossos pacientes autistas,
como professores: mais de 400 famílias são atendidas, atualmente, em
nossas instalações, em dois estados brasileiros.
Meu amor por ela só aumentou com o passar dos quase vinte
anos que temos dividido, pessoal e profissionalmente. Com ela apren-
di muito. Desde que abraçou o autismo profissionalmente, há quase o
mesmo tempo, criou um inquebrantável foco de atenção sobre qualquer
texto contendo a palavra autismo. Leitora voraz, quase toda a literatura
disponível sobre o assunto já passou pelo crivo de seu cérebro poderoso.
Lendo este livro, você terá a oportunidade de ler o autismo pe-
los seus olhos castanhos e atentos, aos quais não escapa nenhum deta-
lhe da curiosa complexidade do tema.
Você apreciará as diferentes formas de ver o autismo, e de lidar
com ele. E talvez descubra que o que considerava uma tragédia pode
ser desafio criativo, motor de uma nova maneira de interagir com seu
filho, paciente ou aluno com autismo.
Sua perspectiva não é acadêmica, é antropofágica: toda a litera-
tura que ela consumiu também processou, cotejou com sua experiên-
cia profissional e pessoal, como mãe de duas pessoas com transtorno
do espectro do autismo, e converteu em palavras doces e densas, que
tanto vão informar e instrumentalizar como também encantar e emo-
cionar você.
Sinto-me privilegiado por dividir a vida com Fátima. Este livro
representa um fragmento importante desse privilégio, dividido com
você, que o está lendo agora.

Alexandre Costa e Silva


Psicólogo e psicoterapeuta
Presidente da Casa da Esperança
SUMÁRIO

1 UM POUCO DA MINHA HISTÓRIA COM O Autismo 15


Momentos Difíceis 22
Encontros e Desencontros 24
O Fim e o Começo 25
Cortando a Própria Carne 28
O Anjo da Guarda 31
Alexandre Dourado e Gustavo 37
Pablo 38
Alegria e Sabedoria Diferentes 39

2 DIAGNÓSTICO PRECOCE: O Autismo NOS


PRIMEIROS MESES DE VIDA 47
O Bebê Humano Típico 47
O Desenvolvimento da Subjetividade 49

3 O Autismo NO SEGUNDO ANO DE VIDA 53


A Interação Ajuda a Desenvolver a Comunicação 54
Competência Comunicativa 54

4 O Autismo DOS TRÊS AOS CINCO ANOS 57


Isolamento Social 57
Dificuldade de Comunicação Social 58
Comunicação não Verbal 59
Incapacidade para Brincar 59
Dificuldades Adaptativas 60
Estereotipias Motoras 60
Dificuldades Escolares 60
Rigidez Comportamental 61
Interesses Incomuns 61
Desmodulação Sensorial 61
Interesse por Videogames e Objetos Eletrônicos 62

5 TRANSTORNOS DO ESPECTRO AUTISTA 63


Transtorno Autista 63
A História de Pedro 63
Um Drama Cada Dia mais Comum 66
Autismo na CID 10 67
Autismo no DSM-IV 67
Autismo Clássico 68
Prevalência 69
Autismo e Gênero 69
Critérios Diagnósticos 70
Prognóstico 72
Síndrome de Asperger 72
Histórico 74
Critérios Diagnósticos 75
Fala Característica 77
Dificuldades Motoras 79
Ensino Regular 79
Prognóstico 79
Transtorno Desintegrativo da Infância 80
Curso 81
Critérios Diagnósticos 82
Síndrome de Rett 83
Diagnóstico 84
Evolução Clínica 85
Genética 87
Critérios Diagnósticos 88
Transtorno Global do Desenvolvimento, sem
Outra Especificação 89
Transtorno do Desenvolvimento Múltiplo e Complexo (TDMC) 89
Transtorno de Evitação Patológica das Demandas (EPD) 90
Transtorno do Prejuízo Multidimensional 90
Transtorno Esquizoide Infantil 90
Transtornos de Vinculação (Transtornos Reativos da Infância) 90
Transtornos de Aprendizado não Verbal 91

6 O DIAGNÓSTICO 93
Algumas Questões Importantes 95
Avaliação 96
Anamnese 96
Observação Direta 97
Exame Físico 100
Condições Associadas 100
O Diagnóstico 102

7 INTERVENÇÃO PRECOCE 103

8 O MODELO SCERTS 109


Comunicação Social 110
Inclusão Escolar 111
Suportes Transacionais 111
Etapas do Modelo 113
Em Busca da Unidade 114
9 DIFERENTES ABORDAGENS 115
Floortime 115
Método TEACCH 116
Programa Son-Rise 117
Análise do Comportamento Aplicada (ABA) 118
PECS 119
Currículo Funcional Natural 120
SCERTS 122

10 ABORDAGEM MEDICAMENTOSA 123


Agressividade, Surtos Explosivos, Oscilação de Humor 126
Discinesias 127
Déficit de Atenção, Hiperatividade 128
Comportamentos Ritualísticos 129
Estereotipias Motoras 129
Distúrbios do Sono 129
Interrupção do Uso de Psicofármacos 130
Conclusão 130

11 AS TEORIAS COGNITIVAS DO Autismo 131


Teoria da Mente 131
Testes para Medir a Teoria da Mente 134
Aos Dezoito Meses 135
Histórias da Teresa 137
Teoria do Déficit nas Funções Executivas 138
Autismo e Funções Executivas 139
Teoria da Fraca Coerência Central 140
Em Busca de um Elo Perdido 141
12 O Autismo COMO EXTREMO DO CÉREBRO
MASCULINO 145
O Cérebro Masculino 147
Testes de Capacidade Empática e de Sistematização 148
Capacidade de Sistematização 149
Um Pouco mais sobre as Diferenças entre os Sexos 150
Um Pouco mais sobre o Cérebro extremamente
Masculino 151

13 NEUROCIÊNCIA SOCIAL 155


O Cérebro Social 155
O Poder dos Relacionamentos 155
Neurociência Social 156
Estruturas e Mecanismos de Ação do Cérebro Social 157
A Amígdala 157
Wi-Fi Neural 158
Neurônios Espelho e Aprendizagem 158
Algumas Informações Importantes sobre o Cérebro Social 159
Instinto de Compaixão 159
As Janelas da Alma 160
Localização Topográfica Estratégica 161
A Velocidade da Via Secundária 161
A Importância dos Relacionamentos 162
As Escolhas da Via Principal 162
Neurociência Social e Autismo 163
Cérebro Social e Autismo 163
Estudos de Neuroimagem 166
Teoria do Mapa Topográfico Emocional 167
14 A CASA DA ESPERANÇA 169
Um Pouco de História 169
Estrutura e Modelo de Atuação 171
Núcleo de Atenção à Saúde 171
Circuito de Estimulação Neurossensorial 172
Oficinas Terapêuticas 173
Vivências Terapêuticas 174
Núcleo de Educação Especializada 174
A importância da Inclusão 175

15 PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS 177

16 Autismo E FAMÍLIA 183


O Papel dos Pais 184
Os Desafios Familiares 185
O Impacto do Diagnóstico 186
O Luto 187
Os Primeiros Passos 188
Dificuldades Iniciais 188
Isolamento 190
A Família como Protagonista 192
Não Chorem por Nós 193

17 O PODER DO AMOR 199

BIBLIOGRAFIA 201
1
UM POUCO DA MINHA HISTÓRIA COM O AUTISMO

Fui uma jovem típica dos anos 1970. Ouvia os Beatles. Usava mi-
nissaia. Lia Sartre, Freud, Marx. Sonhava com um mundo de iguais. Um
mundo livre. Justo e livre. Participei ativamente do movimento estudantil.
Aos 17 anos, entrei para a Faculdade de Medicina da Univer-
sidade Federal do Ceará. A ideia inicial era fazer psiquiatria, desven-
dar os mistérios do inconsciente. Nas horas vagas, muito poucas para
qualquer aspirante a médico, escrevia poesias e mergulhava de cabeça
na literatura. Sempre gostei de histórias, das infinitas possibilidades
que o ser humano tem de reinventar a si próprio, de buscar saídas e
sentido para a sua existência. Gostava e ainda gosto muito de conver-
sar, de contar e, principalmente, de ouvir histórias.
Nos fins de semana, frequentava a praia de Iracema, point da
boemia fortalezense, onde se misturavam poetas, músicos, militantes
políticos, muita cerveja e a sensação de estar no centro dos aconteci-
mentos, decidindo os rumos do mundo. Foi num dia assim que co-
nheci José Mapurunga, estudante de jornalismo, intelectual brilhante,
poeta, cheio de histórias. Namoramos e dois meses depois estávamos
casados: havíamos passado uma noite juntos e meus pais acharam
que essa era a melhor forma de repararmos a ousadia. Esperneei, fugi
de casa, passei uma semana com ele, recitando poemas, namorando,
ouvindo-o tocar violão. Finda a semana, reavaliei conceitos sobre a
vida de casada, não era de todo desinteressante. Casei, mudei de nome
e troquei o sonho de morar em Paris por uma casa minúscula de um
conjunto residencial. E haja ônibus, problemas financeiros, desafios
diários para lidar com uma vida doméstica absolutamente comum. Eu
acabara de completar 21 anos de idade e estava começando a escrever
minha própria história.

15
Casada, continuava estudando e participando das lutas acadê-
micas, dos movimentos pela anistia política, pela redemocratização
do Brasil e pela emancipação feminina.
Dois anos depois, engravidei e fiquei completamente apaixo-
nada pela maternidade, pelas maravilhas que me aconteciam com o
corpo, antes tão magrinho e agora farto. Comecei a usar vestidos um
pouco mais decotados: estava me achando bonita, mais mulher.
É quase divino o poder de abrigar uma vida. Foi maravilhoso
ver aquele bebê sair de mim e mudar completamente meus planos.
Nunca havia sido tão desafiada. Nunca estivera tão preparada para
qualquer desafio. Eu me sentia plena. Foi muito bom acompanhar
o desenvolvimento de meu primeiro filho, Alexandre. Amamentá-
-lo. Vê-lo crescendo a cada dia, apenas com meu leite. Aquele foi
um tempo mágico, inesquecível. Em nenhum papel me havia sentido
melhor. Nasci para isso, pensei. Meu filho me justifica, me explica,
me completa.
Foi difícil retornar aos estudos. Mas, aos poucos, vi que havia
muitas em mim, além da mãe, e todas ansiavam por expressão. Fui,
então, voltando devagar à medicina, à militância, à vida, além da ma-
ternidade. Mas, logo notei, não era mais a mesma. Meus seios incha-
vam, me chamando para amamentar. Passei a querer que Deus fosse
uma realidade, para que amparasse meu filho para sempre. Passei a
olhar as crianças com um interesse que eu desconhecia. Descobri um
amor enorme, que eu não sabia ter, pelos pequenos. Olhava para cada
bebê empacotado na maternidade, onde eu fazia o internato, com uma
ternura infinita. Quantos destinos! Quantas histórias estavam ali, es-
perando para ser contadas. Decidi-me pela pediatria. Queria cuidar
de crianças, ajudá-las, protegê-las. Deixar que elas me contaminassem
com aquela ânsia de aprender e de viver.
Dois anos depois, uma semana após ter concluído o curso,
nasceu meu segundo filho, Giordano Bruno. Ainda não sabia, mas
naquele momento estava acontecendo a mais inesperada e espeta-
cular mudança de minha vida. Giordano nasceu lindo, com qua-

16
se cinco quilos, com um ótimo apgar, uma mãe mais experiente e
cheia de amor.
2
Na noite em que ele nasceu, enquanto dormia, meio sonolenta
no apartamento do hospital, assistia a um episódio do seriado brasilei-
ro Malu mulher, estrelado pela atriz Regina Duarte, sobre a condição
feminina. Não lembro o enredo do capítulo. Mas o final ficou gravado,
para sempre, na minha cabeça e no meu coração emocionado. Malu, a
feminista com quem me identificava na trama, concluía: “Deus é uma
cilada e é preciso cair nela”. Eu não sabia, minha cilada estava armada.
Giordano foi amamentado, como o irmão. Chamava a aten-
ção pela beleza e pela calma. Já atuando na pediatria, eu pensava:
não sou mais mãe de primeira viagem, transmito paz e tranquilidade
a meu filho. Tenho um bebê-modelo. Estou finalmente pronta para
a maternidade.
Giordano só mamava e dormia. Às vezes o colocava no bebê
conforto, perto de mim, e estudava horas a fio, sem que ele chorasse,
nem sequer para mamar. O irmão mais velho perguntava sempre
quando ia poder brincar com ele. E eu dizia que aguardasse. Era
muito querido, o Giordano. Para o irmão, era o “mãozinho”. Os ami-
gos que nos visitavam ficavam admirados, pois podiam conversar,
rir alto e nada abalava a calma do meu filho. Ele era mesmo um bebê
muito especial.
No primeiro ano de vida, tudo parecia transcorrer bem
com Giordano. Mamou durante seis meses. Nessa época, eu havia
começado a trabalhar na creche Tia Júlia, um abrigo de crianças
disponíveis para adoção. A fim de ficar perto de meus filhos, mu-
dei-me para uma casa próxima à creche. Trabalhava ainda em um
pronto-socorro infantil, com emergências em pediatria, mas o tra-
balho que mais me completava era o da creche abrigo, quase uma
extensão do cuidado que, eu tinha com meus filhos em casa. Boa
parte de meus pequenos pacientes havia sido abandonada pelos
pais. Comigo uma turma de jovens e competentes profissionais ha-
via começado a trabalhar no abrigo e foi um momento muito fértil

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e importante de minha carreira como pediatra. Com essa turma,
aprendi a importância do trabalho em equipe, estudávamos juntos
e cuidávamos com tanto amor daquelas crianças que nos era difícil
voltar, à noite, para nossos filhos e deixar os pequenos pacientes
embalando-se sozinhos, sem ninguém para lhes contar histórias
ou velar-lhes o sono.
Giordano crescia a cada dia, mas ao contrário do irmão e das
crianças de quem eu cuidava na creche não se entrosava. Parecia bas-
tar-se. Relacionava-se muito bem comigo e com o pai, gostava de ser
pego ao colo, brincava com os brinquedos, às vezes de esconde-escon-
de com o irmão, mas, se chegavam outras crianças, ele se isolava. Era
muito tímido, eu pensava.
Na creche, as crianças da mesma idade que ele, aos dez, onze
meses, eram mais sociáveis e demonstravam muita alegria ao brincar
umas com as outras.
Com um ano, Giordano disse as primeiras palavras. Chegou
a falar cinquenta, aos dezoito meses. Aos 2 anos, no entanto, ainda
não formava frases. Estava começando a me preocupar. Levei-o a um
colega pediatra e ouvi o que mais almejava naquele momento: “Tenha
calma, Fátima. Você é médica e sabe que cada criança tem seu ritmo.
Você não deve comparar o seu filho com ninguém. Ele vai se desen-
volver, no ritmo dele. Vamos colocá-lo na pré-escola, ele vai melhorar
a socialização”. Assim foi feito.
Giordano gostou de ir para a escola, ele adorava rotina: acorda-
va na hora, não dava trabalho para vestir a farda e ia tranquilo. Obede-
cia às professoras. Mas não se entrosava com as outras crianças.
A essa altura estava grávida de meu terceiro filho e tinha uma
enorme preocupação sobre a forma como Giordano ia lidar com mi-
nha ausência. Eu ia fazer uma cesariana e passar dois dias na materni-
dade. Ele nunca havia passado um único dia sem me ver. Corria para
meus braços cada vez que eu chegava do trabalho.
Quando Gustavo, meu terceiro filho, nasceu, num belo dia de
chuva, era dia das mães. Naquele ano de seca no Nordeste, a chuva me

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anunciava bons presságios. Aquele lindo menino já chegava inaugu-
rando bons tempos.
Ao chegar em casa, no carro, Giordano correu para mim e, ao
ver o irmão em meus braços, voltou-se para a babá e entrou em casa,
como se não tivesse me visto. Logo depois, acomodei Gustavo no ber-
ço, me deitei numa rede, ele chegou aos poucos, deitou-se comigo e
relaxou. Foi um momento bonito, de reencontro total. Giordano, fe-
liz, relaxou em meus braços e eu o abracei com ternura e muita ale-
gria. Tudo parecia estar voltando ao normal. Minutos depois, Gustavo
acorda aos berros, querendo mamar, e eu tive de acomodá-lo ao peito.
Zangado, Giordano retirou-se da rede e me deixou amamentando o
irmão, apreensiva.
Aos poucos Giordano foi se isolando mais e todos nós acháva-
mos que ele estava passando por uma crise de ciúme do irmão. Afinal,
durante dois anos e oito meses, ele fora um reizinho absoluto, até
mesmo o irmão mais velho o mimava e nunca competiu com ele. A
pediatria, na época, era muito impregnada pela psicanálise e eu ficava
procurando explicar tudo pelos afetos, pelas histórias de amor. Fui me
apegando mais e mais àquele menino, querendo provar a ele que meu
amor não havia diminuído, que ele era meu neguinho, que amor de
mãe se multiplica, infinitamente...
Gradativamente, Giordano foi perdendo a fala e apresentan-
do uma série de comportamentos estranhos. Queria tudo no mesmo
lugar, arrumava meticulosamente o travesseiro e os brinquedos antes
de dormir. Às vezes, em frente à televisão, ficava feliz com a família,
assistindo aos programas, mas quando alguém se levantava, ele tra-
zia de volta, parecendo querer congelar os bons momentos. E quando
mudávamos as coisas de lugar ele gritava, esperneava. Pouco a pouco
foi desenvolvendo hiperatividade e estereotipias.
Comecei a peregrinação em busca de diagnóstico. Neurologis-
tas, psiquiatras, fonoaudiólogos, psicólogos. Transtorno de déficit de
atenção, superdotação, mutismo eletivo, ninguém sabia ao certo qual o
problema do meu menino, e isso, só fui descobrir muitos anos depois.

19
Quando ficou claro o diagnóstico de Giordano, ele já fazia fo-
noaudiologia, ludoterapia com uma psicanalista e estudava numa es-
cola regular.
Enquanto eu amamentava Gustavo, engravidei pela quarta
vez. Pablo foi um belo bebê, louro e calmo. Desde o nascimento, ele
foi diferente dos outros irmãos: era muito hipotônico, quase não me
olhava nos olhos enquanto mamava. Demorou a sustentar o pesco-
ço, a sentar e só andou com dezoito meses de idade. Apesar de não
ter a mesma destreza motora dos outros três irmãos, Pablo, como
Giordano, adorava brincar sozinho e ainda por cima, antes dos 3
anos, fazia estranhos movimentos com as mãos, como se quisesse
voar. Pablo demonstrava, ainda, certa dificuldade para se aninhar
nos meus braços, parecia nunca encontrar um jeito em que ficasse
completamente relaxado, à vontade.
Ele apresentou atraso na aquisição da linguagem verbal, mas
falava palavras soltas e com intenções comunicativas até os 2 anos de
idade. Chegou a dizer frases. Lembro-me de que certa vez, ao fazer
cocô no chão da sala, lhe perguntei o que tinha acontecido. Sabiamen-
te, para se livrar da bronca, respondeu: “Foi o Nanandi”, referindo-se a
Giordano. Claro que não briguei, até fiquei feliz por ter sido tão astu-
to. Na época, era comum entre os irmãos colocar a culpa dos malfeitos
em Giordano.
Sempre soube que Pablo era diferente. Mas essa diferença nun-
ca doeu em mim. Não sei se estava anestesiada com as dificuldades de
Giordano ou se, ao contrário disso, já tivesse encontrado forças para
mais esse desafio. Pablo apresentava um comportamento totalmente
diferente de Giordano, calmo, nunca tinha crises de birra. Jamais foi
agressivo. Brincava com as outras crianças, embora com frequência
em papéis mais passivos. Quando nos juntávamos com amigos, que
também possuíam filhos pequenos, as meninas adoravam brincar
com ele, sempre faziam o papel de mãe e ele, de filho preferido de
todas: elas trocavam suas roupas, davam comida em sua boca e ele,
de bom grado, se deixava levar. Não tomava a iniciativa, mas gostava

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de estar perto e demonstrava prazer em participar, de seu jeito, das
brincadeiras.
Quando compreendi do que se tratava o autismo, imediata-
mente soube que dois de meus filhos se enquadravam nesse diagnósti-
co. Mas, na época, não sabia ser o autismo uma condição permanente,
um jeito de ser, determinado biologicamente e com forte componente
genético. Prevalecia a crença de que o autismo resultava de problemas
na relação mãe e filho.
Fui levada a crer, como boa parte das mães de autistas de mi-
nha geração, que havia algo de errado com meu amor. Foi muito do-
loroso pensar que, mesmo inconscientemente, estava causando tantas
dificuldades para meus filhos.
Mas todos os dias dezenas de crianças, no abrigo onde eu tra-
balhava, me estendiam os braços para ser pegos no colo, me chama-
vam de mãe, falavam as primeiras palavras, brincavam e superavam
grandes adversidades: algumas haviam sido encontradas no lixo; ou-
tras, sofrido abuso sexual.
Nunca vou esquecer de um bebê de 3 anos que ao chegar
ao abrigo tinha uma ferida na cabeça. Quando examinei, percebi
tratar-se de um caso de berne, infecção produzida por larvas de
uma mosca muito conhecida no Brasil como mosca-varejeira. Já
havia visto aquilo em animais, principalmente bois, mas nunca em
um ser humano, sobretudo num bebê. Aquela criança, de quem
retirei dezenas de larvas da cabeça, rapidamente se recuperou e
mostrava-se muito receptivo ao carinho e ao contato com outras
crianças. Logo percebi que havia uma vontade de viver e brincar
quase insuperável naquelas crianças e que meu amor por elas, ne-
las, fazia um grande efeito.
Com o tempo constatei que existem muitas crianças como as
minhas. Descobri que as esquisitices delas têm um nome: autismo,
que os autistas se beneficiam muito do amor de suas mães, e elas não
causam o autismo dos filhos. Essa é só mais uma história triste de ig-
norância e preconceito.

21
Giordano e Pablo cresceram de forma saudável. Frequentaram
a escola regular nos primeiros anos de vida. Foi um período difícil para
mim. Médica recém-formada, tinha de trabalhar muito para pagar as
terapias. Apesar da inclusão escolar e da fonoaudiologia, em torno dos
3 anos os dois deixaram de falar. Giordano, de vez em quando, ainda
diz palavras soltas, com intenções comunicativas, mas nunca mais for-
mulou frases completas. Pablo deixou de falar por completo.

Momentos Difíceis

Quando Giordano estava com 9 anos, recebia atendimento do-


miciliar de uma terapeuta ocupacional, uma moça jovem, cheia de
entusiasmo e de ideias. Ela estava trabalhando com música e resolveu
matriculá-lo no Conservatório de Música Alberto Nepomuceno. Uma
tarde, no trabalho, senti um aperto no peito, como um presságio ruim.
Resolvi ligar para casa e saber como estavam as crianças. A empregada
me disse que tudo corria bem e que Socorro, a terapeuta ocupacional,
havia levado Giordano para a aula de música. Minha apreensão conti-
nuou e resolvi ir para casa. Assim que cheguei, meu marido me ligou
apavorado. Ele tinha encontrado Giordano com a terapeuta saindo do
conservatório e resolveu levá-lo para casa. Na época, ainda não exis-
tiam celulares e ele decidiu ligar para me falar que estava com nosso
filho. Foi até a Casa Amarela, um cineclube tradicional de Fortale-
za que fica em frente ao conservatório, para telefonar. Havia sentado
Giordano numa cadeira e virou-se para usar o telefone, tentou duas
vezes e não conseguiu. Resolveu, então, ir direto para casa. Quando
se virou para pegar o menino, ele havia sumido. Eram seis horas da
tarde quando ele, em pânico, conseguiu falar comigo. Foi um dos mo-
mentos mais terríveis que já passei. Peguei o carro e, com meu filho
mais velho, atravessei a cidade aos prantos, sem a menor noção do
que fazia. Eu gritava tanto que por várias vezes quase bati o carro.
Alexandre, então com 11 anos, tentava me acalmar e dizia: “Mamãe
tenta olhar para o trânsito, deixa que eu choro por nós dois”. Não sei

22
como consegui chegar à Casa Amarela. Quando cheguei, vi que mui-
tos dos nossos amigos já estavam lá. Eles tomavam todas as providên-
cias, ligavam para hospitais, pronto-socorros, polícia. Na televisão, já
anunciavam o desaparecimento de um menino de 9 anos, cor morena,
autista, da avenida da Universidade e informavam um telefone para
contato. Foram horas de dor e desespero.
Com Alexandre, eu percorria as ruas escuras da avenida, pró-
ximas ao local onde Giordano havia desaparecido. Chorava aflita.
Lembro-me de ter encontrado uma senhora na rua que me abraçou,
perguntou se eu era a mãe do garoto perdido e me disse que estava
em um grupo de oração, que eu encontraria meu filho, que era o
mês de maio, mês das mães, e Nossa Senhora não iria me abandonar.
Deu-me um terço e me pediu para rezá-lo enquanto o procurava.
Recordo de ter-lhe dito que não tinha nenhuma condição de rezar e
ela me disse, então, que eu apenas segurasse o terço durante a busca,
ela mesma ia rezar por nós. Inutilmente, vaguei por algum tempo e
voltei para a Casa Amarela. As buscas, naquela altura, já contavam
com a ajuda da polícia e de muitos voluntários, mas não havia ne-
nhum sinal do meu filho nas redondezas de onde ele desaparecera.
Era meia-noite quando finalmente ligaram de uma casa, próxima ao
bar Avião, onde funcionava uma mercearia, no caminho do local
onde morávamos. Um senhor, cuja família rezava em grupo, dispôe-
-se a comprar uma vela para acender para Nossa Senhora e, ao di-
rigir-se até a mercearia, encontrou um menino muito cansado, mas
calmo, sentado num degrau. Resolveu levá-lo para casa. Logo per-
cebeu que o garoto não falava e estava perdido. O referido senhor
era radioamador, soube da notícia do menino perdido e ligou para
a Casa Amarela dizendo que havia encontrado um garoto com as
mesmas características do que estava desaparecido, com uma única
diferença, era uma criança de cor branca. Eu, em pânico, pedia a
Deus para que fosse meu neguinho. Giordano é o mais moreno dos
meus filhos e sempre foi chamado de nego. Após meia hora de mui-
ta apreensão, um senhor, muito simpático, chegou segurando meu

23
filho pela mão. Giordano correu para meus braços, me beijou e me
puxou, pedindo para ir para casa, como se nada tivesse acontecido.
O senhor que rezava e milagrosamente achou meu neguinho era ne-
gro, daí o desencontro na descrição da cor de Giordano.
Nessa noite, foi maravilhoso fazer meu filho dormir em casa,
junto dos seus. Tranquilo, ele parecia um anjo. Nunca soubemos o que
aconteceu naquelas horas terríveis.

Encontros e Desencontros

A relação com as escolas desde o início mostrou-se conflituosa.


Inicialmente, exigiam que eu pagasse um acompanhante para cada
criança e, aos poucos, sugeriram que eu procurasse escolas especia-
lizadas. É doloroso ver um filho rejeitado. Às vezes, sentia-me como
se tivesse trazido aos mundo dois ETs, tamanha a dificuldade para
encontrar uma escola para eles. Pablo e Giordano não eram de outro
planeta. Apesar de ser comum dizer-se que os autistas vivem em seu
próprio mundo, o mundo deles era o nosso, embora não lhes reconhe-
cessem a humanidade e os direitos de criança. Nos anos 80 do século
passado, a inclusão de crianças com deficiência não era obrigatória e a
própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação previa para esses casos
o ensino em escolas especializadas.
Nesse período surgiu na cidade um psicólogo estrangeiro
que trabalhava usando animais na terapia com crianças autistas.
Eram seus “coterapeutas”, dizia ele. Cobrava muito caro por essa
exótica abordagem, mas era sedutor o suficiente para que eu e
muitas outras famílias lhe confiássemos os filhos, para que fossem
tratados por ele, com todas as prometidas chances de cura. Ajudamo-lo
a construir uma sede própria, confortável e bem equipada. Um
belo dia, o terapeuta desapareceu da cidade, sem deixar vestígios,
e alguns de seus auxiliares tentaram tocar o empreendimento so-
zinhos. Rapidamente, mudaram de abordagem e aderiram à única
metodologia que na época parecia suficientemente embasada para

24
o ensino de crianças com autismo, o método TEACCH. Embarca-
mos em mais essa experiência.
Naquela altura, meu casamento já havia chegado ao fim.
Agora eu era chefe de uma grande família, linda, complexa e desafia-
dora. O mais velho estava com 12 anos, era muito inteligente e com-
prometido com a família, mas saudável o suficiente para ir vivendo
a própria adolescência, começava a se interessar por garotas e trans-
formara-se num defensor intransigente dos dois irmãos diferentes.
Gustavo, que crescera entre os dois autistas, desenvolvera também
pelos irmãos uma espécie de paternidade precoce e sentia-se pro-
fundamente responsável por eles. Tudo estava andando regularmente,
sob controle, até que um inesperado acontecimento balançou de vez
nossa já frágil infraestrutura.
Quando Giordano completou 13 anos de idade, começou a
apresentar muitas dificuldades comportamentais. Batia em si mesmo,
estapeava o rosto e tinha súbitos ataques de fúria. Pablo, ao contrário,
crescia, alegre e calmo. Embora não demonstrasse a mesma compre-
ensão de situações complexas que o irmão, parecia não se dar conta de
suas limitações e estava virando um pré-adolescente lindo e doce com
o qual todos adoravam conviver.

O Fim e o Começo

Era final de julho de 1993 quando fui chamada para uma reu-
nião na escolar em que estudavam meus dois filhos autistas. A coor-
denadora me disse, depois de muitos rodeios, que a instituição não
dispunha de estrutura para lidar com Giordano, que estava ficando
agressivo. Talvez nunca antes daquele momento eu tenha me dado
conta do tamanho de minha solidão e de meu desafio, do desamparo a
que eu e meus quatro filhos estávamos submetidos. Giordano adorava
ir para a escola, acordar como os irmãos, tomar o café da manhã, vestir
a farda, ter a própria agenda e rotina. Apesar de diferente, nossa famí-
lia tinha algum equilíbrio e muitas alegrias. Frequentávamos, nos fins

25
de semana, a Sabiaguaba, uma praia mais distante onde meninos po-
diam se divertir todos juntos. Éramos uma tribo, diferente, estranha,
às vezes, mas jovem, muito unida e alegre, a maior parte do tempo.
De repente, haviam-me tirado o chão debaixo dos pés. Como
eu diria para meus filhos autistas que no meu mundo não havia lugar
para eles? Que eu lhes havia trazido para um planeta completamente
desequipado para recebê-los? Que eles não tinham mais turma, nem
escola, nem professores, nem atividades fora de casa? Como eu diria
a meus filhos sem autismo que eles eram privilegiados, que tinham
direito a uma vida negada aos outros dois? E como eu iria sair todos os
dias para o mesmo mundo que não aceitava meus filhos, nem mesmo
entre os pares autistas?
Na noite que se seguiu à ida à escola, chorei como nunca ha-
via chorado em toda a vida. Meu corpo e minha alma pareciam ter
sido atingidos por um raio, destruindo qualquer lampejo de fé na
vida e na humanidade.
Foi do inferno de descrença e solidão que vi surgindo dentro
de mim uma ideia: e se eu criasse a escola de Giordano e Pablo? E se
eu própria contratasse os profissionais e terapeutas para trabalhar com
eles? E se o poder de abrir e fechar essa porta fosse meu? E se quando o
profissional não soubesse ou não quisesse mais lidar com uma criança
com autismo fosse ele o convidado a se retirar? E se eu me unisse a
outras mães que comigo sentissem a dor de ver os filhos excluídos e
descartados? A ideia foi crescendo e tomando conta da minha cabeça,
do meu coração, da minha vida.
Poucos meses antes da exclusão de Giordano, a escola onde
ele estudava estipulara uma taxa mensal de dez salários mínimos por
garoto atendido nos dois turnos. O que eu ganhava não era suficiente
para fazer frente à despesa. Naquela altura, já era uma médica relati-
vamente conhecida na cidade, havia ocupado alguns cargos públicos,
como a coordenação estadual do Programa de Assistência Integral à
Saúde da Criança, dirigira centros de saúde e me tornara a primeira
presidente do Conselho Cearense dos Direitos da Mulher.

26
Solicitei então uma audiência com o governador do estado, Ciro
Gomes, para expor o problema, apresentando em minha defesa meus
contracheques. Ele disse que eu não deveria me preocupar, pois a partir
dali receberia ajuda para a educação de meus filhos. Militante de es-
querda, não me achei no direito de receber nenhum privilégio, afirman-
do que só aceitaria o benefício se fosse possível estendê-lo a pelo menos
dez crianças. Dessa forma, surgiu um convênio de subvenção social,
destinado a apoiar financeiramente a escola em troca do atendimento
gratuito a dez estudantes com autismo, dois dos quais meus filhos Gior-
dano Bruno e Pablo. Pedi à diretora da escola para distribuir o benefício
entre famílias com dificuldade de pagar a mensalidade dos filhos.
No dia seguinte à expulsão de Giordano, fui para o trabalho
com o desejo de criar uma escola especial para ele, uma escola da
qual nenhuma criança com autismo fosse excluída por suas dificulda-
des. Talvez pela formação profissional ou pelas dificuldades apresen-
tadas por meus filhos, em especial Giordano, desde o início idealizei
não apenas uma escola, mas um centro onde se integrassem ações de
saúde e educação especializada para pessoas com autismo. Uma outra
ideia também começava a tomar forma: não se estabeleceria limite de
idade para o atendimento da clientela, o projeto cresceria junto com
os clientes. Até então, só se conheciam crianças com autismo, mas elas
iam crescer e com elas os desafios, ainda ignorados, de tornar-se adul-
to e envelhecer com autismo.
Ao chegar ao trabalho, fui procurada pelas mães das crian-
ças que haviam sido beneficiadas pela subvenção social. Eu não sabia
quem recebera o benefício, mas elas me conheciam e, gratas, me pro-
curaram, mostrando-se solidárias com minha dor. Estavam também
temerosas pelo futuro dos filhos. Expus-lhes meus planos, e o que era
medo transformou-se em coragem e esperança. Começamos a elabo-
rar um projeto, a fazer contatos e tomar providências. Em outubro do
mesmo ano, inauguramos a Casa da Esperança.
Convidei um amigo psiquiatra para dirigir a organização. Con-
tratamos uma equipe multidisplinar e para cada um dos dez alunos

27
fundadores, um cuidador exclusivo, que chamamos de agente te-
rapêutico. Nós não sabíamos, mas aquela pequena organização, em
pouco tempo, seria a maior organização brasileira especializada no
atendimento a pessoas com autismo.

Cortando a Própria Carne

Havíamos começado o trabalho da casa. Minha ideia inicial


não era trabalhar lá. Queria empenhar-me em sua manutenção, zelar
para que o atendimento fosse o mais humano possível, que incorpo-
rasse, de forma responsável, todas as metodologias capazes de ajudar
pessoas com autismo, levando em conta no trabalho com as crianças
o conhecimento dos pais e familiares sobre os filhos. Depois de inau-
gurada a Casa da Esperança, imaginava que, finalmente, iria poder ser
apenas mãe, mas com uma relação mais segura com o local de atendi-
mento de meus filhos com autismo.
No entanto, a vida me preparava ainda novos e maiores desafios.
Um dia, depois de proferir uma conferência sobre a condição fe-
minina no Centro de Convenções de Fortaleza, um rapaz de São Paulo,
que lançara algumas perguntas durante a apresentação, aproximou-se e
continuou a fazer comentários interessantes sobre o assunto, e mesmo
precisando sair, fui me deixando ficar. Uma amiga que me conhecia de
perto e sabia de minha facilidade para me tornar íntima de pessoas que
mal conheço disse: “Já vi esse filme. A Fátima vai te convidar para tomar
um café na casa dela e esse papo, pelo que sei, vai durar algumas horas”.
O rapaz perguntou qual meu trajeto e pediu-me uma carona. A conver-
sa fluiu alegre e interessante. Como eu já estava quase em casa e ele não
fizesse menção de descer do carro, convidei-o para o café anunciado por
minha amiga. Ele prontamente aceitou.
Ao chegarmos a casa, a secretária disse a frase mais estranha
que eu já ouvira em toda a minha vida: “O Giordano está mordendo a
boca”. Nunca ouvira falar em nada parecido e corri para ver meu filho,
diante da cara de espanto de meu novo amigo. De fato, Giordano com-

28
pulsivamente mordia o lábio inferior com muita força e me olhava nos
olhos, como se estivesse tão espantado quanto eu. Wanderley Gradela,
o rapaz que acabara de conhecer, olhou-me e, solidário, perguntou o
que devia fazer. Eu disse: “Vamos levá-lo para a cama e segurá-lo para
que não possa fazer isso, enquanto penso em algo melhor”.
Deitamos Giordano, coloquei-lhe um pano entre os dentes
sem que ele opusesse resistência. Pareceu achar adequada a provi-
dência. Eu lhe segurava uma mão, Wanderley a outra e, durante a
contenção, fazíamos carinho em sua cabeça e conversávamos com
ele. Tudo ficava bem, desde que não lhe soltássemos nenhuma das
mãos. Quando isso acontecia, ele retirava o pano e voltava a morder-
-se, compulsivamente. A presença de Wanderley me trouxe calma
para gerenciar o maior desafio de minha vida. Foi assim, com um
desconhecido em casa, no meu quarto, que pude receber médicos e
terapeutas e ouvir-lhes a opinião sobre o que deveria ser feito. Foram
prescritos vários medicamentos, que se revelaram inúteis nos dias
seguintes. Minha família se desdobrou, cuidando das outras crian-
ças, e Tânia, minha irmã mais nova, se revezava comigo e Wanderley
na contenção de Giordano. Nada parecia surtir efeito. Os médicos
começaram a falar em internação. Na época, essa palavra me soava
terrível. Fui taxativamente contra.
Após uma semana, as visitas à minha casa, fossem de médicos
ou familiares, começavam a ter como único fim me convencer a inter-
nar meu filho num hospital psiquiátrico, todos unânimes em dizer que
eu não podia mais prolongar aquela situação, que eu estava prejudicando
meus outros filhos. Tentaram me fazer ver a gravidade do problema
de Giordano e a “imprudência” de deixar as outras crianças presenciar
aqueles bizarros e dolorosos acontecimentos. Acusavam-me de estar
destruindo a família. Palavras sem sentido para mim: éramos uma famí-
lia, íamos sobreviver àquilo. Não podíamos nos separar ou abandonar
um dos nossos apenas porque ele estava sofrendo.
Uma noite, sentindo-me especialmente sozinha e incompre-
endida, expulsei todos de casa. Não era aquela a ajuda de que eu

29
precisava. Além das crianças, nessa noite, ficamos apenas eu e Wan-
derley. Lembro-me de ter-lhe perguntado por que não fora embora
também? Por que ainda estava ali? Ele disse: “Eu não sei. Mas sei
que você pode contar comigo”. Abraçamo-nos e choramos juntos,
de desespero e de esperança.
No dia seguinte, recebi a visita de um espírita famoso na cidade.
Chamava-se Benvindo Melo. Um homem bom e culto que eu conhe-
cera quando Giordano tinha uns 4 anos de idade. Alguém havia suge-
rido que o problema de meu filho era espiritual. Não acreditava, mas,
como qualquer mãe, faria o que quer que fosse para ajudar meu filho.
Logo na primeira consulta, o irmão Benvindo me explicou que o caso
do Giordano era orgânico, ele tinha um problema no cérebro sobre o
qual a medicina sabia pouco. Disse ainda que ele poderia beneficiar-
-se de um tratamento espiritual e se dispôs a atendê-lo aos sábados.
Foi uma experiência muito intrigante para mim. Levava Giordano até
a Federação Espírita Cearense e ficava sentada numa cadeira lendo e
olhando aquele senhor maduro brincar com meu filho durante duas,
três horas seguidas. Parecia mais uma intervenção terapêutica. Ainda
bem, pois, apesar de na época não acreditar em espíritos, tinha um
certo medo deles. Mas Giordano adorava aquela interação e eu ficava
admirada com o compromisso e a disponibilidade daquele homem.
Ele era um jurista culto, um homem abastado que dizia conversar com
espíritos e reservava boa parte do tempo para atender, gratuitamente,
um grande número de pessoas com diferentes tipos de problema. Ele
respeitava meu ceticismo e eu sua crença, mas, de fato, Giordano me-
lhorou muito nessa época. Tanto que, aos poucos, deixei de levá-lo à
terapia espiritual.
No dia em que o irmão Benvindo foi visitar Giordano, fazia
um mês que ele começara a morder a boca. Mesmo com todos os cui-
dados, já tinha conseguido fazer um grande estrago em si mesmo. O
irmão Benvindo rezou, com as mãos estendidas sobre meu filho. De-
pois, conversou longamente comigo e, por fim, disse: “Você fez mui-
to bem em não internar seu filho. Logo vai aparecer uma saída. Esse

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menino tem muito para lhe ensinar e, por causa dele, você ainda vai
poder ajudar muita gente com autismo”.
No dia seguinte, resolvi ligar para o psiquiatra carioca Chris-
tian Gauderer, que prescreveu um neuroléptico, a tioridazina, que
ainda não havia sido tentado. Magicamente, Giordano parou de mor-
der a boca. Havia se passado trinta dias e trinta noites de apreensão
e sofrimento.
Uma amiga que acompanhara todo o drama da nossa família
me ofereceu uma mansão na praia e fomos, todos juntos, restaurar as
energias. Rapidamente, entramos em outra sintonia e curtimos com
alegria o restabelecimento de Giordano e o milagre daquele novo mo-
mento. Giordano entrou numa fase muito boa, mas agora eu sabia que
nunca mais deveria me afastar dele.

