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Fátima Dourado
Fortaleza – 2012
Copyright © 2012 Fátima Dourado
Impressão e Acabamento
Filiada à
208p.
ISBN 978-85-7564-570-3
CDU 616.896
para Giordano e Pablo
APRESENTAÇÃO
6 O DIAGNÓSTICO 93
Algumas Questões Importantes 95
Avaliação 96
Anamnese 96
Observação Direta 97
Exame Físico 100
Condições Associadas 100
O Diagnóstico 102
BIBLIOGRAFIA 201
1
UM POUCO DA MINHA HISTÓRIA COM O AUTISMO
Fui uma jovem típica dos anos 1970. Ouvia os Beatles. Usava mi-
nissaia. Lia Sartre, Freud, Marx. Sonhava com um mundo de iguais. Um
mundo livre. Justo e livre. Participei ativamente do movimento estudantil.
Aos 17 anos, entrei para a Faculdade de Medicina da Univer-
sidade Federal do Ceará. A ideia inicial era fazer psiquiatria, desven-
dar os mistérios do inconsciente. Nas horas vagas, muito poucas para
qualquer aspirante a médico, escrevia poesias e mergulhava de cabeça
na literatura. Sempre gostei de histórias, das infinitas possibilidades
que o ser humano tem de reinventar a si próprio, de buscar saídas e
sentido para a sua existência. Gostava e ainda gosto muito de conver-
sar, de contar e, principalmente, de ouvir histórias.
Nos fins de semana, frequentava a praia de Iracema, point da
boemia fortalezense, onde se misturavam poetas, músicos, militantes
políticos, muita cerveja e a sensação de estar no centro dos aconteci-
mentos, decidindo os rumos do mundo. Foi num dia assim que co-
nheci José Mapurunga, estudante de jornalismo, intelectual brilhante,
poeta, cheio de histórias. Namoramos e dois meses depois estávamos
casados: havíamos passado uma noite juntos e meus pais acharam
que essa era a melhor forma de repararmos a ousadia. Esperneei, fugi
de casa, passei uma semana com ele, recitando poemas, namorando,
ouvindo-o tocar violão. Finda a semana, reavaliei conceitos sobre a
vida de casada, não era de todo desinteressante. Casei, mudei de nome
e troquei o sonho de morar em Paris por uma casa minúscula de um
conjunto residencial. E haja ônibus, problemas financeiros, desafios
diários para lidar com uma vida doméstica absolutamente comum. Eu
acabara de completar 21 anos de idade e estava começando a escrever
minha própria história.
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Casada, continuava estudando e participando das lutas acadê-
micas, dos movimentos pela anistia política, pela redemocratização
do Brasil e pela emancipação feminina.
Dois anos depois, engravidei e fiquei completamente apaixo-
nada pela maternidade, pelas maravilhas que me aconteciam com o
corpo, antes tão magrinho e agora farto. Comecei a usar vestidos um
pouco mais decotados: estava me achando bonita, mais mulher.
É quase divino o poder de abrigar uma vida. Foi maravilhoso
ver aquele bebê sair de mim e mudar completamente meus planos.
Nunca havia sido tão desafiada. Nunca estivera tão preparada para
qualquer desafio. Eu me sentia plena. Foi muito bom acompanhar
o desenvolvimento de meu primeiro filho, Alexandre. Amamentá-
-lo. Vê-lo crescendo a cada dia, apenas com meu leite. Aquele foi
um tempo mágico, inesquecível. Em nenhum papel me havia sentido
melhor. Nasci para isso, pensei. Meu filho me justifica, me explica,
me completa.
Foi difícil retornar aos estudos. Mas, aos poucos, vi que havia
muitas em mim, além da mãe, e todas ansiavam por expressão. Fui,
então, voltando devagar à medicina, à militância, à vida, além da ma-
ternidade. Mas, logo notei, não era mais a mesma. Meus seios incha-
vam, me chamando para amamentar. Passei a querer que Deus fosse
uma realidade, para que amparasse meu filho para sempre. Passei a
olhar as crianças com um interesse que eu desconhecia. Descobri um
amor enorme, que eu não sabia ter, pelos pequenos. Olhava para cada
bebê empacotado na maternidade, onde eu fazia o internato, com uma
ternura infinita. Quantos destinos! Quantas histórias estavam ali, es-
perando para ser contadas. Decidi-me pela pediatria. Queria cuidar
de crianças, ajudá-las, protegê-las. Deixar que elas me contaminassem
com aquela ânsia de aprender e de viver.
Dois anos depois, uma semana após ter concluído o curso,
nasceu meu segundo filho, Giordano Bruno. Ainda não sabia, mas
naquele momento estava acontecendo a mais inesperada e espeta-
cular mudança de minha vida. Giordano nasceu lindo, com qua-
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se cinco quilos, com um ótimo apgar, uma mãe mais experiente e
cheia de amor.
2
Na noite em que ele nasceu, enquanto dormia, meio sonolenta
no apartamento do hospital, assistia a um episódio do seriado brasilei-
ro Malu mulher, estrelado pela atriz Regina Duarte, sobre a condição
feminina. Não lembro o enredo do capítulo. Mas o final ficou gravado,
para sempre, na minha cabeça e no meu coração emocionado. Malu, a
feminista com quem me identificava na trama, concluía: “Deus é uma
cilada e é preciso cair nela”. Eu não sabia, minha cilada estava armada.
Giordano foi amamentado, como o irmão. Chamava a aten-
ção pela beleza e pela calma. Já atuando na pediatria, eu pensava:
não sou mais mãe de primeira viagem, transmito paz e tranquilidade
a meu filho. Tenho um bebê-modelo. Estou finalmente pronta para
a maternidade.
Giordano só mamava e dormia. Às vezes o colocava no bebê
conforto, perto de mim, e estudava horas a fio, sem que ele chorasse,
nem sequer para mamar. O irmão mais velho perguntava sempre
quando ia poder brincar com ele. E eu dizia que aguardasse. Era
muito querido, o Giordano. Para o irmão, era o “mãozinho”. Os ami-
gos que nos visitavam ficavam admirados, pois podiam conversar,
rir alto e nada abalava a calma do meu filho. Ele era mesmo um bebê
muito especial.
No primeiro ano de vida, tudo parecia transcorrer bem
com Giordano. Mamou durante seis meses. Nessa época, eu havia
começado a trabalhar na creche Tia Júlia, um abrigo de crianças
disponíveis para adoção. A fim de ficar perto de meus filhos, mu-
dei-me para uma casa próxima à creche. Trabalhava ainda em um
pronto-socorro infantil, com emergências em pediatria, mas o tra-
balho que mais me completava era o da creche abrigo, quase uma
extensão do cuidado que, eu tinha com meus filhos em casa. Boa
parte de meus pequenos pacientes havia sido abandonada pelos
pais. Comigo uma turma de jovens e competentes profissionais ha-
via começado a trabalhar no abrigo e foi um momento muito fértil
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e importante de minha carreira como pediatra. Com essa turma,
aprendi a importância do trabalho em equipe, estudávamos juntos
e cuidávamos com tanto amor daquelas crianças que nos era difícil
voltar, à noite, para nossos filhos e deixar os pequenos pacientes
embalando-se sozinhos, sem ninguém para lhes contar histórias
ou velar-lhes o sono.
Giordano crescia a cada dia, mas ao contrário do irmão e das
crianças de quem eu cuidava na creche não se entrosava. Parecia bas-
tar-se. Relacionava-se muito bem comigo e com o pai, gostava de ser
pego ao colo, brincava com os brinquedos, às vezes de esconde-escon-
de com o irmão, mas, se chegavam outras crianças, ele se isolava. Era
muito tímido, eu pensava.
Na creche, as crianças da mesma idade que ele, aos dez, onze
meses, eram mais sociáveis e demonstravam muita alegria ao brincar
umas com as outras.
Com um ano, Giordano disse as primeiras palavras. Chegou
a falar cinquenta, aos dezoito meses. Aos 2 anos, no entanto, ainda
não formava frases. Estava começando a me preocupar. Levei-o a um
colega pediatra e ouvi o que mais almejava naquele momento: “Tenha
calma, Fátima. Você é médica e sabe que cada criança tem seu ritmo.
Você não deve comparar o seu filho com ninguém. Ele vai se desen-
volver, no ritmo dele. Vamos colocá-lo na pré-escola, ele vai melhorar
a socialização”. Assim foi feito.
Giordano gostou de ir para a escola, ele adorava rotina: acorda-
va na hora, não dava trabalho para vestir a farda e ia tranquilo. Obede-
cia às professoras. Mas não se entrosava com as outras crianças.
A essa altura estava grávida de meu terceiro filho e tinha uma
enorme preocupação sobre a forma como Giordano ia lidar com mi-
nha ausência. Eu ia fazer uma cesariana e passar dois dias na materni-
dade. Ele nunca havia passado um único dia sem me ver. Corria para
meus braços cada vez que eu chegava do trabalho.
Quando Gustavo, meu terceiro filho, nasceu, num belo dia de
chuva, era dia das mães. Naquele ano de seca no Nordeste, a chuva me
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anunciava bons presságios. Aquele lindo menino já chegava inaugu-
rando bons tempos.
Ao chegar em casa, no carro, Giordano correu para mim e, ao
ver o irmão em meus braços, voltou-se para a babá e entrou em casa,
como se não tivesse me visto. Logo depois, acomodei Gustavo no ber-
ço, me deitei numa rede, ele chegou aos poucos, deitou-se comigo e
relaxou. Foi um momento bonito, de reencontro total. Giordano, fe-
liz, relaxou em meus braços e eu o abracei com ternura e muita ale-
gria. Tudo parecia estar voltando ao normal. Minutos depois, Gustavo
acorda aos berros, querendo mamar, e eu tive de acomodá-lo ao peito.
Zangado, Giordano retirou-se da rede e me deixou amamentando o
irmão, apreensiva.
Aos poucos Giordano foi se isolando mais e todos nós acháva-
mos que ele estava passando por uma crise de ciúme do irmão. Afinal,
durante dois anos e oito meses, ele fora um reizinho absoluto, até
mesmo o irmão mais velho o mimava e nunca competiu com ele. A
pediatria, na época, era muito impregnada pela psicanálise e eu ficava
procurando explicar tudo pelos afetos, pelas histórias de amor. Fui me
apegando mais e mais àquele menino, querendo provar a ele que meu
amor não havia diminuído, que ele era meu neguinho, que amor de
mãe se multiplica, infinitamente...
Gradativamente, Giordano foi perdendo a fala e apresentan-
do uma série de comportamentos estranhos. Queria tudo no mesmo
lugar, arrumava meticulosamente o travesseiro e os brinquedos antes
de dormir. Às vezes, em frente à televisão, ficava feliz com a família,
assistindo aos programas, mas quando alguém se levantava, ele tra-
zia de volta, parecendo querer congelar os bons momentos. E quando
mudávamos as coisas de lugar ele gritava, esperneava. Pouco a pouco
foi desenvolvendo hiperatividade e estereotipias.
Comecei a peregrinação em busca de diagnóstico. Neurologis-
tas, psiquiatras, fonoaudiólogos, psicólogos. Transtorno de déficit de
atenção, superdotação, mutismo eletivo, ninguém sabia ao certo qual o
problema do meu menino, e isso, só fui descobrir muitos anos depois.
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Quando ficou claro o diagnóstico de Giordano, ele já fazia fo-
noaudiologia, ludoterapia com uma psicanalista e estudava numa es-
cola regular.
Enquanto eu amamentava Gustavo, engravidei pela quarta
vez. Pablo foi um belo bebê, louro e calmo. Desde o nascimento, ele
foi diferente dos outros irmãos: era muito hipotônico, quase não me
olhava nos olhos enquanto mamava. Demorou a sustentar o pesco-
ço, a sentar e só andou com dezoito meses de idade. Apesar de não
ter a mesma destreza motora dos outros três irmãos, Pablo, como
Giordano, adorava brincar sozinho e ainda por cima, antes dos 3
anos, fazia estranhos movimentos com as mãos, como se quisesse
voar. Pablo demonstrava, ainda, certa dificuldade para se aninhar
nos meus braços, parecia nunca encontrar um jeito em que ficasse
completamente relaxado, à vontade.