O Anjo da Guarda

A crise me trouxe definitivamente para dentro de casa. Não


tinha mais vontade de estudar nada que não fosse autismo. Não me
sentia útil em nenhum lugar que não junto dele. Sabia que o problema
dele era grave o suficiente para exigir de mim toda a inteligência, toda
a determinação, todas as providências.
Montei um grupo de estudos sobre autismo do qual participa-
vam alguns jovens profissionais da Casa da Esperança: Lamartine e
Cyntia, dois psicólogos, Wanderley, que era educador e agora traba-
lhava conosco, minha irmã Tânia e Alexandre Costa, um jovem e bri-
lhante estudante de psicologia que, na Casa, trabalhava como agente
terapêutico. O grupo se reuniu durante seis meses, ao fim dos quais
elaboramos um projeto chamado Amigos da Diferença. O projeto
pretendia expandir o atendimento da Casa, de forma gratuita, para
mais cem crianças e jovens com autismo. O objetivo era levar atendi-
mento domiciliar a crianças com autismo não incluídas em nenhum
outro programa. As crianças seriam acompanhadas por cuidadores
formados pela Casa da Esperança e supervisionados por uma equipe

31
multiprofissional. Conseguimos a aprovação do projeto na Secretaria
de Educação do Estado, e a partir daí, minha vida profissional tomou
um outro rumo.
Alexandre demonstrava um compromisso muito grande com
a causa. Inteligente, determinado, afetivo, sonhador, foi despertando
em mim admiração, respeito e, aos poucos, um amor que eu não sabia
ser capaz de sentir.
Começamos a namorar escondido. Eu era uma mulher públi-
ca, formada há treze anos, com uma carreira já construída e ele um
jovem universitário que mal passara dos 20 anos de idade. Quando
assumimos publicamente o namoro, foi um escândalo entre parentes
e amigos mais próximos. Para eles, não havia dúvida, eu enlouquecera
de vez. Primeiro resolvia largar tudo para me dedicar a uma organiza-
ção minúscula e a uma causa que parecia perdida. Depois, namorava
publicamente um rapaz que não tinha como fazer frente aos inúmeros
desafios de dividir a vida com uma mulher, mãe de quatro filhos, dois
dos quais autistas.
O projeto Amigos da Diferença foi nosso primeiro filho. Na épo-
ca, fazíamos formação em psicodrama, o que se revelou fundamental
para que déssemos conta de formar os cem cuidadores necessários à
implantação do projeto. Psicodrama é um método de terapia em grupo
criado por Jacob Levi Moreno, contemporâneo de Freud.
Em uma sessão de psicodrama, o grupo elege um protagonista
que participa da representação teatral de seu próprio “drama”. O grupo
viabiliza a visualização do drama protagônico e pode ensaiar várias
saídas para o problema. O grande objetivo da terapia psicodramáti-
ca é o desenvolvimento da espontaneidade, que, segundo o próprio
Moreno, é a capacidade de dar respostas novas a problemas antigos
e respostas adequadas a problemas novos. O psicodrama caiu como
uma luva para nós, que tínhamos um desafio inédito pela frente. De
fato, precisaríamos de muita espontaneidade.
Depois de entrevistarmos mais de quatrocentos jovens, inicia-
mos a qualificação dos cem cuidadores, chamados de agentes terapêu-

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ticos. Inicialmente, formamos uma equipe de monitores, composta de
terapeutas e professores da Casa da Esperança. Para o treinamento, pro-
duzimos um material contendo informações atualizadas sobre autismo,
3
mas escritas de forma clara o suficiente, a fim de que pudessem ser mul-
tiplicadas, em novos treinamentos, pelos monitores formados.
O treinamento constava de aulas teórico-práticas, nas quais,
além da leitura em grupo do material por nós produzido sobre diver-
sos temas ligados ao autismo, eram associadas técnicas do psicodra-
ma que possibilitavam uma vivência maior dos problemas abordados.
Esse material deu origem a nosso primeiro livro sobre autismo, Ami-
gos da Diferença (1995), escrito por mim e Alexandre Costa e Silva.
Cada dupla de monitores formados ficou responsável pela
multiplicação da experiência, coordenando um treinamento de 240
horas, com vinte jovens pré-selecionados. De cada turma de vinte, dez
jovens foram contratados para trabalhar, por um ano, como agentes
terapêuticos domiciliares.
Esses cem jovens cuidadores contratados cuidavam de crianças
e jovens com autismo, em suas próprias casas, durante quatro horas
por dia, sob a orientação de uma equipe terapêutica multiprofissional
que atendia a clientela ambulatorialmente. Foi um grande desafio.
Paralelamente ao atendimento domiciliar das crianças com au-
tismo, realizávamos encontros sistemáticos com grupos de agentes te-
rapêuticos, pais e irmãos das pessoas com autismo, visando ao enfren-
tamento dos problemas através da metodologia do psicodrama. Foi um
período rico de vivências, em que as mais diversas situações ligadas ao
autismo puderam ser vivenciados coletivamente. Não conseguíamos
resolver todas, claro. Mas tínhamos a confortante sensação de não estar
mais sozinhos. O projeto Amigos da Diferença foi renovado por mais
dois anos e durou, portanto, três anos consecutivos, acabando por falta
de financiamento. Enquanto durou, ajudou muita gente. Era fantástico
ver jovens com autismo participando mais da vida familiar, ajudando
em tarefas domésticas, adquirindo mais autonomia e independência
em relação aos autocuidados, assim como mães sentindo-se um pouco

33
mais livres para cuidar de si mesmas e aprender sobre autismo, poden-
do entregar o filho a um cuidador durante pelo menos quatro horas
por dia. Pela intensidade e extensão da experiência, o projeto Amigos
da Diferença marcou profundamente todos os que dele participamos.
De registro, temos o livro e um filme intitulado Ilhas, que relata de for-
ma muito bonita a experiência.
Enquanto o projeto Amigos da Diferença crescia para fora dos
muros da organização, a Casa da Esperança se ampliava internamente.
Em pouco tempo tínhamos mais de 100 crianças atendidas em regime
de quatro horas por dia. Estabelecemos algumas parcerias e estávamos
conseguindo construir uma organização caracterizada, desde o início,
por sua metodologia multiprofissional, interdisciplinar e multimodal.
O grande número de pessoas atendidas pela organização nos
deu, muito cedo, a compreensão prática de que nenhum método da-
ria conta dos desafios do autismo. As pessoas com autismo eram
muito diferentes umas das outras. Algumas eram verbais, outras
conseguiam se comunicar por gestos, outras precisavam de rotinas
visuais e havia ainda as que rasgavam as rotinas que colocávamos
nas paredes.
Resolvemos que não iríamos forçar nenhum deles a se adaptar
a qualquer método, mas procuraríamos em todos os métodos disponí-
veis ajuda para os desafios de cada autista em particular.
Alguns princípios foram se delineando com passar do tempo.
A participação da família das pessoas atendidas era fundamen-
tal durante a elaboração, implementação e avaliação de cada plano te-
rapêutico. As próprias famílias precisavam, na maioria das vezes, de
ajuda, para que pudessem se reorganizar e dar suporte às suas crianças.
O conhecimento acumulado sobre autismo tinha de ser socia-
lizado, pois nas universidades não se ensinava o assunto.
O ensino de coisas práticas para pessoas com autismo era funda-
mental. Muitas crianças demonstravam dificuldade para usar o sanitário.
Outras não conseguiam alimentar-se sem apoio. Outros, muito inteligen-
tes, não sabiam andar sozinhos na rua e sobrecarregavam as famílias.

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Prioridade absoluta deveria ser dada ao controle das emoções
das crianças e jovens com autismo. Era imprescindível ensiná-los e
às suas famílias a lidar com as crises e os desafios comportamentais.
Muitas famílias desesperadas amarravam os filhos, sem saber o que
fazer para conter as agressões que faziam a si mesmos ou a terceiros.
Nenhuma técnica aversiva poderia ser usada, sob nenhuma
alegação, durante o tratamento. Os autistas não podiam ser punidos
por seu sofrimento ou por nossa ignorância.
Aos poucos fomos encontrando parceiros. As almas afins aca-
bam se encontrando. Conhecemos Cátia Walter, Marguerita Cucco-
via, do Centro Ann Sullivan de Ribeirão Preto. Conhecemos Judith
LeBlanc, da Universidade do Kansas, e Liliana Mayo, do Centro Ann
Sulivan do Peru, autoras de um método de educação para estudantes
com autismo denominado Currículo Funcional Natural, com o qual
desde o início nos sentimos afinados.
Com o tempo, fundamentamos cientificamente nossos pro-
cedimentos. Tenho me dedicado, cada vez mais, à psiquiatria e à
neurociência para embasar minha prática clínica, e o Alexandre, à
neuropsicologia e às técnicas cognitivo-comportamentais.
A Casa da Esperança começou a ser um centro de estudos e
pesquisas sobre autismo. Estudantes e professores de várias uni-
versidades nos procuravam para a realização de trabalhos sobre
o tema. Muitos autistas famosos estiveram conosco e avaliaram
positivamente nosso trabalho, como Jim Sinclair, do Autismo
Network International, e Stephen Shore, especialista e autor de
inúmeros livros sobre autismo. Médicos como Walter Camargos e
cientistas como Erick Cushesne, da Universidade da Califórnia, e
Ami Klin, da Universidade de Yale, trouxeram até nós seu conhe-
cimento e expertise.
Ami Klin tem nos ajudado muito desde então, enviando im-
portantes experts americanos, das mais diversas áreas, para capacitar
in loco nossos profissionais, assim como diversos estudantes da Uni-
versidade de Yale para estágios em nossa organização.

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Foi assim que estabelecemos parceria para realização de pes-
quisa na área de genética e autismo com profissionais da USP, de
Yale e da Universidade de Washington, coordenada por Thomas
Morgan. Foi assim também que nossos profissionais foram treina-
dos na metodologia SCERTS (Social Communication, Emotional
Regulation, Transactional Support) pela própria Amy Laurent, uma
das criadoras do método, antes mesmo da publicação do manual
SCERTS nos Estados Unidos, o que só ocorreria em 2007. Desde
2006, temos assumido esse modelo de forma cada vez mais inte-
gral, tendo em vista sua amplitude e visão respeitosa com relação à
pessoa com autismo. Neste livro, dedico um capítulo inteiro a seus
princípios e aplicação.
Nestes dezoito anos de atuação, temos realizado seminários
e congressos nacionais e internacionais sobre autismo. Participamos
ativamente dos movimentos sociais e conselhos de defesa dos direitos
humanos e de pessoas com deficiência. Em 2008, com companheiros
de todo o Brasil, como Argemiro e Mariene Garcia, da Bahia, e Fer-
nando Cotta, de Brasília, organizamos um encontro nacional para a
criação da Associação Brasileira de Ação por Direitos da Pessoa com
Autismo (Abraça). A associação congrega, além de pais e profissionais,
pessoas com autismo, tendo inclusive duas com síndrome de Asperger
em sua diretoria. Nothing about us without us, nada sobre nós sem
nós, o consagrado lema dos movimentos das pessoas com deficiência,
constitui um dos princípios da Abraça na luta pela inclusão social das
pessoas com autismo.
Ao longo dos anos, recebemos muitos prêmios que nos incen-
tivam a continuar o caminho em busca de atendimento de qualidade
para as pessoas com autismo e suas famílias.
Alexandre foi e é o grande amor da minha vida. Dezoito anos
se passaram daquele nosso primeiro empreendimento comum. De-
pois do projeto Amigos da Diferença, com ele publiquei meu primeiro
livro sobre autismo. Com ele tenho viajado o Brasil e o mundo apren-
dendo e ensinando como lidar com os desafios do autismo.

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Com Alexandre tenho mais dois filhos, Gabriel e Maria Teresa,
que enchem nossa vida de alegria e novos desafios a cada dia. Com
ele, tenho também Giordano e Pablo. Pablo, sempre lindo, bom e sem
nenhuma história trágica a marcar sua vida simples e descomplicada.
Giordano, sempre com altos e baixos, nos aconselhando todo dia a
aprender mais e mais sobre as múltiplas possibilidades e limitações
das pessoas com autismo e suas famílias.

Alexandre Dourado e Gustavo

Meus outros dois filhos, Alexandre Dourado e Gustavo, casa-


ram e saíram de casa. Construíram as próprias famílias. O mais inte-
ressante é que, ao que parece, não ficaram muito traumatizados com a
experiência de ser irmãos de autistas. O mais velho casou com Sônia,
a mais nova das mães fundadoras da Casa da Esperança, que já tinha
uma filha com síndrome de Rett. Alexandre hoje é um destacado de-
fensor dos direitos das pessoas com deficiência, já foi presidente do
Conselho Estadual de Direitos da Pessoa com Deficiência, membro
do Conade (Conselho Nacional de Direitos das Pessoas com Deficiên-
cia), é membro atuante da Abraça e, no momento em que escrevo este
livro, encontra-se em Genebra, aperfeiçoando os conhecimentos para
a defesa das pessoas com deficiência.
Gustavo é músico e diretor administrativo da Casa da Espe-
rança. Implantou na instituição as oficinas musicais que, além dos ob-
jetivos terapêuticos, promovem artistas com autismo divulgando os
talentos especiais que, não raro, caracterizam algumas dessas pessoas.
Há quatro anos, ele e minha nora Tatyana adotaram Luiz Eduardo, um
lindo menino com autismo.
O autismo, pelo visto, não trouxe apenas dores e desafios para
minha família, deu-nos também força, sentido e grandeza.

37
Pablo

Pablo nunca deu muito trabalho, sempre disse que ele é um


autista perfeitamente normal. É tranquilo a maior parte do tempo.
Sempre foi. Parece que, ao contrário do irmão, nunca se deu conta
da parte ruim de ser autista. Não que não tenha consciência de seus
limites. Tem, mas parece achar isso normal. Aceita de bom grado as
muletas sociais que lhe damos. Gosta de sair, de passear e sempre olha
para seus acompanhantes para se certificar do que pode e do que não
pode fazer. Muito bonito, é cheio de fãs. Uma de minhas assessoras
pessoais, a Tisa, está comigo praticamente desde que ele nasceu e lhe
acompanhou o crescimento, cuidando dele como uma segunda mãe,
enquanto eu cuidava de Giordano, sempre mais desafiador. Hoje Tisa
não mora mais conosco, tem a própria casa, mas sempre nos visita e
trabalha conosco na Casa da Esperança. Quando viajo a trabalho, ela
se muda para minha casa e administra tudo, dando-me a tranquilidade
que preciso para trabalhar.
O Pablo também tem suas histórias. Certa vez, quando mi-
nha primeira neta tinha pouco mais de um ano, estávamos todos no
andar de cima da casa quando sentimos falta dela. Corremos todos
para a piscina, apavorados. Pablo estava em pé, dentro da piscina,
segurando a sobrinha, toda molhada, de cabeça para baixo. Muito
sério, ele parecia nos esperar para entregar a menina. Até hoje, não
sabemos se ele teve consciência do ato heroico praticado ou se ape-
nas achou que a piscina não era lugar adequado para um ser tão
pequeno. O fato é que salvou a vida da sobrinha e, como todo grande
herói, achou que fez o que tinha de ser feito, não deu muita bola para
os agradecimentos. Entregue a menina, deu-nos as costas, uma vez
que já havia cumprido o dever.
Como ninguém é perfeito, Pablo também tem hábitos pouco
recomendáveis. É louco por bebidas alcóolicas e temos de vigiá-lo, em
dias de festa, para que não se embriague. Qualquer copo de cerveja a
seu alcance será esvaziado instantaneamente.

38
Uma vez, estávamos eu e Alexandre estudando, quando demos
conta de que havia sumido uma garrafa de bebida. Ao chegarmos ao
jardim, Pablo promovia a maior farra com o irmão Giordano, um se-
gurava a garrafa de bebida e o outro uma lata de Nescau, um servia ao
outro a bebida, no gargalo, e outro lhe dava, na boca, uma colherada de
Nescau. Encontramos os dois, às gargalhadas, bêbados, sujos e felizes.
Pablo tinha 11 anos de idade.
Recentemente, quando escrevia este livro e já havia descrito o
episódio acima, novamente estávamos estudando e, desta vez, Alexan-
dre tomava um drinque com a garrafa de bebida em meio aos livros.
Ao notar a falta da garrafa, foi indagar se Pablo sabia do paradeiro da
bebida, achando que ele tivesse bebido e jogado o frasco vazio no lixo.
Como a maioria das pessoas com autismo, Pablo é meticuloso e organi-
zado, nunca deixa embalagens usadas espalhadas pela casa. Do seu jeito,
Pablo enfrentou Alexandre, revoltado com a injusta acusação. Olhou-o
com raiva, dentro dos olhos, levantou-se, abruptamente, do sofá onde
estava sentado e dirigiu-se até o quintal. Em um minuto, retornava com
a grande lixeira da casa e, mostrando-a a Alexandre, provou sua inocên-
cia do delito. Alexandre, claro, abraçou-o, pediu desculpas e alegrou-
-se com a capacidade de compreensão e comunicação de Pablo. Horas
depois, comprovou que Pablo “falara” a verdade: o próprio Alexandre
havia guardado a garrafa e depois esquecido onde a colocara.

Alegria e Sabedoria Diferentes

Giordano sempre foi muito inteligente. Tem capacidade de pe-


gar as coisas no ar. Não sei quais são as estruturas cerebrais que lhe dão
suporte para isso. Mas desde pequeno ele reconhece, no ato, quem sen-
te por ele apenas piedade ou medo, quem o trata com preconceito e
quem, ao contrário disso, reconhece sua alteridade e grandeza, em meio
a sua radical diferença da normalidade. Reconhece e ama os poucos
mas grandes amigos que conquistou: Layana, Fernando, Nonato, Dona
Socorro e Daniele. Em algumas situações, age com precisão e sabedoria.

39
Uma vez levei uma assessora minha para almoçar em casa. Era
uma pessoa de cabeça aparentemente aberta, cheia de frases de efeito
sobre o respeito à diversidade humana, essas coisas. Quando estavá-
mos todos sentados à mesa, ela olhou para Giordano e disse: “Mas
ele é tão lindo, tão saudável. Não tem nenhuma cara de retardado!
Dá pena, Fátima”. Giordano levantou-se da cadeira, do outro lado da
mesa, puxou a cadeira de minha colega de trabalho e segurou-a pelo
braço. Apanhou a bolsa dela na sala e acompanhou-a até a porta da
rua. Depois de fechar a porta à chave, voltou e terminou tranquila-
mente o almoço. Claro que depois de tudo, rimos à beça e continua-
mos a almoçar, orgulhosos de nossa família.
Como todos os autistas, ele não liga muito para etiqueta so-
cial e não sabe disfarçar quando alguém o incomoda. Em nossa casa,
costumamos receber a família aos domingos para o churrasco, aliás,
como fazemos em todas as grandes comemorações. Isso acontece des-
de que os meninos eram pequenos. Creio que um pouco porque eram
muito hiperativos quando menores e eu ficava cansada de explicar o
comportamento deles nas festas, um pouco por sermos tão diferentes,
não nos incomodamos muito com a maneira de ser dos outros. Esse
respeito, acho, agrega pessoas. Talvez eu todo o tempo tenha desejado
que, no controle compartilhado das relações humanas, eles não fos-
sem minoria sempre; em minha casa, ser diferente é normal.
Mas claro que tudo isso não acontece sem regras, com os dois
rapazes autistas temos aprendido, inclusive, a assumir nosso lado
também autista e a ter os próprios momentos de solidão, necessá-
rios para o refazimento das refregas diárias. Desse modo, no fim das
tardes de domingo, quando as visitas costumam partir para os lares,
repletas de afeto e convivência, nos recolhemos em família, alguns
indo tirar um cochilo, outros curtir a tranquilidade de estar em casa.
Assim, de forma calma e introspectiva, costumamos terminar nos-
sos fins de semana.
Num desses domingos, as visitas já haviam saído. Eram cinco
horas da tarde e estávamos todos à mesa da cozinha, tomando um gos-

40
toso café e nos preparando para o descanso, quando soa a campainha.
Eram amigos que, depois de outros programas, resolveram passar em
nossa casa para o churrasco, que já havia acabado. Foram muito bem
recebidos, sendo-lhes servido almoço, sobremesa e café, mas já num
clima pós-festa, meio cansado. Ao terminar o café, Giordano pegou
todas as bolsas e, de maneira a não deixar dúvidas, encaminhou todos
para seus carros, determinado a zelar pela rotina da família.
Outro episódio engraçado ocorreu exatamente na virada de
ano. Tomados daquela alegria e expectativa que antecede a chegada
do ano-novo, felizes por estarmos reunidos e com saúde, ajudados
pelo champanhe, que havia corrido solto, de repente, nossos maridos
e namorados nos colocaram nos braços e nos jogaram, sob resistência,
na piscina. Giordano, que assistira a tudo, gargalhava pelo insólito do
acontecimento, mas com o brilho no olhar que, já conheço, antecipa
grandes travessuras. Entrou em casa, minutos depois voltou corren-
do com a cadela nos braços e jogou-a na piscina. Foi um corre-corre
de mulheres tentando sair da piscina todas ao mesmo tempo, e um
momento de alegria louca e incomum, somente possível em famílias
como a nossa, onde tudo pode acontecer a qualquer momento. Gior-
dano nos lembrava de que nossa vida, pelo menos, ia continuar muito
movimentada no ano-novo.
Quando casei com Alexandre, ele e Giordano já eram grandes
amigos. Não foi uma transição difícil, pois Alexandre já frequentava
minha casa. Mas, com certeza, a receptividade de Giordano me ajudou
muito a tomar a decisão de casar. Antes de Alexandre, não me imagi-
nava mais dividindo o mesmo teto com ninguém. Sabia que mais que
uma mulher jovem e interessante, era um pacote complexo: uma mãe
de quatro filhos entrando na adolescência, todos homens, dois autistas,
sendo que um deles apresentava, vez por outra, explosões inesperadas
de fúria, quando ensinava de forma muito enfática, aos circunstantes,
qualquer desapego aos bens materiais. Aos 13 anos, Giordano já havia
destruído, nessas crises, televisores, livros, portas e muitos utensílios do-
mésticos. Eu costumava, na época, manter os possíveis pretendentes da

41
porta para fora. Dizia que existiam duas Fátimas, totalmente distintas: a
Fátima Dourado jovem, médica, razoavelmente bonita, mulher pública
que fazia conferências e dava entrevistas na televisão. Outra era a Maria
de Fátima, também jovem, que, apesar de médica, vivia sempre com
problemas financeiros e tinha de gerir uma família numerosa e muito
desafiadora. Em casa, o jaleco e o blazer eram trocados por um short e
uma camiseta. E haja tarefas escolares, brincadeiras, desafios, controle
de crises. Já me especializara em colar livros e xícaras e estava ficando
experta em restaurações em geral. Ninguém no mundo vai querer, vo-
luntariamente, viver experiências tão díspares e intensas, eu achava.
Mas aconteceu e foi com amor e gratidão muito grandes por
aquele jovem bom e corajoso que eu iniciei a segunda experiência de
casada. Mais uma vez a fé em Deus se viu ampliada, pois, além do
amor romântico, do sexo, dos desafios intelectuais compartilhados,
Alexandre tinha tudo o que eu precisava para unir as duas Fátimas
e seguir vivendo. Nem nos melhores sonhos, eu haveria de imaginar
uma solução existencial tão perfeita. Giordano, é claro, compreendia
e gozava esse momento, em sua plenitude. Enfim, uma família com-
pleta, com pai, mãe e irmãos com quem dividir a sua, então, pequena
e desafiadora existência.
Um dia, ao amanhecer, Giordano foi nos visitar em nosso
quarto. Chegou com o sorriso angelical que parece fazer o mundo in-
teiro sorrir junto com ele. Alexandre convidou-o a deitar conosco e ele
o fez. Abraçando especialmente Alexandre, olhou-o bem dentro dos
olhos e disse: “Papai”.
Aquele momento foi muito bonito. Sentimos, com os olhos
cheios d’água, que ele estava coroando nosso amor e reconhecendo
a condição legítima da nova e ampliada família. Alexandre lhe disse
palavras cheias de afeto e repetiu muitas vezes que o amava e sempre
cuidaria dele, pois ele também o escolhera como filho. Giordano se
deixou ficar um pouco mais. Quando o amor lhe bastou, levantou-se,
como é comum aos autistas, e foi fazer outras coisas, deixando-nos
plenos de amor e alegria, prontos para o dia que começava.

42
No dia seguinte, às seis horas da manhã, lá estava Giordano,
novamente, para nos acordar com um abraço, um beijo, um pequeno
momento de aconchego e a palavra mágica, desta vez dita no ouvido
de Alexandre, mas em alto e bom som: “Pai”. Feito isso, saiu sorrindo
para um novo dia de vida.
Nas manhãs que se seguiram, Giordano continuou com a roti-
na de nos despertar sempre no mesmo horário, com carinhos cada vez
mais rápidos e gritando agora, cada dia mais alto, a palavra pai.
No décimo dia, o despertar nada mais tinha de idílico e percebe-
mos que tampouco Giordano queria fazer declarações de amor. Enchia
os pulmões de ar e gritava muito alto no ouvido de Alexandre “PAAAI!”,
depois saía correndo, às gargalhadas, por ter despertado o pai daquela
forma. O controle sobre Alexandre, seu sono e seu humor, parecia deliciá-
-lo. Aos poucos, Alexandre foi ficando bravo com os gritos de Giordano e
agora eu é que ganhara uma nova rotina. Me acordava todos os dias com
Giordano gritando pai, a plenos pulmões, e Alexandre correndo atrás dele
escada abaixo, gritando também que Giordano não precisava acordá-lo
daquela forma e que ele tinha o direito de dormir em paz.
A cena se repetia diariamente. Resolvemos fechar a porta, mas
o barulho de Giordano continuava, pois ele batia forte e gritava pai até
que Alexandre abrisse a porta e descesse as escadas brigando com ele,
para que a rotina, então, fosse considerada cumprida.
Um dia, meu ex-marido e pai biológico de Giordano foi nos vi-
sitar, e como nosso despertar fosse o assunto mais falado no momento
em casa, comecei a contar-lhe o fato, meio automaticamente, entre um
café e outro. Giordano, que nessa época ainda era bastante hiperativo,
assistia à conversa rodando em torno da mesa onde estávamos. Quan-
do eu disse o primeiro pai, meu ex-marido começou a chorar. Du-
rante segundos que pareceram uma eternidade, me dei conta de quão
impróprio estava sendo meu relato, julgando-me a pior das criaturas,
sem saber o que fazer ou dizer para desmanchar a situação.
Giordano então, calmamente, puxou a cadeira vizinha à que
o pai estava sentado, tomou-lhe o rosto na mãos, olhou dentro de

43
seus olhos e disse: “Pai”. Dito isso, levantou-se e nos deixou, a mim,
aliviada com a saída milagrosa do embaraço em que me havia me-
tido, e a meu ex-marido, tranquilo com sua paternidade, embora
compartilhada, resgatada.
Quando Giordano estava com 20 anos, chegou meu primeiro
filho com Alexandre, o Gabriel. Todos estávamos felizes, mas ha-
via uma certa apreensão no ar. Giordano, mesmo depois de adul-
to, apresentava suas crises explosivas que, embora bem mais raras,
ainda aconteciam. Muitos me diziam que eu não tinha muito juízo,
pois Giordano poderia causar, mesmo sem querer, algum dano ao
recém-nascido.
No segundo dia em que Gabriel estava em casa, vimos Gior-
dano descer as escadas correndo, com o bebê nos braços e ficamos
em pânico. Mas a surpresa foi quando o vimos sentar-se na poltrona
da sala com o bebê no colo, como se fosse um jovem pai a embalar o
filho. Com cara de anjo, ele olhava Gabriel, com indescritível ternura.
O terno momento durou pouco, logo Giordano me entregou o bebê,
mas foi suficiente para que soubéssemos que aquele fora o batismo de
Gabriel. Giordano já entendera que a família tinha mais um membro,
e este era frágil e precisava ser tocado cuidadosamente.
Gabriel está com 12 anos e nunca foi machucado de nenhu-
ma forma pelo irmão. Pelo contrário, quando pequeno, Giordano se
divertia quando Gabriel disputava com ele algum brinquedo e ria, le-
vantando o braço com o brinquedo, mostrando sua superioridade físi-
ca, mas nunca reagiu, nem mesmo quando Gabriel lhe batia, tentando
tomar os brinquedos.
Muitas vezes, deitávamos Gabriel numa rede na varanda e era
muito bom ver o cuidado de Giordano, vasculhando a rede, quando ia
deitar, para se certificar se o irmão não estava lá dentro.
Não é apenas por crianças pequenas que Giordano desenvol-
veu esse cuidado, meio paternal. Também demonstra cuidado e ter-
nura com filhotes de animais. Temos muitos cachorros em casa. Uma
das cadelas havia dado cria e, às vezes, deixava os filhotes na varanda

44
enquanto saía pelos jardins e quintal. Certa vez, encontramos Gior-
dano tirando calmamente cada um dos cachorrinhos recém-nascidos
de perto da rede onde estava, para logo depois apresentar um grande
ataque de fúria. Ao que parece ele conseguiu adiar a crise, para não
machucar nenhum dos cachorros-bebês.
Hoje, Giordano é um jovem senhor de 32 anos de idade. Pare-
ce muito cioso de suas limitações e demonstra, às vezes, sofrimento
com isso. Quando mais jovem desenvolveu intenso interesse afetivo e
sexual por garotas, mas sua abordagem era sempre muito direta e elas
brincavam com ele, mas nunca se interessaram de verdade. Continua
virgem. Aprendeu, no entanto, a viver solitariamente sua sexualidade,
sem incomodar ninguém.
Não aprendeu nenhuma profissão, mas ajuda em casa em pe-
quenas tarefas, como retirar do carro as compras do supermercado.
Sozinho, decidiu que ia frequentar a Casa da Esperança apenas no tur-
no da manhã. Faz sessões de fonoaudiologia e fisioterapia e participa
do programa de vivências terapêuticas. Vai a festas e passeios coleti-
vos. À tarde, fica em casa, vê televisão e “lê” livros e revistas com muito
interesse e concentração. É independente em relação a autocuidados,
no entanto sempre precisa de alguma supervisão. Adora televisão e ri
muito de videocacetadas e outras cenas engraçadas.
Não gosta de sair de casa. Mas nisso ele parece com o restante
da família, somos todos muito caseiros. Frequenta as casas dos irmãos
casados, basicamente, em dias de festa. Vai, de vez em quando, à praia
e só dorme fora de casa quando viajamos, em férias. Ele ficou mais
calmo com o tempo e hoje, dificilmente, alguém que não lhe conhe-
cesse a história diria que ele é autista, pois perdeu as estereotipias e
a hiperatividade e tem ficado cada vez mais atento ao mundo a seu
redor. Dorme sozinho em seu quarto e parece precisar muito dele.
Com o tempo aprendeu a se regular mais emocionalmente, isolando-
-se espontaneamente. Apresenta, ainda, grande labilidade humoral, às
vezes acorda de mau humor, porém logo depois o rosto se ilumina
como se fosse um sol, espalhando alegria e esperança.

45
Tenho aprendido muito sobre autismo. Por causa dos meus
filhos e pacientes, voltei para a psiquiatria. Hoje, além de pediatra, sou
psiquiatra da infância e da adolescência e diretora clínica da maior
organização especializada em autismo do Brasil. Recebo crianças au-
tistas de todo o país e de algumas partes do mundo, em busca de diag-
nóstico e orientação. Convivo diariamente com cerca de quatrocentas
pessoas com autismo. Conheço de perto muitos desafios e muitas pos-
sibilidades humanas que se escondem debaixo desse rótulo. Aprendi
muito com os autistas.
Continuo gostando de ouvir e contar histórias, embora, ulti-
mamente, evite histórias que empurram as pessoas para baixo, para
porões obscuros, cheios de monstros e mistérios. Prefiro as histórias
reais de pessoas concretas, de preferência aquelas que pegam roteiros
preestabelecidos e os reescrevem, de forma original e criativa.
Quando eu tinha 16 anos, descobri um pensador que me in-
fluencia até hoje. Ele se chama Jean Paul Sartre, um ateu existencialista
que disse: “Não importa muito o que fizeram com a gente. O que im-
porta é o que podemos fazer com o que fizeram de nós”.
Giordano e Pablo, com seus mistérios, me levam constante-
mente a pensar em Deus e no sentido da vida. Como antes, continuo,
no entanto, a crer no livre-arbítrio. Existencialista e cristã, cito agora
Chico Xavier: “Ninguém pode voltar atrás e fazer um novo começo,
mas cada um pode começar, agora, a dar um outro final para a sua
própria história”.

46
2
DIAGNÓSTICO PRECOCE:
O AUTISMO NOS PRIMEIROS MESES DE VIDA

O Bebê Humano Típico

O bebê humano típico parece nascer “programado” para des-


bravar os mistérios do mundo social. Ainda na maternidade, preo-
cupa-se com o choro do vizinho. Chora também, em solidariedade.
Presta mais atenção à voz humana do que a qualquer outro ruído do
ambiente, como se já chegasse ao mundo com uma prioridade: enten-
der o que se passa na cabeça dos outros indivíduos. Para realizar bem
esse trabalho, os bebês parecem nascer equipados, de forma muito so-
fisticada, para captar intenções e gestos. Senão vejamos.
Muitas pesquisas comprovam a preferência dos bebês por faces
humanas. Na disputa pela atenção dos bebês, os rostos ganham dispa-
rados dos objetos e detalhes do ambiente. E mais, estudos demonstram
que eles preferem os rostos sorridentes, preferência que vai continuar
ao longo da vida. Nem a beleza chama tanto a atenção quanto a alegria.
O fato é conhecido como vantagem da expressão da felicidade.
Quando olham para os rostos, os bebês naturalmente buscam
os olhos das pessoas. Parecem saber que os olhos são as janelas da
alma. Fixam desde cedo o olhar e hoje sabemos quanto eles aprendem
apenas com essa atitude instintiva.
Bebês começam cedo a imitar outras pessoas: recém-nasci-
dos imitam gestos faciais e manuais (MELTZOFF; MOORE, 1977)
e expressões emocionais (FIELD et al., 1982). Também reagem com
grande interesse quando um adulto imita suas próprias ações (FIELD,
1977); sorriem e bocejam em resposta a sorrisos e bocejos e podem
pôr a língua para fora, se forem cumprimentados dessa forma. Pare-

47
cem querer experimentar em si as sensações que o outro experimenta
com diferentes “caras e bocas”.
Com dez semanas de vida, bebês já discriminam e reagem
adequadamente a expressões faciais e estados emocionais (HOBSON,
2002; SIGMAN; KASARI, 1995). Maiores, acompanham o olhar de
pessoas próximas. Tentam adivinhar-lhes a perspectiva.
Em seguida desenvolvem linguagens para permear as relações
com os outros. Aninham-se jeitosamente nos braços da mãe, tornan-
do o ato de ser pego ao colo um carinho, um mimo para quem o faz.
Logo inventam uma linda fala, rica em prosódia, melódica e cheia de
significados e a ensinam para mães e cuidadores.
Assim que a coordenação motora permite, eles apontam. Pri-
meiro para declarar ao outro o que querem, logo depois apenas para
compartilhar, para convidar o outro a ver as coisas de sua perspectiva,
de seu ponto de vista.
Compartilhar, repartir, vivenciar com o outro as experiências
parece ser uma das atividades mais prazerosas para crianças pequenas.
Dessas experiências compartilhadas parecem surgir a fala e os
meios mais sofisticados de comunicação que irão se refinar ao longo
da vida, afirmando a importância do amor e do relacionamento no
desenvolvimento das crianças.
Crianças pequenas descobrem muito cedo que, se é bom com-
partilhar coisas e situações com as pessoas em geral, melhor ainda é
com seus pares, por isso se sentem irremediavelmente atraídas por
outras da mesma idade, com quem passam a dividir experiências reais
ou imaginárias.
Atualmente, sabemos que cerca de um por cento das crianças
nasce com graves dificuldades para o desenvolvimento de relações
sociais recíprocas. Toda essa predisposição inata para buscar, ativa-
mente, o outro e impressioná-lo parece faltar a essas crianças. São
crianças que irão desenvolver algum tipo de transtorno do espectro do
autismo. A maioria delas parece fisicamente perfeita e pode desenvol-
ver-se normalmente em muitos aspectos. Embora não seja incomum

48
apresentarem algum atraso nos marcos do desenvolvimento motor,
crianças com autismo geralmente começam a sentar, andar, pular na
idade esperada, mas falta-lhes curiosidade pelas pessoas, por seus jei-
tos de falar e agir, assim como capacidade para imitá-las e com elas
tentar espontaneamente compartilhar alegrias e frustrações.
4 Pesquisas recentes dão conta de que essas crianças desde cedo
apresentam alterações nos aspectos sociais do desenvolvimento.
Como esses marcos surgem anteriormente à linguagem e parecem ser
pré-requisitos para ela, psicólogos desenvolvimentistas sugerem que
a inabilidade social pode ser a base das dificuldades de comunicação
das crianças com autismo, as quais, por sua vez, levam a um desvio de
desenvolvimento das habilidades cognitivas.
O objetivo do diagnóstico precoce do autismo e, mais ainda, a
identificação de características preditoras do autismo são fundamentais
para que possamos atuar precocemente, possibilitando o desenvolvi-
mento nessas crianças de bases neurais mais compatíveis com o desen-
volvimento da inteligência social.

O Desenvolvimento da Subjetividade

Trevarthen et al. (1998) desenvolveram dois conceitos muito


interessantes para a compreensão das habilidades sociais e de comu-
nicação dos bebês: a intersubjetividade primária e a intersubjetivi-
dade secundária.
A intersubjetividade primária vai desde o nascimento até os
nove meses de idade e é caracterizada pelas interações mãe-bebê. É
constituída de olhares, trocas de sorrisos, mudanças na entonação da
voz, imitações mútuas, intercâmbio de emoções e esconde-esconde.
O que sabemos hoje é que o bebê humano não é um mero re-
ceptor de afetos e códigos civilizatórios, em cuja alma a mãe vai deixar
impressa as marcas e características de seu amor. Protagonista do pró-
prio desenvolvimento, nasce com capacidade para buscar e seduzir,
encantar e marcar de forma peculiar os que com ele partilham seu de-

49
senvolvimento afetivo e social. E cada bebê faz isso de seu jeito. Desde
o primeiro momento de vida. Uns são muito ativos, logo se esticam e
se oferecem para ser pegos no colo; outros não choram nem sequer
para mamar, precisando ser acordados para isso. Alguns fazem caras e
bocas e não deixam que ninguém passe perto deles sem arrancar-lhe
um sorriso, um carinho, uma brincadeira. Outros soltam-se apenas
com os familiares e há ainda os que parecem não perceber quando
entram ou saem pessoas do ambiente em que se encontram.
Em torno dos nove meses a criança já deve apresentar sorriso
social, ou seja, deve sorrir espontaneamente em resposta a uma brin-
cadeira ou a um sorriso do adulto, sem que este tenha de fazer-lhe
cócegas para isso.
A segunda fase, a intersubjetividade secundária, é triádica e
marcada pelo compartilhamento de objetos entre a mãe e o bebê. Do
compartilhamento da atenção ao mesmo objeto parecem surgir inten-
ções também compartilhadas e os primeiros gestos de comunicação.
Aos poucos o bebê aprende a pedir, oferecer e apontar, voltando o olhar
para o olhar da mãe, para certificar-se da eficácia da comunicação.
Esses comportamentos são chamados de habilidades de aten-
ção conjunta. A atenção conjunta, fundamental para o desenvolvi-
mento da intersubjetividade secundária, é ainda um pré-requisito da
linguagem e da comunicação, assim como das habilidades de teoria
da mente, isto é, a capacidade de atribuir estados mentais a outras
pessoas e, depois, de predizer seus comportamentos com base nesses
estados internos.
O não desenvolvimento das habilidades de atenção comparti-
lhada entre nove meses e um ano de idade é um importante preditor
do desenvolvimento do autismo. No final do primeiro ano de vida, ao
ensaiar os primeiros passos, a criança já deve ser capaz de olhar para
um objeto mostrado por um adulto e acompanhar-lhe o deslocamento
com o olhar, assim como já deve ter desenvolvido a orientação social,
ou seja, a capacidade de virar-se para outra pessoa quando chamada
pelo nome.

50
É muito importante a identificação precoce da falta de
orientação social, da atenção preferencial por rostos e falas, assim
como do não surgimento da atenção compartilhada no primeiro ano
de vida. Não podemos esperar pelo surgimento dos sinais clássicos do
autismo para intervir. O cérebro, nessa idade, é bastante responsivo a
intervenções, o que torna possível o redirecionamento da atenção da
criança, preparando-a, com chances maiores de sucesso, para a aqui-
sição da linguagem simbólica.

51
3
O AUTISMO NO SEGUNDO ANO DE VIDA

O segundo ano de vida é marcado por grande desenvolvimento


motor, da linguagem e das habilidades sociais. Para um observador
experiente, os sinais do autismo já podem ficar bem mais evidentes
nessa idade.
A atenção compartilhada, que começou a desenvolver-se antes do
primeiro aniversário, está bem estabelecida e começa a garantir a emer-
gência das primeiras comunicações simbólicas verbais e não verbais.
Inicialmente a criança segue a atenção do adulto. Consegue
prestar atenção quando este aponta um objeto ou mostra-lhe uma
foto, mudando de foco quando o adulto mostra-lhe um outro objeto.
Essa habilidade de seguir o apontar, geralmente, está bem estabelecida
entre doze e quinze meses de vida. A criança, alternadamente, concen-
tra o olhar na pessoa que lhe mostra e no objeto que lhe é mostrado.
Aos poucos, a criança começa a se dar conta de que pode ela
própria dirigir a atenção do adulto. Tem início assim a intenção e a
competência comunicativa. O apontar da criança pode ter duas funções
distintas, que representam dois níveis de linguagem: o primeiro é ins-
trumental e tem uma função imperativa, a criança aponta para mostrar
o que deseja, sobretudo objetos que estão fora de seu alcance. Essa fun-
ção desenvolve-se em torno dos treze meses. As crianças com autismo
geralmente não desenvolvem essa habilidade. Quando não alcançam
um objeto, costumam pegar a mão do adulto e levá-la até onde desejam,
usando o outro como instrumento para conseguir seus objetivos. Algu-
mas poucas crianças com autismo desenvolvem a habilidade do apontar
imperativo, mas o fazem esticando o braço e balançando a mão, ou até
usando o indicador, mas sem olhar de volta para o adulto, a fim de se
certificar se o mesmo está olhando para onde elas apontam.

53
Uma função social mais sofisticada do apontar é a expressiva,
declarativa. Nesse caso a criança aponta não mais para pedir, mas ape-
nas para mostrar o que está vendo e achando interessante. O que ela
quer quando aponta é ver a reação do adulto ao objeto mostrado. Em
geral, a criança olha para o adulto e perscruta-lhe a expressão facial,
analisando o tipo de emoção desencadeada pelo objeto compartilhado.
Esse modo de apontar é a base para a teoria da mente, pois aqui nosso
pequeno “psicólogo” começa a ter grandes chances de deparar com ou-
tros olhares e perspectivas diferentes da sua.
A imensa maioria das crianças com autismo não desenvolve a
habilidade do apontar meramente expressivo e, quando o faz, não se
dá o trabalho, com raras exceções, de investigar a reação do interlocu-
tor ao que lhe é mostrado.

A Interação Ajuda a Desenvolver a Comunicação

A habilidade de atenção compartilhada é, sem sombra de dú-


vida, pré-requisito para o desenvolvimento da linguagem e das habi-
lidades sociais.
“As habilidades de atenção conjunta permitem o desenvolvi-
mento da capacidade da criança para compartilhar estados emocio-
nais, o que se desenvolve durante os primeiros seis meses; comparti-
lhar intenções, aos dez meses e para levar em conta a perspectiva do
outro em relação aos assuntos e eventos, a partir do segundo ano de
vida” (KLIN, et al., 2006).

Competência Comunicativa

Podemos considerar que a criança apresenta prontidão para


se comunicar quando ela já monitora o ambiente social, acompa-
nhando fatos e pessoas com o olhar; aprende a demonstrar as emo-
ções através de mudanças na expressão facial e gestos; apresenta o
apontar expressivo, ou seja, aponta para mostrar coisas; e desenvolve

54
a atenção compartilhada. Dizemos, então, que ela adquiriu compe-
tência comunicativa.
Quando a criança aprende a usar a linguagem verbal, também
usamos o conceito de competência comunicacional para avaliar a efe-
tividade e funcionalidade de sua linguagem. A atenção conjunta vai
continuar sendo importante fator para o desenvolvimento da lingua-
gem, pois somente prestando atenção no interlocutor e no contexto
comunicacional, a criança irá desenvolver as sutilezas e os cuidados
necessários para uma comunicação fluente e eficaz.
A criança com autismo, comumente, não desenvolve, de forma
adequada, a atenção conjunta, o que faz com que quase 50% delas nem
sequer desenvolvam a linguagem oral. A intervenção precoce tem, fe-
lizmente, mudado esse quadro. Na Casa da Esperança, onde atendemos
mais de cem crianças no serviço de intervenção precoce, com técnicas
de redirecionamento da atenção e estimulação fonoaudiológica intensi-
va de pelo menos duas horas diárias, tem sido possível mudar de forma
drástica essa estatística e cerca de 75% das nossas crianças, atendidas
precocemente, estão conseguindo se comunicar de forma verbal.
Crianças com autismo, mesmo depois de aprenderem a falar,
costumam apresentar déficits relativos à competência comunicacio-
nal: o uso da fala é, no geral, mais instrumental que expressivo. Por
exemplo, um pequeno paciente meu aprendeu a dizer tchau. Ele diz
tchau não para se despedir das pessoas e ser educado com elas, mas
para demonstrar que não quer coisas ou não está gostando de uma
situação: tchau escola, tchau tomar banho etc.
No segundo ano de vida ocorre, ainda, o desenvolvimento
do apego e da ansiedade de separação da mãe ou de outra figura de
referência. Podemos observar isso, por exemplo, quando a criança
desenvolve a marcha e começa a correr: é comum que ela olhe para
trás, a intervalos regulares, para certificar-se de que a mãe está lá. A
essa altura, a criança já sabe conciliar interesses e priorizar, ela quer
aventurar-se em novas experiências, mas sem perder de vista o adulto
que a acompanha.

55
As crianças com autismo, geralmente, passam muito menos
tempo perto dos pais ou cuidadores do que as crianças típicas. É fre-
quente serem descritas como sendo muito “independentes”. E quando
começam a correr, não olham para trás, não sendo incomum que se
percam, caso o adulto não fique de olho.
O isolamento social também fica claro nessa idade. As crianças
autistas costumam ficar sozinhas, mesmo numa sala cheia de pessoas.
Parecem ficar alheias aos acontecimentos, concentradas somente em
seus afazeres. Mesmo participando de uma festa de aniversário, não
conseguem identificar o centro dos acontecimentos e ocupam-se em
coisas que gostam de fazer, como ir para o pula-pula, por exemplo.

56
4
O AUTISMO DOS TRÊS AOS CINCO ANOS

Nessa idade, para a imensa maioria das famílias, já ficou claro


que alguma coisa não está indo bem no desenvolvimento da criança. É
comum no consultório recebermos a criança pela primeira vez depois
dos 3 anos de idade. Existem dois tipos básicos de queixa:
A criança vinha tendo um desenvolvimento satisfatório, ape-
nas com algumas dificuldades ligadas à comunicação, mas ao ser colo-
cada no pré-escolar foram detectadas dificuldades de comportamento
e de relacionamento com os coleguinhas.
A criança teve um desenvolvimento normal até o segundo ano
de vida, inclusive no que diz respeito à linguagem, mas apresentou re-
gressão das habilidades adquiridas, deixando de usar a fala e passando
a apresentar comportamentos típicos do autismo.
De uma maneira ou de outra, os sintomas clássicos do autismo
começam a se manifestar de forma mais clara nessa época da vida.

Isolamento Social

As crianças com autismo parecem preferir brincar sozinhas e


bastarem-se a si mesmas. Mesmo com a família, entretêm-se com os
brinquedos ou andam de um lado para outro, sem nenhum objetivo
definido. Outras isolam-se no quarto quando chegam pessoas estra-
nhas à casa. Na escola, preferem ficar no parquinho e não comparti-
lham os brinquedos com as outras crianças.

57
Dificuldade de Comunicação Social

Metade das crianças com autismo não desenvolve a linguagem


verbal até essa idade. Às vezes, ocorre um atraso na aquisição da fala,
de tal forma que aos 3 anos as crianças apenas balbuciam ou emitem
palavras soltas, muitas vezes de forma ecolálica, repetindo a última
palavra dita pelo interlocutor (ecolalia imediata), ou repetindo a fala
de algum personagem ou apresentador de televisão (ecolalia tardia).
A ecolalia muitas vezes não é usada com o objetivo de comu-
nicação, ou seja, não há intenção comunicativa na emissão da fala,
mas outras vezes é utilizada de forma funcional. Em nossa prática, ob-
servamos que as crianças que apresentam fala, mesmo que ecolálica,
têm um melhor prognóstico, sendo quase sempre possível, para pais e
terapeutas experientes, ajudá-las a transformar a fala, aparentemente
sem sentido, numa fala funcional.
Outras crianças apresentam fala funcional, mas o número de
palavras é muito pequeno para o esperado para a sua idade cronoló-
gica ou verificam-se trocas fonéticas e/ou fonológicas, ou seja, ao no-
mear coisas ou pessoas, as palavras pronunciadas apresentam trocas
ou omissões de fonemas. É frequente, um atraso no aperfeiçoamento
morfológico da linguagem, na aprendizagem da formação de frases,
no uso adequado dos verbos e demais classes gramaticais. É muito
comum, ainda, a inversão pronominal, com a criança referindo-se a
si mesma na terceira pessoa, dizendo coisas como o bebê quer água, o
João quer sair etc.
Algumas crianças, no entanto, desenvolvem razoavelmente
bem todos os elementos da linguagem e os usam de forma funcional,
mas falam apenas para alcançar seus objetivos mais imediatos, não
conseguindo conversar ou fazer relatos. É bastante comum também a
presença de linguagens idiossincráticas, com uso de neologismos pra-
ticamente inintelegíveis, principalmente para pessoas não habituadas
com a criança. Algumas crianças até conseguem fazer relatos e dialo-
gar, falam de forma loquaz, mas apenas sobre temas de seu interesse,

58
sem levar em conta o interesse do interlocutor. Tais crianças, embora
não apresentem dificuldades nos aspectos fonético e fonológico da
linguagem, exibem outras de ordem semântico-pragmáticas.

Comunicação não Verbal

Todas as crianças com autismo já demonstram, nessa idade,


marcantes dificuldades nos aspectos não verbais da comunicação: não
olham nos olhos das pessoas ou o fazem de forma escassa e fugaz, suas
expressões faciais são pobres e, praticamente, não usam gestos para se
comunicar ou usam as pessoas como ferramentas para conseguir ob-
jetos fora de seu alcance. Não apontam, não usam gestos instrumen-
tais espontaneamente, não dão beijinhos nem tchau.
A linguagem compreensiva, nessas crianças, embora geralmen-
te esteja mais desenvolvida que a linguagem expressiva, também apre-
senta defasagem em relação às crianças típicas. Boa parte das crianças
autistas age como se fosse surda, algumas parecendo não entender
absolutamente nada do que lhes é dito. Outras parecem compreender
apenas pedidos simples e existem, aquelas que só parecem reconhecer
palavras referentes a coisas de seu interesse. Só uma minoria demons-
tra entender um pedido mais complexo.

Incapacidade para Brincar

Nessa idade a maioria das crianças adora brincar e começa a


desenvolver brincadeiras imaginativas cada vez mais complexas: brin-
cam de casinhas, de super-heróis, fingem ser pais ou mães dos bonecos.
Sentem grande atração por crianças da mesma idade. Rapidamente
fazem amizades entre si e já são capazes de passar algumas horas lon-
ge dos pais, brincando com os pares. As crianças autistas apresentam
uma relação completamente alterada com os brinquedos. Geralmente
brincam com partes de objetos, como tampas de panela, pneus de car-
rinhos, embalagens vazias. Ficam fascinadas por objetos que giram e

59
não por brinquedos. Algumas até brincam de forma adequada, com
brinquedos, mas preferem enfileirá-los, organizando-os por cores ou
tamanhos. Outras adoram brinquedos de montar, quebra-cabeças etc.
Mas todas apresentam dificuldades para brincar com outras crianças e
deficiência na capacidade de brincar de forma simbólica.

Dificuldades Adaptativas

Essa é uma área do desenvolvimento que requer avaliação e in-


tervenção muito rápida em crianças com autismo. Mesmo entre aque-
las que não apresentam importantes déficits cognitivos, não é raro que
manifestem grande dificuldade para aprender coisas práticas como o uso
adequado do sanitário e habilidades de autocuidados. Por falta de inter-
venção precoce, temos visto crianças grandes, verbais e até alfabetizadas,
mas incapazes de comer sozinhas ou, ainda, fazendo uso de fraldas.

Estereotipias Motoras

Nessa idade as crianças com autismo já apresentam estereoti-


pias motoras clássicas do transtorno, tais como os flappings, quando ba-
lançam as mãos como se quisessem voar, principalmente quando estão
muito alegres ou excitadas com algum objeto que lhes interesse. Algu-
mas exibem balanceios corporais, para frente e para trás, enquanto ou-
tras desenvolvem complexos tiques motores faciais, vocais ou corporais.
Uma parte dessas crianças também costuma andar na ponta dos pés.

Dificuldades Escolares

A imensa maioria das crianças com transtorno do espectro do


autismo costuma apresentar dificuldades escolares. Na pré-escola, ficam
andando pela sala ou em outras dependências, enquanto seus pares, es-
tão sentados, parecendo não entender o sentido das atividades coletivas.

60
Negam-se a participar das danças e apresentações de grupo e manifes-
tam diferentes níveis de déficits cognitivos. Muitas demoram a escrever
o próprio nome, tendo dificuldade para escrever de forma cursiva, em-
bora possam fazê-lo com letra de imprensa ou no computador. Muitos,
no entanto, revelam excelente memória e aprendem rapidamente os
nomes de cores, formas geométricas, letras e números. Alguns chegam
inclusive a alfabetizar-se sozinhos, antes dos colegas de turma. Todos,
no entanto, apresentam dificuldade nos aspectos sociais da inteligência.

Rigidez Comportamental

As crianças com autismo costumam gostar de rotinas e ten-


dem a estabelecê-las para si e para os outros. Alguns podem insistir
em fazer sempre o mesmo trajeto para a escola, outros podem querer
que móveis, objetos domésticos ou seus brinquedos estejam sempre
na mesma disposição.

Interesses Incomuns

Frequentemente, crianças com autismo desenvolvam interes-


ses incomuns para crianças de sua idade. Alguns demonstram fascínio
por logomarcas e decoram propagandas de televisão, placas de carro,
nomes de capitais e itinerários de ônibus. Outros interessam-se por te-
mas muito específicos, como dinossauros, bandeiras, times de futebol
ou propagandas políticas.

Desmodulação Sensorial

Muitas crianças com autismo apresentam problemas de des-


modulação sensorial, com diferentes graus de intensidade. Algumas
são muito sensíveis a determinados tipos de som e chegam a tapar
os ouvidos por isso. Outras não conseguem comer determinados ti-

61
pos de alimento e têm muita dificuldade para fazer a transição de ali-
mentos pastosos para sólidos, o que acaba comprometendo também
a capacidade de desenvolvimento da linguagem, uma vez que a mus-
culatura usada para a mastigação precisa ser desenvolvida também
para a aquisição da fala. Existem, as que têm verdadeira aversão por
determinadas texturas, seja de algum tipo de substância cremosa ou
tecido que lhes encoste na pele.
É muito comum ainda a desmodulação sensorial proprioceptiva
ou insegurança gravitacional.

Interesse por Videogames e Objetos Eletrônicos

Um aspecto interessante, observado em nossa prática clínica


e que pode usado com finalidades terapêuticas, é o intenso interes-
se de algumas crianças com autismo por programas infantis de TV,
principalmente os da Xuxa, e por filmes infantis e desenhos anima-
dos como o do Picapau. Já temos visto muitas crianças aprenderem
as primeiras palavras dessa forma. É comum assistirem repetidas ve-
zes ao mesmo vídeo. Da mesma forma, temos visto uma afinidade
natural de crianças com autismo por videogames e computadores.
Essas preferências podem ser usadas com objetivos terapêuticos e
pedagógicos, através de jogos e softwares educativos.
Na Casa da Esperança, mantemos uma oficina de informática
para os pequenos da intervenção precoce que tem sido de grande uti-
lidade para a aquisição de habilidades linguísticas e acadêmicas. Nos
últimos tempos, inclusive, fazemos uso cada vez maior de aplicativos
para o iPad que têm se mostrado muito úteis no desenvolvimento de
competências comunicacionais.

62
5
TRANSTORNOS DO ESPECTRO AUTISTA

Transtorno Autista

A História de Pedro

Pedro é o segundo filho de um jovem casal de médicos. Foi um


bebê esperado. Os pais tinham uma menina de dois anos e planeja-
vam uma família de três filhos. O casal vive em harmonia, namorava
desde o terceiro ano de faculdade. Os dois têm um emprego público
e um consultório de pediatria. Estão no início de suas carreiras, mas
vivem bem financeiramente. Ainda estão na faixa dos vinte anos e têm
sonhos, muitos sonhos.
Paula e Alexandre já sabiam durante a gravidez que o próximo
rebento seria um menino e curtiram muito a chegada do filho. Cada
ultrassonografia era vivida e registrada com emoção. Estavam con-
fiantes com a grandeza e possibilidade do amor dos dois: eram jovens
e férteis. Corajosos e sadios. Tinham uma profissão que lhes permitia
cuidar dos outros e manter uma família estável e feliz.
Pedro nasceu num domingo de sol, de parto cesáreo. Sua irmã
mais velha também tinha nascido assim. Pedro chorou ao nascer. Pe-
sou 3.650 gramas e mediu 50 centímetros. Apgar 9/9. Pegou bem o
seio materno e recebeu alta hospitalar junto com a mãe.
Paula e Alexandre chegaram a casa com o caçula, cheios
de planos.
A irmã de Pedro, Luciana, de início, teve muito ciúme do ir-
mão. A mãe ficava demais com o irmãozinho, quase não tinha tempo
para ela. O pai desdobrou-se no cuidado com a filha. Luciana ficou
mais chorona, birrenta, mas logo foi superando e já queria brincar

63
com o irmão. Pedro ficava mais forte a cada dia. Só no peito, mamava
e dormia, dormia e mamava. Era um bebê muito quietinho. Logo a
mãe pôde dividir sua atenção com Luciana, Pedro não dava trabalho.
Quase nunca chorava.
Aos três meses, Pedro já estava com oito quilos e chamava a
atenção pela beleza e saúde. Continuava crescendo e a mãe ficava des-
lumbrada com seu poder. Pedro nem sequer bebia água. Seu leite pa-
recia ser tudo o que ele precisava para viver.
Aos seis meses, Pedro segurava um brinquedinho e quase
nunca o soltava. A mãe e o pai faziam gracinhas, mas ele não dava
muita bola. Era muito na dele, dizia a mãe. As pessoas faziam caras e
bocas e Pedro não ligava, não sorria em troca. É muito sério, o meu
menino, dizia o pai. Isso é bom, não nasceu para ser político. Mas
Pedro ria, ria muito, quando lhe faziam cócegas ou mexiam fisica-
mente com ele, outras vezes ria sozinho, sem nenhum motivo apa-
rente. Nessa idade ele sentou sozinho, sem apoio. Aos nove meses,
arrastava-se, não engatinhava, mas arrastava-se até os objetos que
queria. A mãe brincava com ele, mas ele não a olhava nos olhos, não
apontava, pegava diretamente o queria: é muito independente o meu
rapaz, pensava.
Com um ano de idade, Pedro já estava dando alguns passos.
Os pais, pediatras, estavam radiantes, tudo corria bem no desenvolvi-
mento do menino.
Seis meses depois, Pedro era um belo e saudável garotinho. An-
dava para todos os lados, mexia em tudo, tudo virava um brinquedo
em suas mãos. Pedro só não era muito simpático. Nisso era o contrá-
rio da irmã, sempre muito serelepe, desde pequena mandava beijos e
dava tchau para todo mundo e não podia ver outra criança que já fazia
amizade. Mas os pais sabiam, as meninas se desenvolvem socialmente
antes dos meninos, inclusive falam mais rápido.
Aos 2 anos, Pedro ainda não falava nenhuma palavra e os pais
começaram a ficar preocupados, mas a avó paterna tranquilizou todo
mundo, seu filho mais velho só falou aos 4 anos de idade.

64
O segundo aniversário de Pedro foi um pouco chato. A festa
estava linda, todos os primos presentes. Havia palhaço, cama elástica,
muita brincadeira. Pedro chorou a festa inteira e, antes dos parabéns,
entrou no quarto e lá ficou tranquilo com seus brinquedos. A mãe dei-
xou passar um tempo e aos poucos resolveu trazer algumas crianças e
presentes para o quarto. Pedro teve uma verdadeira crise, chorou, es-
perneou, jogou os brinquedos pelo quarto e empurrou as crianças. Al-
5
gumas mães que haviam entrado com Luciana pegaram seus meninos
e, no jardim, cochichavam umas com as outras, que menino esquisito,
mimado, mal-educado. Se soubessem, não teria trazido o filho, para
ser empurrado daquele jeito.
Pedro, aos poucos, foi repetindo o comportamento nos
shoppings, em outras festinhas. Saía sempre gritando com as mãos
nos ouvidos. Os pais o levaram a um otorrino e foram pedidos mui-
tos exames. Tudo normal. Aos 2 anos e meio, só demonstrava interesse
por DVDs, principalmente da Xuxa. Ele pulava na frente da televisão.
Pulava e balançava as mãozinhas. Parecia que ia voar. Com o tempo
passou a balançar as mãos mesmo sem músicas. Depois foi desenvol-
vendo verdadeira fixação pela Xuxa. O DVD tinha de ser reproduzido
dez, quinze vezes, sempre visto com a mesma euforia, e sempre que era
retirado, parecia que o mundo ia acabar. Com 2 anos e oito meses, Pe-
dro entrou na escola, os pais estavam muito ansiosos, quem sabe agora,
no contato contínuo com outras crianças da mesma idade, o garoto não
desenvolvesse plenamente a fala e pegasse gosto de brincar com outras
crianças. No primeiro dia, tudo parecia que ia dar certo. Pedro adorou o
parquinho e não deu o menor trabalho para ficar na escola.
Mas a lua de mel com a escola durou pouco. Com uma semana,
as professoras não conseguiam tirar Pedro do parquinho. Ele gritava
como se estivesse apanhando dentro da sala de aula. Corria para o
parque e ficava lá sozinho. As professoras chamaram os pais e pediram
uma avaliação do menino, elas queriam uma orientação. Naquele dia
os pais ouviram pela primeira vez uma palavra que jamais esquece-
riam. Uma das professoras disse que achava o comportamento de Pe-

65
dro muito parecido com o de outra criança, dois anos mais velho que
ele, que já chegara na escola alfabetizado. A diferença é que o menino
mais velho falava muito e sabia tudo de dinossauros. O menino mais
velho era autista.
Os pais de Pedro fizeram uma busca na internet. Choraram mui-
to ao descobrir que Pedro se encaixava muito bem nos critérios diagnós-
ticos. Leram tudo o que encontraram e buscaram ajuda especializada.
Logo foi feito o diagnóstico de Pedro. O fato de os pais serem médicos
ajudou muito para que encontrassem profissionais competentes. Pedro
estava prestes a fazer 3 anos e os pais sabiam que nessa idade o cérebro
ainda está se desenvolvendo e muita coisa podia ser feita para que Pe-
dro encontrasse seu lugar no mundo. Eles estavam dispostos a tudo para
lhe oferecer o melhor que estivesse a seu alcance.

Um Drama Cada Dia mais Comum

A história acima ilustra um drama cada dia mais comum, a des-


coberta de que uma criança tem um transtorno do espectro do autismo.
Considerado raro até há pouco tempo, atualmente o autismo
atinge uma em cada cem crianças que nascem. Nunca, como hoje, se
falou tanto em autismo.
Este livro fala sobre autismo, sobre suas causas e formas com-
provadamente eficazes de enfrentar o problema. Ele é destinado a pais
e profissionais. Foi escrito com a cabeça e com o coração. Pois é assim
que me relaciono com o autismo. Como mãe e como médica.
O que denominamos autismo é, na realidade, apenas o protótipo
de uma série de transtornos, com diferentes formas de apresentação e
múltiplas causas, ligados entre si por algumas características comuns:
início muito precoce; atraso e anormalidades no desenvolvimento da
inteligência social; dificuldades de comunicação e linguagem; presença
de estereotipias de comportamento, atividades e interesses.
Cada uma dessas características manifesta-se nos indivíduos
com autismo de forma variável.

66
Alguns indivíduos com autismo são totalmente apáticos, iso-
lados, parecendo quase impermeáveis a qualquer contato social,
enquanto outros são desinibidos socialmente, podendo mesmo se
relacionar com um grande número de pessoas, mas de forma indis-
criminada, impessoal, performática, sem levar em conta os interesses
daqueles com quem se relacionam.
As dificuldades de comunicação e linguagem podem se mani-
festar através de um mutismo total e permanente, passando por todas
as nuanças relativas a quantidade e qualidade de linguagem expressiva
e receptiva, verbal e não verbal, até chegar a indivíduos logorreicos,
que “falam pelos cotovelos”, mas não adequam o discurso às necessi-
dades do interlocutor ou do ambiente em que se encontram.
As estereotipias caracterizadoras do autismo podem ser
motoras, tais como flappings, balanceios, tiques corporais, ou to-
mar a forma, no outro extremo do espectro, de um interesse in-
tenso e peculiar.

Autismo na CID 10

A CID 10, Classificação Internacional de Doenças e Problemas


Relacionados à Saúde, também conhecida como Classificação Inter-
nacional de Doenças, nomeia os transtornos autistas como transtor-
nos invasivos do desenvolvimento (TID) e os apresenta em oito cate-
gorias, a saber: autismo infantil; autismo atípico; síndrome de Rett;
outro transtorno desintegrativo da infância; transtorno de hiperati-
vidade associado a retardo mental e movimentos estereotipados; sín-
drome de Asperger; outros transtornos invasivos do desenvolvimento;
transtorno invasivo do desenvolvimento, não especificado.

Autismo no DSM-IV

O DSM-IV, Diagnostic and Statiscal Manual of Mental Disords


da American Psychiatric Association (Manual Diagnóstico e Estatístico

67
de Transtornos Mentais), denomina-os de transtornos globais do de-
senvolvimento e os divide em cinco categorias: transtorno autista; trans-
torno de Rett; transtorno desintegrativo da infância; trantorno de As-
perger; transtorno global do desenvolvimento, sem outra especificação.
Ambas as classificações acima são categoriais. Na prática clínica,
sabemos que existe um número muito maior de transtornos do que os
descritos nas classificações nosológicas. O conceito de transtornos do
espectro do autismo (TEA) é dimensional e tem sido bem mais utiliza-
do nos últimos anos, pois reflete melhor o fenômeno do autismo: um
verdadeiro arco-íris, considerando a diversidade de apresentações.
Atualmente, a maioria dos profissionais emite laudos diagnós-
ticos referindo-se a alguma das cinco categorias do DSM-IV, cres-
cendo diariamente o número de pessoas diagnosticadas como tendo
transtorno global do desenvolvimento, sem outra especificação, exata-
mente por ser uma categoria mais abrangente.
Neste capítulo, pretendemos nos deter um pouco mais em cada
uma das cinco categorias nosológicas descritas no DSM-IV.

Autismo Clássico

O autismo clássico ou síndrome de Kanner é o paradigma dos


transtornos do espectro do autismo.
Descoberto como entidade clínica há quase setenta anos, o
autismo continua envolto em muitos mistérios. Não sabemos, por
exemplo, o que causa a maioria dos casos de autismo. Nem sempre é
possível dizer de que forma o desenvolvimento do cérebro social de
uma criança foi afetado para que ela viesse a apresentar as caracterís-
ticas do transtorno. Muito menos podemos fazer afirmações sobre os
fatores que determinam os diferentes graus do autismo. Podemos, no
entanto, afirmar com segurança algumas coisas.
Há uma base neurobiológica para o autismo, os complexos cir-
cuitos neuronais responsáveis pela inteligência social, que hoje cha-
mamos conjuntamente de cérebro social, estão alterados no autismo.

68
Existe uma importante contribuição genética na gênese do autismo.
O autismo não é resultado de famílias desajustadas, de mães
geladeiras ou de negligência parental.
Embora não exista cura ou remédio para o autismo, a inter-
venção precoce pode mudar drasticamente o destino dessas crianças.

Prevalência

Pesquisas recentes indicam que cerca de um por cento da po-


pulação apresenta algum dos transtornos do espectro do autismo. Há
quem diga que estamos assistindo a uma verdadeira epidemia de autis-
mo. Não há dúvida de que, a cada dia, um número maior de crianças
com características autísticas tem buscado os serviços especializados.
Não podemos esquecer, no entanto, que os métodos de classificação
do autismo mudaram nos últimos anos, os critérios foram ampliados,
incluindo manifestações mais brandas do problema, de tal forma que
é impossível comparar as estatísticas atuais com as de algumas déca-
das atrás, pois elas se referem a entidades clínicas distintas, definidas
por critérios também distintos.
Muitas crianças diagnosticadas hoje como autistas teriam
outro diagnóstico há pouco tempo. Somente a partir da década de
oitenta do século passado, por exemplo, a síndrome de Asperger
passou a ser reconhecida e incluída entre os transtornos autistas.
Tampouco podemos esquecer que, hoje, há uma maior capacitação
dos profissionais para detectar o autismo, assim como uma maior
conscientização dos pais para a importância de buscar diagnóstico
e intervenção precoces.

Autismo e Gênero

O autismo é um problema predominantemente masculino.


O autismo clássico atinge quatro meninos para cada menina e na
síndrome de Asperger essa proporção se amplia para dez meninos

69
por uma menina afetada. Um outro aspecto importante é que quan-
to mais grave o quadro, mais equilibrada a proporção entre os se-
xos. Quanto mais leve, maior a proporção de meninos em relação às
meninas: são seis meninos para cada menina no autismo sem asso-
ciação com retardo mental e de 1,5 menino para cada menina com
retardo mental grave.
Entre as hipóteses explicativas a de que os homens possuem
mais baixo limiar para a disfunção cerebral e, nesse caso, seria neces-
sário um dano maior para que uma menina desenvolvesse autismo. O
autismo também pode ser, pelo menos em alguns casos, uma condi-
ção genética ligada ao cromossomo X.

Critérios Diagnósticos

O DSM-IV (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION,


2000) insere o transtorno autista dentro dos transtornos globais do
desenvolvimento.
Para o diagnóstico do transtorno autista é necessário, segundo
o manual, o seguinte algoritmo: um total de seis (ou mais) itens de (1),
(2) e (3), com pelo menos dois de (1), um de (2) e um de (3), além de
satisfazer os critérios dos itens (4) e (5):

1. Prejuízo qualitativo na interação social, manifestado por pelo


menos dois dos seguintes aspectos:
– Prejuízo acentuado no uso de múltiplos comportamentos não
verbais, tais como contato visual direto, expressão facial, pos-
turas corporais e gestos para regular a interação social.
– Fracasso em desenvolver relacionamentos com seus pares
apropriados ao nível de desenvolvimento.
– Falta de tentativa espontânea de compartilhar prazer, inte-
resses ou realizações com outras pessoas (por exemplo, não
mostrar, trazer ou apontar objetos de interesse).
– Falta de reciprocidade social ou emocional.

70
2. Prejuízo qualitativo na comunicação, manifestado por pelo me-
nos um dos seguintes aspectos:
– Atraso ou ausência total de desenvolvimento da linguagem
falada (não acompanhado por uma tentativa de compensar
através de modos alternativos de comunicação, tais como
gestos ou mímica).
– Em indivíduos com fala adequada, acentuado prejuízo na ca-
pacidade de iniciar ou manter uma conversação.
– Uso estereotipado e repetitivo da linguagem ou linguagem
idiossincrática.
– Falta de jogos ou brincadeiras de imitação social variados e
espontâneos apropriados ao nível de desenvolvimento.

3. Padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesses e ati-


vidades, manifestados por pelo menos um dos seguintes aspectos:
– Preocupação insistente com um ou mais padrões estereotipa-
dos e restritos de interesse, anormal em intensidade ou foco.
– Adesão aparentemente inflexível a rotinas ou rituais específi-
cos e não funcionais.
– Maneirismos motores estereotipados e repetitivos (por
exemplo, agitar ou torcer mãos ou dedos, ou movimentos
complexos de todo o corpo).
– Preocupação persistente com partes de objetos.

4. Atraso ou funcionamento anormal em pelo menos uma das se-


guintes áreas, com início antes dos 3 anos de idade:
– Interação social.
– Linguagem para fins de comunicação social.
– Jogos imaginativos ou simbólicos.

5. A perturbação não é melhor explicada por transtorno de Rett ou


transtorno desintegrativo da infância.

71
Prognóstico

O autismo é um comprometimento permanente, crônico. Ne-


nhum método terapêutico ou medicamento até o momento tem se
revelado capaz de fazer frente aos sintomas básicos do autismo. Os
autistas adultos, na sua maioria, não conseguem levar uma vida com
independência e autonomia.
É importante lembrar, no entanto, que a maioria dos adultos
com autismo que conhecemos atualmente foi diagnosticada tardia-
mente e não recebeu tratamento adequado. Quase todos foram ex-
cluídos de escolas regulares e até de escolas especiais. Muitos foram
submetidos a tratamentos segregacionistas, aversivos ou ficaram em
casa, excluídos dos mais básicos direitos a assistência, educação, saúde
ou programas de desenvolvimento de habilidades sociais.
Hoje, cada vez mais, surgem programas de intervenção preco-
ce. A idade do diagnóstico tem sido cada vez menor, o que traz reper-
cussão no desenvolvimento das crianças. Até há pouco tempo se dizia,
por exemplo, que 50% das crianças com autismo não iam desenvolver
a fala e hoje, nos programas de intervenção precoce, como o da Casa
da Esperança, essa taxa caiu para cerca de 30%, e entre os não falantes,
muitos se adaptam a programas de comunicação alternativa.
O cérebro infantil possui maior plasticidade e, por isso, é bem
mais sensível ao aprendizado. Acreditamos que nos próximos anos
todo o esforço que está sendo desenvolvido em programas de inter-
venção precoce e para a garantia dos direitos a saúde e educação das
crianças com autismo, irá se refletir em uma próxima geração de adul-
tos com autismo com melhor qualidade de vida.

Síndrome de Asperger

No livro Inteligência social, Daniel Goleman (2006) traça o


perfil social de um personagem muito interessante. Ele fala sobre o
professor Richard Borcherds. Referido senhor descreve a si mesmo

72
como um péssimo anfitrião. Acha insuportável receber pessoas em
sua casa. Não consegue entender por que riem de piadas sem graça
ou por que perdem tanto tempo em conversas que, para ele, não
fazem o menor sentido. Nessas ocasiões, prefere retirar-se para ler
um livro em seu escritório.
Borcherds diz que nunca conseguiu acompanhar os códigos
não verbais da comunicação social, os significados que as pessoas
compartilham através das trocas de olhares, sutilezas, metáforas e pa-
lavras de duplo sentido. Tampouco identifica blefes e dissimulações.
À parte isso, Borcherds é um gênio. Já foi agraciado com o
Fields Medal, o equivalente ao Prêmio Nobel de Matemática.
Foi ouvindo uma palestra do médico Simon Baron-Cohen,
chefe do Autism Research Center, em Cambridge, sobre síndro-
me de Asperger que Borcherds descobriu que suas idiossincrasias
tinham um nome e gritou: “Este sou eu!” Imediatamente, o gênio
da matemática ofereceu-se como cobaia para pesquisas sobre a
síndrome de Asperger.
Se não levarmos em consideração a fama e o sucesso do per-
sonagem da história acima, podemos rapidamente perceber que casos
como esses não são muito raros. Todos nós temos um amigo ou paren-
te que, mesmo considerado muito inteligente, alia a seu conhecimento
ou expertise em alguma área uma grande dificuldade para se relacio-
nar, principalmente com o sexo oposto. É bem provável que pelo me-
nos boa parte dessas pessoas tenha uma forma branda de autismo, que
se denomina síndrome de Asperger.
As pessoas com síndrome de Asperger compartilham com
aquelas que têm autismo clássico as dificuldades para compreender
as regras e os códigos da vida em sociedade, sobretudo as regras não
ditas, sutis, subliminares. Podem ser considerados por muitas pessoas
como frios, pedantes ou insensíveis. Com precária capacidade empá-
tica, não captam, intuitivamente, os sentimentos, as emoções e inten-
ções das outras pessoas. Isso os torna muito ingênuos, desajeitados, às
vezes desastrados mesmo, socialmente falando.

73
Ao contrário dos autistas clássicos, as pessoas com Asper-
ger não apresentam déficit na inteligência e na linguagem verbal.
Mas o fato de serem os aspergeres falantes não os torna imunes às
dificuldades de comunicação. Geralmente demonstram problemas na
prosódia, semântica e pragmática da linguagem verbal.
Pessoas com Asperger costumam fazer longas digressões e mo-
nólogos sobre assuntos que lhes interessam, sem levar em considera-
ção os interesses do interlocutor. Comumente, são péssimos ouvintes,
a fala lhes serve para conseguir o que desejam e não, como dizem mui-
tos deles, para jogar conversa fora.
O padrão de comportamento, atividades e interesses repe-
titivos não se caracteriza, nas pessoas com Asperger, por flappings e
complexas estereotipias motoras, mas se manifesta através de focos
circunscritos e intensos de interesse.
É ainda muito comum a essa condição um jeito meio desen-
gonçado, resultado de uma certa incoordenação motora.

Histórico

Em 1944, Hans Asperger, pediatra austríaco com grande in-


teresse em educação especial, descreveu quatro crianças que tinham
em comum a dificuldade de se integrar socialmente em grupos. Ele
denominou o problema de psicopatia autística. Um ano antes, o psi-
quiatra infantil, também austríaco, mas residente nos Estados Unidos,
Leo Kanner, da John Hopkins University (EUA), havia descrito um
grupo de crianças mais gravemente comprometidas. Ele intitulou seu
trabalho de Autistic disturbance of affetive contact (distúrbio autístico
do contato afetivo, 1943).
É curioso perceber que os dois autores descobriram problemas
semelhantes, praticamente ao mesmo tempo, e os denominaram por
um nome comum: autismo.
As crianças descritas por Asperger possuíam habilidades inte-
lectuais preservadas, dificuldades na comunicação não verbal, pouca

74
capacidade empática e tendência a intelectualizar as emoções. Fala-
vam de forma prolixa e formal, parecendo pequenos professores. Ti-
nham intensos interesses por tópicos não usuais e uma certa incoor-
denação motora.
Ao contrário das crianças de Kanner, as de Asperger não
eram muito alheias ao ambiente, desenvolviam uma linguagem per-
feita, do ponto de vista gramatical, às vezes, precocemente. Asperger
chamou a atenção, desde o início, para a natureza genética da con-
dição que descobrira e levantou a hipótese de uma herança ligada
ao sexo masculino.
Infelizmente, o trabalho de Asperger somente tornou-se conhe-
cido em 1981, quando Lorna Wing publicou uma série de casos apre-
sentando sintomas similares. A síndrome de Asperger foi reconhecida
como entidade clínica a partir das publicações da CID 10 e do DSM-IV.

Critérios Diagnósticos

Segundo o DSM-IV(AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIA-


TION, 2000), os critérios para o diagnóstico da síndrome de Asperger
são os seguintes:

1. Prejuízo qualitativo na interação social, manifestado por pelo


menos dois dos seguintes quesitos:
– Prejuízo acentuado no uso de múltiplos comportamentos não
verbais, tais como contato visual direto, expressão facial, pos-
turas corporais e gestos para regular a interação social.
– Fracasso para desenvolver relacionamentos com seus pares,
apropriados ao nível de desenvolvimento.
– Ausência de tentativa espontânea de compartilhar prazer,
interesses ou realizações com outras pessoas (por exemplo
deixar de mostrar, trazer ou apontar objetos de interesse a
outras pessoas).
– Falta de reciprocidade social ou emocional.

75
2. Padrões restritos, repetitivos e estereotipados de comportamento,
interesses e atividades, manifestados por pelo menos um dos se-
guintes quesitos:
– Insistente preocupação com um ou mais padrões estereotipa-
dos e restritos de interesse, anormal em intensidade ou foco.
– Adesão aparentemente inflexível a rotinas e rituais específicos
e não funcionais.
– Maneirismos motores estereotipados e repetitivos (por exem-
plo, dar pancadinhas ou torcer as mãos ou os dedos, ou movi-
mentos complexos de todo o corpo).
– Insistente preocupação com partes de objetos.

3. A perturbação causa prejuízo clinicamente significativo nas áreas so-


cial e ocupacional ou em outras áreas importantes de funcionamento.

4. Não existe um atraso geral clinicamente significativo na lingua-


gem (por exemplo, palavras isoladas são usadas aos 2 anos, frases
comunicativas são usadas aos 3 anos).

5. Não existe um atraso clinicamente significativo no desenvol-


vimento cognitivo ou no desenvolvimento de habilidades de
autoajuda apropriadas à idade, no comportamento adaptativo
(outro que não na interação social) e na curiosidade acerca do
ambiente na infância.

6. Não são satisfeitos os critérios para um outro transtorno invasivo


do desenvolvimento ou esquizofrenia.

As pessoas com Asperger podem ser desinibidas socialmente,


mas sua abordagem é, geralmente, formal e impessoal. A maioria não
consegue desenvolver vínculos de amizade, embora alguns desejem
muito fazer amigos. Nas escolas são frequentemente isolados pelos
colegas, que os consideram excêntricos. Temple Grandin, uma grande

76
cientista americana que tem síndrome de Asperger, diz que, quando
pequena, pensava que as outras crianças eram todas telepatas, pois
conseguiam mesmo sem palavras comunicar muitas coisas entre si.
Como em geral são crianças muito inteligentes, é comum que,
quando pequenas, sejam confundidas com crianças superdotadas.
Temos atendido um grande número de rapazes com Asperger
que desenvolveram transtorno de humor na adolescência. A depres-
são, pelo menos em alguns casos, parece ser bastante relacionada à
frustração decorrente das fracassadas tentativas para conseguir ami-
gos desde a infância e, mais tarde, de conquistar uma namorada. So-
mente uma minoria dos jovens com Asperger consegue um relaciona-
mento afetivo e sexual estável. Literais, esses jovens sentem profunda
dificuldade de navegar nos mares do amor, repletos de diálogos de
duplo sentido e de juras nem sempre cumpridas.
Mas conheço pelo menos uma mulher que se sente muito rea-
lizada com o marido, que tem síndrome de Asperger. Segundo ela, o
marido leva muito a sério seus compromissos, gosta da rotina domés-
tica, é fiel e lhe garante uma vida sem grandes novidades, mas cheia de
prazer e tranquilidade.