Ele apresentou atraso na aquisição da linguagem verbal, mas
falava palavras soltas e com intenções comunicativas até os 2 anos de
idade. Chegou a dizer frases. Lembro-me de que certa vez, ao fazer
cocô no chão da sala, lhe perguntei o que tinha acontecido. Sabiamen-
te, para se livrar da bronca, respondeu: “Foi o Nanandi”, referindo-se a
Giordano. Claro que não briguei, até fiquei feliz por ter sido tão astu-
to. Na época, era comum entre os irmãos colocar a culpa dos malfeitos
em Giordano.
Sempre soube que Pablo era diferente. Mas essa diferença nun-
ca doeu em mim. Não sei se estava anestesiada com as dificuldades de
Giordano ou se, ao contrário disso, já tivesse encontrado forças para
mais esse desafio. Pablo apresentava um comportamento totalmente
diferente de Giordano, calmo, nunca tinha crises de birra. Jamais foi
agressivo. Brincava com as outras crianças, embora com frequência
em papéis mais passivos. Quando nos juntávamos com amigos, que
também possuíam filhos pequenos, as meninas adoravam brincar
com ele, sempre faziam o papel de mãe e ele, de filho preferido de
todas: elas trocavam suas roupas, davam comida em sua boca e ele,
de bom grado, se deixava levar. Não tomava a iniciativa, mas gostava
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de estar perto e demonstrava prazer em participar, de seu jeito, das
brincadeiras.
Quando compreendi do que se tratava o autismo, imediata-
mente soube que dois de meus filhos se enquadravam nesse diagnósti-
co. Mas, na época, não sabia ser o autismo uma condição permanente,
um jeito de ser, determinado biologicamente e com forte componente
genético. Prevalecia a crença de que o autismo resultava de problemas
na relação mãe e filho.
Fui levada a crer, como boa parte das mães de autistas de mi-
nha geração, que havia algo de errado com meu amor. Foi muito do-
loroso pensar que, mesmo inconscientemente, estava causando tantas
dificuldades para meus filhos.
Mas todos os dias dezenas de crianças, no abrigo onde eu tra-
balhava, me estendiam os braços para ser pegos no colo, me chama-
vam de mãe, falavam as primeiras palavras, brincavam e superavam
grandes adversidades: algumas haviam sido encontradas no lixo; ou-
tras, sofrido abuso sexual.
Nunca vou esquecer de um bebê de 3 anos que ao chegar
ao abrigo tinha uma ferida na cabeça. Quando examinei, percebi
tratar-se de um caso de berne, infecção produzida por larvas de
uma mosca muito conhecida no Brasil como mosca-varejeira. Já
havia visto aquilo em animais, principalmente bois, mas nunca em
um ser humano, sobretudo num bebê. Aquela criança, de quem
retirei dezenas de larvas da cabeça, rapidamente se recuperou e
mostrava-se muito receptivo ao carinho e ao contato com outras
crianças. Logo percebi que havia uma vontade de viver e brincar
quase insuperável naquelas crianças e que meu amor por elas, ne-
las, fazia um grande efeito.
Com o tempo constatei que existem muitas crianças como as
minhas. Descobri que as esquisitices delas têm um nome: autismo,
que os autistas se beneficiam muito do amor de suas mães, e elas não
causam o autismo dos filhos. Essa é só mais uma história triste de ig-
norância e preconceito.
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Giordano e Pablo cresceram de forma saudável. Frequentaram
a escola regular nos primeiros anos de vida. Foi um período difícil para
mim. Médica recém-formada, tinha de trabalhar muito para pagar as
terapias. Apesar da inclusão escolar e da fonoaudiologia, em torno dos
3 anos os dois deixaram de falar. Giordano, de vez em quando, ainda
diz palavras soltas, com intenções comunicativas, mas nunca mais for-
mulou frases completas. Pablo deixou de falar por completo.
Momentos Difíceis
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como consegui chegar à Casa Amarela. Quando cheguei, vi que mui-
tos dos nossos amigos já estavam lá. Eles tomavam todas as providên-
cias, ligavam para hospitais, pronto-socorros, polícia. Na televisão, já
anunciavam o desaparecimento de um menino de 9 anos, cor morena,
autista, da avenida da Universidade e informavam um telefone para
contato. Foram horas de dor e desespero.
Com Alexandre, eu percorria as ruas escuras da avenida, pró-
ximas ao local onde Giordano havia desaparecido. Chorava aflita.
Lembro-me de ter encontrado uma senhora na rua que me abraçou,
perguntou se eu era a mãe do garoto perdido e me disse que estava
em um grupo de oração, que eu encontraria meu filho, que era o
mês de maio, mês das mães, e Nossa Senhora não iria me abandonar.
Deu-me um terço e me pediu para rezá-lo enquanto o procurava.
Recordo de ter-lhe dito que não tinha nenhuma condição de rezar e
ela me disse, então, que eu apenas segurasse o terço durante a busca,
ela mesma ia rezar por nós. Inutilmente, vaguei por algum tempo e
voltei para a Casa Amarela. As buscas, naquela altura, já contavam
com a ajuda da polícia e de muitos voluntários, mas não havia ne-
nhum sinal do meu filho nas redondezas de onde ele desaparecera.
Era meia-noite quando finalmente ligaram de uma casa, próxima ao
bar Avião, onde funcionava uma mercearia, no caminho do local
onde morávamos. Um senhor, cuja família rezava em grupo, dispôe-
-se a comprar uma vela para acender para Nossa Senhora e, ao di-
rigir-se até a mercearia, encontrou um menino muito cansado, mas
calmo, sentado num degrau. Resolveu levá-lo para casa. Logo per-
cebeu que o garoto não falava e estava perdido. O referido senhor
era radioamador, soube da notícia do menino perdido e ligou para
a Casa Amarela dizendo que havia encontrado um garoto com as
mesmas características do que estava desaparecido, com uma única
diferença, era uma criança de cor branca. Eu, em pânico, pedia a
Deus para que fosse meu neguinho. Giordano é o mais moreno dos
meus filhos e sempre foi chamado de nego. Após meia hora de mui-
ta apreensão, um senhor, muito simpático, chegou segurando meu
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filho pela mão. Giordano correu para meus braços, me beijou e me
puxou, pedindo para ir para casa, como se nada tivesse acontecido.
O senhor que rezava e milagrosamente achou meu neguinho era ne-
gro, daí o desencontro na descrição da cor de Giordano.
Nessa noite, foi maravilhoso fazer meu filho dormir em casa,
junto dos seus. Tranquilo, ele parecia um anjo. Nunca soubemos o que
aconteceu naquelas horas terríveis.
Encontros e Desencontros
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o ensino de crianças com autismo, o método TEACCH. Embarca-
mos em mais essa experiência.
Naquela altura, meu casamento já havia chegado ao fim.
Agora eu era chefe de uma grande família, linda, complexa e desafia-
dora. O mais velho estava com 12 anos, era muito inteligente e com-
prometido com a família, mas saudável o suficiente para ir vivendo
a própria adolescência, começava a se interessar por garotas e trans-
formara-se num defensor intransigente dos dois irmãos diferentes.
Gustavo, que crescera entre os dois autistas, desenvolvera também
pelos irmãos uma espécie de paternidade precoce e sentia-se pro-
fundamente responsável por eles. Tudo estava andando regularmente,
sob controle, até que um inesperado acontecimento balançou de vez
nossa já frágil infraestrutura.
Quando Giordano completou 13 anos de idade, começou a
apresentar muitas dificuldades comportamentais. Batia em si mesmo,
estapeava o rosto e tinha súbitos ataques de fúria. Pablo, ao contrário,
crescia, alegre e calmo. Embora não demonstrasse a mesma compre-
ensão de situações complexas que o irmão, parecia não se dar conta de
suas limitações e estava virando um pré-adolescente lindo e doce com
o qual todos adoravam conviver.
O Fim e o Começo
Era final de julho de 1993 quando fui chamada para uma reu-
nião na escolar em que estudavam meus dois filhos autistas. A coor-
denadora me disse, depois de muitos rodeios, que a instituição não
dispunha de estrutura para lidar com Giordano, que estava ficando
agressivo. Talvez nunca antes daquele momento eu tenha me dado
conta do tamanho de minha solidão e de meu desafio, do desamparo a
que eu e meus quatro filhos estávamos submetidos. Giordano adorava
ir para a escola, acordar como os irmãos, tomar o café da manhã, vestir
a farda, ter a própria agenda e rotina. Apesar de diferente, nossa famí-
lia tinha algum equilíbrio e muitas alegrias. Frequentávamos, nos fins
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de semana, a Sabiaguaba, uma praia mais distante onde meninos po-
diam se divertir todos juntos. Éramos uma tribo, diferente, estranha,
às vezes, mas jovem, muito unida e alegre, a maior parte do tempo.
De repente, haviam-me tirado o chão debaixo dos pés. Como
eu diria para meus filhos autistas que no meu mundo não havia lugar
para eles? Que eu lhes havia trazido para um planeta completamente
desequipado para recebê-los? Que eles não tinham mais turma, nem
escola, nem professores, nem atividades fora de casa? Como eu diria
a meus filhos sem autismo que eles eram privilegiados, que tinham
direito a uma vida negada aos outros dois? E como eu iria sair todos os
dias para o mesmo mundo que não aceitava meus filhos, nem mesmo
entre os pares autistas?
Na noite que se seguiu à ida à escola, chorei como nunca ha-
via chorado em toda a vida. Meu corpo e minha alma pareciam ter
sido atingidos por um raio, destruindo qualquer lampejo de fé na
vida e na humanidade.
Foi do inferno de descrença e solidão que vi surgindo dentro
de mim uma ideia: e se eu criasse a escola de Giordano e Pablo? E se
eu própria contratasse os profissionais e terapeutas para trabalhar com
eles? E se o poder de abrir e fechar essa porta fosse meu? E se quando o
profissional não soubesse ou não quisesse mais lidar com uma criança
com autismo fosse ele o convidado a se retirar? E se eu me unisse a
outras mães que comigo sentissem a dor de ver os filhos excluídos e
descartados? A ideia foi crescendo e tomando conta da minha cabeça,
do meu coração, da minha vida.
Poucos meses antes da exclusão de Giordano, a escola onde
ele estudava estipulara uma taxa mensal de dez salários mínimos por
garoto atendido nos dois turnos. O que eu ganhava não era suficiente
para fazer frente à despesa. Naquela altura, já era uma médica relati-
vamente conhecida na cidade, havia ocupado alguns cargos públicos,
como a coordenação estadual do Programa de Assistência Integral à
Saúde da Criança, dirigira centros de saúde e me tornara a primeira
presidente do Conselho Cearense dos Direitos da Mulher.
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Solicitei então uma audiência com o governador do estado, Ciro
Gomes, para expor o problema, apresentando em minha defesa meus
contracheques. Ele disse que eu não deveria me preocupar, pois a partir
dali receberia ajuda para a educação de meus filhos. Militante de es-
querda, não me achei no direito de receber nenhum privilégio, afirman-
do que só aceitaria o benefício se fosse possível estendê-lo a pelo menos
dez crianças. Dessa forma, surgiu um convênio de subvenção social,
destinado a apoiar financeiramente a escola em troca do atendimento
gratuito a dez estudantes com autismo, dois dos quais meus filhos Gior-
dano Bruno e Pablo. Pedi à diretora da escola para distribuir o benefício
entre famílias com dificuldade de pagar a mensalidade dos filhos.
No dia seguinte à expulsão de Giordano, fui para o trabalho
com o desejo de criar uma escola especial para ele, uma escola da
qual nenhuma criança com autismo fosse excluída por suas dificulda-
des. Talvez pela formação profissional ou pelas dificuldades apresen-
tadas por meus filhos, em especial Giordano, desde o início idealizei
não apenas uma escola, mas um centro onde se integrassem ações de
saúde e educação especializada para pessoas com autismo. Uma outra
ideia também começava a tomar forma: não se estabeleceria limite de
idade para o atendimento da clientela, o projeto cresceria junto com
os clientes. Até então, só se conheciam crianças com autismo, mas elas
iam crescer e com elas os desafios, ainda ignorados, de tornar-se adul-
to e envelhecer com autismo.
Ao chegar ao trabalho, fui procurada pelas mães das crian-
ças que haviam sido beneficiadas pela subvenção social. Eu não sabia
quem recebera o benefício, mas elas me conheciam e, gratas, me pro-
curaram, mostrando-se solidárias com minha dor. Estavam também
temerosas pelo futuro dos filhos. Expus-lhes meus planos, e o que era
medo transformou-se em coragem e esperança. Começamos a elabo-
rar um projeto, a fazer contatos e tomar providências. Em outubro do
mesmo ano, inauguramos a Casa da Esperança.
Convidei um amigo psiquiatra para dirigir a organização. Con-
tratamos uma equipe multidisplinar e para cada um dos dez alunos
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fundadores, um cuidador exclusivo, que chamamos de agente te-
rapêutico. Nós não sabíamos, mas aquela pequena organização, em
pouco tempo, seria a maior organização brasileira especializada no
atendimento a pessoas com autismo.
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pulsivamente mordia o lábio inferior com muita força e me olhava nos
olhos, como se estivesse tão espantado quanto eu. Wanderley Gradela,
o rapaz que acabara de conhecer, olhou-me e, solidário, perguntou o
que devia fazer. Eu disse: “Vamos levá-lo para a cama e segurá-lo para
que não possa fazer isso, enquanto penso em algo melhor”.
Deitamos Giordano, coloquei-lhe um pano entre os dentes
sem que ele opusesse resistência. Pareceu achar adequada a provi-
dência. Eu lhe segurava uma mão, Wanderley a outra e, durante a
contenção, fazíamos carinho em sua cabeça e conversávamos com
ele. Tudo ficava bem, desde que não lhe soltássemos nenhuma das
mãos. Quando isso acontecia, ele retirava o pano e voltava a morder-
-se, compulsivamente. A presença de Wanderley me trouxe calma
para gerenciar o maior desafio de minha vida. Foi assim, com um
desconhecido em casa, no meu quarto, que pude receber médicos e
terapeutas e ouvir-lhes a opinião sobre o que deveria ser feito. Foram
prescritos vários medicamentos, que se revelaram inúteis nos dias
seguintes. Minha família se desdobrou, cuidando das outras crian-
ças, e Tânia, minha irmã mais nova, se revezava comigo e Wanderley
na contenção de Giordano. Nada parecia surtir efeito. Os médicos
começaram a falar em internação. Na época, essa palavra me soava
terrível. Fui taxativamente contra.
Após uma semana, as visitas à minha casa, fossem de médicos
ou familiares, começavam a ter como único fim me convencer a inter-
nar meu filho num hospital psiquiátrico, todos unânimes em dizer que
eu não podia mais prolongar aquela situação, que eu estava prejudicando
meus outros filhos. Tentaram me fazer ver a gravidade do problema
de Giordano e a “imprudência” de deixar as outras crianças presenciar
aqueles bizarros e dolorosos acontecimentos. Acusavam-me de estar
destruindo a família. Palavras sem sentido para mim: éramos uma famí-
lia, íamos sobreviver àquilo. Não podíamos nos separar ou abandonar
um dos nossos apenas porque ele estava sofrendo.
Uma noite, sentindo-me especialmente sozinha e incompre-
endida, expulsei todos de casa. Não era aquela a ajuda de que eu
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precisava. Além das crianças, nessa noite, ficamos apenas eu e Wan-
derley. Lembro-me de ter-lhe perguntado por que não fora embora
também? Por que ainda estava ali? Ele disse: “Eu não sei. Mas sei
que você pode contar comigo”. Abraçamo-nos e choramos juntos,
de desespero e de esperança.
No dia seguinte, recebi a visita de um espírita famoso na cidade.
Chamava-se Benvindo Melo. Um homem bom e culto que eu conhe-
cera quando Giordano tinha uns 4 anos de idade. Alguém havia suge-
rido que o problema de meu filho era espiritual. Não acreditava, mas,
como qualquer mãe, faria o que quer que fosse para ajudar meu filho.
Logo na primeira consulta, o irmão Benvindo me explicou que o caso
do Giordano era orgânico, ele tinha um problema no cérebro sobre o
qual a medicina sabia pouco. Disse ainda que ele poderia beneficiar-
-se de um tratamento espiritual e se dispôs a atendê-lo aos sábados.
Foi uma experiência muito intrigante para mim. Levava Giordano até
a Federação Espírita Cearense e ficava sentada numa cadeira lendo e
olhando aquele senhor maduro brincar com meu filho durante duas,
três horas seguidas. Parecia mais uma intervenção terapêutica. Ainda
bem, pois, apesar de na época não acreditar em espíritos, tinha um
certo medo deles. Mas Giordano adorava aquela interação e eu ficava
admirada com o compromisso e a disponibilidade daquele homem.
Ele era um jurista culto, um homem abastado que dizia conversar com
espíritos e reservava boa parte do tempo para atender, gratuitamente,
um grande número de pessoas com diferentes tipos de problema. Ele
respeitava meu ceticismo e eu sua crença, mas, de fato, Giordano me-
lhorou muito nessa época. Tanto que, aos poucos, deixei de levá-lo à
terapia espiritual.
No dia em que o irmão Benvindo foi visitar Giordano, fazia
um mês que ele começara a morder a boca. Mesmo com todos os cui-
dados, já tinha conseguido fazer um grande estrago em si mesmo. O
irmão Benvindo rezou, com as mãos estendidas sobre meu filho. De-
pois, conversou longamente comigo e, por fim, disse: “Você fez mui-
to bem em não internar seu filho. Logo vai aparecer uma saída. Esse
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menino tem muito para lhe ensinar e, por causa dele, você ainda vai
poder ajudar muita gente com autismo”.
No dia seguinte, resolvi ligar para o psiquiatra carioca Chris-
tian Gauderer, que prescreveu um neuroléptico, a tioridazina, que
ainda não havia sido tentado. Magicamente, Giordano parou de mor-
der a boca. Havia se passado trinta dias e trinta noites de apreensão
e sofrimento.
Uma amiga que acompanhara todo o drama da nossa família
me ofereceu uma mansão na praia e fomos, todos juntos, restaurar as
energias. Rapidamente, entramos em outra sintonia e curtimos com
alegria o restabelecimento de Giordano e o milagre daquele novo mo-
mento. Giordano entrou numa fase muito boa, mas agora eu sabia que
nunca mais deveria me afastar dele.
O Anjo da Guarda
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multiprofissional. Conseguimos a aprovação do projeto na Secretaria
de Educação do Estado, e a partir daí, minha vida profissional tomou
um outro rumo.
Alexandre demonstrava um compromisso muito grande com
a causa. Inteligente, determinado, afetivo, sonhador, foi despertando
em mim admiração, respeito e, aos poucos, um amor que eu não sabia
ser capaz de sentir.
Começamos a namorar escondido. Eu era uma mulher públi-
ca, formada há treze anos, com uma carreira já construída e ele um
jovem universitário que mal passara dos 20 anos de idade. Quando
assumimos publicamente o namoro, foi um escândalo entre parentes
e amigos mais próximos. Para eles, não havia dúvida, eu enlouquecera
de vez. Primeiro resolvia largar tudo para me dedicar a uma organiza-
ção minúscula e a uma causa que parecia perdida. Depois, namorava
publicamente um rapaz que não tinha como fazer frente aos inúmeros
desafios de dividir a vida com uma mulher, mãe de quatro filhos, dois
dos quais autistas.
O projeto Amigos da Diferença foi nosso primeiro filho. Na épo-
ca, fazíamos formação em psicodrama, o que se revelou fundamental
para que déssemos conta de formar os cem cuidadores necessários à
implantação do projeto. Psicodrama é um método de terapia em grupo
criado por Jacob Levi Moreno, contemporâneo de Freud.
Em uma sessão de psicodrama, o grupo elege um protagonista
que participa da representação teatral de seu próprio “drama”. O grupo
viabiliza a visualização do drama protagônico e pode ensaiar várias
saídas para o problema. O grande objetivo da terapia psicodramáti-
ca é o desenvolvimento da espontaneidade, que, segundo o próprio
Moreno, é a capacidade de dar respostas novas a problemas antigos
e respostas adequadas a problemas novos. O psicodrama caiu como
uma luva para nós, que tínhamos um desafio inédito pela frente. De
fato, precisaríamos de muita espontaneidade.
Depois de entrevistarmos mais de quatrocentos jovens, inicia-
mos a qualificação dos cem cuidadores, chamados de agentes terapêu-
32
ticos. Inicialmente, formamos uma equipe de monitores, composta de
terapeutas e professores da Casa da Esperança. Para o treinamento, pro-
duzimos um material contendo informações atualizadas sobre autismo,
3
mas escritas de forma clara o suficiente, a fim de que pudessem ser mul-
tiplicadas, em novos treinamentos, pelos monitores formados.
O treinamento constava de aulas teórico-práticas, nas quais,
além da leitura em grupo do material por nós produzido sobre diver-
sos temas ligados ao autismo, eram associadas técnicas do psicodra-
ma que possibilitavam uma vivência maior dos problemas abordados.
Esse material deu origem a nosso primeiro livro sobre autismo, Ami-
gos da Diferença (1995), escrito por mim e Alexandre Costa e Silva.
Cada dupla de monitores formados ficou responsável pela
multiplicação da experiência, coordenando um treinamento de 240
horas, com vinte jovens pré-selecionados. De cada turma de vinte, dez
jovens foram contratados para trabalhar, por um ano, como agentes
terapêuticos domiciliares.
Esses cem jovens cuidadores contratados cuidavam de crianças
e jovens com autismo, em suas próprias casas, durante quatro horas
por dia, sob a orientação de uma equipe terapêutica multiprofissional
que atendia a clientela ambulatorialmente. Foi um grande desafio.
Paralelamente ao atendimento domiciliar das crianças com au-
tismo, realizávamos encontros sistemáticos com grupos de agentes te-
rapêuticos, pais e irmãos das pessoas com autismo, visando ao enfren-
tamento dos problemas através da metodologia do psicodrama. Foi um
período rico de vivências, em que as mais diversas situações ligadas ao
autismo puderam ser vivenciados coletivamente. Não conseguíamos
resolver todas, claro. Mas tínhamos a confortante sensação de não estar
mais sozinhos. O projeto Amigos da Diferença foi renovado por mais
dois anos e durou, portanto, três anos consecutivos, acabando por falta
de financiamento. Enquanto durou, ajudou muita gente. Era fantástico
ver jovens com autismo participando mais da vida familiar, ajudando
em tarefas domésticas, adquirindo mais autonomia e independência
em relação aos autocuidados, assim como mães sentindo-se um pouco
33
mais livres para cuidar de si mesmas e aprender sobre autismo, poden-
do entregar o filho a um cuidador durante pelo menos quatro horas
por dia. Pela intensidade e extensão da experiência, o projeto Amigos
da Diferença marcou profundamente todos os que dele participamos.
De registro, temos o livro e um filme intitulado Ilhas, que relata de for-
ma muito bonita a experiência.
Enquanto o projeto Amigos da Diferença crescia para fora dos
muros da organização, a Casa da Esperança se ampliava internamente.
Em pouco tempo tínhamos mais de 100 crianças atendidas em regime
de quatro horas por dia. Estabelecemos algumas parcerias e estávamos
conseguindo construir uma organização caracterizada, desde o início,
por sua metodologia multiprofissional, interdisciplinar e multimodal.
O grande número de pessoas atendidas pela organização nos
deu, muito cedo, a compreensão prática de que nenhum método da-
ria conta dos desafios do autismo. As pessoas com autismo eram
muito diferentes umas das outras. Algumas eram verbais, outras
conseguiam se comunicar por gestos, outras precisavam de rotinas
visuais e havia ainda as que rasgavam as rotinas que colocávamos
nas paredes.
Resolvemos que não iríamos forçar nenhum deles a se adaptar
a qualquer método, mas procuraríamos em todos os métodos disponí-
veis ajuda para os desafios de cada autista em particular.
Alguns princípios foram se delineando com passar do tempo.
A participação da família das pessoas atendidas era fundamen-
tal durante a elaboração, implementação e avaliação de cada plano te-
rapêutico. As próprias famílias precisavam, na maioria das vezes, de
ajuda, para que pudessem se reorganizar e dar suporte às suas crianças.
O conhecimento acumulado sobre autismo tinha de ser socia-
lizado, pois nas universidades não se ensinava o assunto.
O ensino de coisas práticas para pessoas com autismo era funda-
mental. Muitas crianças demonstravam dificuldade para usar o sanitário.