Fala Característica

A forma como as pessoas com Asperger se comunicam costu-


ma apresentar peculiaridades, a linguagem falada é caracterizada por
uma prosódia pobre, aparentemente mecânica, com problemas de rit-
mo ou fluência. Pouco sensíveis aos aspectos não verbais da comuni-
cação, é comum que continuem falando quando o interlocutor já deu
dicas de que precisa ou deseja interromper a conversa. Comentários
inadequados e “sincericídios” são também extremamente comuns. A
maioria não consegue entender o porquê de não se dizer a verdade
sempre e em todos os lugares.
Certa vez eu passeava num shopping em Fortaleza com um
jovem rapaz com Asperger, quando cruzamos com uma moça. Ele

77
virou-se para ela e me chamou a atenção: “Veja, Fátima, que moça
feia. Eu nunca, em toda a minha vida, vi alguém tão feio assim”. Ex-
pliquei-lhe, depois da moça se afastar, que o comentário dele tinha
sido desnecessário e grosseiro. A moça devia ter ficado muito muito
triste, nenhuma moça gosta de ser chamada de feia. Ele pareceu en-
tender e disse-me, de forma muito sincera, que não tivera nenhuma
intenção de fazê-la sofrer. Para ele, a beleza não era importante, as
características que mais valorizava numa pessoa eram a inteligência
e a honestidade. Disse-me, ainda, que não gosta de fazer ninguém
sofrer e que daquele dia em diante nunca mais chamaria nenhuma
moça de feia. Passado algum tempo, uma senhora de meia-idade
veio visitar a Casa da Esperança. Quando nosso rapaz viu a visitante,
não se deixou inibir e disse, em alto e bom som: “Finalmente eu en-
contrei uma pessoa que posso chamar de feia. Pois a senhora além
de feia, é velha”.
Tenho um assessor com síndrome de Asperger, o João Paulo.
Ele é um rapaz inteligente, organizado, competente. Casado e bem
casado há dez anos, chamou-me a atenção desde o primeiro dia pelo
linguajar rebuscado e culto. Perguntei-lhe, na entrevista inicial, se ele
tinha filhos. Respondeu que ainda não, há despeito de estar tentando
diuturnamente há dez anos.
Um dia, ele falava com outros profissionais homens da orga-
nização sobre mulheres, quando alguém comentou: “Eu queria a Ze-
ta-Jones, aquela feiosa”, ao que ele revoltado interpelou, batendo na
mesa: “A Catherine Zeta-Jones é linda!” A turma então lembrou que
ele era asperger e emendou: “Isso é uma ironia, rapaz”. E ele, acalman-
do-se, avisou: “Por favor, me avisem quando quiserem ser irônicos”.
Memória prodigiosa e habilidades savants também são comuns
entre os aspergeres. Tenho como pacientes vários desenhistas, músicos
e pessoas com habilidades fantásticas em matemática e computação.

78
Dificuldades Motoras

As crianças com asperger apresentam, sempre, um jeito meio


desengonçado. Alguns demoram a andar de triciclo, outros a andar
de bicicleta e bem poucos meninos com a síndrome conseguem so-
bressair nos esportes. Muitos revelam problemas para escrever, prin-
cipalmente com letra cursiva, mas o fazem muito bem com a ajuda
de um computador.

Ensino Regular

Em nossa experiência, toda criança com autismo e Asperger


deve ser incluída na rede regular de ensino em idade precoce e rece-
ber, no contraturno da escola, as terapias necessárias para fazer frente
às suas dificuldades específicas.
A escola regular é importante não apenas por ser o local ideal para
o aprendizado das habilidades acadêmicas, mas também por fornecer
espaço regular de convivência para a criança com autismo com seus
pares cronológicos, garantindo-lhe modelos de convivência e regras
sociais que não são possíveis em ambientes mais restritivos. Na Casa
da Esperança, cerca de cem crianças, de 2 a 14 anos, recebem todos
os dias apoio terapêutico multiprofissional em um turno e no outro
frequentam a escola regular.

Prognóstico

Asperger previu um desfecho positivo para muitos de seus pa-


cientes. Vinte e cinco anos após seu artigo original, já com duzentos
pacientes, continuava a acreditar num bom prognóstico para essas
pessoas. Infelizmente, trabalhando há dezoito anos com pessoas com
transtornos do espectro do autismo, sei que ainda há muito a ser feito
para que de fato possamos ter um desfecho positivo para a maioria das
pessoas com Asperger. Conheço suas potencialidades, mas sei da de-

79
sinformação e do preconceito da maioria dos empregadores. Muitos
de nossos rapazes e moças, anseiam por um lugar ao sol e são profis-
sionais competentes, ciosos das obrigações.
A Casa da Esperança emprega em um dos setores mais impor-
tantes de sua estrutura, prioritariamente, trabalhadores com Asper-
ger: o setor de agendamento e confirmação de consultas. É um setor
onde não costuma haver faltas nem atrasos, onde os profissionais não
costumam perder tempo com fofocas, cada um cuida da própria vida.
É o setor mais organizado e estruturado da Casa da Esperança.

Transtorno Desintegrativo da Infância

Theodore Heller, pediatra alemão, descreveu, em 1908, seis


casos de crianças que tinham apresentado uma importante regres-
são psicomotora. Essas crianças haviam se desenvolvido normal-
mente até os 3 ou 4 anos, quando experimentaram uma dramática
regressão. Após alguns meses manifestaram grave retardo mental.
Heller propôs, para essa entidade nosológica, a designação de de-
mentia infantilis.
Durante muitos anos, a doença foi conhecida por demência de
Heller, por síndrome de Heller ou por psicose desintegrativa.
No DSM-IV, o problema foi incluído entre os transtornos glo-
bais do desenvolvimento por apresentar, após o período regressivo,
uma sintomatologia muito semelhante à do transtorno autista. Nesse
manual, a doença descoberta por Theodore Heller recebe o nome de
transtorno desintegrativo da infância.
Para que a criança possa ser diagnosticada com o transtorno
desintegrativo da infância, precisa necessariamente apresentar um pe-
ríodo normal de desenvolvimento, nunca menor que dois anos nem
maior que dez.
Durante esse período que antecede a regressão psicomotora, a
criança deve manifestar as habilidades previstas para a idade nas áreas:

80
- Sociais: exibir sorriso social, usar brinquedos de forma
simbólica, expressar orientação social, desenvolver atenção
compartilhada e demonstrar interesse por crianças da mes-
ma idade.
- Comunicacionais: emitir as primeiras palavras e frases com
intenção comunicativa, ler e escrever na idade prevista.
- Motoras: sustentar a cabeça, sentar sem apoio, andar, correr,
desenvolver habilidades de coordenação motora fina etc.
6
A regressão, obrigatoriamente, terá de ocorrer em pelo menos
duas das seguintes áreas:

– Linguagem expressiva ou compreensiva: deixar de falar ou


de escrever ou de entender pedidos ou reconhecer objetos.
– Socialização: perder o interesse de brincar com outras crian-
ças ou de dar uso imaginativo aos brinquedos.
– Desenvolvimento adaptativo: tornar-se incapaz de comer
com a própria mão, vestir-se sem apoio ou controlar os es-
fíncteres.
– Motora: deixar de andar ou correr com destreza ou segurar
o lápis de forma adequada.

Após o período de regressão, que pode acontecer de forma


abrupta ou insidiosa, a criança passa a apresentar características com-
portamentais, comunicacionais e sociais muito semelhantes às de uma
criança com transtorno autista. É como se essa perturbação se tratasse
de autismo de início tardio.

Curso

Por definição, no transtorno desintegrativo da infância a perda


da linguagem e das habilidades sociais e adaptativas é precedida por
um período de pelo menos dois anos de desenvolvimento normal.

81
A deterioração descrita anteriormente é, quase sempre, acompa-
nhada por uma perda geral de interesse no ambiente e nas pessoas,
assim como pelo desenvolvimento de movimentos estereotipados
e repetitivos.
Em alguns casos, podem ocorrer sinais preditores do problema
que incluem hiperatividade, irritabilidade e ansiedade. Na maioria das
vezes, a perda de habilidades alcança um platô após o qual pode se se-
guir alguma melhora. Em outras, a perda de habilidades é progressiva.
O transtorno segue um curso contínuo e, na maior parte dos casos,
vitalício. A maioria dos indivíduos com transtorno desintegrativo da
infância evolui para um retardo mental grave.

Critérios Diagnósticos

1. Desenvolvimento aparentemente normal, pelo menos durante os


dois primeiros anos após o nascimento, manifestado pela presen-
ça de comunicação verbal e não verbal, relacionamentos sociais,
jogos e comportamento adaptativo apropriados à idade.

2. Perda clinicamente significativa de habilidades já adquiridas (an-


tes dos 10 anos) em pelo menos duas das seguintes áreas:
– Linguagem expressiva ou receptiva.
– Habilidades sociais ou comportamento adaptativo.
– Controle intestinal ou vesical.
– Jogos.
– Habilidades motoras.

3. Anormalidades do funcionamento em pelo menos duas das se-


guintes áreas:
– Prejuízo qualitativo na interação social (por exemplo, prejuízo
nos comportamentos não verbais, fracasso para desenvolver
relacionamentos com seus pares, falta de reciprocidade social
ou emocional).

82
– Prejuízo qualitativo na comunicação (por exemplo, atraso ou
ausência de linguagem falada, incapacidade para iniciar ou
manter uma conversação, uso estereotipado e repetitivo da
linguagem, ausência de jogos variados de faz de conta).
– Padrões restritos, repetitivos e estereotipados de comporta-
mento, interesses e atividades, incluindo estereotipias motoras
e maneirismos.

4. A perturbação não é melhor explicada por um outro transtorno


invasivo do desenvolvimento específico ou por esquizofrenia.

Síndrome de Rett

A síndrome de Rett é um transtorno que afeta, quase que


exclusivamente, o sexo feminino. Doença rara, atinge uma em cada 10
a 15 mil meninas nascidas vivas.
O problema é caracterizado por uma perda progressiva de fun-
ções adquiridas após um período normal de desenvolvimento, que vai
de seis a dezoito meses de idade.
O transtorno foi identificado por Andreas Rett, pediatra vie-
nense. Ele havia observado, na sala de espera de seu consultório, em
1954, duas pacientes sentadas uma ao lado da outra que apresenta-
vam sintomas muito parecidos. Conseguiu identificar seis casos com a
mesma sintomatologia: grave deterioração motora e hiperamoniemia,
publicando, em 1966, um trabalho científico sobre os seis casos, por
ele denominados atrofia cerebral associada à hiperamoniemia.
Atualmente, sabe-se que a hiperamoniemia não é um achado
necessário para o diagnóstico, nem sequer uma ocorrência frequente
entre meninas com essa condição.
Ainda na década de 1960, o médico sueco Bengt Hagberg
iniciou um estudo com pacientes que apresentavam os mesmos sin-
tomas descritos por Rett. Hagberg publicou um trabalho em 1983,
denominando a síndrome por ele descrita de síndrome de Rett, em

83
homenagem ao cientista vienense que identificara pela primeira vez
o problema.

Diagnóstico

O diagnóstico da síndrome de Rett é feito através de anamnese


e exame físico. Atualmente é possível, em até 80% dos casos, a de-
monstração de mutações no gene MECP2, localizado em Xq28, atra-
vés de testes laboratoriais. O procedimento permite a confirmação do
diagnóstico clínico na maioria dos casos.

Critérios necessários (presentes em todas as pacientes):

- Desenvolvimento pré-natal e perinatal aparentemente


normal.
- Desenvolvimento psicomotor normal até os seis meses
de idade.
- Perímetro cefálico normal ao nascimento;
- Desaceleração do perímetro cefálico após seis meses de
idade.
- Perda do uso propositado das mãos;
- Movimentos manuais estereotipados (torcer, apertar,
agitar, esfregar, bater palmas, “lavar as mãos” ou levá-las
à boca).
- Afastamento do convívio social, perda de palavras
aprendidas, prejuízos na compreensão, raciocínio e co-
municação.

Critérios de suporte (presentes em algumas pacientes):

- Distúrbios respiratórios em vigília (hiperventilação, ap-


neia, expulsão forçada de ar e saliva, aerofagia).

84
- Bruxismo (ranger os dentes).
- Distúrbios do sono.
- Tônus muscular anormal.
- Distúrbios vasomotores periféricos (pés e mãos frios ou
cianóticos).
- Cifose/escoliose progressiva.
- Retardo no crescimento.
- Pés e mãos pequenos e finos.

Critérios de exclusão (ausentes nas pacientes):

- Órgãos aumentados (organomegalia) ou outro sinal de


doenças de depósito.
- Retinopatia, atrofia óptica e catarata.
- Evidência de dano cerebral antes ou após o nascimento;
- Presença de doença metabólica ou outra doença neuro-
lógica progressiva.
- Doença neurológica resultante de infecção grave ou
trauma craniano.

Evolução Clínica

De acordo com a evolução e os sintomas, a síndrome de Rett é


classificada em duas formas: clássica e atípica.
Na forma clássica, o quadro clínico evolui em quatro etapas
definidas:

1. Etapa da estagnação precoce, ocorre dos seis aos dezoito


meses e é caracterizada por:
– Parada no desenvolvimento social da criança.
– Desaceleração do perímetro cefálico.
– Alteração do tônus muscular.

85
2. Etapa rapidamente destrutiva, dos 2 aos 4 anos de idade,
marcada por grave regressão psicomotora que pode ocor-
rer em algumas semanas ou meses:
– Perda da fala e do uso intencional das mãos (função
práxica), que é substituído por estereotipias manuais;
– Distúrbios respiratórios (apneia ou hiperventilação);
– Distúrbios do sono;
– Manifestações de comportamento autístico;
– Crises epilépticas.

3. Etapa pseudoestacionária, dos 4 aos 10 anos de idade:


– Surgimento de alguma melhora no que diz respeito às
habilidades sociais e de comunicação: melhora o con-
tato visual e há uma redução dos comportamentos au-
tísticos;
– Acentuação dos problemas motores, tais como ataxia,
apraxia, espasticidade e escoliose.
– Crises de epilepsia e problemas respiratórios são fre-
quentes: perda de fôlego, aerofagia, expulsão forçada
do ar e da saliva.

4. Etapa da deterioração motora tardia, a partir dos 10 anos


de idade, caracterizada por uma lenta progressão dos pre-
juízos motores:
– Redução da mobilidade, muitas pacientes perdem
completamente a capacidade de andar;
– Escoliose, coreoatetose, distonia, rigidez muscular e
distúrbios vasomotores periféricos;

A puberdade ocorre na época esperada na maioria das meninas.


Os mecanismos envolvidos na síndrome de Rett ainda são des-
conhecidos. Mas já foram encontradas reduções significativas no lobo
frontal, no núcleo caudato e no mesencéfalo de meninas afetadas pelo

86
problema. Algumas evidências sugerem uma deficiência pós-natal no
desenvolvimento sináptico.
Atualmente, sabemos que os homens podem ser afetados
por essa condição em algumas circunstâncias: meninos que pos-
suem comorbidade com a síndrome de Klinefelter, meninos que
apresentam grave encefalopatia e irmãos de meninas afetadas que
nasceram com prejuízos neurológicos graves, tendo geralmente
morte precoce.
A sobrevida na síndrome de Rett é geralmente reduzida e a
morte ocorre, em geral, como resultado de causas infecciosas e com-
plicações respiratórias, possivelmente relacionadas à escoliose grave
ou durante o sono (morte súbita). Mas há registros de portadoras de
Rett com 60, 70 anos.
Ainda não existe tratamento específico para a síndrome de Rett.
O tratamento, atualmente, visa melhorar a mobilidade, o controle das
convulsões e a qualidade de vida das pacientes.
A fisioterapia deve ser utilizada da forma mais precoce e in-
tensa possível para prevenir escolioses, rigidez, pé equino e favorecer
a mobilidade. A musicoterapia tem sido usada na Europa desde 1972
com sucesso aparente e pensa-se que será benéfica para reduzir os
movimentos compulsivos das mãos e para aumentar a capacidade de
atenção. Aparelhos ortopédicos, massagem subaquática, hidroterapia
têm apresentado alguns resultados.
Cuidados com higiene bucal são importantes para evitar cáries.
É importante estimular a marcha e todo movimento voluntário, buscan-
do sempre a melhoria da qualidade de vida das pacientes.

Genética

Em 1999, a equipe chefiada por Huda Zoghbi descobriu que a


síndrome de Rett é causada por mutações em um gene localizado no
cromossomo X. Esse gene, chamado MECP2 (do inglês methyl-CpG-
-binding protein 2), é muito importante por controlar o funcionamento de

87
outros genes desde o desenvolvimento embrionário. Ele codifica uma
proteína responsável pela expressão de vários genes, imprescindíveis
para o desenvolvimento dos neurônios. Como o MECP2 não funciona
adequadamente, ocorre um grave e precoce comprometimento no de-
senvolvimento neuronal na síndrome de Rett.

Critérios Diagnósticos

Para o diagnóstico é necessário o preenchimento de todos os


critérios abaixo:

1. Desenvolvimento pré-natal e perinatal aparentemente normal.


2. Desenvolvimento psicomotor aparentemente normal durante os
primeiros cinco meses após o nascimento.
3. Circunferência craniana normal ao nascer.
4. Início de todas as seguintes características após o período de de-
senvolvimento normal:
– Desaceleração do crescimento craniano entre os cinco e os
quarenta e oito meses de idade.
– Perda de habilidades manuais voluntárias adquiridas entre os
cinco e trinta meses de idade, com o desenvolvimento subse-
quente de movimentos estereotipados das mãos (por exemplo,
gestos como torcer ou lavar as mãos).
– Perda do envolvimento social ocorre precocemente no curso
do transtorno (embora, em geral, a interação social se desen-
volva posteriormente).
– Problemas na coordenação da marcha e movimento do tronco.
– Prejuízo no desenvolvimento das linguagens expressiva ou
receptiva.
– Severo retardo psicomotor.

88
Transtorno Global do Desenvolvimento, sem Outra Especificação

O transtorno global do desenvolvimento, sem outra especifica-


ção (DSM-IV) ou transtorno invasivo do desenvolvimento, sem outra
especificação (CID-10) é uma categoria residual ou de exclusão. É usada
sempre que estamos diante de um quadro de grave comprometimento
no desenvolvimento da capacidade de interação social recíproca e nas
habilidades de comunicação ou padrão estereotipado de comportamen-
tos, interesses e atividades, mas não são atingidos os critérios para ne-
nhum dos outros transtornos globais do desenvolvimento.
Alguns estudos revelam que o transtorno invasivo do desen-
volvimento, sem outra especificação é duas vezes mais comum do que
o TA. Têm sido propostas algumas categorizações para as diferentes
formas de apresentação desse transtorno.
Mercadante et al. (2006) elenca algumas subcategorias de
transtornos que podem estar sendo diagnosticados como TID-SOE:
alguns estariam assim classificados com base em sua sintomatologia,
enquanto outros por uma possível etiologia comum ao autismo. Em-
bora um aprofundamento desse nível não seja propósito do presente
livro, achamos importante destacar alguns desses transtornos, o que
contribui para a compreensão do imenso guarda-chuva que denomi-
namos TID-SOE. É muito provável que estudos mais aprofundados
permitam, em breve, uma nova classificação, separando o que hoje
denominamos transtornos invasivos do desenvolvimento, sem outra
especificação em grupos distintos de problemas a requererem um tra-
tamento também diferenciado.

Transtorno do Desenvolvimento Múltiplo e Complexo (TDMC)

Crianças com esse transtorno costumam ser unilaterais e pe-


gajosas nos contatos, exclusivistas, com grande dificuldade de sentir
empatia com as necessidades dos outros. Apresentam grave desregu-
lação emocional e confundem fantasia e realidade.

89
Transtorno de Evitação Patológica das Demandas (EPD)

Essas crianças apresentam grande dificuldade de interação


social, mas expressam imaginação social. A parte mais desafiadora
do comportamento delas costuma ser a evitação sistemática e obses-
siva das demandas diárias. São, geralmente, bastante manipulado-
ras, não demonstrando possuir orgulho, responsabilidade ou senso
de identidade. Com frequência são agressivas e apresentam grande
labilidade humoral. O conteúdo da fala pode ser superficial. São im-
pulsivas, representam papéis e podem perder o sentido de realidade.

Transtorno do Prejuízo Multidimensional

Esse subgrupo está mais próximo dos transtornos psicóti-


cos. São crianças que, nem sempre, conseguem distinguir fantasia
e realidade. Apresentam transtornos de percepção e no processa-
mento de informações. Os prejuízos sociais, nesses casos, são bem
mais leves do que no autismo. O comportamento costuma ser, tam-
bém, menos estereotipado.

Transtorno Esquizoide Infantil

Crianças com esse transtorno são solitárias, fantasiosas, apre-


sentam interesses especiais e atrasos de desenvolvimento específico
das habilidades de comunicação. Geralmente não manifestam prejuí-
zos cognitivos.

Transtornos de Vinculação (Transtornos Reativos da Infância)

Caracterizam crianças que respondem inapropriadamente


aos cuidadores e com um histórico de grande abandono. Atingem,
em geral, crianças que passam por vários abrigos e não conseguem
desenvolver-se, adequadamente, pela falta de vínculos seguros. Os

90
transtornos de vínculo mimetizam o transtorno autista: a maior parte
das crianças desenvolve estereotipias motoras, grande dificuldade de
interação social e de comunicação. Mas, ao contrário das crianças com
autismo, as que apresentam transtorno de vinculação obtêm rápida
recuperação das habilidades sociais e de comunicação, quando ado-
tadas por famílias emocionalmente estáveis. Na CID 10 e no DSM-IV
os transtornos de vínculo não estão classificados entre os transtornos
autistas, mas costumam ser frequentemente confundidos com eles, na
prática. Admite-se, inclusive, que boa parte dos relatos divulgados de
crianças curadas do autismo trate-se, na realidade, de casos de trans-
tornos reativos da infância.

Transtornos de Aprendizado não Verbal

Grupo de pacientes com disfunções nas capacidades não ver-


bais em combinação com contato visual pobre, comunicação gestual,
expressão facial e prosódia prejudicadas.

91
6
O DIAGNÓSTICO

O diagnóstico de um transtorno do espectro do autismo é pas-


so fundamental para um bom plano de tratamento. Deve ser o resul-
tado de uma avaliação minuciosa e cuidadosa, se possível, feita por
equipe multiprofissional com experiência nesse tipo de atividade.
Como falamos anteriormente, a variedade de apresentações do
autismo é tão grande que não se encontram duas pessoas autistas com
as mesmas dificuldades e habilidades.
O momento do diagnóstico é, geralmente, muito importante
para toda a família. As famílias de pessoas com autismo que conheço
recordam-se, na maioria das vezes, com detalhes, do momento em
que lhes foi revelado o problema do filho. Emoções conflitantes cos-
tumam tomar conta dos pais nesse momento. Alguns sentem alívio
por finalmente possuir um caminho para seguir. Outros transferem
para o profissional que deu a notícia toda a revolta pelo fato do filho
apresentar um problema tão difícil e desafiador. Mas, de modo geral,
não é sem dor que se recebe o diagnóstico de autismo. É preciso que
aproveitemos esse momento para mobilizar nas famílias o que têm
de melhor para ajudar a criança autista que está sendo diagnosticada.
Devemos acrescentar, sempre, ao diagnóstico um plano de ação deta-
lhado, para fazer frente às dificuldades específicas da criança.
Existem algumas características da equipe terapêutica que po-
dem favorecer uma boa avaliação diagnóstica:

1. Ter conhecimento dos marcos e processos do desenvolvi-


mento infantil.
2. Possuir familiaridade com pessoas com transtorno do espec-
tro do autismo, de várias idades e graus de funcionamento.

93
3. Ser multiprofissional, ou seja, ser formada por profissio-
nais de várias especialidades, portanto, capacitada para
avaliar os múltiplos aspectos do desenvolvimento infantil
que costumam estar alterados no autismo.
4. Estar aberta à interdisciplinaridade, de tal forma que os
membros da equipe possam ajudar-se mutuamente duran-
te a avaliação.

Como o autismo é um transtorno do desenvolvimento, é fun-


damental que os terapeutas estejam familiarizados com todas as eta-
pas do desenvolvimento infantil, que saibam como e quando devem
emergir a linguagem, a comunicação, a interação entre uma criança e
seu meio, entre ela e seus brinquedos.
A necessidade da equipe multiprofissional é justificada pelos di-
versos aspectos do desenvolvimento afetados pelo autismo: comunica-
ção verbal e não verbal, habilidade para relacionamento interpessoal,
capacidade adaptativa, desempenho cognitivo, déficit sensorial etc.
Desnecessário dizer que, dificilmente, um único profissional terá acu-
mulado conhecimento e prática suficientes para fazer uma avaliação
criteriosa de todos os aspectos comprometidos no desenvolvimento
de uma criança com autismo.
Na Casa da Esperança, a equipe de avaliação e diagnóstico é
composta por pediatra, psiquiatra, psicólogo, fonoaudiólogo e terapeuta
ocupacional. Dependendo da idade e dos resultados dessas avaliações, a
criança é encaminhada ainda para avaliações com o neurologista, fisio-
terapeuta e geneticista. A afinidade da equipe faz a diferença e possibi-
lita um diagnóstico completo, quando a criança é vista como um todo,
sendo avaliada em suas dificuldades, mas principalmente quanto a seus
pontos fortes, que irão ajudá-la a afirmar-se na vida e servirão de eixo
central num programa de intervenção.

94
Algumas Questões Importantes

O contexto no qual a criança é observada e examinada pode


influir muito no resultado da avaliação.
Todos sabemos que as crianças comportam-se de maneira di-
ferente quando estão sozinhas ou com os pais, em casa ou na esco-
la, entre familiares e desconhecidos. Muitas vezes, quando avaliamos
uma criança, parecemos ver duas crianças distintas, dependendo do
contexto onde se encontra. A equipe precisa estar atenta a isso e ob-
servar a criança em contextos diferentes, antes de registrar se ela apre-
senta ou não determinada habilidade.
Familiaridade, estruturação do ambiente, assertividade do te-
rapeuta podem fazer surgir visões completamente diferentes da mes-
ma criança.
O avaliador deve se colocar, inicialmente, como mero observa-
dor, para verificar as predisposições sociais da criança, suas preferên-
cias, sua forma de lidar com as pessoas e os objetos. Nesse momento, é
importante estar atento às iniciativas espontâneas da criança, observar
sua competência para iniciar o contato social, sua forma de olhar para
o terapeuta, de pedir os objetos que deseja, suas tentativas de compar-
tilhar coisas e experiências. Muitas vezes, quando deixada à vontade,
a criança com autismo não vai buscar o contato social e pode mesmo
preferir ficar se autoestimulando ou, ainda, deleitando-se com alguma
textura, barulho, luz ou sombra do ambiente.
Passado esse período de observação passiva, é importante que
o terapeuta verifique como a criança reage a uma forma mais diretiva
de relação. Quando solicitada, ela é capaz de concentrar-se em algu-
ma tarefa? Engaja-se em alguma brincadeira? Sorri sem ser tocada,
apenas respondendo a seu sorriso, mesmo que exagerado, ou precisa
de cócegas para achar graça? Ela presta atenção à voz humana? O que
faz quando a chamamos pelo nome?

95
Avaliação

A avaliação de uma criança pequena costuma ser dividida em duas


etapas: anamnese — entrevista com os pais — e observação da criança.

Anamnese

Consiste de uma série de perguntas sobre o desenvolvimento


da criança. Dependendo do profissional, a entrevista pode ser mais
livre ou mais estruturada, mas deve ser sempre focada no objetivo que
se tem em mente. No caso de uma consulta para diagnóstico de um
provável transtorno do espectro do autismo, o foco será a detecção
de possíveis desvios do desenvolvimento que constituam marcos ou
pré-requisitos para a aquisição das habilidades, que costumam estar
comprometidas nas crianças com autismo.
Existem muitos instrumentos específicos para o diagnóstico do
autismo. Pessoalmente, damos preferência ao ADI-R (Autism Diag-
nostic Interview-Revised). O ADI-R é uma entrevista semiestruturada
para ser realizada com pais ou cuidadores de crianças com suspeita
de autismo. Inclui cerca de cem perguntas sobre o desenvolvimento
da comunicação, socialização e comportamento, fundamentais para
o diagnóstico. O ADI-R fornece, ainda, um algoritmo de diagnóstico,
utilizando para isso os critérios do DSM-IV.
Durante a anamnese buscamos, sempre que possível, estabele-
cer prováveis causas para o problema.
Causas genéticas – existem outras pessoas com transtornos
autísticos ou quaisquer outros transtornos mentais na família? Como
o autismo é um transtorno de grande herdabilidade, é comum que
encontremos algum outro membro da família com características do
autismo, alguns nunca diagnosticados, mas apresentando dificuldade
para se relacionar ou com histórico de atrasos ou desvios no desenvol-
vimento. É muito comum, também, a presença de TDAH (transtorno
de déficit de atenção e hiperatividade), depressão e outros distúrbios

96
mentais em parentes próximos. Em alguns casos, já conseguimos nes-
se momento do diagnóstico identificar irmãos também autistas ain-
da não diagnosticados, ou porque apresentavam características mais
brandas ou porque eram muito pequenos e não tinham desenvolvido
as características mais específicas do autismo.
Causas ambientais – houve problemas durante a gravidez e
o parto? A mãe teve alguma infecção quando estava grávida? Houve
ameaças de aborto? Como foi o parto? O bebê foi prematuro, apre-
sentou dificuldades respiratórias ou teve de ficar na UTI neonatal?
Muitas pesquisas mostram que há uma incidência bem maior de
7 complicações pré- e perinatais envolvendo o nascimento de crianças
autistas do que na população em geral. Infecções, anóxia e exposição
a agentes teratogênicos estão entre os fatores mais comumente rela-
cionados ao autismo.
Em nossa prática, temos deparado, nos últimos anos, com uma
frequência significativa de casos em mães que fizeram uso do abor-
tivo misoprostrol, comercializado com o nome de Citotec. Algumas
dessas crianças desenvolveram autismo e outras, síndrome de Mo-
ebius com características autísticas. A síndrome de Moebius é uma
doença caracterizada por paralisia facial, quando é afetada a muscu-
latura facial responsável pela expressão das emoções e do movimento
dos olhos (estrabismo).

Observação Direta

A observação da criança é fundamental, pois, embora os pais


sejam a mais importante fonte de informação, nem sempre possuem
a objetividade necessária para responder a todas as dúvidas do avalia-
dor sobre o desenvolvimento da criança. Seus medos, suas crenças ou
até mesmo seu desconhecimento podem fazer com que informações
importantes não sejam fornecidas.
Existe um bom instrumento padronizado que pode ser muito
útil na observação direta da criança com risco de autismo. Trata-se do

97
ADOS (Autism Diagnostic Observation Schedule). O ADOS consiste
numa série de apelos lúdicos que objetivam criar situações nas quais
as crianças podem demonstrar suas habilidades sociais e comunicati-
vas, assim como sua maneira de se relacionar com os brinquedos.
Achamos importante destacar pelo menos três aspectos da ava-
liação clínica que consideramos imprescindíveis para o diagnóstico e
para a elaboração de um bom programa de intervenção.

Avaliação do desenvolvimento cognitivo e das funções adaptativas

Necessária para verificar atrasos ou desvios no desenvolvimento


das funções psicológicas, tais como: teoria da mente, funções executi-
vas, atenção, eficiência pessoal, socialização e habilidades motoras.

Avaliação da comunicação e linguagem nos seguinte aspectos

Atenção compartilhada – a capacidade da criança de seguir o


foco de atenção do parceiro, de olhar para o que lhe está sendo mos-
trado e, num nível mais avançado, de chamar a atenção do parceiro
para um objeto ou evento.
Competência comunicacional – habilidade da criança de usar
os recursos linguísticos já adquiridos para perguntar, responder a per-
guntas, fazer relatos, iniciar e manter uma conversa.
Comunicação não verbal – capacidade de expressão facial e
habilidade de usar gestos para modular a interação.
Capacidade de compreensão e expressão da linguagem escrita.
Avaliação dos aspectos semânticos e pragmáticos da lingua-
gem, aspectos esses mais universalmente comprometidos nas pessoas
com autismo.
Avaliação da linguagem receptiva – é relativamente comum
termos crianças ou adultos com autismo que são capazes de ler e
decorar textos complexos, sem compreender-lhes, completamente,
o significado.

98
A criança autista, normalmente, apresenta sérias limitações no
uso de gestos convencionais (por exemplo, mostrar, acenar, apontar).
Quase universal em crianças autistas não verbais é o hábito de usar
pessoas como ferramenta para conseguir seus objetivos. Geralmente a
criança segura na mão ou no braço do adulto e o leva até onde se en-
contra o objeto de seu desejo ou lhe indica a ação que deseja realizar.
Na impossibilidade de usar gestos simbólicos, muitas crianças com
autismo podem desenvolver padrões não adaptativos de comunicação
como gritos e agressões. É possível ainda que manifestem uma lingua-
gem idiossincrática e inintelegível.
Outro comportamento verbal não convencional, bastante co-
mum em crianças com autismo, é a utilização de ecolalia imediata
ou tardia.
Finalmente, a criança autista pode fazer uso não funcional de
objetos e brinquedos. A dificuldade de brincar de forma simbólica
ou imaginativa é uma das características das crianças autistas nos
anos pré-escolares.

Avaliação sensorial

Visa principalmente avaliar a presença de desmodulações sen-


soriais que possam interferir na funcionalidade da criança. Muitos
autistas relatam uma super- ou sub-reatividade sensorial que pode le-
var a uma indisponibilidade afetiva (GRANDIN, 1999; WILLIAMS,
1996). Podem ser notados problemas de processamento auditivo, tátil,
gustativo e proprioceptivos, ocorrendo hipo- ou hiper-respostas na
mesma criança, assim como respostas sensoriais anormais a estímulos
socialmente relevantes.
A desmodulação sensorial pode influir na capacidade da crian-
ça para desenvolver e manter a atenção, o afeto, a regulação emocio-
nal e a capacidade para interagir socialmente. É comum que crianças
hiper-reativas deixem de participar de eventos com medo de sobrecar-
gas sensoriais ou que as que apresentam hiporreação a alguns estímu-

99
los desenvolvam comportamentos desafiadores ou estereotipias, como
forma de autoestimulação.

Exame Físico

É importante avaliar possível presença de dismorfismos faciais,


sinais neurológicos anormais ou sinais de síndromes neurocutâneas.
É relativamente comum a associação do autismo com síndromes con-
gênitas e distúrbios neurocutâneos.
Síndromes neurocutâneas são caracterizadas por comprome-
timentos da pele e do sistema nervoso central e outros orgãos. Essas
síndromes apresentam heterogeneidade genética e grande variabilida-
de fenotípica. Há intensa associação entre autismo e essas condições.
Desnecessário dizer que a detecção dessas associações deve ser sem-
pre seguida dos encaminhamentos necessários aos especialistas.

Condições Associadas

Citaremos algumas associações que são comumente encontra-


das na clínica do autismo:
Síndrome de X-frágil – é transmitida através do cromossomo
X. Afeta homens e mulheres. As características da síndrome são ex-
tremamente variáveis, mas, geralmente, incluem prejuízos cognitivos,
hiperatividade, anormalidades na fala, transtorno de déficit de aten-
ção e autismo. O autismo pode estar presente em até 60% dos casos.
Na síndrome do X-frágil são comuns características físicas como rosto
longo, orelhas proeminentes, mandíbula larga, articulações muito fle-
xíveis, testículos grandes após a puberdade e retardo mental.
Esclerose tuberosa – desordem genética que constitui uma das
síndromes neurocutâneas. É caracterizada por lesões cutâneas que in-
cluem placas em forma de folhas, hipopigmentadas, desde o nasci-
mento, assim como erupções cutâneas (adenomas sebáceos), fibromas
periungueais e retardo mental. Na esclerose tuberosa podem ainda

100
ocorrer malformações em um ou vários órgãos, sendo que os mais
comumente afetados são o sistema nervoso central, a pele, os rins e o
coração. Estudos mostram que a associação entre esclerose tuberosa
e autismo é da ordem de 17% a 68%, ou seja, esse é o percentual de
indivíduos com esclerose tuberosa que desenvolve sinais de autismo.
Um percentual significativo, de 0,4 a 4%, de pessoas com autismo, por
sua vez, apresenta esclerose tuberosa. O desenvolvimento do autismo
em pessoas com essa condição parece ser consequente às lesões no
sistema nervoso central, já tendo sido encontrados, em indivíduos
afetados, túberos no lobo temporal, região importante do que hoje de-
nominamos cérebro social.
Neurofibromatose – o sinal característico da neurofibroma-
tose são as placas cor de café com leite, que aumentam em tamanho e
número com a idade. A presença de um número superior a cinco com
mais de 1,5 centímetro é sugestiva do problema. Sardas nas axilas e
nódulos cutâneos e subcutâneos também aparecem, geralmente, no
final da infância.
Síndrome fetal alcoólica – as crianças afetadas apresentam re-
dução no peso, altura e circunferência da cabeça desde o nascimento.
São características, ainda, fissuras palpebrais curtas e hiperatividade.
Na Casa da Esperança, onde atendemos 400 pacientes com
autismo em regime de quatro ou oito horas por dia, existem casos
de autismo associados a síndrome de Down, síndrome de X-frágil,
esclerose tuberosa, deficiência auditiva, deficiência visual, síndrome
de rubéola congênita, infecção pré-natal por citomegalovírus, parali-
sia cerebral, miopatias, microcefalia, síndrome de Moebius, síndrome
de Angelman, síndrome de Williams, síndrome de West, Cri-du-chat,
Cornélia de Lange, Prader-Willi e distrofia muscular de Duschene.
Na prática clínica temos comprovado o que indicam todos os
estudos de autismo, a maioria das pessoas com autismo apresenta al-
gum grau de deficiência intelectual.
Existe também uma associação importante entre autismo e
alguns transtornos mentais, principalmente TOC (transtorno obses-

101
sivo compulsivo), TDAH e transtornos de humor. Embora a associa-
ção com transtorno de humor seja frequente em indivíduos de todo o
espectro autista, a maioria de nossos pacientes que apresentam TOC,
TDAH e depressão unipolar são crianças e jovens com síndrome de
Asperger ou autismo de alto grau de funcionalidade.

O Diagnóstico

O diagnóstico de autismo, além de um rótulo, deve fornecer


aos pais todas as informações necessárias para um bom programa de
intervenção. É fundamental que o profissional esteja ciente da impor-
tância desse momento na vida de toda a família.
É um momento em que deve ser explicada a gravidade do pro-
blema, mas também as possibilidades de compensar os déficits do au-
tismo, assim como os perigos dos tratamentos que prometem curas mi-
lagrosas e que, via de regra, são prejudiciais à criança. Mesmo difícil, o
momento do diagnóstico não deve ser adiado. Retardar o diagnóstico é
evitar um plano de ação que pode mudar a vida de uma criança.
A gravidade e a seriedade do diagnóstico devem ser proporcio-
nais ao apelo para mobilizar nos pais suas mais nobres qualidades e
sentimentos, pois estes serão, sem sombra de dúvida, os mais impor-
tantes componentes do plano de tratamento da criança.

102
7
INTERVENÇÃO PRECOCE

O principal objetivo do programa de intervenção precoce da


Casa da Esperança é proporcionar às crianças com autismo condições
de desenvolvimento da atenção compartilhada, da imitação, da aqui-
sição de linguagem simbólica, da capacidade de brincar e do desenvol-
vimento de relações humanas significativas.
Tendo como principais inspirações o Currículo Funcional Na-
tural desenvolvido por Judith LeBlanc e Liliana Mayo, assim como a
metodologia SCERTS (Social Communication, Emotional Regulation
and Transactional Support), o nosso programa é desenvolvido em am-
bientes naturais e estruturados, através de atendimentos individuais e
em grupos, por equipe multiprofissional.
Nossas crianças são assistidas no contraturno das escolas re-
gulares, com as quais mantemos relacionamento, visando oferecer
suporte para os alunos e professores envolvidos no processo. Conside-
ramos fundamental a inclusão dessas crianças no ensino regular para
que tenham oportunidade de conviver com crianças típicas, que fun-
cionam, nesse caso, como modelos para a aquisição de habilidades e
comportamentos sociais.
A convivência com seus pares cronológicos é fundamental para
a expansão do vocabulário da criança, assim como para que aprenda,
num ambiente natural, a se dar conta das necessidades e perspectivas
do outro. A escola regular, nesse sentido, é um ótimo laboratório para
o desenvolvimento da comunicação, da alternância de turnos e do res-
peito aos limites do outro.
Além disso, é claro, deve ser garantido à criança com autismo
o direito à educação formal e à possibilidade de desenvolvimento de
habilidades acadêmicas.