Outras não conseguiam alimentar-se sem apoio. Outros, muito inteligen-
tes, não sabiam andar sozinhos na rua e sobrecarregavam as famílias.
34
Prioridade absoluta deveria ser dada ao controle das emoções
das crianças e jovens com autismo. Era imprescindível ensiná-los e
às suas famílias a lidar com as crises e os desafios comportamentais.
Muitas famílias desesperadas amarravam os filhos, sem saber o que
fazer para conter as agressões que faziam a si mesmos ou a terceiros.
Nenhuma técnica aversiva poderia ser usada, sob nenhuma
alegação, durante o tratamento. Os autistas não podiam ser punidos
por seu sofrimento ou por nossa ignorância.
Aos poucos fomos encontrando parceiros. As almas afins aca-
bam se encontrando. Conhecemos Cátia Walter, Marguerita Cucco-
via, do Centro Ann Sullivan de Ribeirão Preto. Conhecemos Judith
LeBlanc, da Universidade do Kansas, e Liliana Mayo, do Centro Ann
Sulivan do Peru, autoras de um método de educação para estudantes
com autismo denominado Currículo Funcional Natural, com o qual
desde o início nos sentimos afinados.
Com o tempo, fundamentamos cientificamente nossos pro-
cedimentos. Tenho me dedicado, cada vez mais, à psiquiatria e à
neurociência para embasar minha prática clínica, e o Alexandre, à
neuropsicologia e às técnicas cognitivo-comportamentais.
A Casa da Esperança começou a ser um centro de estudos e
pesquisas sobre autismo. Estudantes e professores de várias uni-
versidades nos procuravam para a realização de trabalhos sobre
o tema. Muitos autistas famosos estiveram conosco e avaliaram
positivamente nosso trabalho, como Jim Sinclair, do Autismo
Network International, e Stephen Shore, especialista e autor de
inúmeros livros sobre autismo. Médicos como Walter Camargos e
cientistas como Erick Cushesne, da Universidade da Califórnia, e
Ami Klin, da Universidade de Yale, trouxeram até nós seu conhe-
cimento e expertise.
Ami Klin tem nos ajudado muito desde então, enviando im-
portantes experts americanos, das mais diversas áreas, para capacitar
in loco nossos profissionais, assim como diversos estudantes da Uni-
versidade de Yale para estágios em nossa organização.
35
Foi assim que estabelecemos parceria para realização de pes-
quisa na área de genética e autismo com profissionais da USP, de
Yale e da Universidade de Washington, coordenada por Thomas
Morgan. Foi assim também que nossos profissionais foram treina-
dos na metodologia SCERTS (Social Communication, Emotional
Regulation, Transactional Support) pela própria Amy Laurent, uma
das criadoras do método, antes mesmo da publicação do manual
SCERTS nos Estados Unidos, o que só ocorreria em 2007. Desde
2006, temos assumido esse modelo de forma cada vez mais inte-
gral, tendo em vista sua amplitude e visão respeitosa com relação à
pessoa com autismo. Neste livro, dedico um capítulo inteiro a seus
princípios e aplicação.
Nestes dezoito anos de atuação, temos realizado seminários
e congressos nacionais e internacionais sobre autismo. Participamos
ativamente dos movimentos sociais e conselhos de defesa dos direitos
humanos e de pessoas com deficiência. Em 2008, com companheiros
de todo o Brasil, como Argemiro e Mariene Garcia, da Bahia, e Fer-
nando Cotta, de Brasília, organizamos um encontro nacional para a
criação da Associação Brasileira de Ação por Direitos da Pessoa com
Autismo (Abraça). A associação congrega, além de pais e profissionais,
pessoas com autismo, tendo inclusive duas com síndrome de Asperger
em sua diretoria. Nothing about us without us, nada sobre nós sem
nós, o consagrado lema dos movimentos das pessoas com deficiência,
constitui um dos princípios da Abraça na luta pela inclusão social das
pessoas com autismo.
Ao longo dos anos, recebemos muitos prêmios que nos incen-
tivam a continuar o caminho em busca de atendimento de qualidade
para as pessoas com autismo e suas famílias.
Alexandre foi e é o grande amor da minha vida. Dezoito anos
se passaram daquele nosso primeiro empreendimento comum. De-
pois do projeto Amigos da Diferença, com ele publiquei meu primeiro
livro sobre autismo. Com ele tenho viajado o Brasil e o mundo apren-
dendo e ensinando como lidar com os desafios do autismo.
36
Com Alexandre tenho mais dois filhos, Gabriel e Maria Teresa,
que enchem nossa vida de alegria e novos desafios a cada dia. Com
ele, tenho também Giordano e Pablo. Pablo, sempre lindo, bom e sem
nenhuma história trágica a marcar sua vida simples e descomplicada.
Giordano, sempre com altos e baixos, nos aconselhando todo dia a
aprender mais e mais sobre as múltiplas possibilidades e limitações
das pessoas com autismo e suas famílias.
37
Pablo
38
Uma vez, estávamos eu e Alexandre estudando, quando demos
conta de que havia sumido uma garrafa de bebida. Ao chegarmos ao
jardim, Pablo promovia a maior farra com o irmão Giordano, um se-
gurava a garrafa de bebida e o outro uma lata de Nescau, um servia ao
outro a bebida, no gargalo, e outro lhe dava, na boca, uma colherada de
Nescau. Encontramos os dois, às gargalhadas, bêbados, sujos e felizes.
Pablo tinha 11 anos de idade.
Recentemente, quando escrevia este livro e já havia descrito o
episódio acima, novamente estávamos estudando e, desta vez, Alexan-
dre tomava um drinque com a garrafa de bebida em meio aos livros.
Ao notar a falta da garrafa, foi indagar se Pablo sabia do paradeiro da
bebida, achando que ele tivesse bebido e jogado o frasco vazio no lixo.
Como a maioria das pessoas com autismo, Pablo é meticuloso e organi-
zado, nunca deixa embalagens usadas espalhadas pela casa. Do seu jeito,
Pablo enfrentou Alexandre, revoltado com a injusta acusação. Olhou-o
com raiva, dentro dos olhos, levantou-se, abruptamente, do sofá onde
estava sentado e dirigiu-se até o quintal. Em um minuto, retornava com
a grande lixeira da casa e, mostrando-a a Alexandre, provou sua inocên-
cia do delito. Alexandre, claro, abraçou-o, pediu desculpas e alegrou-
-se com a capacidade de compreensão e comunicação de Pablo. Horas
depois, comprovou que Pablo “falara” a verdade: o próprio Alexandre
havia guardado a garrafa e depois esquecido onde a colocara.
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Uma vez levei uma assessora minha para almoçar em casa. Era
uma pessoa de cabeça aparentemente aberta, cheia de frases de efeito
sobre o respeito à diversidade humana, essas coisas. Quando estavá-
mos todos sentados à mesa, ela olhou para Giordano e disse: “Mas
ele é tão lindo, tão saudável. Não tem nenhuma cara de retardado!
Dá pena, Fátima”. Giordano levantou-se da cadeira, do outro lado da
mesa, puxou a cadeira de minha colega de trabalho e segurou-a pelo
braço. Apanhou a bolsa dela na sala e acompanhou-a até a porta da
rua. Depois de fechar a porta à chave, voltou e terminou tranquila-
mente o almoço. Claro que depois de tudo, rimos à beça e continua-
mos a almoçar, orgulhosos de nossa família.
Como todos os autistas, ele não liga muito para etiqueta so-
cial e não sabe disfarçar quando alguém o incomoda. Em nossa casa,
costumamos receber a família aos domingos para o churrasco, aliás,
como fazemos em todas as grandes comemorações. Isso acontece des-
de que os meninos eram pequenos. Creio que um pouco porque eram
muito hiperativos quando menores e eu ficava cansada de explicar o
comportamento deles nas festas, um pouco por sermos tão diferentes,
não nos incomodamos muito com a maneira de ser dos outros. Esse
respeito, acho, agrega pessoas. Talvez eu todo o tempo tenha desejado
que, no controle compartilhado das relações humanas, eles não fos-
sem minoria sempre; em minha casa, ser diferente é normal.
Mas claro que tudo isso não acontece sem regras, com os dois
rapazes autistas temos aprendido, inclusive, a assumir nosso lado
também autista e a ter os próprios momentos de solidão, necessá-
rios para o refazimento das refregas diárias. Desse modo, no fim das
tardes de domingo, quando as visitas costumam partir para os lares,
repletas de afeto e convivência, nos recolhemos em família, alguns
indo tirar um cochilo, outros curtir a tranquilidade de estar em casa.
Assim, de forma calma e introspectiva, costumamos terminar nos-
sos fins de semana.
Num desses domingos, as visitas já haviam saído. Eram cinco
horas da tarde e estávamos todos à mesa da cozinha, tomando um gos-
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toso café e nos preparando para o descanso, quando soa a campainha.
Eram amigos que, depois de outros programas, resolveram passar em
nossa casa para o churrasco, que já havia acabado. Foram muito bem
recebidos, sendo-lhes servido almoço, sobremesa e café, mas já num
clima pós-festa, meio cansado. Ao terminar o café, Giordano pegou
todas as bolsas e, de maneira a não deixar dúvidas, encaminhou todos
para seus carros, determinado a zelar pela rotina da família.
Outro episódio engraçado ocorreu exatamente na virada de
ano. Tomados daquela alegria e expectativa que antecede a chegada
do ano-novo, felizes por estarmos reunidos e com saúde, ajudados
pelo champanhe, que havia corrido solto, de repente, nossos maridos
e namorados nos colocaram nos braços e nos jogaram, sob resistência,
na piscina. Giordano, que assistira a tudo, gargalhava pelo insólito do
acontecimento, mas com o brilho no olhar que, já conheço, antecipa
grandes travessuras. Entrou em casa, minutos depois voltou corren-
do com a cadela nos braços e jogou-a na piscina. Foi um corre-corre
de mulheres tentando sair da piscina todas ao mesmo tempo, e um
momento de alegria louca e incomum, somente possível em famílias
como a nossa, onde tudo pode acontecer a qualquer momento. Gior-
dano nos lembrava de que nossa vida, pelo menos, ia continuar muito
movimentada no ano-novo.
Quando casei com Alexandre, ele e Giordano já eram grandes
amigos. Não foi uma transição difícil, pois Alexandre já frequentava
minha casa. Mas, com certeza, a receptividade de Giordano me ajudou
muito a tomar a decisão de casar. Antes de Alexandre, não me imagi-
nava mais dividindo o mesmo teto com ninguém. Sabia que mais que
uma mulher jovem e interessante, era um pacote complexo: uma mãe
de quatro filhos entrando na adolescência, todos homens, dois autistas,
sendo que um deles apresentava, vez por outra, explosões inesperadas
de fúria, quando ensinava de forma muito enfática, aos circunstantes,
qualquer desapego aos bens materiais. Aos 13 anos, Giordano já havia
destruído, nessas crises, televisores, livros, portas e muitos utensílios do-
mésticos. Eu costumava, na época, manter os possíveis pretendentes da
41
porta para fora. Dizia que existiam duas Fátimas, totalmente distintas: a
Fátima Dourado jovem, médica, razoavelmente bonita, mulher pública
que fazia conferências e dava entrevistas na televisão. Outra era a Maria
de Fátima, também jovem, que, apesar de médica, vivia sempre com
problemas financeiros e tinha de gerir uma família numerosa e muito
desafiadora. Em casa, o jaleco e o blazer eram trocados por um short e
uma camiseta. E haja tarefas escolares, brincadeiras, desafios, controle
de crises. Já me especializara em colar livros e xícaras e estava ficando
experta em restaurações em geral. Ninguém no mundo vai querer, vo-
luntariamente, viver experiências tão díspares e intensas, eu achava.
Mas aconteceu e foi com amor e gratidão muito grandes por
aquele jovem bom e corajoso que eu iniciei a segunda experiência de
casada. Mais uma vez a fé em Deus se viu ampliada, pois, além do
amor romântico, do sexo, dos desafios intelectuais compartilhados,
Alexandre tinha tudo o que eu precisava para unir as duas Fátimas
e seguir vivendo. Nem nos melhores sonhos, eu haveria de imaginar
uma solução existencial tão perfeita. Giordano, é claro, compreendia
e gozava esse momento, em sua plenitude. Enfim, uma família com-
pleta, com pai, mãe e irmãos com quem dividir a sua, então, pequena
e desafiadora existência.
Um dia, ao amanhecer, Giordano foi nos visitar em nosso
quarto. Chegou com o sorriso angelical que parece fazer o mundo in-
teiro sorrir junto com ele. Alexandre convidou-o a deitar conosco e ele
o fez. Abraçando especialmente Alexandre, olhou-o bem dentro dos
olhos e disse: “Papai”.
Aquele momento foi muito bonito. Sentimos, com os olhos
cheios d’água, que ele estava coroando nosso amor e reconhecendo
a condição legítima da nova e ampliada família. Alexandre lhe disse
palavras cheias de afeto e repetiu muitas vezes que o amava e sempre
cuidaria dele, pois ele também o escolhera como filho. Giordano se
deixou ficar um pouco mais. Quando o amor lhe bastou, levantou-se,
como é comum aos autistas, e foi fazer outras coisas, deixando-nos
plenos de amor e alegria, prontos para o dia que começava.
42
No dia seguinte, às seis horas da manhã, lá estava Giordano,
novamente, para nos acordar com um abraço, um beijo, um pequeno
momento de aconchego e a palavra mágica, desta vez dita no ouvido
de Alexandre, mas em alto e bom som: “Pai”. Feito isso, saiu sorrindo
para um novo dia de vida.
Nas manhãs que se seguiram, Giordano continuou com a roti-
na de nos despertar sempre no mesmo horário, com carinhos cada vez
mais rápidos e gritando agora, cada dia mais alto, a palavra pai.
No décimo dia, o despertar nada mais tinha de idílico e percebe-
mos que tampouco Giordano queria fazer declarações de amor. Enchia
os pulmões de ar e gritava muito alto no ouvido de Alexandre “PAAAI!”,
depois saía correndo, às gargalhadas, por ter despertado o pai daquela
forma. O controle sobre Alexandre, seu sono e seu humor, parecia deliciá-
-lo. Aos poucos, Alexandre foi ficando bravo com os gritos de Giordano e
agora eu é que ganhara uma nova rotina. Me acordava todos os dias com
Giordano gritando pai, a plenos pulmões, e Alexandre correndo atrás dele
escada abaixo, gritando também que Giordano não precisava acordá-lo
daquela forma e que ele tinha o direito de dormir em paz.
A cena se repetia diariamente. Resolvemos fechar a porta, mas
o barulho de Giordano continuava, pois ele batia forte e gritava pai até
que Alexandre abrisse a porta e descesse as escadas brigando com ele,
para que a rotina, então, fosse considerada cumprida.
Um dia, meu ex-marido e pai biológico de Giordano foi nos vi-
sitar, e como nosso despertar fosse o assunto mais falado no momento
em casa, comecei a contar-lhe o fato, meio automaticamente, entre um
café e outro. Giordano, que nessa época ainda era bastante hiperativo,
assistia à conversa rodando em torno da mesa onde estávamos. Quan-
do eu disse o primeiro pai, meu ex-marido começou a chorar. Du-
rante segundos que pareceram uma eternidade, me dei conta de quão
impróprio estava sendo meu relato, julgando-me a pior das criaturas,
sem saber o que fazer ou dizer para desmanchar a situação.
Giordano então, calmamente, puxou a cadeira vizinha à que
o pai estava sentado, tomou-lhe o rosto na mãos, olhou dentro de
43
seus olhos e disse: “Pai”. Dito isso, levantou-se e nos deixou, a mim,
aliviada com a saída milagrosa do embaraço em que me havia me-
tido, e a meu ex-marido, tranquilo com sua paternidade, embora
compartilhada, resgatada.
Quando Giordano estava com 20 anos, chegou meu primeiro
filho com Alexandre, o Gabriel. Todos estávamos felizes, mas ha-
via uma certa apreensão no ar. Giordano, mesmo depois de adul-
to, apresentava suas crises explosivas que, embora bem mais raras,
ainda aconteciam. Muitos me diziam que eu não tinha muito juízo,
pois Giordano poderia causar, mesmo sem querer, algum dano ao
recém-nascido.
No segundo dia em que Gabriel estava em casa, vimos Gior-
dano descer as escadas correndo, com o bebê nos braços e ficamos
em pânico. Mas a surpresa foi quando o vimos sentar-se na poltrona
da sala com o bebê no colo, como se fosse um jovem pai a embalar o
filho. Com cara de anjo, ele olhava Gabriel, com indescritível ternura.
O terno momento durou pouco, logo Giordano me entregou o bebê,
mas foi suficiente para que soubéssemos que aquele fora o batismo de
Gabriel. Giordano já entendera que a família tinha mais um membro,
e este era frágil e precisava ser tocado cuidadosamente.
Gabriel está com 12 anos e nunca foi machucado de nenhu-
ma forma pelo irmão. Pelo contrário, quando pequeno, Giordano se
divertia quando Gabriel disputava com ele algum brinquedo e ria, le-
vantando o braço com o brinquedo, mostrando sua superioridade físi-
ca, mas nunca reagiu, nem mesmo quando Gabriel lhe batia, tentando
tomar os brinquedos.
Muitas vezes, deitávamos Gabriel numa rede na varanda e era
muito bom ver o cuidado de Giordano, vasculhando a rede, quando ia
deitar, para se certificar se o irmão não estava lá dentro.
Não é apenas por crianças pequenas que Giordano desenvol-
veu esse cuidado, meio paternal. Também demonstra cuidado e ter-
nura com filhotes de animais. Temos muitos cachorros em casa. Uma
das cadelas havia dado cria e, às vezes, deixava os filhotes na varanda
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enquanto saía pelos jardins e quintal. Certa vez, encontramos Gior-
dano tirando calmamente cada um dos cachorrinhos recém-nascidos
de perto da rede onde estava, para logo depois apresentar um grande
ataque de fúria. Ao que parece ele conseguiu adiar a crise, para não
machucar nenhum dos cachorros-bebês.
Hoje, Giordano é um jovem senhor de 32 anos de idade. Pare-
ce muito cioso de suas limitações e demonstra, às vezes, sofrimento
com isso. Quando mais jovem desenvolveu intenso interesse afetivo e
sexual por garotas, mas sua abordagem era sempre muito direta e elas
brincavam com ele, mas nunca se interessaram de verdade. Continua
virgem. Aprendeu, no entanto, a viver solitariamente sua sexualidade,
sem incomodar ninguém.
Não aprendeu nenhuma profissão, mas ajuda em casa em pe-
quenas tarefas, como retirar do carro as compras do supermercado.
Sozinho, decidiu que ia frequentar a Casa da Esperança apenas no tur-
no da manhã. Faz sessões de fonoaudiologia e fisioterapia e participa
do programa de vivências terapêuticas. Vai a festas e passeios coleti-
vos. À tarde, fica em casa, vê televisão e “lê” livros e revistas com muito
interesse e concentração. É independente em relação a autocuidados,
no entanto sempre precisa de alguma supervisão. Adora televisão e ri
muito de videocacetadas e outras cenas engraçadas.
Não gosta de sair de casa. Mas nisso ele parece com o restante
da família, somos todos muito caseiros. Frequenta as casas dos irmãos
casados, basicamente, em dias de festa. Vai, de vez em quando, à praia
e só dorme fora de casa quando viajamos, em férias. Ele ficou mais
calmo com o tempo e hoje, dificilmente, alguém que não lhe conhe-
cesse a história diria que ele é autista, pois perdeu as estereotipias e
a hiperatividade e tem ficado cada vez mais atento ao mundo a seu
redor. Dorme sozinho em seu quarto e parece precisar muito dele.
Com o tempo aprendeu a se regular mais emocionalmente, isolando-
-se espontaneamente. Apresenta, ainda, grande labilidade humoral, às
vezes acorda de mau humor, porém logo depois o rosto se ilumina
como se fosse um sol, espalhando alegria e esperança.
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Tenho aprendido muito sobre autismo. Por causa dos meus
filhos e pacientes, voltei para a psiquiatria. Hoje, além de pediatra, sou
psiquiatra da infância e da adolescência e diretora clínica da maior
organização especializada em autismo do Brasil. Recebo crianças au-
tistas de todo o país e de algumas partes do mundo, em busca de diag-
nóstico e orientação. Convivo diariamente com cerca de quatrocentas
pessoas com autismo. Conheço de perto muitos desafios e muitas pos-
sibilidades humanas que se escondem debaixo desse rótulo. Aprendi
muito com os autistas.
Continuo gostando de ouvir e contar histórias, embora, ulti-
mamente, evite histórias que empurram as pessoas para baixo, para
porões obscuros, cheios de monstros e mistérios. Prefiro as histórias
reais de pessoas concretas, de preferência aquelas que pegam roteiros
preestabelecidos e os reescrevem, de forma original e criativa.
Quando eu tinha 16 anos, descobri um pensador que me in-
fluencia até hoje. Ele se chama Jean Paul Sartre, um ateu existencialista
que disse: “Não importa muito o que fizeram com a gente. O que im-
porta é o que podemos fazer com o que fizeram de nós”.
Giordano e Pablo, com seus mistérios, me levam constante-
mente a pensar em Deus e no sentido da vida. Como antes, continuo,
no entanto, a crer no livre-arbítrio. Existencialista e cristã, cito agora
Chico Xavier: “Ninguém pode voltar atrás e fazer um novo começo,
mas cada um pode começar, agora, a dar um outro final para a sua
própria história”.
46
2
DIAGNÓSTICO PRECOCE:
O AUTISMO NOS PRIMEIROS MESES DE VIDA
47
cem querer experimentar em si as sensações que o outro experimenta
com diferentes “caras e bocas”.
Com dez semanas de vida, bebês já discriminam e reagem
adequadamente a expressões faciais e estados emocionais (HOBSON,
2002; SIGMAN; KASARI, 1995). Maiores, acompanham o olhar de
pessoas próximas. Tentam adivinhar-lhes a perspectiva.
Em seguida desenvolvem linguagens para permear as relações
com os outros. Aninham-se jeitosamente nos braços da mãe, tornan-
do o ato de ser pego ao colo um carinho, um mimo para quem o faz.
Logo inventam uma linda fala, rica em prosódia, melódica e cheia de
significados e a ensinam para mães e cuidadores.
Assim que a coordenação motora permite, eles apontam. Pri-
meiro para declarar ao outro o que querem, logo depois apenas para
compartilhar, para convidar o outro a ver as coisas de sua perspectiva,
de seu ponto de vista.
Compartilhar, repartir, vivenciar com o outro as experiências
parece ser uma das atividades mais prazerosas para crianças pequenas.
Dessas experiências compartilhadas parecem surgir a fala e os
meios mais sofisticados de comunicação que irão se refinar ao longo
da vida, afirmando a importância do amor e do relacionamento no
desenvolvimento das crianças.
Crianças pequenas descobrem muito cedo que, se é bom com-
partilhar coisas e situações com as pessoas em geral, melhor ainda é
com seus pares, por isso se sentem irremediavelmente atraídas por
outras da mesma idade, com quem passam a dividir experiências reais
ou imaginárias.
Atualmente, sabemos que cerca de um por cento das crianças
nasce com graves dificuldades para o desenvolvimento de relações
sociais recíprocas. Toda essa predisposição inata para buscar, ativa-
mente, o outro e impressioná-lo parece faltar a essas crianças. São
crianças que irão desenvolver algum tipo de transtorno do espectro do
autismo. A maioria delas parece fisicamente perfeita e pode desenvol-
ver-se normalmente em muitos aspectos. Embora não seja incomum
48
apresentarem algum atraso nos marcos do desenvolvimento motor,
crianças com autismo geralmente começam a sentar, andar, pular na
idade esperada, mas falta-lhes curiosidade pelas pessoas, por seus jei-
tos de falar e agir, assim como capacidade para imitá-las e com elas
tentar espontaneamente compartilhar alegrias e frustrações.
4 Pesquisas recentes dão conta de que essas crianças desde cedo
apresentam alterações nos aspectos sociais do desenvolvimento.
Como esses marcos surgem anteriormente à linguagem e parecem ser
pré-requisitos para ela, psicólogos desenvolvimentistas sugerem que
a inabilidade social pode ser a base das dificuldades de comunicação
das crianças com autismo, as quais, por sua vez, levam a um desvio de
desenvolvimento das habilidades cognitivas.