103
Temos assistido a polêmicas apaixonadas sobre o desafio da in-
clusão de crianças com autismo na rede regular de ensino. Achamos
que esse é um dilema falso que se coloca para as famílias de crianças
com autismo: elas têm direito à escola regular e a um atendimento
terapêutico especializado, inclusive no que diz respeito à educação.
Raríssimas são as crianças autistas que poderão se desenvol-
ver apenas com o recurso da rede regular de ensino. A própria escola
regular necessita de apoio para atender às especificidades da criança
autista. A escola regular nunca vai substituir as organizações espe-
cializadas em seus objetivos de trabalhar as dificuldades básicas do
autismo, estimular a comunicação social, verbal e não verbal, su-
perar os desafios específicos das desmodulações sensoriais, ensinar
habilidades da vida prática e dominar os desafios comportamentais.
E mesmo no que diz respeito ao aprendizado dos conteúdos acadê-
micos, essas crianças precisam, por seu estilo cognitivo, de reforço e
acompanhamento especializado, para que tenham maiores chances
de sucesso na escola.
Para que a criança autista tenha chance não apenas de ser in-
cluída, mas de permanecer, com sucesso, na rede regular de ensino, é
necessário o desenvolvimento de parcerias entre a equipe de especia-
listas que atende a criança, a escola e, principalmente, a família.
Como disse no capítulo relativo ao diagnóstico, o envolvimento
dos pais é, na nossa opinião, o mais forte aliado com que a criança
com autismo pode contar para seu desenvolvimento. Infelizmente, é
difícil o diagnóstico precoce e temos visto, com muita frequência, fa-
mílias que, mesmo sabendo das dificuldades do filho, tentam de toda
forma evitar o diagnóstico. Parece que, para essas famílias, é o diag-
nóstico que vai retirar sua criança do rol dos “normais” e incluí-la nas
estatísticas das pessoas com deficiência.
Temos, com muito cuidado, informado aos pais dos nossos pe-
quenos pacientes a importância do acompanhamento dos irmãos. É
com relativa frequência que identificamos nessas crianças sinais de
autismo. Infelizmente, mesmo nesses casos, não é raro o adiamento de

104
uma avaliação rigorosa e precoce e, com ela, a chance de uma inter-
venção mais eficaz.
Acompanhamos a luta heroica de muitas famílias em busca
de ajuda para os filhos autistas. Mas testemunhamos também muita
dor e desespero, ligados ao diagnóstico do autismo. Existem casos,
inclusive, de famílias que se recusam a aceitar que o tão sonhado
filho não tenha saído à sua imagem e semelhança. De tudo, fica uma
certeza. Os familiares também são diferentes entre si, mas todos pre-
cisam muito de apoio nessa caminhada. Os grupos de mútua aju-
da são importantes, pois proporcionam aos pais a possibilidade de
aprender, uns com os outros, estratégias de superação dos próprios
dramas pessoais, enquanto enfrentam os desafios concretos de criar
uma criança com autismo.
Como todo programa de intervenção precoce, o nosso
também possui um referencial teórico que lhe dá consistência e
orientação: somos discípulos dos teóricos desenvolvimentistas e,
nesse sentido, buscamos compreender os desvios e as características
do autismo, tendo como base o desenvolvimento das crianças típi-
cas. O contrário disso é também uma realidade, o entendimento do
autismo tem jogado novas luzes na compreensão dos processos do
desenvolvimento infantil.
Dentro dessa perspectiva, entendemos que, antes do surgimento
dos sinais clássicos do autismo, aparecem falhas nos marcos do desen-
volvimento, notadamente nos precursores não verbais da comunicação.
Todos sabemos dos determinantes biológicos e genéticos do au-
tismo. Mas acreditamos, firmemente, nas possibilidades epigenéticas,
na influência de um ambiente apropriado que possa fazer frente a esse
determinismo biológico. Se é verdade que a criança normal nasce com
predisposição inata de buscar, no ambiente, os fatores que vão ajudá-
-la no desenvolvimento de sua inteligência social; se é verdade, ain-
da, que das trocas mútuas entre o bebê e a mãe irão surgir o contágio
emocional, a imitação e a atenção compartilhada, das quais emergirão
a linguagem e as brincadeiras simbólicas, é daí que temos de partir.

105
Tudo leva a crer que ao déficit biológico inicial se somam, no
caso do autismo, os prejuízos de uma interação social precária, conse-
quente a esse déficit. Dessa forma é que se produzem os sinais clássi-
cos do autismo.
Apostamos na possibilidade de que, aos primeiros sinais da
deficiência inata da criança para buscar estímulos socialmente rele-
vantes, possamos juntar uma intervenção precoce e intensiva, a fim de
minimizar os sintomas da fase seguinte. Essa é a nossa aposta. Uma
aposta na neuroplasticidade e maior neurogênese do cérebro nessa
fase da vida.
Segundo os principais autores desenvolvimentistas, o autis-
mo resulta de uma falha biológica que afeta todo o sistema pré-lin-
guístico que habilita o bebê para a formação de sua subjetividade,
responsividade social e emocional, desenvolvimento da intersubje-
tividade e linguagem. Essas deficiências seriam a base dos déficits
cognitivos posteriores.
O objetivo central da intervenção precoce é, pois, atuar nesses
mesmos precursores, tentando refazer os caminhos neurais que não se
desenvolveram espontaneamente.
Nosso programa de intervenção precoce conta com uma
equipe multiprofissional composta de pediatra e psiquiatra da in-
fância e da adolescência, fonoaudiólogas, terapeutas ocupacionais,
psicólogos e pedagogos. As crianças são distribuídas em salas de seis
a oito e recebem atendimento individual e em grupo. A ênfase é dada
no desenvolvimento das competências comunicacionais e na regu-
lação emocional.
Todas as crianças recebem duas horas diárias de estímulo à co-
municação social. A estimulação ocorre de forma espontânea e semies-
truturada, através de brincadeiras, imitações, músicas, softwares educa-
tivos e vídeos infantis.
Como os bebês autistas apresentam déficits na capacidade de
imitação que prejudicam o estabelecimento da conexão emocional,
nosso programa, como muitos outros, utiliza-se da modelagem com-

106
portamental e da imitação, no sentido de facilitar o desenvolvimento
da sincronia emocional.
A regulação emocional é buscada através de adaptações no am-
biente, mudanças no tom de voz dos terapeutas, de forma a não so-
brecarregar ou subestimular as crianças com autismo que apresentam
desmodulações sensoriais. Muitas das crises comportamentais apresen-
tadas por essas crianças são consequentes a sobrecargas de estímulos do
ambiente ou, ao contrário disso, de tentativas de se autorregular senso-
rialmente. Através de “dietas sensoriais”, técnicas de integração sensorial,
técnicas cognitivo-comportamentais e terapia medicamentosa (quando
necessário), muito pode ser feito para ajudar as crianças a se regular
emocionalmente, tornando-as mais disponíveis para o aprendizado.
É muito importante que seja permitido à criança, às vezes, sair
da sala ou usar outros meios a seu alcance para evitar uma desregu-
lação ou sobrecarga emocional. Deve ser ensinado a ela como pedir
ajuda para sua própria regulação, assim como a utilizar meios de recu-
peração, quando de um episódio de desregulação maior.
Embora ainda exista muito preconceito por parte de alguns
pais e profissionais com relação a medicamentos, eles muitas vezes são
fundamentais para melhorar a atenção da criança, reduzir a hiperati-
vidade e labilidade emocional, medidas necessárias para maximizar o
efeito das intervenções terapêuticas.
Às famílias das crianças inseridas em nosso programa são
oferecidos os serviços de psicoeducação, reuniões periódicas com a
equipe terapêutica, terapia de grupo, assistência social e terapia breve
focada nos desafios do autismo.
São objetivos do programa de intervenção precoce da Casa
da Esperança:

1. Inclusão assistida na rede regular de ensino.


2. Desenvolvimento das habilidades de atenção conjunta.
3. Desenvolvimento da capacidade de imitação da criança —
contágio emocional.

107
4. Treino para o uso de gestos instrumentais.
5. Treino de atividades de vida diária.
6. Desenvolvimento da capacidade de regulação emocional.
7. Desenvolvimento de relações humanas significativas.
8. Desenvolvimento das competências comunicacionais e uso
de símbolos em ambiente naturais.

Ainda é muito cedo para avaliarmos o impacto da intervenção


precoce nesta nova geração de crianças com autismo. No entanto, al-
guns parâmetros nos indicam que estamos no caminho correto. Cerca
de 80% das nossas crianças de até 4 anos se comunicam verbalmente,
em contraposição aos 50% dos adultos com autismo que frequentam
os nossos outros programas. Nunca acompanhamos nenhum bebê,
nos últimos cinco anos, que tenha apresentado regressão da lingua-
gem verbal, enquanto 30% das crianças que recebemos com mais de 5
anos de idade tenham histórico de regressão da fala. Nunca assistimos
a um número tão grande de crianças com autismo frequentando a es-
cola regular, e isso nos enche de estusiasmo e esperança.

108
8
O MODELO SCERTS

A Casa da Esperança sempre adotou uma metodologia de tra-


balho multiprofissional, interdisciplinar e multimodal. A partir de
2006, como resultado de uma parceria com a Universidade de Yale e
o apoio financeiro da Fundação Verônica Bird, acrescentamos a nosso
trabalho princípios e técnicas da abordagem SCERTS (Social Com-
munication, Emotional Regulation and Transactional Support), gra-
ças à realização de treinamento com diversos especialistas americanos
coordenados por Amy Laurent, uma das criadoras do método. O trei-
namento ocorreu na própria sede da Casa da Esperança.
O modelo SCERTS é, a nosso ver, o protótipo das metodolo-
gias inovadoras voltadas para crianças com autismo por estabelecer
como prioridade o enfrentamento dos problemas básicos do autismo
e por ser aplicável às suas mais diferentes manifestações. O SCERTS
tem como objetivo primordial o desenvolvimento da comunicação e
da regulação da emoção e propõe o uso de várias estratégias de supor-
te ao aprendizado (suporte transacional).
Baseado em pesquisas sobre desenvolvimento infantil típico e
teorias sociais de aprendizagem, o SCERTS propõe que atividades de-
senvolvidas com a criança sejam estendidas a sua casa e à comunidade.
Essa medida visa facilitar a generalização da aprendizagem por parte
da criança. O modelo preconiza a participação da criança em todas as
atividades adequadas a seu nível de desenvolvimento, em casa e na es-
cola. Colegas, professores e familiares devem ser vistos como parceiros
do programa. Dessa forma, o suporte transacional das ações desenvol-
vidas não se refere apenas às mudanças no ambiente de aprendizagem,
mas, e principalmente, aos ajustes atitudinais de todos os parceiros de
vida da criança.

109
O SCERTS, na realidade, é um trabalho de equipe, em que a
expertise de vários profissionais é somada ao conhecimento da famí-
lia para ajudar a criança a se desenvolver no maior número possível
de ambientes.
De acordo com o manual SCERTS (PRIZANT et al., 2006), o
foco do modelo são crianças do pré-escolar e ensino fundamental. No
entanto, muitos dos princípios lá constantes podem ser adotados para
jovens e adultos. O currículo é centrado no desenvolvimento de habi-
lidades que, normalmente, ocorrem dos oito meses aos 10 anos de ida-
de, mas todos sabemos que muitas pessoas com autismo continuam a
apresentar déficits desenvolvimentais até a idade adulta.

Comunicação Social

No que diz respeito à comunicação social, o modelo SCERTS


prevê a organização de metas e estratégias que visam ao desenvol-
vimento da comunicação desde os estágios pré-verbais, quando o
educando é denominado parceiro social, passando pela aquisição
da linguagem simbólica, quando é chamado de parceiro de lingua-
gem, até os níveis mais sofisticados de comunicação, em que as
estratégias de ensino se aplicam a um parceiro de conversa. Dessa
forma, toda criança com autismo pode se beneficiar da utilização
da metodologia, pois o objetivo final é ajudá-la a se tornar um par-
ticipante cada vez mais competente, confiante e ativo em ativida-
des sociais. Isso inclui não apenas se comunicar e brincar com os
outros em atividades diárias, mas compartilhar alegria e prazer nas
relações sociais.
Sinais e símbolos visuais são usados, frequentemente, para
incentivar uma criança pré-verbal no desenvolvimento da fala,
assim como crianças verbais a tornarem-se mais criativas no uso
da linguagem verbal. Dizemos, então, que o modelo valoriza a co-
municação multimodal. É muito importante e desejável para uma
criança ter várias maneiras de se comunicar, de modo que se uma

110
estratégia não funcionar (por exemplo, fala), a criança possa mu-
dar para outra (gestos, imagens, diferentes formas de comunicação
aumentativa e alternativa). Um alto nível de competência comuni-
cativa é definido pela flexibilidade da criança para usar diferentes
meios de comunicação.

Inclusão Escolar

Crianças típicas costumam fornecer bons modelos de habili-


dades sociais e de linguagem. Assim sendo, o SCERTS defende uma
abordagem inclusiva da educação, por ser a escola regular o local
que oferece excelentes oportunidades de aprendizagem. O modelo
também pode ser implementado em atendimentos individualizados,
mas esses modelos menos inclusivos vão comprometer a consecução
dos objetivos e das estratégias de ensino, uma vez que brincar com
crianças da mesma faixa etária é um apoio transacional insubstituível
para o desenvolvimento da comunicação social.
A escolha e a colocação da criança na escola devem ser pre-
cedidos, é claro, de criterioso processo que leve em conta, princi-
palmente, suas habilidades e necessidades individuais. Devem ser
consideradas suas habilidades de comunicação, assim como suas
competências emocionais de autorregulação. Além disso, as priori-
dades da família e os recursos disponíveis na comunidade precisam
ser apreciados nessa escolha.

Suportes Transacionais

A criança com autismo deve receber suportes transacionais,


destinados a promover sua capacidade de aprender, prestar atenção
e se sentir incluída no ambiente escolar. Esses suportes devem ser
componentes essenciais do plano educacional da criança. Na Casa da
Esperança, toda uma gama de suportes terapêuticos e pedagógicos é
oferecida às crianças no contraturno da escola regular.

111
Em uma sala de aula inclusiva, esses apoios podem consistir em
suportes interpessoais (por exemplo, ajustes no estilo comunicativo)
e suporte na aprendizagem (por exemplo, modificações ambientais e
curriculares). A implementação desses tipos de apoio individualizado
dentro das rotinas naturais e atividades de sala de aula ajuda a pro-
mover um ambiente inclusivo, propício ao desenvolvimento da regu-
lação mútua e da autorregulação, componentes essenciais do modelo
SCERTS. A capacidade de regulação emocional permite à criança,
tonar-se um membro mais ativo e participante do ambiente escolar.
Fazer da criança com autismo um membro ativo das atividades e roti-
nas escolares amplia, por sua vez, as possibilidades de aprendizagem.
Muitos dos suportes transacionais implementados pelos parceiros
(professores e colegas), sejam eles acomodações ambientais (redução
de estímulos) ou adaptações (suportes visuais), vão beneficiar todos os
alunos de uma sala de aula inclusiva.
O modelo SCERTS fornece um metodologia para o desenvol-
vimento de atividades sociais nos mais diversos ambientes, desde os
semiestruturados aos mais naturais. As prioridades de qualquer pro-
grama de educação para crianças com autismo deve ser, no entanto,
o desenvolvimento de habilidades funcionais na comunicação social
e regulação emocional. A família e suas prioridades devem ser con-
templadas na fixação dos objetivos e das metas educacionais e estes
devem sempre estar adequados ao nível de desenvolvimento da crian-
ça atendida. Se não incluirmos a família no processo, não vamos obter
êxito no empreendimento educacional, pois é na condição de familiar
que a criança com autismo vai participar da maioria das situações de
aprendizagem natural ao longo da vida.
As interações das crianças com autismo com outras sem ne-
cessidades especiais são vistas como uma parte essencial do apoio à
comunicação e do controle emocional no modelo SCERTS. Em con-
textos naturais de aprendizagem, existem inúmeras oportunidades
para desenvolver habilidades de comunicação funcional e social, as-
sim como de resolução de problemas. Essas oportunidades são fun-

112
damentais, ainda, para ajudar crianças típicas e outros parceiros a se
tornar pessoas mais sensíveis e habilidosas para desenvolver relações
com crianças com diferenças de desenvolvimento. A educação inclu-
siva é, portanto, uma oportunidade de propiciar o desenvolvimento de
habilidades sociais e de comunicação para todas as pessoas envolvidas
no processo.
O modelo SCERTS prevê a participação de familiares e de uma
equipe multiprofissional no desenvolvimento de atividades e estraté-
gias, por acreditarmos que essa é a configuração que melhor se adequa
às necessidades das crianças com autismo. O modelo é destinado a
todas as crianças com autismo. Não acreditamos, portanto, que ne-
nhuma criança esteja despreparada para participar do processo e ne-
8 cessite de um acompanhamento individual para adquirir prontidão
para isso. Não há evidências de que a aquisição de competências de
prontidão dessa forma seja um pré-requisito para o aprendizado e de-
senvolvimento de crianças com transtornos do espectro do autismo.
As metas nos domínios da regulação emocional devem ser definidas
e os apoios necessários fornecidos a partir do início do programa. O
estabelecimento das metas e suportes é que vai promover a atenção, o
envolvimento e a disponibilidade para aprender.

Etapas do Modelo

O modelo SCERTS foi concebido como um todo abrangente


e integrado, com um processo sequencial e lógico desde a avaliação,
passando por uma programação educativa que vai dos objetivos sim-
ples aos mais sofisticados, na busca da competência comunicativa e
regulação emocional. Embora possa ser adaptado às necessidades da
criança, da família e dos prestadores de serviço, os organizadores re-
comendam a utilização integral do modelo de acordo com as orienta-
ções apresentadas no manual do SCERTS.

113
A Busca do Equilíbrio

O modelo SCERTS se coloca no meio-termo entre aborda-


gens denominadas “prescritivas”, ou seja, com “receita” de como fazer
as coisas com pessoas autistas, tendo como foco principal ensinar a
criança a cumprir solicitações e produzir respostas “corretas” — o que
tende a produzir indivíduos passivos, ou “adestrados” —, e outra sorte
de extremismo, uma abordagem meramente “facilitadora”, ou seja, ba-
seando os objetivos e as práticas de ensino, principalmente, no acom-
panhamento das preferências e motivações da criança e aceitando as
respostas comportamentais e através da imitação ou de reações emo-
cionais positivas, o que com frequência resulta em pessoas demasiado
autocentradas e mesmo tirânicas.
Como alternativa, adotamos um meio-termo: sermos sistemáti-
cos e semiestruturados, mas também flexíveis, com uma hierarquia pa-
dronizada de objetivos em comunicação social e regulação emocional,
resultado de pesquisas a respeito das aquisições factíveis para pessoas
autistas, selecionada de modo individual e baseada nas necessidades de
cada criança e nas prioridades dos pais. Desenvolvemos atividades para
ser consistentes e previsíveis, com prioridade na comunicação social, na
reciprocidade social e emocional e na resolução criativa de problemas em
um contexto de atividades significativas, de vivência compartilhada agra-
dável e de um controle compartilhado da relação.
Embora a intervenção precoce e a adoção de um programa
apropriado e abrangente, como o SCERTS, possam modificar muito
positivamente o comportamento de uma criança com autismo e am-
pliar-lhe, maravilhosamente, as perspectivas, é importante salientar
que o objetivo final do modelo não é a cura. A maioria das pessoas
com autismo sempre vai necessitar de algum suporte ao longo da
vida. Apesar de existirem promessas de cura milagrosa do autismo,
isso não é compartilhado pela maioria dos profissionais sérios e ex-
perientes nem consistente com o nível atual de conhecimento e pes-
quisas sobre autismo.

114
9
DIFERENTES ABORDAGENS

Floortime

O Floortime-DIR (Developmental, Individual Difference,


Relationship-based) é um modelo terapêutico desenvolvido pelo psi-
quiatra americano Stanley Grenspan e pela psicóloga Serena Wieder.
Publicado inicialmente em 1998, o método tem por objetivo o de-
senvolvimento do relacionamento interpessoal, da comunicação e do
pensamento da criança. O modelo se propõe a modificar não apenas
o comportamento da criança, mas suas estruturas e funções cerebrais,
através de intervenções precoces e adequadas a seu nível de desenvol-
vimento da criança.
Parte do princípio de que um adulto pode ajudar uma criança
a expandir seus círculos de comunicação ao interagir com ela em seu
nível de desenvolvimento. A interação com a criança deve iniciar de
acordo com sua própria forma de se expressar afetivamente, suas mo-
tivações e seu modo de interagir.
O método valoriza os pontos fortes da criança com autismo
que está sendo atendida. A terapia geralmente é incorporada às
brincadeiras que ocorrem no chão, daí o nome do método, tempo
no chão.
O objetivo do Floortime é ajudar a criança a alcançar seis mar-
cos de desenvolvimento que contribuem para seu crescimento emo-
cional e intelectual:

– Autorregulação e interesse pelo mundo — utiliza-se o inte-


resse da criança pelos estímulos ambientais como elemen-
tos-chave no desenvolvimento da autorregulação emocional.

115
– Interesse especial pelo mundo das relações humanas.
– Habilidade para se comunicar em duas vias, emocional e
intencionalmente.
– Comunicação complexa, através do desenvolvimento da
habilidade de criar gestos complexos.
– Habilidade para expressar sentimentos e ideias.
– Habilidade para construir uma conexão lógica entre as
ideias e a realidade.

No Floortime o pai, a mãe ou o terapeuta se envolve com a


criança em atividades de que ela goste e a deixa liderar. A partir de uma
atividade compartilhada, o adulto leva a criança a participar de intera-
ções cada vez mais complexas, processo conhecido como “abrir e fechar
níveis de comunicação”. O Floortime não trabalha habilidades de fala,
motoras ou cognitivas separadamente, mas aborda todas essas áreas
através da ênfase no desenvolvimento emocional. O “tempo no chão”
é o período em que pais e terapeutas interagem com a criança no ní-
vel dela. O Floortime preconiza, ainda, a inclusão de crianças típicas da
mesma idade na terapia.

Método TEACCH

TEACCH significa tratamento e ensino de crianças com autis-


mo e outras dificuldades de comunicação relacionadas. É um progra-
ma de educação especial desenvolvido por Eric Shopler e colaborado-
res na Universidade da Carolina do Norte, no início dos anos 1970,
com um tipo de abordagem de ensino bastante estruturada.
A metodologia TEACCH prevê uma estreita colaboração en-
tre pais, educadores e demais profissionais e uma coordenação entre
as atividades desenvolvidas em casa e nas escolas especializadas para
crianças autistas.
Baseado no estilo cognitivo da pessoa com autismo, o método
parte do pressuposto de que autistas fazem parte de um grupo cultural

116
distinto, sendo elaborado para tirar proveito da força relativa que es-
sas pessoas teriam de processar informações de forma visual. O papel
do professor de um aluno com autismo seria semelhante ao de um
intérprete transcultural, ele traduziria as expectativas de um ambien-
te não autístico para o aluno: “Na verdade, o que tentamos fazer por
eles é o que nós desejaríamos para nós mesmos quando viajássemos
para um país estrangeiro, enquanto tentamos aprender algo da língua
estrangeira [...] ficaríamos muito felizes em ver sinais na nossa própria
língua e ter guias que pudessem nos ajudar” Gary Mesibov.
No método TEACCH, o currículo é individualizado e o am-
biente estruturado de forma a facilitar o planejamento e a execução
das atividades. As informações, frequentemente transmitidas de for-
ma visual, podem ser observadas pelas crianças nas paredes e são to-
madas medidas na organização do espaço para minimizar distrações.
Entre os princípios do método TEACCH estão: investigação
criteriosa das áreas de competência e interesse do aluno, avaliação
constante do processo de aprendizagem, assistência ao aluno para que
ele compreenda o sentido do que lhe está sendo ensinado e colabora-
ção dos pais no processo de ensino. O objetivo central do método é
proporcionar ao aluno condições para que possa se inserir na cultura
não autista, quando adulto.

Programa Son-Rise

A família Kaufmann dirige o programa Son-Rise no Option Ins-


titute, em Massachusetts, nos Estados Unidos, há mais de vinte anos.
O Son-Rise é uma abordagem projetada para ajudar crianças
com autismo, suas famílias e cuidadores. Baseia-se em alguns princí-
pios fundamentais, entre os quais:

– É preciso estabelecer um foco nas motivações e nos interes-


ses da criança, para facilitar-lhe a compreensão e a apren-
dizagem.

117
– Deve-se participar do mundo da criança, imitando-lhe os
movimentos repetitivos e comportamentos como forma de
facilitar o contato e a interação social.
– Consideram-se os pais o recurso mais importante e dura-
douro da criança com autismo.
– É necessário manter uma atitude positiva e amorosa nas
intervenções e expectativas com relação à criança com autismo.

O Son-Rise é o protótipo das abordagens facilitadoras, baseadas


na crença de que é preciso entrar na realidade da criança com autismo e
deixar que ela guie o adulto através de seus próprios interesses. Pede-se aos
adultos que não dominem nem controlem as brincadeiras e as interações.
A terapia é realizada numa sala de jogos, criada especialmente para esse
fim, tranquila e decorada, sem estímulos desnecessários. Na maioria das
vezes, os terapeutas são pais ou voluntários treinados em cursos especiais.

Análise do Comportamento Aplicada (ABA)

A Análise do Comportamento Aplicada foi criada na década


de 1930 por Burrhus Frederic Skinner, psicólogo e pesquisador nor-
te-americano. É também conhecida como behaviorismo radical ou
comportamentalismo.
Skinner definiu o comportamento como a relação existente en-
tre as ações de um indivíduo e os eventos anteriores e consequentes a
essas mesmas ações. A contingência dos três termos é a unidade míni-
ma de análise de qualquer comportamento.
Um comportamento é denominado operante quando a respos-
ta do indivíduo atua no ambiente e este atua nas mesmas respostas. No
comportamento operante é dada ênfase às consequências do compor-
tamento, que podem alterar a probabilidade de futuras ocorrências do
mesmo comportamento.
Desde o início dos anos 1960, analistas do comportamento têm
usado o reforço positivo, de forma repetitiva e intensiva, para o ensino

118
de habilidades sociais e de comunicação a pessoas com autismo. A ABA
é, então, uma linha de atuação do comportamentalismo na qual os con-
ceitos teóricos são aplicados a necessidades específicas do autismo.
A terapia comportamental utiliza-se sempre de um processo
constituído de três passos básicos:

– Antecedente – é uma ordem ou um pedido feito à criança,


seja através de um estímulo físico ou verbal.
– Comportamento – reação da criança, ou falta dela, resultan-
te do estímulo (pedido ou ordem) antecedente.
– Consequente – é a consequência do comportamento da
criança. Geralmente inclui um reforço positivo ao compor-
tamento desejado ou nenhuma resposta para a reação con-
siderada incorreta.

No caso do autismo, o analista do comportamento atua em


duas frentes: na ampliação e aquisição de comportamentos em dife-
rentes áreas (verbais, acadêmicas etc.) e na redução de comportamen-
tos não adaptativos (estereotipias, agressividade etc.).
O ensino no programa ABA é altamente estruturado. As ha-
bilidades e os comportamentos são baseados em um currículo pre-
estabelecido. Cada habilidade é dividida em pequenos passos e ensi-
nada através de comandos que podem ser gradualmente eliminados,
à medida que são aprendidos pela criança. Sempre que a criança
alcança o resultado desejado, recebe um reforço positivo, tal como um
elogio verbal ou algo que seja motivador para ela. O sucesso é medido
por observação direta, coleta e análise de dados, todos componentes
essenciais da ABA.

PECS

O PECS (Sistema de Comunicação por Troca de Figuras – Pictu-


re Exchange Communication System) é um dos programas destinados

119
ao desenvolvimento da comunicação mais usados para crianças com
autismo. Foi desenvolvido especificamente para esse fim. É um sistema
de ensino que permite à criança com pouca ou nenhuma habilidade
verbal comunicar-se através de figuras. As figuras (imagens ou foto-
grafias) são selecionadas de acordo com o repertório lexical da criança.
Pode ser usado em casa, na sala de aula ou em vários outros ambientes.
O programa começa ensinando a criança a usar uma figu-
ra para conseguir um objeto. Por exemplo, se ela quer uma bolacha,
precisa mostrar a figura da bolacha para o adulto, que responde ime-
diatamente ao pedido. As figuras são guardadas em um livro portátil,
coladas com velcro, para que possam ser facilmente removidas e reco-
locadas. O treinamento completo é feito em seis etapas diferentes, en-
volvendo diferentes interlocutores e contextos, no sentido de garantir
a efetividade da comunicação aprendida.
Aos poucos, a criança vai ampliando o vocabulário até formar
sentenças e ser capaz de expressar, através das figuras, necessidades e
desejos. Apesar do PECS ser baseado em ferramentas visuais, reforços
verbais são um componente do método e a comunicação verbal é bas-
tante encorajada.

Currículo Funcional Natural

Criado no início dos anos 1970, para ser desenvolvido com


crianças normais, por um grupo de pesquisadores da Universidade do
Kansas, sob a coordenação de Judith LeBlanc, o Currículo Funcional
Natural foi adaptado, na década de 1980, para pessoas com autismo, a
partir de uma parceria entre Liliana Mayo, do Centro Ann Sullivan do
Peru, e Judith LeBlanc.
A palavra “funcional” refere-se aos objetivos educacionais, que
devem priorizar a aquisição de habilidades úteis para o aluno a curto
e a médio prazo.
“Natural” remete aos procedimentos de ensino, que devem ser
o mais próximo possíveis do mundo real. Nesse sentido, evitam-se, ao

120
máximo, situações artificiais. Como natural também são entendidas as
atividades adequadas a cada etapa da vida. Não faz sentido, segundo o
método, ensinarmos a adultos através de jogos infantis.
O objetivo central deve ser tornar o aluno mais independente,
prudutivo e aceito socialmente.
Dessa forma, o método preconiza evitar que sejam ensinadas
às crianças com autismo coisas que não lhes serão úteis na vida.
Um outro aspecto importante do Currículo Funcional Natural
diz respeito aos reforçadores: devem ser usados, sempre, reforçado-
res naturais, que são úteis para a maioria das pessoas. Não deve, por
exemplo, ser oferecido a uma pessoa com autismo um chocolate cada
vez que ela se comporta bem, pois, na vida real, isso não acontece. Um
sorriso, um elogio, além de mais efetivos, são mais naturais.
O ensino deve ser divertido para que haja uma chance maior
do aluno engajar-se, efetivamente, na atividade, e cada atividade ofe-
recida ao aluno deve ser planejada de tal forma que ocasione o menor
número de erros possível, o que também vai fazer com que o aluno se
torne mais confiante na própria capacidade de aprender.
O Currículo Funcional Natural tem, ainda, os seguintes prin-
cípios norteadores:

– A pessoa como centro ou “não devo fazer com o meu aluno


o que eu não queria que me fizessem”.
- Concentração nas habilidades.
- Todos podem aprender, se o aluno não aprende, o problema
está nos objetivos ou na metodologia e não nele.
- Os familiares são fundamentais no processo de aprendiza-
gem, afinal é com a família que a criança passa a maior parte
do tempo.

121
SCERTS

O SCERTS (Comunicação Social, Regulação Emocional e


Apoio Transacional) é um modelo educacional fruto de várias décadas
de pesquisa de ensino para crianças com autismo, que adota diferentes
metodologias, tendo por base o desenvolvimento infantil típico e teo-
rias sociais de aprendizagem. O SCERTS incorpora práticas compro-
vadamente efetivas de várias abordagens, tais como a ABA, TEACCH,
Floortime e Son-Rise. O acrônimo SCERTS, refere-se a:

- SC — comunicação social — desenvolvimento da comunicação


espontânea e funcional, da expressão emocional e de relaciona-
mentos seguros e de confiança com crianças e adultos.
- ER — regulação emocional — desenvolvimento da capacidade de
manter um estado emocional bem regulado, para lidar com o es-
tresse do dia a dia e estar mais disposto a aprender e interagir.
- TS — apoio transacional — desenvolvimento e utilização de
meios que ajudem as pessoas próximas a reagir às necessidades
e aos interesses da criança, modificar e adaptar o ambiente e for-
necer ferramentas que melhorem o aprendizado, por exemplo,
comunicação por troca de figuras, rotinas por escrito e atendi-
mento às questões sensoriais.

O SCERTS também desenvolve projetos específicos para famí-


lias e profissionais envolvidos no processo educativo.
Como dissemos anteriormente, o modelo SCERTS se coloca
no meio-termo entre abordagens prescritivas e facilitadoras e propõe
como alternativa objetivos hierarquizados a serem perseguidos, no
caso a comunicação social e a regulação emocional, mas buscados e
fomentados em um contexto de atividades significativas para a crian-
ça, de vivência compartilhada agradável e de controle compartilhado
da relação.

122
10
ABORDAGEM MEDICAMENTOSA

Até o momento ainda não foram encontrados medicamentos ca-


pazes de combater os problemas centrais do autismo. As dificuldades de
relacionamento social e de comunicação têm sido resistentes às mais
diversas intervenções farmacológicas.
No entanto, muitos dos sintomas geralmente presentes no au-
tismo podem ser atenuados ou mesmo suprimidos com o uso de psi-
cofármacos. Claro que, como esses sintomas não são exclusivos do
autismo, os medicamentos utilizados também não o são. Como os
medicamentos que usamos na clínica do autismo foram desenvolvi-
dos para outros fins, existem poucos produtos que tenham sido sub-
metidos a pesquisas rigorosas com relação à sua atuação em pacientes
com TEA. Felizmente, nos últimos anos temos visto crescer as pesqui-
sas nessa área. E hoje muito pode ser feito, através da terapia medica-
mentosa, para ajudar a melhorar a qualidade de vida de pessoas com
autismo e suas famílias.
Entre as principais queixas encontradas na clínica do autismo
que respondem bem à terapia medicamentosa, destacamos: insônia,
auto- e heteroagresividade, hiperatividade, desatenção, impulsividade,
agitação, tiques e estereotipias motoras.
É importante salientar que a abordagem medicamentosa deve
sempre ser parte de um programa abrangente de tratamento, reali-
zado por equipe multiprofissional, e nunca constituir a única abor-
dagem terapêutica. Além do mais, não podemos deixar de registrar
que nem todas as pessoas com autismo precisam ser medicadas, e
mesmo as que necessitam de medicação durante algum tempo, não
necessariamente vão precisar fazer uso de psicofármacos durante
toda a vida.

123
Infelizmente, existe grande desinformação e preconceito cer-
cando a psiquiatria, os transtornos mentais e a utilização de psicofár-
macos. Ninguém, em sã consciência, aconselharia uma pessoa com
diabetes a abolir a insulina ou um hipertenso a não usar remédios para
baixar a pressão. Quando o problema é no cérebro, a coisa muda de
figura. Muitas vezes, a falta de tratamento medicamentoso adequado
pode trazer sofrimento para uma pessoa com autismo e sua família.
Nos últimos vinte anos, temos vivenciado muitas histórias de sucesso,
mas, infelizmente, testemunhamos casos de crianças com excelentes
prognósticos, cujos pais, por ignorância e preconceito, deixaram de
tratar e, hoje, não mais conseguem conviver com os filhos dentro de
casa. Às vezes, é doloroso ver como várias famílias embarcam em tra-
tamentos que, sem nenhuma comprovação científica, prometem curas
milagrosas e retardam a instituição de um programa sério, que pode
fazer realmente a diferença na qualidade de vida do paciente.
Existem, no entanto, outras razões por trás da recusa em
medicar uma criança. Uma delas é assumir que o filho tem pro-
blema no desenvolvimento. Há uma enorme recusa em aceitar o
diagnóstico do autismo. Uma vez aceito, os pais insistem para que
digamos que o autismo da criança “é leve”. O uso do medicamento
é mais uma “prova” de que a criança não é normal. Mas é muito
importante que se explique que o medicamento pode, quando bem
indicado, ajudar a equipe terapêutica no tratamento dos problemas
específicos do autismo.
Um pai me disse, certa vez, que aceitava o filho do jeito que ele
era e que não iria lhe dar medicamento, pois não queria colocá-lo numa
camisa de força. É importante destacar que esse não é o papel do psi-
cofármaco. Não queremos arrancar nenhuma subjetividade da criança
com autismo, muito pelo contrário, o que queremos, muitas vezes, com
a medicação é livrar a criança de penosos rituais e comportamentos
compulsivos, ajudando-a a ter mais controle sobre si mesma.
O psiquiatra da infância e da adolescência dispõe de conhe-
cimento sobre as drogas que podem minimizar os problemas que

124
atrapalhem ou impeçam o aprendizado, o desenvolvimento e o con-
vívio da criança com autismo com seus pares. Claro que ele também
conhece os efeitos colaterais previsíveis de cada medicação e como
qualquer médico, de qualquer especialidade, vai sempre fazer um
balanço da relação custo e benefício ao prescrever um medicamento.
É saudável quando se estabelece uma relação de confiança entre o
médico e a família e quando o saber médico pode ser disponibilizado
para a criança ou o adulto com autismo que necessita realmente des-
se recurso.
Muitas crianças que tratamos, seguramente, não estariam in-
cluídas na escola regular se não tivessem controlado a agitação, hipe-
ratividade e agressividade. Muitos adultos não estariam convivendo
com as famílias se não existissem medicamentos capazes de reduzir
seus ataques de fúria e agressividade. Muitas crianças e adultos teriam
os sofrimentos agravados por seus tiques bizarros e complexos, que
foram aliviados pela terapia medicamentosa.
Achamos importante destacar um último ponto. Os medica-
mentos atualmente disponíveis não atuam sobre o autismo como um
todo. São destinados a sintomas-alvo e a avaliação de sua resolutividade
deve se dar em cima da avaliação dos sintomas.
Byrna Siegel, em O mundo da criança com autismo (2008),
elenca cinco critérios que devem ser usados na decisão sobre o uso
de psicofármacos:

1. A criança costuma apresentar algum comportamento agressivo ca-


paz de causar lesões em si mesma ou em outros?
2. O problema apresentado pela criança já foi tratado por outras
abordagens com pouco ou nenhum sucesso?
3. Os problemas apresentados pela criança ocorrem em mais de um
contexto?
4. O problema interfere na capacidade de aprendizado da criança?
5. Os potenciais benefícios do tratamento com psicofármacos supe-
ram os possíveis efeitos secundários a curto e a longo prazo?

125
Se a resposta a uma ou mais dessas questões for positiva, deve-
mos então iniciar uma prova terapêutica. É importante que o médico
diga aos pais exatamente o que se espera de efeito daquele medica-
mento, para que possam ajudar na avaliação da eficácia terapêutica.
Feitas estas considerações iniciais, passamos a elencar alguns
sintomas, comuns em pacientes com autismo, e os medicamentos que
comprovadamente têm se mostrado úteis na redução do problema.

Agressividade, Surtos Explosivos, Oscilação de Humor

Provavelmente os mais dramáticos sintomas associados ao


autismo. A agressividade da criança com autismo precisa ser dife-
renciada das crises de birra, que geralmente respondem muito bem
ao manejo comportamental. Muitas crianças e adultos com autismo
apresentam, entretanto, explosões de agressividade e violência que
parecem ter pouca ou nenhuma relação com o ambiente. Essas cri-
ses costumam gerar muita apreensão e dificuldade para familiares e
professores, constituindo causa frequente de afastamento das crian-
ças de escolas e outros ambientes de convivência social. Esses casos
geralmente respondem bem a uma medicação neuroléptica chamada
risperidona, princípio ativo exaustivamente estudado, cuja eficácia foi
mais bem demonstrada no caso de pacientes com autismo. É a úni-
ca substância aprovada para uso em pessoas com autismo, inclusive
crianças, pela Food and Drug Administration (FDA), orgão do gover-
no norte-americano que regulamenta a comercialização de medica-
mentos. Numerosos estudos, experimentos duplos-cegos randomiza-
dos controlados por placebo registraram sua eficácia e boa tolerância
contra acessos de raiva, agressão, irritabilidade e comportamentos au-
toagressivos (PURDON et al., 1994; ARNOLD et al., 2003; GAGLIA-
NO et al., 2004; RESEARCH UNITS ON PEDIATRIC PSYCOPHAR-
MACOLOGY AUTISMO NETWORK, 2005).
Outros neurolépticos atípicos que podem ser usados em ca-
sos de agressividade são a olanzapina, a quetiapina, a ziprasidona e o

126
aripriprazol. Estudos menores, demonstram a eficácia desses medica-
mentos em comportamentos disruptivos em indivíduos com autismo
(MCDOUGLE et al., 2002; STTIGLER et al., 2004).
O haloperidol e a tioridazina também têm sido largamente
utilizados para minimizar a auto- e heteroagressão em pessoas com
autismo e principalmente o haloperidol tem sido objeto de rigorosos
estudos para esse fim (ANDERSON et al., 1989; PERRY et al., 1989).
As propriedades farmacológicas dos neurolépticos tanto tradi-
cionais, como o haldol e a tioridazina, como os atípicos, a risperidona,
são derivadas principalmente da capacidade desses fármacos de regu-
lar a ação da dopamina. Essa capacidade de regulação, entretanto, é
responsável pelos efeitos colaterais e indesejáveis desses medicamentos.
(PALERMO; CURATOLO, 2004).

Discinesias

Uma das grandes preocupações com a administração de neu-


rolépticos é a possibilidade de surgimento das discinesias, movimen-
tos involuntários da boca, da língua ou dos dedos. Uma das formas
mais temidas é a famosa discinesia tardia, que ocorre geralmente pelo
menos três meses após o início do tratamento e pode assumir a forma
de movimentos coreoatetoides ou de tiques e roncos involuntários.
Felizmente, cerca de 75% a 80% das crianças com autismo nunca apre-
sentam esses efeitos secundários. É importante salientar que existem
tratamentos preventivos para as discinesias que podem ser usados si-
multaneamente com a medicação neuroléptica. Aqui no Brasil é mui-
to utilizado um anti-histamínico (Fenergan), principalmente quando
são receitados os neurolépticos de primeira geração como o haldol.
No caso do aparecimento de discinesia, a medicação neurolép-
tica deve ser descontinuada. Os movimentos normalmente desapare-
cem com a retirada do medicamento. Nesses casos, como em qualquer
outro de descontinuação de tratamento com neuroléptico, aconselha-
-se a retirada gradual do medicamento.

127
A carbamazepina é um medicamento anticonvulsivante que
pode ser bastante útil no tratamento de crianças que, embora não sen-
do hiperativas, tenham crises explosivas de agressividade. Traz, no en-
tanto, o inconveniente de necessitar de um monitoramento rigoroso
através de exames de sangue, em função de apresentar riscos de supri-
mir a capacidade do organismo de produzir determinadas células do
sangue (agranulocitose).
Embora se trate de um fármaco muito estudado no uso em
crianças com autismo, o resultado das pesquisas com o naltrexone são,
no entanto, bastante controversos. Na nossa prática, ele tem sido útil
em alguns casos de autoagressividade refratária, mas o efeito não cos-
tuma ser muito duradouro.
Mais usado em adultos, o lítio tem sua indicação em pessoas
com autismo que costumam apresentar explosões maníacas, de di-
fícil controle. Tal como o tegretol, o lítio exige monitoramento dos
níveis sanguíneos.
Já a trazodona pode ser útil em alguns casos de comportamento
autolesivo de difícil controle.

Déficit de Atenção, Hiperatividade

O metilfenidato é o psicoestimulante mais estudado e utiliza-


do no tratamento do TDAH. Infelizmente, apenas uma pequena parte
dos pacientes com autismo que apresentam esses sintomas costuma
se beneficiar do medicamento. Em outras crianças, observa-se uma
exarcebação da hiperatividade e, em outras ainda, pode advir um au-
mento das estereotipias e tiques motores. Felizmente, esses sintomas
costumam ceder com a suspensão do medicamento. Nesses casos, a
medicação mais utilizada e que costuma dar os melhores resultados,
tanto na redução da hiperatividade como no aumento da atenção e
concentração, é a risperidona.

128
Comportamentos Ritualísticos

Muitas pessoas com autismo desenvolvem sintomas seme-


lhantes aos do TOC, ou seja, rituais e rotinas de difícil controle. Ge-
ralmente eles respondem bem aos inibidores seletivos da recaptação
da serotonina, tais como a fluoxetina, sertralina e paroxetina. Esses
medicamentos, além de mostrarem-se úteis no tratamento dos com-
portamentos intrusivos, podem melhorar o relacionamento social.

Estereotipias Motoras

A risperidona ainda é o agente que parece atuar de forma mais


eficaz nesses sintomas.
9
Distúrbios do Sono

Bastante comum em pessoas com autismo, o distúrbio do sono


é um desafio enorme para os pacientes e suas famílias. Em nossa prá-
tica temos tido resultados muito bons com a utilização da melatonina,
um hormônio ligado diretamente à regulação do ciclo sono-vigília.
Seu uso está embasado em muitos estudos. Prescrevemos principal-
mente para adolescentes e adultos, com muito boas respostas. Em
crianças pequenas, geralmente a queixa de insônia vem associada a
outras como hiperatividade e distúrbios comportamentais. Nesses ca-
sos é mais recomendado o uso de risperidona.
Achamos importante ainda frisar que os psicofármacos não
curam os sintomas que surgem com o autismo. De fato, eles, na maio-
ria das vezes, apenas mascaram os sintomas, de tal forma que as pes-
soas, às vezes, vivem como se não os tivessem. Mais uma vez fazemos
um paralelo com o caso de um paciente com diabetes; ele não fica
curado porque toma insulina, ele apenas controla os sintomas. Uma
vez retirados os medicamentos, os sintomas costumam voltar. Quan-
do, entretanto, associamos o medicamento com as terapias e quando,

129
devido às terapias, ocorre de fato uma modificação do comportamen-
to, podemos pensar em reduzir ou descontinuar o medicamento.
Alguns fármacos requerem a realização periódica de exames
de sangue para dosar a quantidade disponível no organismo. Isso é
necessário porque há uma grande diferença entre a velocidade de me-
tabolismo e o armazenamento dos fármacos de indivíduo para indi-
víduo. Outros medicamentos exigem que sejam feitos exames perío-
dicos como eletroencefalograma ou eletrocardiograma, em função de
possíveis efeitos colaterais.
Sabemos muito pouco sobre autismo, no nível molecular e neu-
ronal. Os avanços nesse sentido mostram-se insuficientes para que tenha-
mos medicamentos capazes de provocar mudanças efetivas e duradouras.

Interrupção do Uso de Psicofármacos

Muitos sintomas apresentados pela crianças com autismo me-


lhoram, de fato, com o tempo e a aprendizagem, como, por exemplo, a
hiperatividade e a atenção. Pode ser relevante descontinuar uma me-
dicação para observar se determinado padrão de comportamento já
está estabelecido e pode ser mantido, sem a ajuda do medicamento.
Mas isso deve ser feito, sempre, com acompanhamento médico.
Uma medicação que funcionava muito bem durante algum
tempo pode deixar de funcionar. Quando isso acontece, pode ser ne-
cessário um ajuste da dose ou substituição do medicamento.

Conclusão

A utilização de psicofármacos no tratamento do autismo deve


objetivar o controle ou a eliminação de sintomas específicos no me-
nor período de tempo possível. O tratamento medicamentoso tem de
integrar-se a um plano mais abrangente de tratamento, devendo ser
visto como uma “janela de oportunidade” para a atuação dos terapeu-
tas, nunca como única forma de tratamento da pessoa com autismo.

130
11
AS TEORIAS COGNITIVAS DO AUTISMO

Existem três importantes teorias psicológicas que tentam ex-


plicar o autismo :

- A Teoria da Mente – segundo esta teoria, o autismo é caracteri-


zado por um déficit na capacidade dos indivíduos com autismo
de atribuir estados mentais às outras pessoas.
- A Teoria do Déficit nas Funções Executivas – o déficit central
do autismo seria nas funções executivas, capacidades que nos
permitem controlar voluntariamente nossas ações, atenção e
pensamento.
- Teoria da Coerência Central Fraca – as pessoas com autismo te-
riam dificuldade para integrar as diversas informações que rece-
bem do ambiente em unidades coerentes e dotadas de significação.

Teoria da Mente

Podemos traduzir a Teoria da Mente como a capacidade de


um indivíduo de compreender os estados mentais das outras pessoas.
Os estados mentais seriam os pensamentos, os desejos e as cren-
ças que movem os indivíduos. A compreensão dos estados mentais
alheios dotaria o indivíduo de habilidades sociais importantes para
os relacionamentos.
Segundo Uta Frith e Baron-Cohen, propositores dessa teoria,
as deficiências básicas do autismo podem ser explicadas como uma
falha na Teoria da Mente ou metacognição, que é o mecanismo que
nos permite “pensar sobre o pensamento”. No autismo, haveria uma
falha no desenvolvimento da capacidade de captar os pensamentos

131
das outras pessoas e, em consequência, surgiriam dificuldades sociais,
comunicativas e de imaginação.
O termo teoria é usado porque os estados mentais não podem
ser observados. Podem ser apenas inferidos.
A maioria das crianças já possui uma teoria da mente operante,
ou seja, já é capaz de atribuir a si mesma ou aos outros desejos, cren-
ças ou intenções no terceiro ano de vida. Nessa idade, ela já consegue
distinguir um estado físico de um estado mental, bem como realidade
da fantasia e, por isso, brinca de faz de conta.
Podemos captar estados mentais através de indícios que os outros
nos fornecem pela expressão facial, tom de voz, jeito de olhar e gestos.
Já no primeiro ano de vida, a criança típica se dá conta de de-
terminados estados mentais alheios, como a atenção. Quando a crian-
ça aponta para mostrar um objeto e espera que o parceiro se volte
para o objeto que está mostrando, ela está atribuindo à outra pessoa a
capacidade de prestar atenção e está usando um artifício para focalizar
a atenção do outro. O apontar protodeclarativo (apontar apenas para
chamar a atenção) seria um precursor da Teoria da Mente.
Em torno do terceiro ano de vida, as crianças já demonstram,
através de ações, saber que as pessoas possuem representações men-
tais da realidade, representações que, embora invisíveis, são reais e
podem fazer com que reajam de maneiras diferentes a determina-
das condições.
Michael Rutter (apud FRITH, 2009), em artigo de 1983, fala
de um jovem paciente autista que: “Se queixava de não poder ler os
pensamentos dos demais, lhe parecia que as outras pessoas possuíam
um sentido especial que lhes permitia ler e prever suas respostas e
sentimentos. Ele sabia disso porque elas conseguiam não se molestar
entre si, enquanto ele sempre dava patadas, sem dar-se conta do que
estava fazendo ou dizendo para que a outra pessoa ficasse enfadada
e desgostosa”.
A maioria das crianças com autismo apresenta sério retardo
na aquisição da Teoria da Mente. Como vimos nos capítulos sobre os

132
primeiros anos de vida de crianças com autismo, a ausência da aten-
ção compartilhada, do apontar protodeclarativo e da brincadeira de
faz de conta é grande preditora do desenvolvimento do autismo.
Uta Frith compara a dificuldade de mentalização das pessoas
autistas com o que acontece com os daltônicos, que se dão conta de
que os outros veem um mundo cheio de cores que eles não podem
perceber. Por isso, muitos chamam essa dificuldade dos autistas de
cegueira da mente. Tão estranho como é para a maioria de nós con-
ceber a cegueira da mente, é para os autistas imaginar o que é ler os
pensamentos alheios.
Hoje, inúmeras pesquisas comprovam a hipótese da Teoria
da Mente. Os primeiros trabalhos sobre o assunto foram realizados
por Frith, Baron-Cohen e Alan Leslie (FRITH, 2009), na década
de 1980. Partiram do pressuposto de que os bebês nascem com
mecanismos capazes de acumular importantes informações sobre
o mundo, possuem expectativas inatas e desde o início reagem de
forma diferente a pessoas e objetos. Alan Leslie denominou esses
mecanismos inatos de motores do desenvolvimento. A Teoria da
Mente se desenvolveria a partir desses mecanismos e, em sua au-
sência, os bebês apresentariam autismo.
A autora achava que esses mesmos mecanismos eram respon-
sáveis pela compreensão do ato de fingir e, por isso, crianças com
autismo também não conseguiam brincar de faz de conta.
O cérebro da criança típica seria capaz de criar cópias da reali-
dade, representações das pessoas e das coisas. Essas representações leva-
riam o mundo para dentro da mente da criança.
No segundo ano de vida, ocorreria um mecanismo fantástico,
um salto no desenvolvimento, as crianças criariam representações do
que os outros estão querendo lhe comunicar. Através de um mecanis-
mo também inato, a mente, agora, iria desacoplar essas representações
da realidade. Elas não seriam mais apenas cópias da realidade, mas
unidades independentes que poderiam se unir aos desejos, aos pensa-
mentos, às lembranças.

133
Através do mecanismo de desacoplamento, podemos brin-
car com as representações das coisas na imaginação e compreender
quando os outros estão fazendo a mesma coisa. Uma criança, no
segundo ano de vida, acha engraçado quando alguém faz de conta
que um pente é um celular e compreende que se pode fingir que um
boneco é uma pessoa.
No autismo, uma falha no mecanismo de desacoplamento im-
pediria a pessoa de compreender os conceitos sobre os estados mentais.

Testes para Medir a Teoria da Mente

O Teste da Falsa Crença


Um teste bastante conhecido para avaliar a Teoria da Mente em
crianças pequenas é o de Sally e Anne, utilizado em crianças autistas
por Simon Baron-Cohen e colaboradores. Com o teste, tentaram de-
monstrar que crianças com autismo não conseguem usar o contexto
social para ajudá-las na compreensão do comportamento das outras
pessoas. Segundo esses autores, um dos aspectos mais importantes da
Teoria da Mente é a compreensão do papel das crenças na determina-
ção dos comportamentos e mais, o entendimento de que as pessoas
podem ter crenças falsas e agir com base nelas.
O teste foi aplicado a três grupos distintos de crianças: normais,
com síndrome de Down e autistas. A inclusão de crianças com síndrome
de Down foi importante, para afastar a possibilidade de a criança não
conseguir realizar o teste apenas por conta da deficiência intelectual.
Conta-se uma história para criança com a ajuda de alguns ob-
jetos: duas bonecas, um cesto, uma caixa e uma bolinha de gude. Sally
(uma das bonecas) esconde sua bolinha de gude no cesto e sai para
passear. Enquanto ela está fora, Anne (a outra boneca) passa a bolinha
do cesto para a caixa. E então Sally volta. Pergunta-se, agora, à criança:
“Onde Sally irá procurar sua bolinha?”.
A maioria das crianças normais e com síndrome de Down, em
torno de 4 anos de idade, é capaz de dizer que Sally vai procurar a

134
bolinha onde ela deixou, ou seja, no cesto. As crianças com autismo,
da mesma idade, irão responder, em 80% dos casos, que Sally vai pro-
curar a bolinha na caixa, pois vão levar em consideração o que elas
sabem, e elas viram a bolinha ser colocada na caixa. São incapazes de
levar em consideração a perspectiva de Sally, de que ela não viu a boli-
nha ser trocada de lugar. Quando a criança acerta a resposta é porque
ela se coloca no lugar de Sally, portanto, é capaz de identificar a falsa
crença da boneca, a de que a bolinha estava no cesto.

Aos Dezoito Meses

Reconhecimento do Eu
Ponha uma marca na testa da criança e coloque-a na frente do
espelho. As crianças menores de 18 meses tocarão na marca do espe-
lho. Os mais velhos tocarão na própria testa. Elas já se reconhecem na
imagem do espelho.

O Reconhecimento do Outro
Ofereça dois tipos de lanche à criança, por exemplo, uma maçã
e um biscoito e diga-lhe para escolher o que ela quer. Depois que a
criança escolher, deixe que ela observe você provando os dois lanches.
Demonstre prazer pelo que ela recusou e repulsa pelo que ela prefe-
riu. Em seguida, peça que ela escolha um lanche para você. Antes dos
dezoito meses, elas costumam oferecer o que elas gostam. As maiores
oferecem o lanche pelo qual você demonstrou preferência. Elas já sa-
bem que o seu gosto pode ser diferente do dela.
Baron-Cohen fez uma experiência na qual tentou provar que
as pessoas autistas são comportamentalistas. O comportamentalismo
é um ramo da ciência psicológica que tenta explicar o comportamento
sem recorrer aos estados mentais, sejam eles conscientes ou incons-
cientes. Para isso ele utilizou os desenhos abaixo.
Participaram da experiência os mesmos sujeitos que haviam
participado do experimento de Sally e Anne: crianças normais, com

135
autismo e com síndrome de Down. Eram colocadas duas tarefas para
os participantes. Primeiro, as crianças tinham de ordenar os desenhos
para formar uma história. Depois, teriam de contar a história com as
próprias palavras.
Se o déficit da Teoria da Mente fosse a dificuldade básica do
autismo, as crianças com autismo teriam dificuldade apenas com as
histórias de caráter mentalista e não com as histórias mecânicas e con-
dutuais. O resultado foi que as crianças normais ou com síndrome de
Down superaram os autistas nas histórias mentalistas, mas tiveram
um desempenho inferior nas histórias mecânicas e um desempenho
semelhante nas tarefas comportamentais. Baron-Cohen concluiu que
as crianças autistas eram melhores físicos que os outros, podiam ser
comportamentalistas como os demais, mas não eram bons psicólogos.

História mecânica

História comportamental

História mentalista

Adaptado de Baron-Cohen, Leslie e Frith (apud FRITH, 2009).

136
Histórias da Teresa

Nossa filha Teresa, aos 4 anos de idade, nos deixava acompa-


nhar de perto seu desenvolvimento no que diz respeito à capacidade
de mentalização e já era capaz de atribuir emoções e crenças às outras
pessoas. Nessa idade, também já brincava de faz de conta.

Emoção
Aos 3 anos de idade, as crianças são capazes de entender que
determinados eventos podem causar emoções nas outras pessoas.
Meu sobrinho Bento, por exemplo, tem muito medo de cachorro.
Temos em casa muitos cachorros e Teresa os adora, principalmente
Luna, a pastora-alemã que vive dentro de casa. Quando Tetê vê a Luna
perto do Bento e o percebe mais retraído, diz: “É melhor tirar a Luna
de perto, o Bento está com medo”, embora ela saiba que a cadela é
muito dócil e não é preciso ter medo dela.

Crença
Por volta de 4 anos, a criança é capaz de “ler a mente” do outro
também em situações que envolvem uma falsa crença, ou seja, crian-
ças de 4 anos podem prever desejos e crenças. Teresa sabe que o papai
e a mamãe adoram ser “escolhidos” por ela. Então, quando o papai lhe
pergunta: “Você é a minha menina?”, ela diz: “Não, eu sou da mamãe”.
Papai faz cara de frustrado. Ela sorri e o consola: “Eu sou da mamãe e
do papai, dos dois”.

Faz de Conta
Por volta de 5 anos, as crianças normais são capazes brincar de
faz de conta. Teresa “lê” seu primeiro livro. Olha o elefante e diz: “Ele
está muito triste”. Eu pergunto por quê. “Ele está sozinho, a mãe dele
foi trabalhar”.
Às vezes usa a escova de cabelo como microfone para cantar.
Mas sabe o que é uma escova e um microfone também.

137
Eu e não Eu
A Teoria da Mente permite que, gradativamente, a criança
possa se aperceber das diferenças entre o eu e o não eu, a consta-
tar que as pessoas podem pensar de uma forma muito diferente
delas mesmas, a perceber as coisas da perspectiva dos outros e a
entender que os objetivos das outras pessoas podem ser muito di-
ferentes dos dela. A Teoria da Mente vai, aos poucos, capacitando
as crianças para cuidar de si mesmas, defender os próprios interes-
ses, negociar com irmãos e coleguinhas, brincar, implicar, mentir,
cooperar e competir.
É muito importante diferenciar Teoria da Mente de empatia.
Empatia é sentir com o outro. Ser contagiado pelo estado emocional
do outro. O desenvolvimento da empatia é muito mais precoce do que
o da Teoria da Mente. Já encontramos empatia antes que surjam, in-
clusive, os precursores da Teoria da Mente, como a atenção compar-
tilhada. Bebês com dez semanas de vida já reagem adequadamente a
expressões faciais e estados emocionais. Pessoas com autismo podem
desenvolver empatia, pelo menos, no que diz respeito a emoções pri-
márias (tristeza, felicidade, raiva e medo), embora tenham dificuldade
com a Teoria da Mente. Os psicopatas, no entanto, possuem Teoria da
Mente, mas não desenvolvem empatia.

Teoria do Déficit nas Funções Executivas

Um bom desempenho cognitivo depende do equilíbrio entre


dois componentes básicos: flexibilidade e automatismo.
O automatismo vai garantir ao indivíduo a capacidade de dar
respostas rápidas. A flexibilidade vai garantir-lhe a espontaneidade,
ou seja, a capacidade de dar respostas novas a problemas antigos e
adequadas a problemas novos. É claro que ser flexível exige um pouco
mais de tempo e atenção.
As funções executivas são os processos de controle e coorde-
nação do sistema cognitivo e abrangem a capacidade de deslocar e

138
manter a atenção em informações necessárias para completar uma
tarefa, fazer planos, inibir as reações impulsivas, organizar as ações e
monitorar-lhes os resultados.
As funções executivas são constituídas de três componentes
principais: a capacidade de inibição, a memória de trabalho e a habili-
dade de gerar novas estratégias.
Elas são fundamentais em duas situações: quando não pode-
mos deixar que um processo ou uma ação sejam guiados automatica-
mente e quando estamos diante de um novo desafio, ou seja, quando
não temos nenhuma resposta pronta para o desafio em questão.
As funções executivas têm um papel importante na aquisição
e no emprego das habilidades sociais. Para entendermos os processos
mentais alheios, temos de deslocar a nossa atenção dos nossos próprios
processos mentais. Isso exige teoria da mente e controle da atenção.

Autismo e Funções Executivas

Antônio Damásio, na década de 1970, lançou a proposição de


que os distúrbios do autismo são consequentes a disfunções no lobo
frontal e estruturas subcorticais (os gânglios de base e o tálamo).
Anomalias nos lobos frontais de pessoas com autismo foram
confirmadas por exames histológicos e ressonância magnética. Vá-
rios estudos têm demonstrado déficits executivos em autistas. Sally
Ozonoff realizou estudo longitudinal e concluiu que os déficits exe-
cutivos são permanentes e tendem a piorar com a idade. Das três ha-
bilidades que compõem as funções executivas a mais danificada no
autismo é a capacidade de dar respostas novas.
Pessoas com déficits nas funções executivas costumam ter difi-
culdade para passar de uma tarefa a outra, assim como para planejar,
executar e concluir uma tarefa de maneira metódica. Pode ser difícil,
ainda, para essas pessoas ter de tomar iniciativas. Elas costumam ser
facilmente influenciadas por estímulos externos e possuem grande
tendência para agir impulsivamente.

139
Os autistas, mesmo os que possuem elevada capacidade inte-
lectual, apresentam déficits executivos.
Especula-se que as distintas partes do sistema executivo
acham-se situadas em diferentes regiões dos lobos frontais.
Ações repetitivas seriam consequências naturais de estímulos
externos e para elas não seria necessário um controle executivo. Cons-
tituem resultados das atividades de módulos inteligentes que se ati-
vam automaticamente ante um estímulo. Os pensamentos repetitivos
e preocupações também são ativados por um estímulo acidental e não
podem parar sem um controle executivo superior. A perseveração,
bastante comum em pessoas com autismo, poderia ser consequência
da falta de um supervisor, com poder de anular a atividade dos módu-
los responsáveis por respostas automáticas.

Teoria da Fraca Coerência Central

Para Uta Frith, nem todas as características do autismo podem


ser explicadas através da Teoria da Mente. A atenção aos detalhes, a
insistência em rotinas, as obsessões e até algumas habilidades espe-
ciais poderiam ser explicadas por uma coerência central fraca.
A coerência central seria a tendência, inata do sistema cogni-
tivo, de juntar as diversas informações disponíveis num “todo” coe-
rente, significativo. Esse sentido varia de acordo com o contexto. A
debilidade nessa tendência seria uma das principais características
do autismo.
Uta Frith e Beate Hermeli fizeram uma experiência com que-
bra-cabeças com crianças autistas e não autistas e ficaram impressio-
nadas: as crianças autistas se saíam melhor que as outras em quebra-
-cabeças que não formavam nenhum desenho.
Crianças autistas também se saem melhor que crianças típicas
em testes para encontrar figuras ocultas (SHAH, 1993). A capacidade
de observar detalhes, sem ser influenciado pelo contexto, pode em al-
guns casos ser uma vantagem.

140
Em Busca da Unidade

Em Autismo, hacia una explicación del enigma (2009), Uta Fri-


th conclui o livro buscando construir uma nova teoria capaz de unir
as três acima descritas.
Ela afirma que as três teorias se referem a déficits em processos
cognitivos de nível superior, responsáveis por tornar as pessoas mais
conscientes de si mesmas.
Uma coerência central fraca e déficits das funções executivas
parecem ser resultantes de um controle cortical fraco em contra-
posição a um forte processamento de estímulos e informações. Em
pessoas não autistas, a Teoria da Mente parece ser responsável, entre
outras coisas, por uma maior autoconsciência. Um déficit na capaci-
dade de mentalização poderia ser o responsável pela fraca capacidade
de controle cortical? E, em caso afirmativo, qual seria o mecanismo
responsável por essa falta de controle?
A autora recorre à metáfora do homúnculo. Todos sabemos
que existem muitos eus que parecem trabalhar de forma relativamente
independente: o eu do aqui e agora, o eu corporal etc. Ela especula:
e se existir um EU superior no qual resida toda a responsabilidade e
autoconsciência?
Afirma Frith que qualquer boa teoria que surja e que seja ca-
paz de explicar o autismo deve ser compatível com o que hoje co-
nhecemos sobre o cérebro. O autismo, como se sabe hoje, é produto
de uma série de anomalias no desenvolvimento cerebral; definitiva-
mente, não é resultado de um desajuste emocional nem uma mani-
festação precoce de um transtorno mental de adultos. As anoma-
lias que causam o autismo são sutis, circunscritas a apenas algumas
funções cerebrais e, às vezes, somente a alguns aspectos delas. Esse
elemento sutil é o que uma boa teoria do autismo tem de explicar.
O autismo possui grande variedade de apresentações. Mas qual
é o denominador comum que explica o autismo dos pontos de vista
biológico, cognitivo e comportamental?

141
As três teorias psicológicas do autismo tentam esclarecer, cada
uma, diferentes aspectos do autismo: a Teoria da Mente explica os défi-
cits sociais e comunicativos, quando afirma que autistas carecem da ca-
pacidade de atribuir de maneira automática e intuitiva estados mentais
às demais pessoas. A Teoria da Coerência Central Fraca explica o jeito
de ser do autista, inclusive as virtudes da mente autista, através do modo
de processamento centrado em detalhes. Por fim, a Teoria do Déficits
das Funções Executivas pressupõe a falta, nas pessoas autistas, de um
controle de ordem superior da ação e da atenção, o que justificaria as
condutas estereotipadas e os interesses restritos dessas pessoas autistas.
Precisamos das três teorias juntas para explicar o fenômeno do autismo.
O “eu consciente de si mesmo” seria, para Uta Frith, o elo que
falta para unir as três teorias. Ele seria superior a todos os outros
eus. Teria uma visão panorâmica de todo o funcionamento cerebral.
Seria consciente de si mesmo, porque o cérebro possui a capacidade
de mentalização, ou seja, uma Teoria da Mente. Também teria acesso
a todas as informações de forma integrada, porque o cérebro possui
um mecanismo de coerência central, e exerceria e delegaria controles,
porque o cérebro tem funções executivas.
Esse último eu estaria acima de todos os outros eus. A visão
aérea permitiria que ele se interconectasse com os outros eus cons-
cientes de si mesmo, das outras pessoas. Segundo Frith, as pessoas
com autismo não possuiriam esse último eu consciente de si mesmo.
Mas, para ela, isso não é necessariamente uma tragédia, uma
vez que, mesmo que “o eu consciente de si mesmo” esteja dormindo
nos autistas, os outros eus executivos podem ser muito produtivos
e autodisciplinados e aprender com o tempo a controlar impulsos,
funcionando bem nos autistas. No entanto, mesmo nos casos de bom
funcionamento, pode haver problemas, pois as informações recebi-
das nem sempre estão suficientemente integradas a outros signifi-
cados. Os eus executivos não possuem boa perspectiva geral nem
conversam com os eus conscientes de si mesmo das outras pessoas,
para tomar decisões.

142
Algumas vezes, como em uma organização sem líder, colegia-
da, os eus podem entrar em conflito, e do desequilíbrio de forças, um
sobressai, na forma de um talento especial que ninguém controla.
A autora assegura que os autistas podem desenvolver conheci-
mentos de si mesmos através de mecanismos compensatórios. Porém,
mesmo nesses casos vai haver um certo egocentrismo, pela falta de
contato com os outros “eus conscientes de si mesmos”.
Uta Frith cita autobiografias de autistas riquíssimas em deta-
lhes sobre os próprios sentimentos e sensações, todavia omissas quan-
to ao impacto das experiências na vida das outras pessoas.
É muito interessante a ideia do “eu consciente de si mesmo”. Con-
sidero, no entanto, muito importante no trabalho de Uta Frith sua visão
positiva do autismo, seu respeito a essa diferença radical do cérebro e da
mente humana. Ela afirma que se é verdade que o autismo é uma disfun-
ção neurológica, também é verdade que ela pode ser compensada.
Para Uta Frith, o autismo está mais próximo da surdez e da
cegueira do que da timidez. Essa forma de encarar o problema é usada
por ela como um apelo aos pais e educadores de autistas. Imagine edu-
car uma criança cega sem conhecer-lhe a cegueira, reclamando dela
cada vez que levasse um tombo. Seguramente, seria uma tragédia e
um enorme desrespeito.
A partir do conhecimento dos déficits específicos das pessoas
autistas, podemos formular programas para ajudá-las a viver me-
lhor. A dificuldade de mentalização pode ser compensada através
de informações claras e de complexidades adequadas ao nível de
compreensão de cada pessoa atendida. É possível adquirir um bom
conhecimento racional sobre os outros, capaz de compensar a difi-
culdade de mentalização. Muitas pessoas com Asperger encontram,
sozinhas, esse caminho.
É desejável que busquemos ajudar as pessoas autistas a com-
pensar seus déficits executivos através de ambientes estruturados e
previsíveis. Agendas, lembretes, esquemas visuais, rotinas represen-
tam instrumentos fundamentais para isso.

143
Talvez, no entanto, não seja possível nem desejável tentar com-
pensar o déficit da coerência central. O mundo de particularidades
dos autistas, o processamento especializado em detalhes parecem ser
o que lhes garante um jeito diferente de ser no mundo, do qual surgem
muitos talentos e habilidades especiais.

144
12
O AUTISMO COMO EXTREMO
DO CÉREBRO MASCULINO

A personalidade autista é uma variante extrema da in-


teligência masculina. Mesmo dentro das variações nor-
mais, encontramos diferenças na inteligência que são
típicas dos sexos. [...] No indivíduo autista, o padrão
masculino é exagerado ao extremo.
Hans Asperger

O texto acima foi escrito por Asperger em 1944, na Alemanha.


Depois, caiu no esquecimento. Asperger só viria a ser traduzido por
10
Uta Frith em 1991.
Que o autismo é um problema caracteristicamente masculino
todos sabem. Os meninos têm quatro vezes mais probabilidade do que
as meninas de desenvolver autismo e nove vezes mais de desenvolver
a síndrome de Asperger.
Várias hipóteses já foram levantadas para explicar essa distri-
buição das características autísticas entre os sexos.
O cientista Simon Baron-Cohen resgata a teoria do autismo
como resultado de um cérebro extremamente masculino, cinquenta
anos depois de Asperger. Para ele, diferenças essenciais entre as men-
tes masculina e feminina explicariam o autismo.
Em Diferença essencial (2004), Baron-Cohen afirma que o cé-
rebro feminino foi programado especialmente para a empatia, assim
como o cérebro masculino é especializado na capacidade de compre-
ender e construir sistemas.
As mulheres, afirma Baron-Cohen, são em média bem mais em-
páticas que os homens. A empatia feminina funciona, inclusive, como
uma verdadeira placenta social para os bebês humanos, pois além de

145
permitir à mãe “adivinhar” as necessidades do filho, facilita, pelo con-
tágio emocional, o desenvolvimento das habilidades sociais da criança.
Já o cérebro masculino é especialista em sistematizar, ou seja,
em analisar, explorar e construir sistemas.
Um bom sistematizador descobre, intuitivamente, como as coi-
sas funcionam, e delas extrai as regras que governam o comportamento
dos sistemas. Descobrir as relações de causa e efeito permite que se pos-
sa fazer uma previsão do comportamento da maioria dos seres inanima-
dos. Essa capacidade torna-se, no entanto, praticamente inútil quando
tentamos utilizá-la para entender as relações humanas: o comportamen-
to e as emoções das pessoas não costumam obedecer a regras fixas.
Embora o meio natural de compreender e prever a natureza
dos eventos e dos objetos seja a sistematização, o meio natural de com-
preender as pessoas é a empatia. A sistematização requer distancia-
mento para monitorar informações e determinar fatores que as façam
variar. Já a empatia requer aproximação e envolvimento. Talvez por
isso, as capacidades empática e de sistematização possuam bases neu-
rais distintas.
Simon Baron-Cohen afirma existirem três tipos básicos de cérebro:

1. E > S – cérebro feminino típico – pessoas com esse tipo de


cérebro possuem maior capacidade empática que de siste-
matização.
2. S > E – cérebro masculino típico – indivíduos nos quais a
sistematização é mais forte do que a empatia.
3. S = E – indivíduos com cérebro balanceado, para os quais
empatia e sistematização teriam o mesmo peso.

Segundo Baron-Cohen, existiriam dois tipos de cérebro me-


nos comuns:

1. S >> E – indivíduos com cérebro extremamente masculino,


nos quais a capacidade de sistematização é superdesenvol-

146
vida e a capacidade empática, reduzida. Esses indivíduos
podem ser muito talentosos como sistematizadores, mas
estariam cegos para a mentalização. Teriam autismo ou sín-
drome de Asperger.
2. E >> S – indivíduos com cérebro extremamente feminino.
Seriam pessoas com grande capacidade empática, mas ce-
gos para sistemas.

O Cérebro Masculino

As pessoas com síndrome de Asperger são o protótipo do


cérebro masculino, afirma Baron-Cohen.
O cérebro masculino extremo nada sabe da Teoria da Mente,
uma vez que seus circuitos para a empatia estariam tolhidos.

Empatia
Ser empático é sintonizar espontaneamente os sentimentos do
outro, inverter papel com ele. Não é apenas reconhecer os sentimentos
primários de raiva, dor ou medo, mas sentir a atmosfera emocional que
envolve a pessoa com quem estamos nos relacionando. Pessoas mais em-
páticas costumam ser mais observadoras com relação à linguagem dos
olhos e da voz humana, que costumam funcionar como verdadeiras ja-
nelas da mente. A empatia nos impede de ferir sentimentos, uma vez que
permite que abandonemos, pelo menos momentaneamente, nossas pró-
prias certezas e ideias para sintonizar o mundo de quem está conosco.
Pessoas mais empáticas conseguem conversar melhor com as
outras, pois a empatia lhes permite entender pontos de vista diferentes.
Quando não conseguimos ouvir verdadeiramente o outro, não conse-
guimos conversar. Existem pessoas que, embora loquazes, não dialogam.
Quando em algum encontro uma só pessoa fala a maioria do tempo,
podem estar acontecendo muitas coisas, tais como conferência, desaba-
fo, doutrinação, mas certamente não está havendo um diálogo. Numa
conversa de verdade, você está atento ao tempo e ao desejo do outro.

147
A empatia é a base do companheirismo e da compaixão. Ofere-
ce uma estrutura para o desenvolvimento da ética nas relações. Embo-
ra possamos seguir códigos morais, adotando a lógica, esta não conse-
gue ser suficiente nas relações interpessoais. A lógica e a inteligência,
sem compaixão, podem levar a atitudes muito autoritárias.
A empatia tem dois elementos principais: o primeiro compo-
nente é cognitivo, que corresponde à compreensão dos sentimentos
do outro e à capacidade de perceber sua perspectiva. É o que costuma-
mos chamar de Teoria da Mente.
O segundo é o componente afetivo, que compreende a capaci-
dade de dar uma resposta apropriada ao estado emocional do outro.
A compaixão é esse tipo de empatia: responde-se emocionalmente à
aflição do outro, enquanto se sente o desejo de diminuir a dor alheia.

Testes de Capacidade Empática e de Sistematização

Estudioso do autismo e da síndrome de Asperger, Baron-Cohen


desenvolveu uma série de testes para medir os quocientes de empatia
(QE), de sistematização (QS) e de autismo (QA) nos indivíduos. Criou
ainda testes sociais como o da Leitura da Mente através dos olhos, um
Questionário de Amizade e Relacionamento (QAR) e vem utilizando
o Teste de Figuras Encaixadas (TFE), que mede a capacidade dos indi-
víduos de atenção aos detalhes.
Ultimamente, o cientista tem se dedicado, com especial aten-
ção, a aplicar esses testes a um grande número de homens e mulheres
com e sem autismo, para embasar sua teoria.
As mulheres apresentam, sistematicamente, segundo Baron-Co-
hen, um quociente de empatia bem mais alto que os homens; as pessoas
com Asperger ou com autismo de alto funcionamento marcam, como
era de se esperar, menos pontos ainda que os homens sem autismo.
Nos testes de Leitura da Mente através dos olhos, os três grupos
apresentam resultados proporcionalmente semelhantes aos do quo-
ciente de empatia: as mulheres alcançam escores superiores aos dos

148
homens, que, por sua vez, superam o desempenho obtido por pessoas
com autismo e Asperger.
No dia a dia, as mulheres costumam olhar mais nos olhos das
pessoas dos que os homens, e as pessoas com autismo, na maioria ho-
mens, costumam olhar ainda menos. As meninas aprendem a falar
antes dos meninos e desenvolvem mais rapidamente o vocabulário,
e as crianças autistas costumam apresentar um importante atraso na
aquisição da linguagem. As mulheres superam os homens em relação
à quantidade de conversas informais e no pragmatismo da linguagem
e este é, precisamente, o aspecto mais comprometido na fala das pes-
soas com autismo.
Em testes-padrão para medir a Teoria da Mente, quando se
deve imaginar os pensamentos e sentimentos das outras pessoas, as
mulheres também se saem bem melhor que os homens. Todos sabe-
mos que os autistas têm desempenho precário nessa área. Por fim, as
mulheres apresentam pontuação superior aos homens nos questio-
nários que avaliam estilos empáticos de relacionamento, tais como
o Questionário de Amizade e Relacionamento, e os adultos com As-
perger, como seria de esperar, se saem ainda pior nesses testes que os
homens sem autismo.

Capacidade de Sistematização

Existem muito mais homens que mulheres nos departamen-


tos de matemática das universidades. Esta é a matéria preferida pela
maioria das crianças e jovens com autismo nas escolas. Os meninos
costumam gostar mais de blocos de construção e de veículos do que
as meninas. Esta é também a preferência das crianças com autismo e
síndrome de Asperger, independentemente do sexo. Adultos homens
com ou sem autismo gostam, geralmente, mais de mecânica e infor-
mática do que as mulheres.
Nos testes de sistematização desenvolvidos por Baron-Cohen,
os homens marcam mais pontos que as mulheres, mas os autistas ob-

149
têm uma pontuação maior ainda. O mesmo ocorre com o Teste das
Figuras Encaixadas, de atenção aos detalhes, e com o quociente de
autismo (QA).
Baron-Cohen chama a atenção para detalhes somáticos, como o
comprimento dos dedos. Homens costumam ter o dedo anular maior
que o indicador e os autistas costumam apresentar essa diferença de for-
ma ainda mais acentuada. Essa característica seria explicada pelo nível
de testosterona a que o feto estaria exposto durante a gestação. Os autis-
tas também costumam entrar mais cedo na puberdade, o que poderia
também ser explicado por um aumento no nível de testosterona. Final-
mente, entre os familiares de autistas é muito comum a existência de
pessoas com talentos especiais para matemática, física e engenharia em
relação às ciências humanas, o que poderia sugerir que o estilo cogniti-
vo extremamente masculino seja, em grande parte, herdado.

Um Pouco mais sobre as Diferenças entre os Sexos

Crianças de dezenove meses já demonstram preferência por


colegas do mesmo sexo. Há quem pense que isso é social, mas em
todas as culturas garotinhos empurram mais, têm menos empatia, são
mais autocentrados. As meninas usam mais habilidade verbal e me-
nos a força física. Elas aprendem mais cedo a negociar, manipular e
convencer. Em brincadeiras de carrinhos, os meninos atropelam mais,
enquanto as meninas, quando conseguem pegar nos carrinhos, diri-
gem com mais cuidado.
Os meninos gostam de brincar de lutar, de experimentar a re-
sistência do outro. Isso é divertido quando os dois lados da disputa
estão interessados na brincadeira. Mas, muitas vezes, as lutas saem
da brincadeira e passam a ser de verdade, o que acontece muito mais
entre os meninos a partir dos 2 anos de idade. Meninos têm mais difi-
culdade de compartilhar brinquedos. Um estudo demonstra 50 vezes
mais competição entre os meninos, enquanto as meninas demonstram
20 vezes mais capacidade de esperar.

150
Aos vinte meses, as meninas já respondem com mais empa-
tia ao sentimento alheio, manifestando maior reciprocidade social e
emocional. Aos 3 anos as meninas já estão à frente no que diz respeito
à capacidade de mentalização. Aos 7, elas já reconhecem com mais
facilidade o que é adequado ou inadequado a determinados lugares e
situações sociais.
Mulheres tendem a escolher os parceiros com base nas quali-
dades pessoais e os homens, nas características físicas. A maioria das
pessoas com personalidade antissocial é do sexo masculino. Em cri-
mes envolvendo assassinato, a participação de homens é de 30 a 40
vezes maior do que a de mulheres (DALY; WILSON, 1988)
Entre macacos, os machos reconhecem rapidamente seu lugar
no sistema. Quando dois machos encontram algo valioso, alimento,
abrigo ou uma companheira, rapidamente sabem se devem pegar ou
deixar para o outro. Dois primatas do sexo masculino, quando encon-
tram um objeto de seu desejo, se encaram. Às vezes, só isso é suficiente
para determinar com quem fica o objeto. Outras vezes, tem início o
combate. Atitudes ameaçadoras, olhadas de cima a baixo até que um
dos dois desista. Entre homens essa hierarquia de dominação também
é sempre mais clara, desde os primeiros anos escolares.
Na infância e adolescência, as táticas para subir na escala so-
cial costumam ser diferentes entre os sexos: os meninos ridicularizam
e atormentam fisicamente a vítima na frente dos outros. As garotas
dominantes simplesmente ignoram os comentários e sugestões das
outras a quem querem imprimir status de inferioridade ou espalham
boatos maliciosos.