O objetivo do diagnóstico precoce do autismo e, mais ainda, a
identificação de características preditoras do autismo são fundamentais
para que possamos atuar precocemente, possibilitando o desenvolvi-
mento nessas crianças de bases neurais mais compatíveis com o desen-
volvimento da inteligência social.
O Desenvolvimento da Subjetividade
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senvolvimento afetivo e social. E cada bebê faz isso de seu jeito. Desde
o primeiro momento de vida. Uns são muito ativos, logo se esticam e
se oferecem para ser pegos no colo; outros não choram nem sequer
para mamar, precisando ser acordados para isso. Alguns fazem caras e
bocas e não deixam que ninguém passe perto deles sem arrancar-lhe
um sorriso, um carinho, uma brincadeira. Outros soltam-se apenas
com os familiares e há ainda os que parecem não perceber quando
entram ou saem pessoas do ambiente em que se encontram.
Em torno dos nove meses a criança já deve apresentar sorriso
social, ou seja, deve sorrir espontaneamente em resposta a uma brin-
cadeira ou a um sorriso do adulto, sem que este tenha de fazer-lhe
cócegas para isso.
A segunda fase, a intersubjetividade secundária, é triádica e
marcada pelo compartilhamento de objetos entre a mãe e o bebê. Do
compartilhamento da atenção ao mesmo objeto parecem surgir inten-
ções também compartilhadas e os primeiros gestos de comunicação.
Aos poucos o bebê aprende a pedir, oferecer e apontar, voltando o olhar
para o olhar da mãe, para certificar-se da eficácia da comunicação.
Esses comportamentos são chamados de habilidades de aten-
ção conjunta. A atenção conjunta, fundamental para o desenvolvi-
mento da intersubjetividade secundária, é ainda um pré-requisito da
linguagem e da comunicação, assim como das habilidades de teoria
da mente, isto é, a capacidade de atribuir estados mentais a outras
pessoas e, depois, de predizer seus comportamentos com base nesses
estados internos.
O não desenvolvimento das habilidades de atenção comparti-
lhada entre nove meses e um ano de idade é um importante preditor
do desenvolvimento do autismo. No final do primeiro ano de vida, ao
ensaiar os primeiros passos, a criança já deve ser capaz de olhar para
um objeto mostrado por um adulto e acompanhar-lhe o deslocamento
com o olhar, assim como já deve ter desenvolvido a orientação social,
ou seja, a capacidade de virar-se para outra pessoa quando chamada
pelo nome.
50
É muito importante a identificação precoce da falta de
orientação social, da atenção preferencial por rostos e falas, assim
como do não surgimento da atenção compartilhada no primeiro ano
de vida. Não podemos esperar pelo surgimento dos sinais clássicos do
autismo para intervir. O cérebro, nessa idade, é bastante responsivo a
intervenções, o que torna possível o redirecionamento da atenção da
criança, preparando-a, com chances maiores de sucesso, para a aqui-
sição da linguagem simbólica.
51
3
O AUTISMO NO SEGUNDO ANO DE VIDA
53
Uma função social mais sofisticada do apontar é a expressiva,
declarativa. Nesse caso a criança aponta não mais para pedir, mas ape-
nas para mostrar o que está vendo e achando interessante. O que ela
quer quando aponta é ver a reação do adulto ao objeto mostrado. Em
geral, a criança olha para o adulto e perscruta-lhe a expressão facial,
analisando o tipo de emoção desencadeada pelo objeto compartilhado.
Esse modo de apontar é a base para a teoria da mente, pois aqui nosso
pequeno “psicólogo” começa a ter grandes chances de deparar com ou-
tros olhares e perspectivas diferentes da sua.
A imensa maioria das crianças com autismo não desenvolve a
habilidade do apontar meramente expressivo e, quando o faz, não se
dá o trabalho, com raras exceções, de investigar a reação do interlocu-
tor ao que lhe é mostrado.
Competência Comunicativa
54
a atenção compartilhada. Dizemos, então, que ela adquiriu compe-
tência comunicativa.
Quando a criança aprende a usar a linguagem verbal, também
usamos o conceito de competência comunicacional para avaliar a efe-
tividade e funcionalidade de sua linguagem. A atenção conjunta vai
continuar sendo importante fator para o desenvolvimento da lingua-
gem, pois somente prestando atenção no interlocutor e no contexto
comunicacional, a criança irá desenvolver as sutilezas e os cuidados
necessários para uma comunicação fluente e eficaz.
A criança com autismo, comumente, não desenvolve, de forma
adequada, a atenção conjunta, o que faz com que quase 50% delas nem
sequer desenvolvam a linguagem oral. A intervenção precoce tem, fe-
lizmente, mudado esse quadro. Na Casa da Esperança, onde atendemos
mais de cem crianças no serviço de intervenção precoce, com técnicas
de redirecionamento da atenção e estimulação fonoaudiológica intensi-
va de pelo menos duas horas diárias, tem sido possível mudar de forma
drástica essa estatística e cerca de 75% das nossas crianças, atendidas
precocemente, estão conseguindo se comunicar de forma verbal.
Crianças com autismo, mesmo depois de aprenderem a falar,
costumam apresentar déficits relativos à competência comunicacio-
nal: o uso da fala é, no geral, mais instrumental que expressivo. Por
exemplo, um pequeno paciente meu aprendeu a dizer tchau. Ele diz
tchau não para se despedir das pessoas e ser educado com elas, mas
para demonstrar que não quer coisas ou não está gostando de uma
situação: tchau escola, tchau tomar banho etc.
No segundo ano de vida ocorre, ainda, o desenvolvimento
do apego e da ansiedade de separação da mãe ou de outra figura de
referência. Podemos observar isso, por exemplo, quando a criança
desenvolve a marcha e começa a correr: é comum que ela olhe para
trás, a intervalos regulares, para certificar-se de que a mãe está lá. A
essa altura, a criança já sabe conciliar interesses e priorizar, ela quer
aventurar-se em novas experiências, mas sem perder de vista o adulto
que a acompanha.
55
As crianças com autismo, geralmente, passam muito menos
tempo perto dos pais ou cuidadores do que as crianças típicas. É fre-
quente serem descritas como sendo muito “independentes”. E quando
começam a correr, não olham para trás, não sendo incomum que se
percam, caso o adulto não fique de olho.
O isolamento social também fica claro nessa idade. As crianças
autistas costumam ficar sozinhas, mesmo numa sala cheia de pessoas.
Parecem ficar alheias aos acontecimentos, concentradas somente em
seus afazeres. Mesmo participando de uma festa de aniversário, não
conseguem identificar o centro dos acontecimentos e ocupam-se em
coisas que gostam de fazer, como ir para o pula-pula, por exemplo.
56
4
O AUTISMO DOS TRÊS AOS CINCO ANOS
Isolamento Social
57
Dificuldade de Comunicação Social
58
sem levar em conta o interesse do interlocutor. Tais crianças, embora
não apresentem dificuldades nos aspectos fonético e fonológico da
linguagem, exibem outras de ordem semântico-pragmáticas.
59
não por brinquedos. Algumas até brincam de forma adequada, com
brinquedos, mas preferem enfileirá-los, organizando-os por cores ou
tamanhos. Outras adoram brinquedos de montar, quebra-cabeças etc.
Mas todas apresentam dificuldades para brincar com outras crianças e
deficiência na capacidade de brincar de forma simbólica.
Dificuldades Adaptativas
Estereotipias Motoras
Dificuldades Escolares
60
Negam-se a participar das danças e apresentações de grupo e manifes-
tam diferentes níveis de déficits cognitivos. Muitas demoram a escrever
o próprio nome, tendo dificuldade para escrever de forma cursiva, em-
bora possam fazê-lo com letra de imprensa ou no computador. Muitos,
no entanto, revelam excelente memória e aprendem rapidamente os
nomes de cores, formas geométricas, letras e números. Alguns chegam
inclusive a alfabetizar-se sozinhos, antes dos colegas de turma. Todos,
no entanto, apresentam dificuldade nos aspectos sociais da inteligência.
Rigidez Comportamental
Interesses Incomuns
Desmodulação Sensorial
61
pos de alimento e têm muita dificuldade para fazer a transição de ali-
mentos pastosos para sólidos, o que acaba comprometendo também
a capacidade de desenvolvimento da linguagem, uma vez que a mus-
culatura usada para a mastigação precisa ser desenvolvida também
para a aquisição da fala. Existem, as que têm verdadeira aversão por
determinadas texturas, seja de algum tipo de substância cremosa ou
tecido que lhes encoste na pele.
É muito comum ainda a desmodulação sensorial proprioceptiva
ou insegurança gravitacional.
62
5
TRANSTORNOS DO ESPECTRO AUTISTA
Transtorno Autista
A História de Pedro
63
com o irmão. Pedro ficava mais forte a cada dia. Só no peito, mamava
e dormia, dormia e mamava. Era um bebê muito quietinho. Logo a
mãe pôde dividir sua atenção com Luciana, Pedro não dava trabalho.
Quase nunca chorava.
Aos três meses, Pedro já estava com oito quilos e chamava a
atenção pela beleza e saúde. Continuava crescendo e a mãe ficava des-
lumbrada com seu poder. Pedro nem sequer bebia água. Seu leite pa-
recia ser tudo o que ele precisava para viver.
Aos seis meses, Pedro segurava um brinquedinho e quase
nunca o soltava. A mãe e o pai faziam gracinhas, mas ele não dava
muita bola. Era muito na dele, dizia a mãe. As pessoas faziam caras e
bocas e Pedro não ligava, não sorria em troca. É muito sério, o meu
menino, dizia o pai. Isso é bom, não nasceu para ser político. Mas
Pedro ria, ria muito, quando lhe faziam cócegas ou mexiam fisica-
mente com ele, outras vezes ria sozinho, sem nenhum motivo apa-
rente. Nessa idade ele sentou sozinho, sem apoio. Aos nove meses,
arrastava-se, não engatinhava, mas arrastava-se até os objetos que
queria. A mãe brincava com ele, mas ele não a olhava nos olhos, não
apontava, pegava diretamente o queria: é muito independente o meu
rapaz, pensava.
Com um ano de idade, Pedro já estava dando alguns passos.
Os pais, pediatras, estavam radiantes, tudo corria bem no desenvolvi-
mento do menino.
Seis meses depois, Pedro era um belo e saudável garotinho. An-
dava para todos os lados, mexia em tudo, tudo virava um brinquedo
em suas mãos. Pedro só não era muito simpático. Nisso era o contrá-
rio da irmã, sempre muito serelepe, desde pequena mandava beijos e
dava tchau para todo mundo e não podia ver outra criança que já fazia
amizade. Mas os pais sabiam, as meninas se desenvolvem socialmente
antes dos meninos, inclusive falam mais rápido.
Aos 2 anos, Pedro ainda não falava nenhuma palavra e os pais
começaram a ficar preocupados, mas a avó paterna tranquilizou todo
mundo, seu filho mais velho só falou aos 4 anos de idade.
64
O segundo aniversário de Pedro foi um pouco chato. A festa
estava linda, todos os primos presentes. Havia palhaço, cama elástica,
muita brincadeira. Pedro chorou a festa inteira e, antes dos parabéns,
entrou no quarto e lá ficou tranquilo com seus brinquedos. A mãe dei-
xou passar um tempo e aos poucos resolveu trazer algumas crianças e
presentes para o quarto. Pedro teve uma verdadeira crise, chorou, es-
perneou, jogou os brinquedos pelo quarto e empurrou as crianças. Al-
5
gumas mães que haviam entrado com Luciana pegaram seus meninos
e, no jardim, cochichavam umas com as outras, que menino esquisito,
mimado, mal-educado. Se soubessem, não teria trazido o filho, para
ser empurrado daquele jeito.
Pedro, aos poucos, foi repetindo o comportamento nos
shoppings, em outras festinhas. Saía sempre gritando com as mãos
nos ouvidos. Os pais o levaram a um otorrino e foram pedidos mui-
tos exames. Tudo normal. Aos 2 anos e meio, só demonstrava interesse
por DVDs, principalmente da Xuxa. Ele pulava na frente da televisão.
Pulava e balançava as mãozinhas. Parecia que ia voar. Com o tempo
passou a balançar as mãos mesmo sem músicas. Depois foi desenvol-
vendo verdadeira fixação pela Xuxa. O DVD tinha de ser reproduzido
dez, quinze vezes, sempre visto com a mesma euforia, e sempre que era
retirado, parecia que o mundo ia acabar. Com 2 anos e oito meses, Pe-
dro entrou na escola, os pais estavam muito ansiosos, quem sabe agora,
no contato contínuo com outras crianças da mesma idade, o garoto não
desenvolvesse plenamente a fala e pegasse gosto de brincar com outras
crianças. No primeiro dia, tudo parecia que ia dar certo. Pedro adorou o
parquinho e não deu o menor trabalho para ficar na escola.
Mas a lua de mel com a escola durou pouco. Com uma semana,
as professoras não conseguiam tirar Pedro do parquinho. Ele gritava
como se estivesse apanhando dentro da sala de aula. Corria para o
parque e ficava lá sozinho. As professoras chamaram os pais e pediram
uma avaliação do menino, elas queriam uma orientação. Naquele dia
os pais ouviram pela primeira vez uma palavra que jamais esquece-
riam. Uma das professoras disse que achava o comportamento de Pe-
65
dro muito parecido com o de outra criança, dois anos mais velho que
ele, que já chegara na escola alfabetizado. A diferença é que o menino
mais velho falava muito e sabia tudo de dinossauros. O menino mais
velho era autista.
Os pais de Pedro fizeram uma busca na internet. Choraram mui-
to ao descobrir que Pedro se encaixava muito bem nos critérios diagnós-
ticos. Leram tudo o que encontraram e buscaram ajuda especializada.
Logo foi feito o diagnóstico de Pedro. O fato de os pais serem médicos
ajudou muito para que encontrassem profissionais competentes. Pedro
estava prestes a fazer 3 anos e os pais sabiam que nessa idade o cérebro
ainda está se desenvolvendo e muita coisa podia ser feita para que Pe-
dro encontrasse seu lugar no mundo. Eles estavam dispostos a tudo para
lhe oferecer o melhor que estivesse a seu alcance.
66
Alguns indivíduos com autismo são totalmente apáticos, iso-
lados, parecendo quase impermeáveis a qualquer contato social,
enquanto outros são desinibidos socialmente, podendo mesmo se
relacionar com um grande número de pessoas, mas de forma indis-
criminada, impessoal, performática, sem levar em conta os interesses
daqueles com quem se relacionam.
As dificuldades de comunicação e linguagem podem se mani-
festar através de um mutismo total e permanente, passando por todas
as nuanças relativas a quantidade e qualidade de linguagem expressiva
e receptiva, verbal e não verbal, até chegar a indivíduos logorreicos,
que “falam pelos cotovelos”, mas não adequam o discurso às necessi-
dades do interlocutor ou do ambiente em que se encontram.
As estereotipias caracterizadoras do autismo podem ser
motoras, tais como flappings, balanceios, tiques corporais, ou to-
mar a forma, no outro extremo do espectro, de um interesse in-
tenso e peculiar.
Autismo na CID 10
Autismo no DSM-IV
67
de Transtornos Mentais), denomina-os de transtornos globais do de-
senvolvimento e os divide em cinco categorias: transtorno autista; trans-
torno de Rett; transtorno desintegrativo da infância; trantorno de As-
perger; transtorno global do desenvolvimento, sem outra especificação.
Ambas as classificações acima são categoriais. Na prática clínica,
sabemos que existe um número muito maior de transtornos do que os
descritos nas classificações nosológicas. O conceito de transtornos do
espectro do autismo (TEA) é dimensional e tem sido bem mais utiliza-
do nos últimos anos, pois reflete melhor o fenômeno do autismo: um
verdadeiro arco-íris, considerando a diversidade de apresentações.
Atualmente, a maioria dos profissionais emite laudos diagnós-
ticos referindo-se a alguma das cinco categorias do DSM-IV, cres-
cendo diariamente o número de pessoas diagnosticadas como tendo
transtorno global do desenvolvimento, sem outra especificação, exata-
mente por ser uma categoria mais abrangente.
Neste capítulo, pretendemos nos deter um pouco mais em cada
uma das cinco categorias nosológicas descritas no DSM-IV.
Autismo Clássico
68
Existe uma importante contribuição genética na gênese do autismo.
O autismo não é resultado de famílias desajustadas, de mães
geladeiras ou de negligência parental.
Embora não exista cura ou remédio para o autismo, a inter-
venção precoce pode mudar drasticamente o destino dessas crianças.
Prevalência
Autismo e Gênero
69
por uma menina afetada. Um outro aspecto importante é que quan-
to mais grave o quadro, mais equilibrada a proporção entre os se-
xos. Quanto mais leve, maior a proporção de meninos em relação às
meninas: são seis meninos para cada menina no autismo sem asso-
ciação com retardo mental e de 1,5 menino para cada menina com
retardo mental grave.
Entre as hipóteses explicativas a de que os homens possuem
mais baixo limiar para a disfunção cerebral e, nesse caso, seria neces-
sário um dano maior para que uma menina desenvolvesse autismo. O
autismo também pode ser, pelo menos em alguns casos, uma condi-
ção genética ligada ao cromossomo X.
Critérios Diagnósticos
70
2. Prejuízo qualitativo na comunicação, manifestado por pelo me-
nos um dos seguintes aspectos:
– Atraso ou ausência total de desenvolvimento da linguagem
falada (não acompanhado por uma tentativa de compensar
através de modos alternativos de comunicação, tais como
gestos ou mímica).
– Em indivíduos com fala adequada, acentuado prejuízo na ca-
pacidade de iniciar ou manter uma conversação.
– Uso estereotipado e repetitivo da linguagem ou linguagem
idiossincrática.
– Falta de jogos ou brincadeiras de imitação social variados e
espontâneos apropriados ao nível de desenvolvimento.
71
Prognóstico
Síndrome de Asperger
72
como um péssimo anfitrião. Acha insuportável receber pessoas em
sua casa. Não consegue entender por que riem de piadas sem graça
ou por que perdem tanto tempo em conversas que, para ele, não
fazem o menor sentido. Nessas ocasiões, prefere retirar-se para ler
um livro em seu escritório.
Borcherds diz que nunca conseguiu acompanhar os códigos
não verbais da comunicação social, os significados que as pessoas
compartilham através das trocas de olhares, sutilezas, metáforas e pa-
lavras de duplo sentido. Tampouco identifica blefes e dissimulações.
À parte isso, Borcherds é um gênio. Já foi agraciado com o
Fields Medal, o equivalente ao Prêmio Nobel de Matemática.
Foi ouvindo uma palestra do médico Simon Baron-Cohen,
chefe do Autism Research Center, em Cambridge, sobre síndro-
me de Asperger que Borcherds descobriu que suas idiossincrasias
tinham um nome e gritou: “Este sou eu!” Imediatamente, o gênio
da matemática ofereceu-se como cobaia para pesquisas sobre a
síndrome de Asperger.
Se não levarmos em consideração a fama e o sucesso do per-
sonagem da história acima, podemos rapidamente perceber que casos
como esses não são muito raros. Todos nós temos um amigo ou paren-
te que, mesmo considerado muito inteligente, alia a seu conhecimento
ou expertise em alguma área uma grande dificuldade para se relacio-
nar, principalmente com o sexo oposto. É bem provável que pelo me-
nos boa parte dessas pessoas tenha uma forma branda de autismo, que
se denomina síndrome de Asperger.
As pessoas com síndrome de Asperger compartilham com
aquelas que têm autismo clássico as dificuldades para compreender
as regras e os códigos da vida em sociedade, sobretudo as regras não
ditas, sutis, subliminares. Podem ser considerados por muitas pessoas
como frios, pedantes ou insensíveis. Com precária capacidade empá-
tica, não captam, intuitivamente, os sentimentos, as emoções e inten-
ções das outras pessoas. Isso os torna muito ingênuos, desajeitados, às
vezes desastrados mesmo, socialmente falando.
73
Ao contrário dos autistas clássicos, as pessoas com Asper-
ger não apresentam déficit na inteligência e na linguagem verbal.
Mas o fato de serem os aspergeres falantes não os torna imunes às
dificuldades de comunicação. Geralmente demonstram problemas na
prosódia, semântica e pragmática da linguagem verbal.
Pessoas com Asperger costumam fazer longas digressões e mo-
nólogos sobre assuntos que lhes interessam, sem levar em considera-
ção os interesses do interlocutor. Comumente, são péssimos ouvintes,
a fala lhes serve para conseguir o que desejam e não, como dizem mui-
tos deles, para jogar conversa fora.
O padrão de comportamento, atividades e interesses repe-
titivos não se caracteriza, nas pessoas com Asperger, por flappings e
complexas estereotipias motoras, mas se manifesta através de focos
circunscritos e intensos de interesse.
É ainda muito comum a essa condição um jeito meio desen-
gonçado, resultado de uma certa incoordenação motora.
Histórico
74
capacidade empática e tendência a intelectualizar as emoções. Fala-
vam de forma prolixa e formal, parecendo pequenos professores. Ti-
nham intensos interesses por tópicos não usuais e uma certa incoor-
denação motora.
Ao contrário das crianças de Kanner, as de Asperger não
eram muito alheias ao ambiente, desenvolviam uma linguagem per-
feita, do ponto de vista gramatical, às vezes, precocemente. Asperger
chamou a atenção, desde o início, para a natureza genética da con-
dição que descobrira e levantou a hipótese de uma herança ligada
ao sexo masculino.
Infelizmente, o trabalho de Asperger somente tornou-se conhe-
cido em 1981, quando Lorna Wing publicou uma série de casos apre-
sentando sintomas similares. A síndrome de Asperger foi reconhecida
como entidade clínica a partir das publicações da CID 10 e do DSM-IV.
Critérios Diagnósticos
75
2. Padrões restritos, repetitivos e estereotipados de comportamento,
interesses e atividades, manifestados por pelo menos um dos se-
guintes quesitos:
– Insistente preocupação com um ou mais padrões estereotipa-
dos e restritos de interesse, anormal em intensidade ou foco.
– Adesão aparentemente inflexível a rotinas e rituais específicos
e não funcionais.
– Maneirismos motores estereotipados e repetitivos (por exem-
plo, dar pancadinhas ou torcer as mãos ou os dedos, ou movi-
mentos complexos de todo o corpo).
– Insistente preocupação com partes de objetos.
76
cientista americana que tem síndrome de Asperger, diz que, quando
pequena, pensava que as outras crianças eram todas telepatas, pois
conseguiam mesmo sem palavras comunicar muitas coisas entre si.
Como em geral são crianças muito inteligentes, é comum que,
quando pequenas, sejam confundidas com crianças superdotadas.
Temos atendido um grande número de rapazes com Asperger
que desenvolveram transtorno de humor na adolescência. A depres-
são, pelo menos em alguns casos, parece ser bastante relacionada à
frustração decorrente das fracassadas tentativas para conseguir ami-
gos desde a infância e, mais tarde, de conquistar uma namorada. So-
mente uma minoria dos jovens com Asperger consegue um relaciona-
mento afetivo e sexual estável. Literais, esses jovens sentem profunda
dificuldade de navegar nos mares do amor, repletos de diálogos de
duplo sentido e de juras nem sempre cumpridas.
Mas conheço pelo menos uma mulher que se sente muito rea-
lizada com o marido, que tem síndrome de Asperger. Segundo ela, o
marido leva muito a sério seus compromissos, gosta da rotina domés-
tica, é fiel e lhe garante uma vida sem grandes novidades, mas cheia de
prazer e tranquilidade.
Fala Característica
77
virou-se para ela e me chamou a atenção: “Veja, Fátima, que moça
feia. Eu nunca, em toda a minha vida, vi alguém tão feio assim”. Ex-
pliquei-lhe, depois da moça se afastar, que o comentário dele tinha
sido desnecessário e grosseiro. A moça devia ter ficado muito muito
triste, nenhuma moça gosta de ser chamada de feia. Ele pareceu en-
tender e disse-me, de forma muito sincera, que não tivera nenhuma
intenção de fazê-la sofrer. Para ele, a beleza não era importante, as
características que mais valorizava numa pessoa eram a inteligência
e a honestidade. Disse-me, ainda, que não gosta de fazer ninguém
sofrer e que daquele dia em diante nunca mais chamaria nenhuma
moça de feia. Passado algum tempo, uma senhora de meia-idade
veio visitar a Casa da Esperança. Quando nosso rapaz viu a visitante,
não se deixou inibir e disse, em alto e bom som: “Finalmente eu en-
contrei uma pessoa que posso chamar de feia. Pois a senhora além
de feia, é velha”.