Um Pouco mais sobre o Cérebro extremamente Masculino

As pessoas com cérebro extremamente masculino não gostam


de jogar conversa fora. Mesmo no ambiente de trabalho, só se diri-
gem aos outros para obter informações ou alguma coisa concreta. Elas
respondem a perguntas com o estritamente necessário e não acham

151
a menor graça em bater papo socialmente. Quando discutem, essas
pessoas gostam de impor seu ponto de vista. Ligam-se intensamente
a detalhes e, para decifrar sistemas, podem ficar completamente cegas
às mentes alheias. Geralmente, têm autismo ou síndrome de Asperger.
Desde o início o autismo intrigou os cientistas, por parecer ser
um tipo especial de inteligência.
Sempre se soube que 25% das pessoas com autismo tinham in-
teligência normal ou superior. Mas a partir da década de 1990, quan-
do muitas crianças passaram a receber o diagnóstico de síndrome de
Asperger, começou a ficar claro que essa proporção era muito maior.
As crianças com Asperger, no entanto, por conta de dificulda-
des de interação social, costumam apresentar muitos problemas na
idade escolar. Boa parte se sente infeliz na escola e percebe que difi-
cilmente consegue fazer amigos. Muitos deles são vítimas de bullying.
Têm grande dificuldade de ler a mente e de se colocar no lugar do
outro. Costumam, por isso, magoar frequentemente as pessoas, mas
não costumam gostar de fazer isso. Pelo contrário, quando desco-
brem que magoaram alguém, ficam chocados, sem entender como
isso aconteceu.
O cérebro extremamente masculino, no entanto, não se com-
põe apenas de dificuldades. Não raro, encontram-se no autismo ta-
lentos pouco comuns. Muitos se sentem atraídos por computadores.
Computadores são sistemas fechados, por isso mesmo previsíveis e
controláveis. Ao contrário dos sentimentos e ideias, os sistemas fe-
chados são finitos, exatos, previsíveis. Pessoas com Asperger podem
ser excepcionalmente talentosas na música, na matemática e na física.
O grande problema, para uma pessoa com um cérebro extre-
mamente masculino, serão os relacionamentos humanos, com suas
infinitas possibilidades. Adultos com Asperger esforçam-se para na-
vegar nesses mares confusos. Constroem tabelas mentais com re-
gras de relacionamento social. Mas nenhum livro de etiqueta social
pode dar conta dos detalhes sutis da vida cotidiana. E o que acontece
espontaneamente, para a maioria, acaba custando grandes esforços

152
para essas pessoas. Isso os deixa exaustos. Pessoas com Asperger,
quando chegam a casa, não gostam de receber ninguém. Depois de
um dia de esforço social, precisam de solidão e previsibilidade para
recarregar as baterias.
Autistas adoram dizer a verdade e gostariam muito que todos
fossem assim. Para eles, é praticamente incompreensível como a ver-
dade e a sinceridade podem magoar e fazer sofrer.

153
13
NEUROCIÊNCIA SOCIAL

A neurociência tem lançado novas luzes na compreensão do


cérebro e da mente. Estudos recentes de neuroimagem têm ajudado,
por exemplo, a entender a natureza e o poder dos relacionamentos.
Neste capítulo, pretendemos fazer um resumo das últimas
descobertas da neurociência social para que possamos entender as
bases neurobiológicas da empatia e da inteligência social. Achamos
importante incluir o assunto neste livro por ser a inteligência social
uma capacidade comprometida em todos os indivíduos do espectro
do autismo.

O Cérebro Social

O cérebro humano possui estruturas e conexões que, em con-


junto, podem ser denominadas cérebro social. Essas estruturas e co-
nexões formam a base neural da capacidade que os seres humanos
possuem de transmitir e captar emoções e sentimentos. Especula-se,
inclusive, que foi o grande desenvolvimento do cérebro social na nos-
sa espécie que, tornando-a particularmente competente em criar laços
e organizações entre os membros, lhe possibilitou tomar para si o do-
mínio do planeta.

O Poder dos Relacionamentos

O próprio design do cérebro humano o torna sociável, preparan-


do-o para íntimas e intensas conexões com o cérebro de outras pessoas.
Quando duas pessoas estão interagindo, forma-se uma verdadeira pon-
te neural entre seus cérebros. É através dessa ponte que podemos influir

155
e ser influenciados por aqueles com quem nos relacionamos. O resulta-
do dessa interinfluência é um verdadeiro contágio emocional.
Quanto mais forte nossa ligação com outra pessoa, mais poten-
te a mútua influência. Nossas interações funcionam como verdadeiros
termostatos reguladores do cérebro. As trocas mais potentes ocorrem
com aqueles com os quais passamos a maior parte do tempo.
Os sentimentos resultantes das interações produzem os hor-
mônios que regulam todo o nosso corpo. Dessa forma, os relaciona-
mentos moldam não só a mente humana, mas o corpo, a biologia.
Relacionamentos e suas emoções podem, por exemplo, ativar e
desativar genes, promovendo saúde e bem-estar ou, ao contrário, pro-
duzindo tristeza e doenças. Na realidade, somos todos pequenos deuses,
criando pessoas e mundos, ao redor, à nossa imagem e semelhança.

Neurociência Social

Como tudo isso acontece? Quais os mecanismos neurais que


conferem tamanha importância aos relacionamentos humanos? Como
podemos nos defender ou imunizar dos maus contágios emocionais?
E o mais importante, você deve estar se perguntando, o que tudo isso
tem a ver com o autismo? Tentaremos responder a algumas dessas
perguntas neste capítulo.
Descobertas recentes foram fundamentais para a compreensão
que temos hoje sobre o poder dos relacionamentos:

- A célula fusiforme – tipo de neurônio que atua com extre-


ma velocidade, permitindo aos seres humanos a tomada de
decisões em milésimos de segundos.
- Os neurônios espelho – variedade diferente de células cere-
brais que nos permite sentir os movimentos que outras pes-
soas próximas estão prestes a fazer, preparando-nos, instan-
taneamente, para imitá-las.

156
Como dissemos anteriormente, nós, os humanos, nos dife-
renciamos das outras espécies, principalmente, em função do nos-
so cérebro social, que é a soma dos mecanismos neurais responsá-
veis pelos pensamentos e sentimentos a respeito das pessoas e dos
relacionamentos.
Um fato curioso é que todos os órgãos do ser humano têm suas
atividades reguladas com base em sinais internos do corpo. O cérebro
social, entretanto, é regulado por fatores externos ao organismo, quem
o regula, de fato, são os nossos relacionamentos. O cérebro social é mol-
dado pelas relações sociais. São nossas experiências que vão esculpindo
o cérebro social, definindo a forma, o número e o caminho das ligações
sinápticas. Isso ocorre devido à neuroplasticidade.

Estruturas e Mecanismos de Ação do Cérebro Social

A Amígdala

A amígdala é uma pequena estrutura do cérebro, em forma de


amêndoa, que se ativa em situações de medo ou perigo e provoca no
organismo as reações de luta, fuga ou inércia. Uma das reações princi-
pais ao medo é fazer com que fiquemos mais atentos à expressão facial
das pessoas a nosso redor.
Só recentemente foi revelada a função social da amígdala.
Hoje sabemos que, além da via principal, que envia informa-
ções emocionais através do córtex cerebral, existe uma outra, denomi-
nada via secundária.
A via secundária envia informações direto para a amígdala. É a
amígdala que extrai o significado emocional das mensagens não ver-
bais, tais como um olhar mal-humorado, uma mudança de postura ou
uma alteração no tom de voz em microssegundos, antes de tomarmos
consciência do que está acontecendo à nossa frente. Quando registra-
mos esses sentimentos através da amígdala, os circuitos cerebrais nos
preparam para a ação.

157
A via secundária é o mecanismo através do qual somos “con-
tagiados” pelas emoções dos outros. Ela atua sem que estejamos cons-
cientes, com uma velocidade impressionante.
A via principal é consciente. A via secundária não. A nossa
vida social é governada pelo intercâmbio dessas duas vias.

Wi-Fi Neural

Para que se dê o contágio emocional entre duas pessoas que estão


se relacionando, ocorre um fenômeno notável: forma-se um elo funcional
entre os cérebros dessas duas pessoas. As informações, então, “atraves-
sam” a barreira da pele e do crânio. Em termos de sistemas, durante essa
ligação, os cérebros se acoplam, formando temporariamente um circui-
to intercerebral que permite a sincronia de sentimentos, pensamentos e
ações. Enviamos e recebemos estados internos — ternura, tensão, exci-
tação e rancor. Todo esse trabalho é feito pelos neurônios espelho (NE).

Neurônios Espelho e Aprendizagem

Os neurônios espelho foram descobertos acidentalmente, em


1992, numa pesquisa sobre a área sensório-motora em macacos. Logo
depois o mesmo tipo de neurônio foi encontrado em humanos.
Os neurônios espelho são essenciais ao desenvolvimento in-
fantil. Sempre se soube que as crianças aprendiam muitas coisas por
imitação. Os neurônios espelho, agora, nos deixam claro alguns destes
mecanismos: só de observar as pessoas, as crianças desenvolvem, em
seus próprios cérebros, todo um repertório de emoções, comporta-
mentos e regras sobre como o mundo funciona.
Segundo Daniel Ster (apud GOLEMAN, 2006), psiquiatra
americano da Universidade de Genebra que faz pesquisas sobre a inte-
ração entre mães e bebês, amantes e psicoterapeutas e pacientes: “Não
podemos mais ver nossas mentes como isoladas, independentes, sepa-
radas. Devemos vê-las como permeáveis, interagindo continuamente,
ligadas por um elo invisível”.

158
No nível inconsciente, estamos em constante diálogo com
quem interagimos. Nossos sentimentos e movimentos estão sintoni-
zados com os dessas pessoas.

Algumas Informações Importantes sobre o Cérebro Social

- “O riso é a menor distância entre dois cérebros” (GOLE-


MAN, 2006). É comprovado que o cérebro humano prefere
faces sorridentes, reconhecendo-as mais rapidamente do
que a todas as outras expressões.
- É a atenção que promove a conexão emocional. Sem aten-
ção, a empatia não tem vez. Quando uma pessoa percebe o
sofrimento de outra, é grande a probabilidade de ajudá-la.
- Quanto maior a atenção que dedicamos a uma pessoa,
maior nossa percepção sobre seus estados internos. Quan-
do estamos aflitos ou absortos em nós mesmos, reduzimos
drasticamente nossa capacidade empática.
- Quando voltamos a atenção para o próximo, nosso mundo
mental se expande, nossos problemas vão para a periferia
da mente, parecem menores. Aumentamos, dessa forma, a
capacidade de conexão com o outro e, consequentemente,
nossa compaixão.

Instinto de Compaixão

Os neurônios espelho nos conferem capacidade empática,


mecanismo fundamental que faz com que doa em nós a dor do ou-
tro. Empatia vem do alemão Einfuhlung e pode ser traduzida lite-
ralmente como “entrar na pele do outro”. Os neurocientistas dizem
que quanto mais ativos forem os sistemas de neurônios espelho de
uma pessoa, maior é sua capacidade empática. “A mente humana
não suporta ver o sofrimento alheio” (Mencius, sábio chinês, sécu-
lo III a.C. [GOLEMAN, 2006]).

159
Hoje sabemos que nosso cérebro foi predefinido para a com-
paixão. Ver ou sentir nos prepara para agir. Os neurônios espelho tor-
nam interpessoal a ligação entre sentir e agir. O contágio emocional
faz mais do que disseminar sentimentos, ele prepara automaticamente
o cérebro para tomar a decisão mais adequada ao sentimento do outro.
Infelizmente, a revolução tecnológica, que tantas conquistas
trouxe para a humanidade, tem tornado, por outro lado, as relações
humanas cada dia mais virtuais. Para que ocorra contágio emocio-
nal, empatia, compaixão, precisamos de contatos reais. Nosso cére-
bro social é particularmente sensível a pistas socialmente relevantes,
mas elas são fornecidas principalmente por faces e vozes humanas, no
contato cara a cara, olho a olho.

As Janelas da Alma

A sabedoria popular sempre nos recomendou olhar nos de


uma pessoa para saber, por exemplo, se ela fala a verdade.
De fato, é preciso observar as sutilezas faciais e encontrar dis-
crepâncias entre o discurso e a emoção, para constatar que uma pes-
soa está mentindo. Hoje sabemos por que: os músculos da face são
controlados pela via secundária. A opção de mentir, pela via prin-
cipal. A via principal oculta. A secundária revela. Os olhos são as
janelas da alma.
Cientificamente falando, os olhos contêm terminações nervo-
sas que levam diretamente a uma estrutura cerebral crucial para a per-
cepção das emoções, a área orbitofrontal do córtex pré-frontal.
Quando duas pessoas se olham nos olhos durante uma conver-
sa, interligam suas regiões orbitofrontais e constatam o estado emo-
cional uma da outra.

160
Localização Topográfica Estratégica

O córtex orbitofrontral está localizado atrás e acima dos olhos


(orbito) e representa a junção da parte mais elevada dos centros emocio-
nais com a parte mais baixa do cérebro pensante. O córtex orbitofrontal
conecta, neurônio a neurônio, três regiões importantes do cérebro: o
córtex, cérebro pensante; as amígdalas, gatilho de muitas emoções; o
tronco cerebral, as “zonas reptilianas” referentes à reação automática.
Essa estreita conexão propicia uma ligação rápida e podero-
sa que coordena instantaneamente pensamento, sentimento e ação.
A sutileza e harmonia nas interações sociais dependem portanto, em
grande parte, do córtex orbitofrontal.

A Velocidade da Via Secundária

A velocidade da via secundária depende de um conjunto espe-


cial de neurônios: as células fusiformes. Elas são enormes, em formato
de fuso, sendo o corpo cerca de quatro vezes maior que o de outras
11
células do cérebro. Suas dimensões asseguram a transmissão em altís-
sima velocidade.
As células fusiformes são ricas em serotonina, dopamina e va-
sopressina, neurotransmissores que desempenham importante papel
na empatia, no amor, no humor e no prazer.
Alguns neuroanatomistas desconfiam que as células fusifor-
mes são cruciais para tornar a nossa espécie única:

• Os seres humanos possuem cerca de mil vezes mais células


fusiformes do que nossos primos primatas mais próximos.
• Nenhum outro mamífero possui células fusiformes.
• As células fusiformes parecem responsáveis pelo fato de
algumas pessoas serem socialmente mais conscientes do
que outras.
• As células fusiformes se concentram em uma área do córtex
orbitofrontal que se ativa quando reagimos emocionalmente

161
às outras pessoas. É essa região que é ativada quando olha-
mos o retrato de alguém que amamos, conhecemos alguém
atraente ou nos sentimos injustiçados.
• As células fusiformes são o segredo da rapidez na intuição
social: antes de conhecermos o que está na nossa frente, já
sentimos se gostamos ou não daquilo.

A Importância dos Relacionamentos

Marco Lacoboni, um dos descobridores dos neurônios espe-


lho, e Matthew Lieberman, um dos fundadores da neurociência social,
concluíram após estudos que a atividade-padrão do cérebro é matutar
sobre os relacionamentos.
Criar um novo arranjo para nossa vida social é a atividade fa-
vorita do cérebro durante seu tempo de paralisação. Por isso fazemos
julgamentos sobre as pessoas cerca de um décimo de segundo mais
rápido do que sobre objetos.
Num primeiro encontro com alguém, essas áreas nervosas fa-
zem o julgamento, contra ou a favor, em milésimos de segundo.

As Escolhas da Via Principal

Temos a capacidade de tomar atitudes estratégicas para conter


o contágio nos momentos necessários. Quando a conexão instantânea
da via secundária alerta, a via principal pode nos proteger.
A via secundária funciona como um sexto sentido, instigando-
-nos, por exemplo, a sentir algo em relação a uma pessoa que acabamos
de conhecer. A via primária se abre, à medida que monitoramos nossa
mudança de humor consequente a esse encontro e ficamos, intencional-
mente, atentos à pessoa, para entender o que aconteceu. É a atenção aos
nossos sentimentos que pode fazer o cérebro pensante entrar em ação.
À medida que milésimos de segundos se passam, a via princi-
pal ativa sua vasta coleção de possibilidades de respostas, buscando a
mais adequada.

162
Neurociência Social e Autismo

Agora que entendemos, um pouco, os segredos da empatia e o


poder dos relacionamentos, podemos compreender por que a maioria
das crianças aprende tanto só por estar viva: por causa dos neurônios
espelho. Só de observar as ações das outras pessoas, elas internalizam
todo um repertório de condutas, códigos, sentimentos e modos de
ação. Será que existe algum problema no sistema de neurônios espe-
lho das crianças com autismo?
Se olhos são as janelas da alma e se é preciso que duas pessoas
se olhem nos olhos para que aconteça o circuito intercerebral capaz
fazê-las ter acesso aos estados mentais e emocionais um do outro, po-
demos entender um pouco mais o prejuízo para o desenvolvimento da
inteligência social de crianças que, desde os primeiros momentos de
vida, não olham nos olhos das pessoas.
No momento em que constatamos a importância da amígdala
para nos avisar e preparar adequadamente para agir diante dos pe-
rigos da vida, podemos nos perguntar se existe alguma evidência de
alteração dessa estrutura no cérebro dos autistas.
Enfim, você deve estar se perguntando o que está alterado no
cérebro social das pessoas com autismo, para que elas apresentem tan-
tas dificuldades de relacionamento social?

Cérebro Social e Autismo

Nas últimas décadas, vários estudos têm comprovado anorma-


lidades neurobiológicas em pacientes com autismo, estando várias de-
las concentradas nas estruturas e no funcionamento do cérebro social.
Algumas das mais importantes, sem dúvida, são as que com-
provam anormalidades no sistema de neurônio espelho. Essas pesqui-
sas tiveram início nos anos 1990, quando pesquisadores da Universi-
dade da Califórnia, em San Diego, passaram a estudar uma possível
conexão entre os neurônios espelho e o autismo.

163
Os neurônios espelho (NE) haviam sido descobertos, no início
da década, por Giacomo Rizzolatti e seus colegas da Universidade de
Parma, na Itália. Como dissemos anteriormente, eles são um tipo es-
pecial de neurônios que refletem dentro de nós o mundo exterior. Isso
acontece porque os neurônios espelho nos possibilitam sentir ime-
diatamente uma ação desempenhada por uma pessoa à nossa frente,
através da ativação de neurônios motores.
Meltzoff e Moore (1977), da Universidade de Washington,
constatou que, quando mostramos a língua a um recém-nascido, ele
faz o mesmo. Como ele não vê a própria língua, é incapaz de usar o fe-
edback visual para aprender a fazer isso. A criança também aprende a
falar imitando os adultos e para isso seu cérebro tem de transformar os
sinais auditivos nos centros da audição, localizados no lobo temporal,
em conteúdos verbais fornecidos pelo córtex motor. É provável que os
neurônios espelho estejam envolvidos nisso.
Os neurônios espelho permitem, ainda, saber o que realmente
os outros estão achando e sentindo a nosso respeito. Eles são respon-
sáveis por grande parte de nossa inteligência social. Muitos estudio-
sos acreditam que a maioria das dificuldades encontradas nas pessoas
com autismo poderia ser explicada por uma deficiência no sistema de
neurônios espelho.
As primeiras pesquisas com neurônios espelho em crianças
com autismo foram realizadas analisando uma família de ondas cere-
brais denominadas ondas MU, através de eletroencefalogramas. Essas
ondas são, normalmente, bloqueadas todas as vezes que o indivíduo
faz movimentos musculares intencionais, como abrir e fechar as mãos.
Foi observado, em indivíduos normais, que tal bloqueio também ocor-
re quando o indivíduo observa outra pessoa fazer o mesmo movimen-
to. Essa seria uma evidência funcional da ação dos neurônios espelho.
Em pesquisa realizada com crianças com autismo, de alto grau
de funcionalidade, ficou constatado que o bloqueio das ondas MU so-
mente ocorria quando as crianças realizavam elas próprias os movi-
mentos, não ocorrendo quando estavam no papel de observadoras.

164
Ou seja, havia um problema claro no sistema de neurônios espelho
das crianças com autismo.
Um outro experimento muito parecido, realizado pouco de-
pois, envolveu dez crianças com autismo e dez crianças normais da
mesma idade e sexo. No grupo controle (crianças normais) foi verifi-
cado que havia a supressão das ondas MU quando os indivíduos mo-
viam as mãos ou assistiam a um vídeo de uma mão se movendo. Nas
crianças autistas só houve a supressão das ondas MU quando movi-
mentavam as próprias mãos. Mais uma vez ficou comprovada a difi-
culdade das crianças com autismo de sentir as ações de outras pessoas
como se fossem suas, quer estivessem assistindo às ações pessoalmente
ou através de vídeos.
Outros pesquisadores encontraram os mesmos resultados uti-
lizando diferentes técnicas de monitoramento:

1. Magnetoencefalograma, técnica que mede campos magné-


ticos produzidos por correntes elétricas no cérebro — Ritta
Hari, da Universidade de Helsinque, na Finlândia, desco-
briu deficiência nos NE de crianças autistas.
2. Ressonância magnética funcional — Mirella Dapretto, da
Universidade da Califórnia, em Los Angeles, registrou a re-
dução das atividades dos neurônios espelho no córtex pré-
-frontal de autistas.
3. Estimulação magnética transcraniana, técnica que induz
correntes elétricas no córtex motor a produzir movimentos
musculares — Hugo Théoret, da Universidade de Montreal,
no Canadá, constatou que os movimentos foram menos in-
tensos nos indivíduos autistas.

Hoje não resta dúvida, existe uma disfunção no sistema de


neurônios espelho das pessoas com autismo.

165
Estudos de Neuroimagem

Estudos de neuroimagem têm revelado importantes alterações


antômicas e funcionais no cérebro social de pessoas com autismo:

– Anormalidades no lobo temporal de pacientes autistas fo-


ram encontradas. Essas alterações estariam localizadas nos
sulcos temporais superiores. O sulco temporal superior é
hoje reconhecido como um componente essencial do cére-
bro social, estando envolvido no processamento dos movi-
mentos dos olhos, da boca, das mãos e na percepção social,
assim como na imitação e na percepção da voz humana. Es-
sas habilidades, fundamentais para a comunicação interpes-
soal, estão muito prejudicadas em crianças autistas.
– O comportamento autista tem sido associado a patologias
clínicas do lobo temporal, tais como epilepsia e encefalite
causada por herpes simples. Em crianças com esclerose tu-
berosa, existe uma forte associação entre os túberos do lobo
temporal detectados por ressonância magnética e a síndro-
me autística.
– Estudos recentes mostram que o autismo está associado a
um padrão anormal de ativação auditiva do córtex temporal
esquerdo. A região temporal esquerda está implicada na or-
ganização cerebral da linguagem.
– A percepção das faces também está alterada em indivíduos
com autismo. Existe uma área no giro fusiforme (GF) que é
mais fortemente ativada durante a percepção facial que du-
rante a percepção de qualquer outro tipo de estímulo visual.
Essa área é conhecida como área facial fusiforme (AFF). Vá-
rios estudos detectaram uma hipoativação da área facial do
giro fusiforme em indivíduos autistas.
– A percepção da voz humana também está comprometida no
autismo. Resultados de estudos com ressonância magnética

166
funcional apontam a ausência da área seletiva de voz (ASV)
no autismo. Um estudo recente com RMF mostrou que a área
seletiva de voz em adultos normais se localiza bilateralmente
ao longo da margem superior do sulco temporal superior.

Teoria do Mapa Topográfico Emocional

Uma das teorias recentes que também envolvem estruturas do


cérebro social é a Teoria do Mapa Topográfico Emocional. Esse mapa
seria, na realidade, um banco de dados emocionais que permite que
comparemos as situações que estamos vivenciando com as emoções
vividas no passado. Com base nesses dados e comparações, reagimos
de forma diferente às situações que nos são apresentadas.
Um grupo de pesquisadores da Universidade da Califórnia de-
senvolveu a Salience Landscape Theory – Teoria do Mapa Topográfico
Emocional. O grupo está explorando a possibilidade de crianças au-
tistas terem esse mapa distorcido em razão de conexões deformadas
entre as áreas corticais que processam dados sensoriais e a amígdala
ou entre o sistema límbico e os lobos frontais que regulam o compor-
tamento resultante.
As conexões anormais fariam com que qualquer objeto ou epi-
sódio trivial desencadeasse na mente da pessoa autista uma resposta
inadequada, extremada, uma tempestade autonômica, uma crise.
A hipótese explicaria por que crianças autistas tendem a evi-
tar contato visual ou qualquer sensação nova. Essas situações seriam
potencialmente capazes de deflagrar um turbilhão de sensações e sen-
timentos incontroláveis.
O grupo monitorou 37 crianças autistas com sensores de bio-
feedback e mediu o nível de condutibilidade da pele causado pela su-
dorese. Comparadas com crianças normais, as crianças autistas apre-
sentaram índices mais elevados de estimulação autonômica. Ficavam
agitadas com coisas triviais e não demonstravam medo nem davam
importância aos estímulos que provocavam as crianças normais.

167
As epilepsias do lobo temporal que atingem muitas crianças
com autismo poderiam explicar, pelo menos em parte, as distorções
do mapa topográfico emocional em pessoas com autismo. Especula-
-se, inclusive, que muitos ataques epilépticos podem passar desper-
cebidos em crianças com autismo. Saraivadas aleatórias de impulsos
nervosos teriam o poder de embaralhar as conexões entre o córtex
visual e a amígdala.
As comprovações de que existem alterações no cérebro social
dos autistas podem nos ajudar a compreender muitas das dificuldades
apresentadas por essas pessoas. A descoberta, por exemplo, de que
existe uma percepção anormal de voz em pessoas com autismo, as-
sim como os estudos que demonstram a não ativação da área facial
do giro fusiforme durante a percepção facial podem explicar por que
os indivíduos autistas possuem dificuldade de se guiar por estímulos
socialmente significativos.
A consequência mais importante, no entanto, da neurociên-
cia social aplicada ao autismo é a perspectiva de novos e mais efica-
zes enfoques terapêuticos, capazes de fazer com que pessoas autistas
percebam melhor estímulos sociais.

168
14
A CASA DA ESPERANÇA

Um Pouco de História

Quando resolvi, em 1993, iniciar o trabalho com crianças autistas,


a força que me movia era enorme. O desafio inicial era tirar meus filhos
Giordano e Pablo do limbo social em que se encontravam. Era necessário
devolver-lhes direitos de crianças que lhes tinham sido roubados, garan-
tir-lhes um tratamento decente, uma escola, um caminho, uma esperança.
Logo descobri, o desafio era bem maior. Havia dezenas de
crianças em situação idêntica. Famílias inteiras destroçadas, sem ter
a quem recorrer em busca de diagnóstico, orientação, escola e trata-
mento para os filhos.
Minhas primeiras parceiras nessa caminhada foram oito mu-
lheres, mães de crianças com autismo. Olhando para trás, era um
desafio gigantesco. Montamos uma equipe multiprofissional para
construir e socializar o conhecimento e conseguimos uma pequena
parceria com o poder público. Estudamos, descobrimos caminhos,
prospectamos tratamentos. Aos poucos os primeiros resultados posi-
tivos foram surgindo. A esperança ganhava fôlego em nossos corações
à medida que as crianças paravam de se agredir e obtinham pequenas
interações com outras pessoas, o que ia amenizando a dramática con-
vivência de antes da existência da Casa da Esperança.
Quando o empreendimento completou dez anos, já havíamos
construído uma bela sede própria, treinado professores da rede pú-
blica, inserido estudantes com autismo na rede regular de ensino. Tí-
nhamos conseguido colocar jovens e adultos no mundo do trabalho
e assistido ao primeiro dos nossos jovens com autismo concluir um
curso universitário.

169
Novos desafios, porém, nos cutucavam. De todos os lugares do
Brasil e de muitos outros países chegavam novas crianças. Os trata-
mentos que haviam se mostrado eficazes não se aplicavam a todos os
casos, o que exigiu de nós novas pesquisas. E do mundo, além dos mu-
ros da Casa da Esperança, chegava o clamor de crianças com autismo
criadas em cárceres privados, relatos de tratamentos desumanos e de-
salentadoras notícias de recursos subitamente subtraídos pelo poder
público, o que comprometia seriamente a continuidade do trabalho.
Nada disso abateu nosso ânimo, porque era preciso não apenas
continuar, mas aprofundar e ampliar o trabalho, de modo que mais e mais
pessoas com autismo e suas famílias tivessem uma vida melhor. Foi assim
que conseguimos o credenciamento do SUS, o que nos deu suporte finan-
ceiro para garantir a manutenção e ampliação de nosso empreendimento.
Foi assim que, tendo em vista o aprofundamento do conhecimento sobre
autismo, despertamos o interesse e o respeito de grandes profissionais e
organizações pela Casa da Esperança, como Ami Klin, então coordena-
dor do Programa de Autismo da Universidade de Yale, e promovemos
congressos, jornadas, além de publicarmos livros e trabalhos científicos.
Hoje, além da sede de Fortaleza, que atende 400 pessoas com
autismo em regime intensivo, de quatro ou oito horas por dia, e realiza
mais de mil procedimentos ambulatoriais diariamente, estamos com
uma nova sede em Ananindeua, no Pará, que atende cerca de cem
crianças através de credenciamento pelo Sistema Único de Saúde.
O nosso desafio inicial transformou-se, nestes dezoito anos,
numa enorme rede de parceiros, ideias, cérebros, corações, vidas hu-
manas colocando todo o seu potencial a serviço das pessoas com au-
tismo. Para nossa alegria, a genética e a neurociência social aplicada
apontam perspectivas promissoras nessa luta.
Já não estamos sozinhos. Rompemos o autismo social. Parti-
cipamos de um grande e vigoroso movimento mundial de luta pela
saúde, educação e dignidade de pessoas autistas.
Este é o trabalho de minha vida, mas não é trabalho para uma
vida apenas, mas para muitas vidas, bem mais importantes e nobres

170
que a minha. Vidas que se consagram à tarefa de construir, a cada dia,
caminhos transitáveis e seguros entre pessoas autistas e não autistas.

Estrutura e Modelo de Atuação

A sede da Casa da Esperança de Fortaleza fica situada num


bairro de fácil acesso, muito arborizado e tranquilo. Construída numa
área de dez mil metros quadrados, é cercada de lindos e bem cuidados
jardins. É realmente um lugar muito bonito. Conseguimos construir
essa sede graças a duas importantes parcerias, com a Prefeitura Muni-
cipal de Fortaleza, que nos cedeu o terreno, e com o Banco Nacional
de Desenvolvimento Social (BNDES), que financiou na época os re-
cursos para despesas com a construção.
Ao todo são 200 profissionais entre médicos, psicólogos, pe-
dagogos, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas, as-
sistentes sociais, enfermeiros, educadores físicos, músicos, instrutores,
pessoal administrativo e de apoio. Todo esse pessoal está envolvido na
execução das múltiplas atividades que compõem os principais progra-
mas da organização, quais sejam: atenção à saúde, à educação especiali-
zada, à família, à produção e difusão de conhecimentos sobre autismo e
à garantia e defesa de direitos das pessoas com autismo e seus familiares.

Núcleo de Atenção à Saúde

O Núcleo de Atenção à Saúde (NAS) da Casa da Esperança é


credenciado pelo Sistema Único de Saúde para realizar procedimen-
tos de média e alta complexidade, de acordo com a Portaria/GM nº.
1.635 de setembro de 2002, do Ministério da Saúde, com o objetivo
de garantir o acompanhamento de pacientes com transtorno mental e
autismo através de estimulação neurossensorial.
Estimulação neurossensorial é o conjunto de atividades indivi-
duais de estimulação sensorial e psicomotora realizadas por equipe multi-
profissional, visando à reeducação das funções cognitivas e sensoriais. Isso

171
inclui avaliação, estimulação e orientação relacionadas ao desenvolvimento.
Graças ao credenciamento do SUS, a grande maioria dos procedimentos
realizados pela organização pode ser feita de forma pública e gratuita.
O NAS recebe pacientes de todo o país, em busca de diagnóstico e
tratamento. Nele, são realizados procedimentos de avaliação e diagnóstico,
acompanhamento intensivo por equipe multiprofissional e acompanha-
mento ambulatorial especializado para aplicação de testes para psicodiag-
nóstico, terapia individual e em grupo, atendimento a alterações motoras.
O acompanhamento intensivo por equipe multiprofissional espe-
cializada é o principal diferencial do serviço oferecido pela Casa da Es-
perança. Esse serviço é prestado através de três setores especializados e
destinados a pessoas com necessidades muito específicas: circuito de es-
timulação neurossensorial, oficinas terapêuticas e vivências terapêuticas.

Circuito de Estimulação Neurossensorial

Destinado ao acompanhamento de crianças com transtorno do


espectro do autismo em suas mais diversas manifestações fenotípicas,
é subdivido em várias salas de atividades especializadas, a saber:

- Salas de intervenção precoce – para crianças de um a 5 anos


de idade que recebem atendimento intensivo de quatro ho-
ras por dia, por equipe multiprofissional, com ênfase no de-
senvolvimento das competências comunicacionais e regula-
ção emocional, através de sessões individuais e em grupo de
fonoaudiologia (duas horas por dia) e terapia de integração
sensorial e cognitivo-comportamental com terapeutas ocu-
pacionais e psicólogos. Todas as crianças assistidas nesse
serviço são acompanhadas ainda pela equipe médica e so-
cial da organização.
- Salas de estimulação cognitiva – para crianças da pré-escola
inseridas na rede regular de ensino que necessitam de refor-
ço escolar e atendimento terapêutico especializado.

172
- Salas de desenvolvimento adaptativo – para crianças com
transtornos do espectro do autismo associados a proble-
mas comportamentais e/ou dificuldades graves no desen-
volvimento adaptativo. São salas de passagem, que objeti-
vam a aquisição de habilidades adapatativas com vistas à
inclusão nos demais serviços da organização. As crianças
aqui incluídas recebem atendimento de toda a equipe mul-
tiprofissional com ênfase em integração sensorial e terapia
cognitivo-comportamental.
- Salas de estimulação neuropsicomotora – para crianças em
idade pré-escolar que possuem deficiência motora impor-
tante associada aos transtornos do espectro do autismo. A
exemplo das outras salas, nessas as crianças também recebem
assistência multiprofissional, mas a ênfase, aqui, é dada à as-
sistência fisioterápica e terapia ocupacional. Algumas dessas
crianças apresentam transtornos degenerativos ou síndrome
de Rett e o objetivo para além da reabilitação é a manutenção
da qualidade de vida e o retardo na progressão dos sintomas
degenerativos: perda de movimentos práxicos etc.

Oficinas Terapêuticas

As oficinas terapêuticas da Casa da Esperança são destinadas a


jovens de diferentes graus de funcionalidade. Têm por objetivo fami-
liarizá-los com o mundo do trabalho e, sempre que possível, inseri-los
numa ocupação produtiva e remunerada. Atualmente a instituição
mantém em funcionamento oficinas de informática, serigrafia, artes
plásticas, copa e lancheria, lavanderia e música.
Alguns jovens egressos dessas oficinas foram contratados
pela Casa da Esperança: a maior parte deles trabalha atualmen-
te na central de marcação de consultas, realizando o agendamen-
to e a confirmação dos procedimentos terapêuticos on-line. É um
trabalho que requer compromisso, pontualidade, precisão e res-

173
ponsabilidade, e nossos rapazes com autismo têm demonstrado a
competência necessária para sua realização. Temos também alguns
ex-alunos trabalhando na parte administrativa e, como auxiliares,
em salas de atendimento.
Graças às atividades das oficinas e à legislação que obriga as
empresas a destinar uma cota de suas vagas para trabalhadores com
deficiência, tem sido possível encontrar colocações para alguns dos
nossos jovens no mercado de trabalho.

Vivências Terapêuticas

Nesse programa estão inseridos jovens de ambos os sexos


com autismo que participam do programa de oficinas terapêuticas,
mas que, devido a complicações de seu quadro clínico, necessitam de
maior suporte para a realização de atividades de autocuidado e aten-
dimentos terapêuticos especializados. Ao todo são seis salas de vivên-
cias, onde as atividades são divididas de acordo com as necessidades
específicas de cada grupo de pacientes.

Núcleo de Educação Especializada

Nesse programa os serviços de educação são destinados a dois


públicos-alvo diferentes:

1. Acompanhamento educacional especializado – realizado através


do centro de atendimento educacional especializado da Casa da
Esperança, que atende crianças e jovens incluídos no ensino fun-
damental da rede regular de ensino, com os seguintes objetivos:

– Oferecer atendimento educacional especializado (AEE) para


estudantes com transtornos do espectro do autismo e outros
distúrbios do desenvolvimento infantil, matriculados na rede
regular de ensino, no contraturno do ensino regular.

174
– Promover a competência comunicacional, a regulação emo-
cional das pessoas autistas através de apoio transacional, de
modo a facilitar o processo de inclusão.
– Organizar e disponibilizar recursos terapêuticos multidiscipli-
nares, serviços pedagógicos e de acessibilidade com vistas à
redução e eliminação das barreiras à aprendizagem como for-
ma de viabilizar o acesso, a permanência e a progressão dos
alunos com TEA na rede regular de ensino.
– Garantir às crianças e aos jovens com autismo e outros dis-
túrbios do desenvolvimento infantil participação em ativida-
des de arte e cultura como forma de assegurar-lhes acesso aos
bens culturais de sua comunidade.
– Realizar atividades de conscientização dos profissionais da
educação, alunos e familiares sobre as características do autis-
mo e a importância da educação inclusiva no ensino regular
para pessoas autistas.

2. Educação de jovens e adultos com ações profissionalizantes –


programa destinado a jovens com autismo que não consegui-
ram acompanhar, na idade prevista, as atividades dos diversos
ciclos da escola regular. Programa oferecido em três níveis e ne-
les estão incluídos desde jovens que estão iniciando o processo
de alfabetização a outros que estão sendo preparados para a en-
trada na universidade.

A Importância da Inclusão

Yuri tinha três anos quando chegou à Casa da Esperança. Não


falava, tampouco usava gestos para se comunicar. Os brinquedos, para
ele, não pareciam ter o mesmo significado mágico que tinham para as
outras crianças. Era isolado, não sabia brincar com seus pares. Após a
avaliação, não restou dúvidas: Yuri era autista. O diagnóstico não foi o
fim, mas um caminho. Não serviu para rotulá-lo, condenando-o a uma

175
vida à margem das relações sociais. Crianças autistas, embora tenham
uma deficiência de base neurológica no que costumamos denominar
cérebro social, necessitam, como quaisquer crianças, de estímulos sen-
soriais, afetivos, cognitivos, emocionais e sociais para se desenvolver.
Essas experiências precoces ajudam os circuitos cerebrais a modelar-se
e remodelar-se devido à maior plasticidade e neurogênese do cérebro
infantil. A precocidade do diagnóstico e da intervenção é fundamen-
tal no caso do autismo. Para Yuri, foi recomendada imediata inclusão
na escola regular, e no contraturno, intensivo processo de estimulação
neurossensorial com ênfase em fonoaudiologia, integração sensorial e
terapia cognitivo-comportamental. Na escola municipal Edite Braga, ele
viveu as primeiras experiências educativas. Hoje, é aluno da professora
Teresa, na escola regular, e da professora Danielle, no atendimento edu-
cacional especializado da Casa da Esperança. Com 10 anos de idade,
nem de longe lembra o menino que chegou à Casa da Esperança: fala de
forma fluente, adora computadores, frequenta o quarto ano da mesma
escola. Tem tudo para ser um adulto independente e feliz. O exemplo
dele soma-se a outros casos bem-sucedidos que a Casa da Esperança
compartilha com escolas municipais, como a 15 de Outubro, a João
Paulo II e outras. Aposto na inclusão. Crianças autistas são sujeitos de
direitos e necessitam, para desenvolver-se, de famílias e de escolas aco-
lhedoras e inclusivas. Como têm necessidades muito específicas, preci-
sam receber no contraturno atendimentos terapêuticos especializados.
Só unindo esforços de educadores, terapeutas e familiares podemos
ajudá-las a superar seus limites e aprender com as próprias experiências
que vale a pena pertencer à humanidade. Assim como pais de autistas
geralmente nada sabem do problema até ter seus próprios filhos, a esco-
la municipal Edite Braga e outras que citei não estavam preparadas para
responder a todos os desafios de ensinar estudantes com autismo. Mas
estão de parabéns por serem pioneiras nesse processo, por terem dado
a mão a esses meninos e tê-los deixado ensinar a colegas e professores
como conviver e aprender com o autismo. Ao abrirem suas portas, mu-
daram, drasticamente, o destino dessas crianças.

176
15
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS

“Nasci em 31 de janeiro de 1979, uma quarta-feira. Sei que foi


uma quarta-feira porque a data é azul na minha mente e as quartas-fei-
ras são sempre azuis, como o nove ou o som de vozes altas discutindo.”
É dessa maneira que Daniel Tammet (2007), um gênio ma-
temático, fluente em onze idiomas, capaz de aprender o islandês em
apenas uma semana, inicia seu maravilhoso livro Nascido em um dia
azul, onde conta sua história com autismo e síndrome de Savant.
Daniel continua dessa forma o início de suas memórias:
“Gosto de minha data de nascimento pela maneira como consigo
visualizar a maioria dos números nela, como formas regulares e re-
dondas, semelhantes a seixos numa praia. Isto porque são números
primos: 31, 19, 197, 97, 79, 1979, são todos divisíveis somente por
si próprios e por 1. Consigo reconhecer todos os primos até 9.973
12
graças ao fato de serem semelhantes a seixos. É assim que o meu
cérebro funciona”.
Daniel bateu recordes mundiais usando suas habilidades em
cálculo e memorização. Sua trajetória foi mostrada no documentá-
rio britânico The boy with the incredible brain. Ele vem contribuindo
muito para a compreensão do autismo e da síndrome de Savant, tendo
sido estudado por cientistas como Simon Baron-Cohen, Ramanchan-
dran e Darold Treffer.
Cerca de 10% das pessoas com autismo apresentam, como Da-
niel, a fascinante e misteriosa condição conhecida como síndrome de
Savant. Pessoas savants costumam impressionar leigos e cientistas:
donos de memórias extraordinárias, podem decorar livros após uma
única leitura ou tocar, com perfeição, músicas que ouviram apenas
uma vez. Algumas dessas pessoas conseguem fazer cálculos fantásti-

177
cos ou desenhar vistas panorâmicas que observaram, por exemplo, em
uma única viagem de carro ou de avião.
Darold Treffer (apud Tammet, 2007), grande estudioso da síndro-
me de Savant, em seu livro Extraordinary people, descreve um homem
cego que possuía uma impressionante capacidade de calcular: “Quando
lhe perguntaram quantos grãos de milho haveria em qualquer uma das 64
caixas, com 1 na primeira, 2 na segunda, 4 na terceira, 8 na quarta e assim
por diante, ele deu as respostas para a décima quarta (8.192), para a déci-
ma oitava (131.072) e para a vigésima quarta (8.388.608) instantaneamen-
te, e deu a cifra para a quadragésima oitava caixa (140.737.488.355.328)
em seis segundos. Ele também disse corretamente o total das 64 caixas
(18.446.7444.073.709.551.616) em 45 segundos”.
A síndrome de Savant é uma condição humana bastante as-
sociada ao autismo, a maioria dos savants é autista. Pessoas com essa
síndrome apresentam sempre, paradoxalmente, algum talento extraordi-
nário associado a uma limitação intelectual importante. As habilidades
savants mais comuns são inevitavelmente acompanhadas de memória
prodigiosa e manifestam-se através de desempenhos excepcionais na
música, nas artes ou na matemática e mecânica.
Tenho conhecido pessoas extraordinárias com essa condição.
É o caso de Mateus, um belo menino com Asperger e Savant que, des-
de 4 anos de idade, reproduz qualquer desenho ou paisagem depois de
vê-la uma única vez. Assim como Mateus, temos na Casa da Esperan-
ça muitos artistas plásticos excepcionais.
Há um paciente, dono da voz mais bonita que já conheci,
que não consegue cantar em público, pois apresenta uma gravíssima
dificuldade para interagir socialmente. De sua voz maviosa, quase
não saem palavras, mas brotam canções capazes de emocionar e
impressionar o mais exigente dos ouvintes. Meu sonho é que algum
produtor o descubra e ele possa, através de um estúdio, encantar
plateias distantes.
Outra habilidade bastante comum entre os savants são os cál-
culos de calendários. Já tive muitos pacientes com essa habilidade.

178
Eles são capazes de dizer em que dia da semana vai cair qualquer data
passada ou futura.
Daniel Tammet descreve inclusive que foi essa habilidade que o
ajudou a entrar em sintonia imediata com Kim Peek, o autista que ser-
viu de inspiração para compor o personagem interpretado por Dustin
Hoffman em Rain man:
“Kim segurou meu braço e ficou bem perto de mim. ‘Diga a
data do seu nascimento’. Eu disse 31 de janeiro de 1979. ‘Você fará 65
anos num domingo’, respondeu Kim. Assenti com a cabeça e perguntei
sua data de nascimento: ‘11 de novembro de 1951’, respondeu. Dei um
amplo sorriso: ‘Você nasceu num domingo!’ O rosto de Kim se ilumi-
nou e senti que havíamos nos conectado”.
Mas nem sempre esse talento comum serve de ponte entre os
autistas savants. Já houve inclusive um caso engraçado, na Casa da Es-
perança, de um senhor de 50 anos com autismo que possuía essa ha-
bilidade. Quando lhe informei que o nosso artista Tiago de Sandes e
outros jovens que frequentavam a Casa possuíam o mesmo talento, ele
levantou-se, enraivecido, e disse que isso só podia ser um caso de plágio.
O senhor mora sozinho, no interior do estado do Ceará, e julgava-se até
aquele momento a única pessoa capaz de realizar tal prodígio.
Conheci um garoto, quando iniciava o atendimento a crianças
com autismo, de apenas 6 anos de idade, capaz de realizar, de cabeça,
qualquer cálculo que lhe fosse solicitado.
Uma característica intrigante dessas pessoas é que seus talen-
tos normalmente parecem brotar do nada, não recebendo nenhuma
influência do ambiente.
A síndrome de savant ocorre de quatro a seis vezes mais em
homens do que em mulheres. Entre as teorias que tentam explicar os
talentos savants, uma afirma que eles são consequência de uma ten-
tativa do hemisfério direito do cérebro de compensar alguma lesão do
hemisfério esquerdo. Estudos com neuroimagens reforçam essa teo-
ria. Uma pesquisa de Bruce Miller, da Universidade da Califórnia, por
exemplo, mostrou idosos que desenvolveram habilidades savants de-

179
pois de passarem a sofrer da doença de Alzheimer. Todas essas pessoas
apresentavam danos no lado esquerdo do cérebro.
Em pesquisa recente, Geschwid e Galaburda demonstraram
que, no desenvolvimento do feto humano, o hemisfério esquerdo do
cérebro completa sua formação depois do hemisfério direito. O he-
misfério esquerdo é, portanto, durante mais tempo, exposto a qual-
quer tipo de dano.
Uma outra hipótese é de que a própria testosterona em níveis
muito altos pode ser neurotóxica. Essa poderia ser uma explicação
para o fato de que o autismo, a síndrome de Savant, a dislexia e a hipe-
ratividade sejam bem mais frequentes em homens que em mulheres.
Seja qual for a explicação, o fato é que essas pessoas dão um
colorido especial à nossa espécie.
Conheço um grande artista chamado Jobson Maia. Autista,
durante toda a infância Jobson foi um garoto bastante comprome-
tido. Não falava e não parecia compreender quase nada do mundo
ao redor. Seu único interesse funcional era ouvir músicas do cantor
Roberto Carlos. Um belo dia enquanto esperava o pai no trabalho,
viu pela primeira vez na vida um piano e começou a tocá-lo. Aos 12
anos de idade, Jobson começou a cantar, imitando a voz de Roberto
Carlos. Depois começou a falar como se fosse o artista e, aos poucos,
descobriu sua própria voz e diferenciou-se do Rei. Jobson possui uma
memória extraordinária, sabe tudo sobre Roberto Carlos e imita-o
com perfeição. Hoje ganha a vida fazendo shows, imitando o ídolo,
mas sabe que é Jobson Maia, artista e autista, e foi nessa condição que
compôs sua mais bela canção, oferecida a Roberto, numa tentativa de
ajudá-lo a superar a perda da amada Maria Rita. Jobson, sem dúvida,
é uma pessoa extraordinária.
Um dos seres humanos mais fantásticos que já conheci chama-
-se Tiago de Sandes. Tiago é cantor, tecladista, escritor, desenhista e
apresenta ainda grande habilidade em cálculos matemáticos. Quando
conheci Tiago, todas essas habilidades eram tidas como persevera-
ções, parte do padrão repetitivo de atividades que caracteriza o au-

180
tismo. Características que precisavam, segundo alguns terapeutas, ser
superadas para que Tiago pudesse sair do mundo do autismo.
Nunca vou me esquecer de nosso primeiro encontro. Junto
com a mãe, Tiago veio até mim para ser avaliado e tão logo me foi
apresentado passou a falar longamente de seus conhecimentos sobre a
história da música popular brasileira. Ele não conseguia parar e eu, de
me impressionar com a quantidade de informações que aquele garo-
to havia acumulado. Quando iniciou a falar da bossa-nova, descrevia
conversas entre os compositores, biografias e sabia de cor a discografia
dos principais participantes do movimento.
Em determinado instante, sua mãe lhe disse:
— Meu filho, a Fátima não quer saber de bossa-nova, ela quer
conhecer você. Saia do seu “quarto”. Fale sobre você mesmo.
Tiago ficou um pouco nervoso, fez algumas estereotipias e dis-
se de forma enfática:
— Eu não posso. Eu não consigo.
Perguntei-lhe, então, por que não conseguia parar. Ele me disse:
— A minha memória, minha memória me persegue.
Perguntei como ele definia sua memória, ouvindo uma respos-
ta contundente, inesquecível:
— A minha memória é a minha alma.
Nada me restava fazer a não ser chegar cada vez mais perto de
sua alma. Nossa terapia foi ouvir Tiago. Ouvi-lo da maneira como ele
mais gosta de se expressar, cantando.
Toda a nossa organização passou a ser uma plateia para ele. No
início, ele ditava as regras:
— Sentem-se, senhores, eu quero cantar “Maluco beleza”, de
Raul Seixas.
Ouvíamos todos em silêncio. O que era bom é que, enquanto
cantava, Tiago também estava dando para as outras crianças e jovens
com autismo um curso prático de formação de plateia. Quando termi-
nava uma música, dizia:
— Agora, aplaudam. Mais alto. Mais forte.

181
E quando sua alma se sentia plena, reconhecida, ele se curvava,
agradecido.
No início, Tiago escolhia o repertório e a duração dos shows.
Ele tem pais maravilhosos que são, de fato, sua equipe de produção.
Em casa, eles providenciavam os mínimos detalhes para que nada fal-
tasse no momento das apresentações. Aos poucos, Tiago foi aceitando
interferências, parcerias, bandas no seu acompanhamento. Por fim,
já cantava a pedido e continuava os shows embevecido com nossos
gritos de “mais um, mais um”.
Hoje, Tiago de Sandes faz shows em todo o país, a maioria deles
para ajudar entidades ligadas ao autismo.
Para quem conhece Tiago hoje, pode soar ridículo que seus
talentos já possam ter sido vistos, um dia, como sintomas, persevera-
ções. Tiago não está mais conosco na Casa da Esperança, não precisa
mais de nós. Mas precisaremos, sempre, de seu exemplo, a nos ensinar
humildade e respeito às diferentes expressões da alma humana, parti-
cularmente dessa parcela da humanidade que, por falta de uma com-
preensão maior, ainda denominamos autista. Foi com ele que aprendi
que por trás de um padrão repetivivo de atividades está quase sempre,
à espreita, uma alma querendo ser revelada.

182
16
AUTISMO E FAMÍLIA

A relação entre família e autismo sempre foi motivo para refle-


xões e teses apaixonadas. Leo Kanner (1943), autor do primeiro texto
sobre autismo, de certa forma iniciou essa polêmica ao destacar um
denominador comum entre os pais de seus onze pequenos pacientes.
Ele observou entre os pais altos níveis de inteligência, elevado padrão
sociocultural, traços obsessivos e uma certa frieza nas relações entre
o casal e entre pais e filhos. Kanner deixou, em aberto, a possibilidade
de uma patologia parental na etiologia do autismo.
Nos tempos áureos da psicanálise, as mães eram tidas como
causadoras do autismo dos filhos. Bruno Bettelheim, um judeu norte-
-americano, foi o mais árduo defensor da teoria das mães geladeiras,
mães cuja frieza em relação aos próprios filhos os fazia refugiar-se no
mundo do autismo.
Em a Fortaleza vazia (1987), Bettelheim chega a comparar as
famílias de autistas a campos de concentração e propõe o afastamento
definitivo das crianças dessas famílias doentes em instituições, para
que pudessem ser resgatadas do autismo. Conta-se que em sua clínica
ele mantinha estátuas de mães e que as crianças com autismo eram
incentivadas a cuspir nelas e apedrejá-las, para livrarem-se das garras
do autismo.
Foram tempos difíceis para as famílias dos autistas. Feitos esses
relatos nos dias de hoje, é o tratamento dado aos pais, por Bettelheim
e seus seguidores, que se assemelha aos horrores do autoritarismo na-
zista, do qual o próprio Bettelheim foi vítima.
Com o estabelecimento das bases biológicas do autismo e a
busca de terapias mais adequadas às reais deficiências da pessoa com
autismo, o papel da família tem sido deslocado para outros lugares.

183
Temos assistido, inclusive, a uma verdadeira inversão de pa-
péis, quando algumas teorias bizarras colocam as crianças com au-
tismo como causadoras de inúmeros transtornos no seio familiar
e há, ainda hoje, quem defenda, por razões opostas, o mesmo que
Bettelheim: o isolamento das crianças com autismo em instituições,
para que as famílias possam levar vidas “normais”, longe das esquisi-
tices e idiossincrasias dos autistas.
Felizmente, o avanço na compreensão do autismo e dos di-
reitos humanos das pessoas com deficiência tem combatido essas
distorções. Gradativamente assistimos à adoção de medidas para
garantir aos autistas e suas famílias o apoio e a proteção a que têm
direito. Atualmente, é indefensável, para qualquer cientista de boa-
-fé, o afastamento compulsório e permanente da pessoa com autis-
mo da família.
A grande maioria das abordagens sérias para o tratamento do
autismo reconhece a importância da família como lugar de acolhi-
mento, proteção e modelagem social do comportamento, fundamen-
tais para fazer florescer, nas pessoas com autismo, relações humanas
dotadas de significado. Ainda não foi inventado nenhum lugar melhor
para aprender a amar e ser amado do que a família.
A maioria dos programas que, comprovadamente, ajudam no
desenvolvimento das crianças com autismo reconhece que são os pais
os maiores especialistas nos filhos e preconiza sua participação na exe-
cução das atividades de reabilitação da criança.

O Papel dos Pais

Mas longe dos extremos que culpam ou vitimizam as famílias,


quais são os verdadeiros desafios de ser pai ou mãe de uma criança
com autismo? Qual deve ser o papel dos pais na educação e no trata-
mento dessas crianças? De que tipo de assistência e suporte carecem
essas famílias? E os autistas adultos, será que estamos realmente, en-
quanto família e sociedade, preparados para acolhê-los?

184
Grande parte das atividades em muitos programas destinados a
crianças com autismo deve ser realizada em casa pelos pais, diariamen-
te. Existem programas que preveem muitas horas de trabalho diário,
o que exige, com frequência, que um dos pais, normalmente a mãe, se
afaste das atividades laborais para empenhar-se na recuperação do filho.
No século passado, a família passou por uma verdadeira revo-
lução. Com a inserção da mulher no mercado de trabalho e a luta pela
ampliação dos direitos femininos, a mulher passou a dividir, em igual-
dade com os homens, a responsabilidade pela manutenção da família.
Hoje, praticamente todas as famílias contam com a renda do trabalho
feminino no orçamento familiar, o que tem garantido uma melhoria
da renda familiar, do status feminino na família e uma maior indepen-
dência e autoestima das mulheres.
Todos sabemos, no entanto, que a divisão do trabalho domés-
tico ainda não ocorre com a mesma equidade e rapidez com que a
mulher tem galgado postos no mercado de trabalho. Ainda são as mu-
lheres as maiores responsáveis pelas tarefas do lar. Ainda são as mu-
lheres a maioria dos que frequentam reuniões de pais e mestres e as
responsáveis pelos cuidados com os filhos pequenos. Temos assistido
ainda a um grande crescimento do número de famílias chefiadas por
mulheres e compostas, apenas, por mulheres e crianças.
Diante dessa realidade, quais são os desafios enfrentados por
pais de crianças com deficiência e, mais especificamente, por pais e
mães de crianças com autismo?

Os Desafios Familiares

Nenhuma família se prepara para ter uma criança com defi-


ciência. Quando engravidamos, é comum termos fantasias e planos
para o filho que vamos trazer para o mundo. É comum que dese-
jemos filhos saudáveis, com as melhores chances possíveis de en-
frentar os desafios naturais da vida. Queremos que sejam felizes,
independentes, realizados.

185
No entanto, os filhos não vêm ao mundo para satisfazer nossas
expectativas e todos eles, de uma forma ou de outra, ao seguir o pró-
prio caminho, desafiam nossos sonhos.
Pais que colocam nos filhos todas as expectativas para a pró-
pria realização costumam ficar frustrados e, às vezes, tentam cobrar
dos filhos “a conta” do investimento que fizeram em sua formação.
O ideal seria que, quando engravidássemos, estivéssemos realmente
dispostos a dar uma chance à vida de prosseguir seu caminho, e nos
reservássemos o nobre papel de favorecer o acolhimento e o caminho
de mais um membro da família humana.
Talvez, se tentássemos nós mesmos realizar nossos sonhos
como indivíduos tivéssemos uma “conta” menor para apresentar a
nossos filhos. E pudéssemos ajudá-los, em seus caminhos, a superar
os próprios desafios.

O Impacto do Diagnóstico

Existem algumas deficiências que ficam evidentes já no mo-


mento do nascimento. Outras ainda durante a gestação. Os pais,
passado o susto e a sensação de perda e luto inicial, costumam ir se
apegando à criaturinha frágil que levam para casa e passam a desen-
volver modelos de cuidado e proteção desde o início, mais adequados
às necessidades da criança. Claro que os pais são tão diferentes en-
tre si quanto as crianças que nascem. Enquanto muitos se superam e
ampliam a cabeça e o coração para dar conta do desafio de criar uma
criança com deficiência, alguns sucumbem à frustração e enveredam
em difíceis caminhos de autopiedade e depressão sem conseguir aju-
dar, efetivamente, a criança com deficiência.
No caso do autismo, existem especificidades. Costumamos le-
var para casa um belo recém-nascido, saudável, nem de longe descon-
fiamos que àquela criança faltam dispositivos essenciais para compre-
ender os códigos da vida afetiva e social. E continuamos a embalar os
filhos autistas com nossos próprios desejos e sonhos.

186
Os bebês autistas costumam ser bebês-modelo e, quietinhos,
guardam para nós as surpresas e os desafios que só aos poucos reve-
lam. Vez por outra, nos assustamos quando não se aninham em nos-
sos braços, mas logo nos tranquilizamos com sua agilidade motora ou
independência. Como numa dança, as crianças autistas se alternam,
na nossa frente, com a tão sonhada criança normal e esse é, geral-
mente, um tempo confuso, em que à apreensão e ao medo se juntam
conselhos traquilizadores de médicos e familiares que nos acalmam
o coração: “Fique tranquila, mãe, a sua criança vai falar. Cada crian-
ça tem seu tempo. Você não deve comparar seu filho com ninguém.
Ele é único”. E é mesmo. Infelizmente, nessa espera, perdemos, quase
sempre, um tempo precioso e deixamos de investir precocemente em
nossos filhos.
Mas, mais cedo ou mais tarde, vem o diagnóstico. Esse mo-
mento costuma ser marcante, de dor e de desespero. Se a maioria
dos profissionais soubesse como nós pais precisamos de apoio nessa
hora, talvez tivesse outra postura no momento do diagnóstico. Po-
deriam, desde o início, eliciar em nós a força e a grandeza, que todos
possuímos e de que muitas vezes nem sequer suspeitamos. Pois é de
força e grandeza que vamos precisar para lutar por nossos filhos, por
seus direitos, por sua humanidade.

O Luto

Temos o direito de chorar pelos sonhos perdidos. Temos de


ter a chance de enterrar a criança normal, que não trouxemos para
o mundo. Todos nós, pais de crianças com autismo, precisamos, en-
quanto indivíduos e como casais, tratar das próprias feridas, nos des-
pedir dos nossos planos de normalidade antes de seguir em frente.
No momento do diagnóstico, geralmente saímos do consul-
tório com uma série de recomendações sobre como cuidar do nosso
filho. Quase ninguém lembra, no entanto, de fazer qualquer recomen-
dação aos pais, e eles, pelo menos nesse momento, precisam mais que

187
ninguém de ajuda e carinho, de compreensão e acolhimento. É muito
importante que se possa garantir apoio social e psicológico, para que
os pais consigam vivenciar e superar esse momento.
A condição humana é precária. A vida é fugaz e frágil. Todos
agimos como se fôssemos viver para sempre. Mas ficamos velhos,
morremos. Ficamos doentes. Dependemos uns dos outros. Para isso
estamos aqui, para cuidar e receber cuidados. Às vezes, a gente es-
quece isso. O autismo do nosso filho nos joga na cara nossa impo-
tência e fragilidade.

Os Primeiros Passos

Uma vez li num livro escrito para pais de autistas, de que não
me lembro o título, quando estava começando minha jornada: “Há um
tempo para chorar e um tempo para seguir em frente”. Demorei para
entender que a primeira fase era pré-requisito para a segunda. Mas, de
fato, o sofrimento, o contato com a própria fragilidade e desamparo,
paradoxalmente, nos unem a pessoas que nem sequer enxergávamos,
nos fazem conhecer melhor nossa humanidade e podem nos colocar
em contato com a própria força, compaixão, solidariedade e capacidade
de amar. Superado o luto inicial, nunca mais seremos os mesmos. Nos-
sos filhos com autismo vão nos segurar pela mão e nos levar a lugares e
pessoas de cuja existência não suspeitávamos.

Dificuldades Iniciais

Num país como o Brasil, são grandes as dificuldades encon-


tradas pelos pais de crianças com autismo. Quase não existem lugares
especializados para atendimento dessas crianças. A maioria delas pre-
cisa de atendimento intensivo por equipe multiprofissional especiali-
zada e de inserção na escola regular, como falamos no capítulo sobre
intervenção precoce. Mas onde estão esses serviços? São muito raros e,
quando existem, muito caros. Os pais de autistas, como a maioria das

188
pessoas do país, são pobres e não correspondem ao padrão socioeco-
nômico descrito por Kanner.
Os pais iniciam, geralmente, uma verdadeira via-crúcis em
busca de atendimento e muitas crianças ficam sem a assistência
essencial nessa fase da vida, que pode mudar-lhes drasticamente
o prognóstico.
As escolas, mesmo em tempos de inclusão obrigatória, encon-
tram artifícios para não incluir crianças com autismo. Não há vagas,
dizem algumas. Não temos condições, explicam outras. Muitas mães
deixam os empregos nessa época e ficam à disposição dos filhos, levan-
do-os para as terapias disponíveis e ficando cada dia mais longe dos
próprios sonhos de realização pessoal e profissional. Mas as crianças
com autismo não podem ser responsabilizadas pela falta de assistência
a que estão submetidas elas próprias e suas famílias.
Estudiosos como Buscáglia (1993) e Glat (2004) chamam a
atenção para a perda de identidade de todos os membros da família
de uma pessoa com deficiência, é comum que se diga, por exemplo, a
mãe do menino autista, o irmão daquele menino que grita etc. O pre-
conceito se estende, “generosamente”, para todos os membros do clã.
A família passa por transformações importantes na autoimagem e na
maneira como é vista pelos outros.
É comum que a vida afetiva e sexual dos casais sofra mudan-
ças nessa fase. Às vezes o casamento naufraga em meio a um jogo de
culpas. É preciso, desde o início, que as famílias sejam ajudadas para
que não se sintam menores. É fundamental que sejam incentivadas
e apoiadas para viver o mais normalmente possível. As crianças com
autismo, como quaisquer outras, se beneficiam de famílias estáveis
e amorosas.
Passado o período de luto simbólico, a grande maioria das fa-
mílias que conheço e, justiça seja feita, a grande maioria das mães que
conheço se transforma. Viram verdadeiras guerreiras e lutam com
unhas e dentes para encontrar o melhor e o mais adequado tratamento
para os filhos.

189
Algumas poucas, no entanto, “desistem” do filho com autismo,
deixam de acreditar em seu potencial e passam a investir nos outros filhos
“sadios”. Já conheci uma mãe que internou o filho num hospital psiqui-
átrico e nunca mais voltou. Soube de uma criança com autismo que foi
adotada, aos 2 anos de idade, e devolvida para o abrigo, tão logo come-
çou a apresentar as características do transtorno. Conheci muitos autistas
criados em cárceres privados, um deles passou vinte e um anos acorrenta-
do num ambiente minúsculo, onde comia, defecava e dormia, como um
cão raivoso. Mas já conheci famílias que adotaram autistas, sabendo do
diagnóstico. Um deles, inclusive, é meu lindo neto, Luiz Eduardo, hoje já
com 7 anos de idade, cinco dos quais em nossa companhia.
Quando meu filho Gustavo e minha nora Tatiana resolveram
adotar Luiz Eduardo, fiquei apreensiva, confesso. Nossa família já ha-
via passado por muitos desafios, e tive dúvidas se o Gustavo estava
realmente preparado, consciente, para o passo que ia dar.
Passados cinco anos, não tenho mais dúvida. Eles sabiam o que
estavam fazendo. Os três formam uma linda família. Luiz Eduardo
não poderia ter encontrado pais melhores, e eles, cada dia que passa,
ficam mais encantados com cada conquista do filho. O Dudu ainda se
comunica pouco verbalmente, mas vem se tornando muito eloquente
nos gestos. Ele aprendeu, por exemplo, a dizer que ama a vovó e pede
para o pai dar um tempo, sempre que este tenta levá-lo de minha casa
antes que ele, realmente, esteja com vontade de ir embora.

Isolamento

Algumas famílias podem ficar isoladas, com vergonha do com-


portamento estranho do filho ou querendo protegê-lo de olhares pre-
conceituosos. Muitas vezes, na Casa da Esperança, temos deparado
com famílias que relutam em colocar os filhos na escola com medo de
que sejam expostos a zombarias ou maus-tratos por parte das outras
crianças. Embora o risco seja real, não vamos acabar com a ignorância
e o preconceito escondendo nossas crianças.

190
As crianças com autismo e suas famílias têm direito e devem
ser incentivadas a participar de todos os serviços disponíveis em sua
comunidade. Nós, os pais, não estávamos preparados para receber fi-
lhos com autismo e fomos aprendendo, com eles, na convivência. A
inclusão das pessoas com autismo só vai acontecer, também, com a
presença deles, com seu jeito de ser, modificando pessoas, quebrando
paradigmas e forçando a sociedade a se reconhecer plural.
Na Casa da Esperança, temos um programa específico de aten-
ção a familiares de pessoas com autismo, o Núcleo de Atendimento à
Família (NAF). Nele são garantidas, aos pais, assistência psicológica e
social, individual e em grupo. Testemunhamos muitas transformações
de mães que conseguem superar o papel de vítima e tocar a vida com
firmeza e coragem.
As famílias são incentivadas a participar dos cursos e treina-
mentos realizados na organização. Para elas, são programadas rodas
de conversa, exibição de filmes e atividades de lazer. Algumas das
mães, inclusive, se organizaram numa cooperativa, A Casa Encan-
tada, e hoje vendem seus produtos e dividem, entre si, os lucros do
trabalho coletivo.
Muitas mães de crianças com autismo são funcionárias da
nossa organização. Assim como eu e minhas duas noras, uma admi-
nistradora e outra assistente social, existem mães enfermeiras, educa-
dora física, professoras e terapeutas. Mas, no geral, o que é incentivado
e apoiado no NAF é que as mães de pessoas com autismo possam viver
seus outros papéis. Que possam ser esposas ou não, profissionais ou
não, mas que o autismo não lhes tire a possibilidade de decidir o rumo
da própria vida.
As terapias na Casa da Esperança são realizadas pela equipe
terapêutica. Em casa, acreditamos, as pessoas autistas e não autistas
precisam, e muito, é de uma família.
Estudos embasam nossa prática de oferecer terapia em grupo
para pais de crianças com autismo. A participação da família, nesses
grupos, favorece a aceitação do problema, facilita a compreensão e o

191
envolvimento dos familiares no tratamento do filho e, principalmente,
permite o resgate da esperança e alegria de viver.
O NAF é dirigido há alguns anos por minha nora Sônia, assis-
tente social e mãe de uma moça com síndrome de Rett, a Allana. Nun-
ca vi, em todos estes anos, a Sônia chorar ou se lamentar, uma única
vez, pela existência da Allana. Ela a leva para todos os lugares, e Allana
parece uma princesa, no trono, quando entra sorridente, em sua ca-
deira de rodas, para participar das festas e dos eventos familiares.
Claro que todas nós, mães de pessoas com autismo, nos de-
batemos ciclicamente com emoções conflitantes. Muitas vezes me
peguei melancólica, em viagens ao exterior, visitando lugares ou vi-
vendo experiências que sei nunca vou poder compartilhar com meus
dois filhos autistas. Às vezes, quando assisto ao nascimento de um
neto ou vejo um filho não autista realizando uma conquista impor-
tante, me pego pensando se essas realizações não fazem falta na vida
de Giordano e Pablo. Mas logo vejo que eles já conquistaram muitas
coisas, são verdadeiros heróis, superando diariamente barreiras bio-
lógicas e sociais.

A Família como Protagonista

Nesses meus trinta anos de autismo, tenho convivido com


muitos pais e aprendido bastante com suas histórias. A própria histó-
ria do autismo, na realidade, tem sido escrita, em boa parte, por pais.
Grandes cientistas do nosso tempo que têm se dedicado ao estudo do
autismo são, eles próprios, pais de autistas.
A maioria das associações que se dedica a oferecer atendi-
mento especializado a crianças e adultos com autismo, assim como
a pressionar governos por programas e políticas que contemplem as
especificidades do autismo, é formada por pais e familiares de pessoas
com autismo.
O advento da internet, que representa uma verdadeira prótese
social para os autistas, permitindo que se organizem, troquem ideias e

192
explicitem seu jeito de ser, tem sido um grande espaço de organização
e apoio também para pais de pessoas com autismo.
Na internet, no dia a dia e na luta política, muitos pais têm
transformado dor em esperança e ampliado os espaços sociais, ainda
tão exíguos para os cidadãos com autismo.
A minha própria família é uma família de autistas e militantes
da causa do autismo.
Uma vez, vi a mãe de um jovem com autismo dizer que gostaria de
encontrar uma instituição para colocar o filho autista quando ela estivesse
mais velha. Ela me disse que não gostaria que o filho normal tivesse de
carregar para o resto da vida uma carga tão pesada quanto cuidar do irmão
com autismo. Eu nunca considerei Giordano e Pablo como estorvos.
Espero de coração que quando eu não estiver mais entre os vi-
vos, eles continuem tendo uma casa, uma família, um lar. Não me sin-
to culpada por meus outros filhos assumirem responsabilidades pelos
irmãos com autismo. Sinto-me orgulhosa deles, por serem coerentes
com a própria história. Sempre vou amá-los, quaisquer que sejam suas
escolhas, mais vou admirá-los mais ainda sempre que escolherem a
grandeza ao sucesso. Para isso criamos uma família. Para amarmos,
sermos amados e nos protegermos uns aos outros.
O autismo nos deu uma causa e um sentido na vida. E, como
13
na música do Arnaldo Antunes, a vida que vai à deriva é a nossa con-
dução. Mas não seguimos à toa!

Não Chorem por Nós

Os pais geralmente contam que reconhecer que o filho é autista


constitui a experiência mais traumática que já lhes aconteceu. As pes-
soas não autistas veem o autismo como uma grande tragédia, e os pais
experimentam um contínuo desapontamento e luto em todos os estágios
do ciclo de vida da família e da criança.
Mas esse pesar não diz respeito diretamente ao autismo da crian-
ça. É um luto pela perda da criança normal que os pais esperavam e de-

193
sejavam ter. As expectativas e atitudes dos pais, as discrepâncias entre o
que esperavam dos filhos numa idade particular e seu desenvolvimento
atual causam mais estresse e angústia que as complexidades práticas da
convivência com uma pessoa autista.
Uma certa quantidade de dor é normal, até os pais se ajustarem
ao fato de que aquilo que esperavam não vai se materializar. Mas a dor
pela criança normal fantasiada e irremediavelmente perdida deve ser
separada da percepção da criança que realmente têm: a criança autista
que precisa de adultos cuidadosos e que pode obter um relacionamento
muito significativo com as pessoas que cuidam dela se lhe for dada a
oportunidade. Imputar continuamente ao autismo da criança a origem
de toda a dor é prejudicial tanto para os pais como para a criança e
impede o desenvolvimento de uma aceitação e de um relacionamento
autêntico entre eles. Em consideração a eles próprios e a suas crianças,
conclamo os pais a fazerem mudanças radicais em suas opiniões sobre o
que o autismo significa.
Convido vocês a olhar para nosso autismo e para o seu luto sob
a nossa perspectiva.
O autismo não é um apêndice.
O autismo não é algo que uma pessoa tenha, ou uma concha na
qual ela esteja presa. Não há nenhuma criança normal escondida por
trás do autismo. O autismo é um jeito de ser, é pervasivo, colore toda
experiência, toda sensação, percepção, pensamento, emoção e encontro,
todos os aspectos da existência. Não é possível separar o autismo da pes-
soa. E se o fosse, a pessoa que você encontraria não seria a mesma de
antes da separação.
Isso é importante, então tire um momento para considerar que o
autismo é um jeito de ser. Não é possível separar a pessoa do autismo.
Por conseguinte, quando os pais dizem: “Gostaria que meu filho não
tivesse autismo”, o que eles realmente estão dizendo é: “Gostaria que meu
filho autista não existisse, e eu tivesse uma criança diferente em seu lugar”.
Leia isso novamente. Isso é o que ouvimos quando vocês lamen-
tam por nossa existência. É o que percebemos quando vocês falam de

194
suas mais fortes esperanças e sonhos para nós: que seu maior desejo é
que, um dia, nós deixemos de ser, e que, de dentro de nós, surja outra
pessoa que vocês possam amar.
Autismo não é uma parede impenetrável.
Você tenta falar com o filho autista e ele não responde. Ele não o
vê. Você não consegue alcançá-lo. Não há adentramento. É a coisa mais
difícil de lidar, não é? O único fato é que isso não é verdade.
Veja novamente: você tenta falar como pai de uma criança,
usando seu próprio entendimento sobre o que é uma criança normal,
usando seus próprios sentimentos sobre relacionamentos. E a criança
não responde de uma forma que você possa reconhecer.
Isso não significa que a criança esteja totalmente incapacitada
para se relacionar. Só significa que você está assumindo um sistema
compartilhado, um entendimento compartilhado de sinais e significa-
ções do qual a criança em questão não participa.
É como se você tentasse ter uma conversa íntima com uma pes-
soa que não compreende sua língua. É óbvio que a pessoa não vai enten-
der o que você está falando; não vai responder da forma que você espera.
Ela pode, até mesmo, achar confusa e desprazerosa toda a interação.
Dá mais trabalho se comunicar com uma pessoa cuja linguagem
não é a nossa. E o autismo vai mais fundo do que a linguagem e a cul-
tura. Os autistas são estrangeiros em quaisquer sociedades. Você vai ter
de abrir mão de toda a sua apropriação de significados compartilhados.
Você vai ter de aprender a voltar a níveis mais básicos, sobre os quais
provavelmente nunca tenha pensado, vai ter de abandonar a certeza de
estar em seu próprio território familiar de conhecimento, do qual você
está a serviço, e deixar seu filho lhe ensinar um pouco da linguagem de
seu mundo.
Sim, isso dá mais trabalho que falar com uma pessoa não autis-
ta. Mas pode ser feito — a não ser que as pessoas não autistas estejam
muito mais limitadas que nós em sua capacidade de se relacionar. Le-
vamos a vida inteira fazendo isso. Cada um de nós que aprende a falar
com vocês, cada um de nós que funciona bem na sua sociedade, cada

195
um de nós que consegue alcançar e fazer um contato com vocês está ope-
rando em um território estranho, fazendo contato com seres alienígenas.
Passamos a vida inteira fazendo isso. E, então, vocês vêm nos dizer que
não podemos falar.
Autismo não é morte.
Certo, o autismo não é o que muitos pais esperam e para o que
se preparam quando sonham com a chegada de uma criança. O que es-
peram é uma criança que pareça com eles, que pertença a seu mundo e
fale com eles sem um treinamento intensivo para um contato alienígena.
Até mesmo quando têm uma criança com outros distúrbios diferentes do
autismo, os pais esperam falar com ela, de um modo que pareça normal
para eles. Na maioria dos casos, considerando uma variedade de distúr-
bios, é possível formar o tipo de laço que os pais almejam.
Não se perde uma criança para o autismo. Perde-se uma crian-
ça porque a que se esperou nunca chegou a existir. Isso não é culpa da
criança autista que, realmente, existe e não deve ser o nosso fardo. Pre-
cisamos e merecemos famílias que possam nos ver e nos valorizar por
nós mesmos, e não famílias que têm uma visão obscurecida de nós, por
fantasmas de uma criança que nunca viveu. Chore por seus próprios
sonhos perdidos, se você precisa. Mas não chore por nós. Estamos vivos.
Somos reais. Estamos aqui, esperando por você.
É o que acho que as associações sobre autismo devem ser: sem
lamentações sobre o que nunca houve, mas com explorações sobre o
que o autismo realmente é. Precisamos de você. Precisamos de sua aju-
da e entendimento. Seu mundo não está aberto para nós e não con-
seguiremos se não tivermos um forte apoio. Sim, o que vem com o
autismo é uma tragédia: não pelo que somos, mas pelas coisas que
acontecem conosco. Fique triste com isso, se quiser ficar triste com al-
guma coisa! Melhor que ficar triste com isso é ficar louco com isso — e
então faça alguma coisa. A tragédia não é porque estamos aqui, mas
porque o seu mundo não tem lugar para nós. Como poderia ser de
outra forma, se nossos próprios pais ainda se lamentam por nos terem
trazido para este mundo?

196
Olhe alguma vez para o seu filho autista e tire um momento
para dizer para si mesmo quem aquela criança não é. Pense: “Esta
não é a criança que eu sonhei e planejei. Não é a criança que espe-
rei durante todos aqueles meses de gravidez e todas aquelas horas de
sofrimento. Não é a criança para quem fiz planos de dividir todas as
minhas experiências. Aquela criança nunca veio. Esta não é aquela
criança”. Então vá fazer de seu luto não importa o que — mas comece
a deixar as coisas acontecerem.
Depois que você começar a deixar as coisas acontecerem, volte
e olhe para seu filho autista novamente: “Esta criança não é a que eu
esperava e planejava. Esta é uma criança alienígena que caiu em mi-
nha vida por acidente. Não sei quem é essa criança ou o que ela vai ser.
Mas sei que é uma criança naufragada num mundo estranho, sem pais
com formas apropriadas para protegê-la. Essa criança precisa de alguém
para cuidar dela, para ensiná-la, interpretá-la e para defendê-la. Mas
como essa criança alienígena caiu na minha vida, esse trabalho é meu,
se eu quiser”.
Se essa busca te excita, então nos acompanhe na resistência e na
determinação, na esperança e na alegria. A aventura de uma vida está
toda diante de você.
(Artigo de Jim Sinclair publicado na revista Nossa Voz [vo-
lume 1, número 3, de 1993], da Rede Internacional de Autismo /
Autism Network International. É uma mostra, que prazerosamente
traduzimos, do discurso de Jim, um autista asperger, na Conferên-
cia Internacional de Autismo em Toronto, evento dirigido principal-
mente aos pais.)

197
17
O PODER DO AMOR

Já havia completado 50 anos e estava vivendo uma fase mui-


to boa da minha vida. Meu casamento estava muito bem, depois de
uma pequena grande crise. A Casa da Esperança não mais passava
pela insegurança anual sobre se íamos ou não renovar os convênios,
necessários à sua manutenção. Os meninos estavam todos criados e eu
já podia curtir mais minha própria vida. Lia como nunca e assistia a
todos os filmes disponíveis. Reduzira, um pouco, a jornada de traba-
lho, sem contar, é claro, com as horas dedicadas ao estudo e à prepara-
ção de cursos, trabalho que eu sempre fiz em casa. Viajava muito para
dar palestras e cursos sobre autismo. Tinha formado uma boa equipe
terapêutica, jovem, competente e comprometida.
Minha casa, finalmente, estava bonita e arrumada, fazia tem-
po que Giordano não quebrava nada. Aos poucos, havia conquistado
estabilidade financeira. Tinha, além dos salários como funcionária
pública e diretora clínica da Casa da Esperança, uma boa cliente-
la particular. Meu marido também ganhava razoavelmente bem e
tinha, como eu, clientes que lhe complementavam o salário e nos
garantiam uma vida tranquila, sem luxos desnecessários, mas com
bastante conforto. Tínhamos alguns auxiliares em casa, o que nos
permitia, agora, mais tempo para dedicar aos prazeres do corpo e da
alma. Estávamos felizes.
Em um dia comum de semana, estava atendendo no setor de
diagnóstico da Casa da Esperança quando um membro de minha
equipe disse: “A próxima cliente é uma menina autista, de 2 anos e
meio, que veio do abrigo Tia Júlia”. Esse abrigo é o mesmo onde eu
comecei minha carreira profissional e onde moravam crianças dispo-
níveis para adoção. Não sei o que me aconteceu naquele momento,

199
mas fui tomada de uma súbita emoção e disse sem titubear: “Minha
filha chegou, chame o pai dela”. Alexandre veio para a sala, recebeu a
criança comigo e, como se houvéssemos combinado, disse: “É a nossa
filha, não é?”.
A menina era morena, linda, um pouco pequena para a idade,
mas não tive dúvida desde o momento em que a vi: era a filha que eu
tinha esperado desde sempre.
Faz três anos e seis meses que isso aconteceu. Começamos tudo
outra vez. Com um mês que nossa filha estava conosco, ela já sorria,
brincava e tentava falar. Três meses depois, quando se tornou, oficial-
mente, nossa filha, ensaiou dizer seu nome completo.
Hoje, ela está com 6 anos. É uma menina linda, inteligente, sa-
bida, com uma linguagem absolutamente adequada para idade. Fre-
quenta desde 3 anos a escola regular, tem muitas amigas, é uma crian-
ça muito saudável, amorosa e feliz.
Nossa filha não era autista. Tinha um problema que mimetiza
o autismo, transtorno reativo da infância. Mas foi o seu “autismo” que
a trouxe até nós.
Houve um tempo em que eu duvidei da qualidade do meu
amor. Achava que ele devia ter algum componente estranho, capaz de
causar autismo em dois dos meus filhos.
A única verdade é que eu ainda tinha muito para aprender so-
bre autismo e sobre o poder do amor. E ainda tenho. Mas, finalmente,
sou mãe de uma menina e agora sei que meu amor é de ótima quali-
dade e que, como qualquer amor de mãe, é capaz de operar milagres.
Não foi por acaso que escolhi esta importante história de mi-
nha vida para terminar este livro. É uma história de encontro. Foi de
um inesperado encontro entre os misteriosos mundos do amor e do
autismo que nasceu uma forte e bela princesa, a minha filha Maria
Teresa Dourado da Costa e Silva. Agora, minha família está completa.

200
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Esta obra foi composta em Minion Pro,
processada em fotolito e impressa em papel pólen linha d’água 80g.
Impressão e acabamento na Premius Editora,
em Fortaleza-CE, março de 2012.

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