Tenho um assessor com síndrome de Asperger, o João Paulo.
Ele é um rapaz inteligente, organizado, competente. Casado e bem
casado há dez anos, chamou-me a atenção desde o primeiro dia pelo
linguajar rebuscado e culto. Perguntei-lhe, na entrevista inicial, se ele
tinha filhos. Respondeu que ainda não, há despeito de estar tentando
diuturnamente há dez anos.
Um dia, ele falava com outros profissionais homens da orga-
nização sobre mulheres, quando alguém comentou: “Eu queria a Ze-
ta-Jones, aquela feiosa”, ao que ele revoltado interpelou, batendo na
mesa: “A Catherine Zeta-Jones é linda!” A turma então lembrou que
ele era asperger e emendou: “Isso é uma ironia, rapaz”. E ele, acalman-
do-se, avisou: “Por favor, me avisem quando quiserem ser irônicos”.
Memória prodigiosa e habilidades savants também são comuns
entre os aspergeres. Tenho como pacientes vários desenhistas, músicos
e pessoas com habilidades fantásticas em matemática e computação.
78
Dificuldades Motoras
Ensino Regular
Prognóstico
79
sinformação e do preconceito da maioria dos empregadores. Muitos
de nossos rapazes e moças, anseiam por um lugar ao sol e são profis-
sionais competentes, ciosos das obrigações.
A Casa da Esperança emprega em um dos setores mais impor-
tantes de sua estrutura, prioritariamente, trabalhadores com Asper-
ger: o setor de agendamento e confirmação de consultas. É um setor
onde não costuma haver faltas nem atrasos, onde os profissionais não
costumam perder tempo com fofocas, cada um cuida da própria vida.
É o setor mais organizado e estruturado da Casa da Esperança.
80
- Sociais: exibir sorriso social, usar brinquedos de forma
simbólica, expressar orientação social, desenvolver atenção
compartilhada e demonstrar interesse por crianças da mes-
ma idade.
- Comunicacionais: emitir as primeiras palavras e frases com
intenção comunicativa, ler e escrever na idade prevista.
- Motoras: sustentar a cabeça, sentar sem apoio, andar, correr,
desenvolver habilidades de coordenação motora fina etc.
6
A regressão, obrigatoriamente, terá de ocorrer em pelo menos
duas das seguintes áreas:
Curso
81
A deterioração descrita anteriormente é, quase sempre, acompa-
nhada por uma perda geral de interesse no ambiente e nas pessoas,
assim como pelo desenvolvimento de movimentos estereotipados
e repetitivos.
Em alguns casos, podem ocorrer sinais preditores do problema
que incluem hiperatividade, irritabilidade e ansiedade. Na maioria das
vezes, a perda de habilidades alcança um platô após o qual pode se se-
guir alguma melhora. Em outras, a perda de habilidades é progressiva.
O transtorno segue um curso contínuo e, na maior parte dos casos,
vitalício. A maioria dos indivíduos com transtorno desintegrativo da
infância evolui para um retardo mental grave.
Critérios Diagnósticos
82
– Prejuízo qualitativo na comunicação (por exemplo, atraso ou
ausência de linguagem falada, incapacidade para iniciar ou
manter uma conversação, uso estereotipado e repetitivo da
linguagem, ausência de jogos variados de faz de conta).
– Padrões restritos, repetitivos e estereotipados de comporta-
mento, interesses e atividades, incluindo estereotipias motoras
e maneirismos.
Síndrome de Rett
83
homenagem ao cientista vienense que identificara pela primeira vez
o problema.
Diagnóstico
84
- Bruxismo (ranger os dentes).
- Distúrbios do sono.
- Tônus muscular anormal.
- Distúrbios vasomotores periféricos (pés e mãos frios ou
cianóticos).
- Cifose/escoliose progressiva.
- Retardo no crescimento.
- Pés e mãos pequenos e finos.
Evolução Clínica
85
2. Etapa rapidamente destrutiva, dos 2 aos 4 anos de idade,
marcada por grave regressão psicomotora que pode ocor-
rer em algumas semanas ou meses:
– Perda da fala e do uso intencional das mãos (função
práxica), que é substituído por estereotipias manuais;
– Distúrbios respiratórios (apneia ou hiperventilação);
– Distúrbios do sono;
– Manifestações de comportamento autístico;
– Crises epilépticas.
86
problema. Algumas evidências sugerem uma deficiência pós-natal no
desenvolvimento sináptico.
Atualmente, sabemos que os homens podem ser afetados
por essa condição em algumas circunstâncias: meninos que pos-
suem comorbidade com a síndrome de Klinefelter, meninos que
apresentam grave encefalopatia e irmãos de meninas afetadas que
nasceram com prejuízos neurológicos graves, tendo geralmente
morte precoce.
A sobrevida na síndrome de Rett é geralmente reduzida e a
morte ocorre, em geral, como resultado de causas infecciosas e com-
plicações respiratórias, possivelmente relacionadas à escoliose grave
ou durante o sono (morte súbita). Mas há registros de portadoras de
Rett com 60, 70 anos.
Ainda não existe tratamento específico para a síndrome de Rett.
O tratamento, atualmente, visa melhorar a mobilidade, o controle das
convulsões e a qualidade de vida das pacientes.
A fisioterapia deve ser utilizada da forma mais precoce e in-
tensa possível para prevenir escolioses, rigidez, pé equino e favorecer
a mobilidade. A musicoterapia tem sido usada na Europa desde 1972
com sucesso aparente e pensa-se que será benéfica para reduzir os
movimentos compulsivos das mãos e para aumentar a capacidade de
atenção. Aparelhos ortopédicos, massagem subaquática, hidroterapia
têm apresentado alguns resultados.
Cuidados com higiene bucal são importantes para evitar cáries.
É importante estimular a marcha e todo movimento voluntário, buscan-
do sempre a melhoria da qualidade de vida das pacientes.
Genética
87
outros genes desde o desenvolvimento embrionário. Ele codifica uma
proteína responsável pela expressão de vários genes, imprescindíveis
para o desenvolvimento dos neurônios. Como o MECP2 não funciona
adequadamente, ocorre um grave e precoce comprometimento no de-
senvolvimento neuronal na síndrome de Rett.
Critérios Diagnósticos
88
Transtorno Global do Desenvolvimento, sem Outra Especificação
89
Transtorno de Evitação Patológica das Demandas (EPD)
90
transtornos de vínculo mimetizam o transtorno autista: a maior parte
das crianças desenvolve estereotipias motoras, grande dificuldade de
interação social e de comunicação. Mas, ao contrário das crianças com
autismo, as que apresentam transtorno de vinculação obtêm rápida
recuperação das habilidades sociais e de comunicação, quando ado-
tadas por famílias emocionalmente estáveis. Na CID 10 e no DSM-IV
os transtornos de vínculo não estão classificados entre os transtornos
autistas, mas costumam ser frequentemente confundidos com eles, na
prática. Admite-se, inclusive, que boa parte dos relatos divulgados de
crianças curadas do autismo trate-se, na realidade, de casos de trans-
tornos reativos da infância.
91
6
O DIAGNÓSTICO
93
3. Ser multiprofissional, ou seja, ser formada por profissio-
nais de várias especialidades, portanto, capacitada para
avaliar os múltiplos aspectos do desenvolvimento infantil
que costumam estar alterados no autismo.
4. Estar aberta à interdisciplinaridade, de tal forma que os
membros da equipe possam ajudar-se mutuamente duran-
te a avaliação.
94
Algumas Questões Importantes
95
Avaliação
Anamnese
96
mentais em parentes próximos. Em alguns casos, já conseguimos nes-
se momento do diagnóstico identificar irmãos também autistas ain-
da não diagnosticados, ou porque apresentavam características mais
brandas ou porque eram muito pequenos e não tinham desenvolvido
as características mais específicas do autismo.
Causas ambientais – houve problemas durante a gravidez e
o parto? A mãe teve alguma infecção quando estava grávida? Houve
ameaças de aborto? Como foi o parto? O bebê foi prematuro, apre-
sentou dificuldades respiratórias ou teve de ficar na UTI neonatal?
Muitas pesquisas mostram que há uma incidência bem maior de
7 complicações pré- e perinatais envolvendo o nascimento de crianças
autistas do que na população em geral. Infecções, anóxia e exposição
a agentes teratogênicos estão entre os fatores mais comumente rela-
cionados ao autismo.
Em nossa prática, temos deparado, nos últimos anos, com uma
frequência significativa de casos em mães que fizeram uso do abor-
tivo misoprostrol, comercializado com o nome de Citotec. Algumas
dessas crianças desenvolveram autismo e outras, síndrome de Mo-
ebius com características autísticas. A síndrome de Moebius é uma
doença caracterizada por paralisia facial, quando é afetada a muscu-
latura facial responsável pela expressão das emoções e do movimento
dos olhos (estrabismo).
Observação Direta
97
ADOS (Autism Diagnostic Observation Schedule). O ADOS consiste
numa série de apelos lúdicos que objetivam criar situações nas quais
as crianças podem demonstrar suas habilidades sociais e comunicati-
vas, assim como sua maneira de se relacionar com os brinquedos.
Achamos importante destacar pelo menos três aspectos da ava-
liação clínica que consideramos imprescindíveis para o diagnóstico e
para a elaboração de um bom programa de intervenção.
98
A criança autista, normalmente, apresenta sérias limitações no
uso de gestos convencionais (por exemplo, mostrar, acenar, apontar).
Quase universal em crianças autistas não verbais é o hábito de usar
pessoas como ferramenta para conseguir seus objetivos. Geralmente a
criança segura na mão ou no braço do adulto e o leva até onde se en-
contra o objeto de seu desejo ou lhe indica a ação que deseja realizar.
Na impossibilidade de usar gestos simbólicos, muitas crianças com
autismo podem desenvolver padrões não adaptativos de comunicação
como gritos e agressões. É possível ainda que manifestem uma lingua-
gem idiossincrática e inintelegível.
Outro comportamento verbal não convencional, bastante co-
mum em crianças com autismo, é a utilização de ecolalia imediata
ou tardia.
Finalmente, a criança autista pode fazer uso não funcional de
objetos e brinquedos. A dificuldade de brincar de forma simbólica
ou imaginativa é uma das características das crianças autistas nos
anos pré-escolares.
Avaliação sensorial
99
los desenvolvam comportamentos desafiadores ou estereotipias, como
forma de autoestimulação.
Exame Físico
Condições Associadas
100
ocorrer malformações em um ou vários órgãos, sendo que os mais
comumente afetados são o sistema nervoso central, a pele, os rins e o
coração. Estudos mostram que a associação entre esclerose tuberosa
e autismo é da ordem de 17% a 68%, ou seja, esse é o percentual de
indivíduos com esclerose tuberosa que desenvolve sinais de autismo.
Um percentual significativo, de 0,4 a 4%, de pessoas com autismo, por
sua vez, apresenta esclerose tuberosa. O desenvolvimento do autismo
em pessoas com essa condição parece ser consequente às lesões no
sistema nervoso central, já tendo sido encontrados, em indivíduos
afetados, túberos no lobo temporal, região importante do que hoje de-
nominamos cérebro social.
Neurofibromatose – o sinal característico da neurofibroma-
tose são as placas cor de café com leite, que aumentam em tamanho e
número com a idade. A presença de um número superior a cinco com
mais de 1,5 centímetro é sugestiva do problema. Sardas nas axilas e
nódulos cutâneos e subcutâneos também aparecem, geralmente, no
final da infância.
Síndrome fetal alcoólica – as crianças afetadas apresentam re-
dução no peso, altura e circunferência da cabeça desde o nascimento.
São características, ainda, fissuras palpebrais curtas e hiperatividade.
Na Casa da Esperança, onde atendemos 400 pacientes com
autismo em regime de quatro ou oito horas por dia, existem casos
de autismo associados a síndrome de Down, síndrome de X-frágil,
esclerose tuberosa, deficiência auditiva, deficiência visual, síndrome
de rubéola congênita, infecção pré-natal por citomegalovírus, parali-
sia cerebral, miopatias, microcefalia, síndrome de Moebius, síndrome
de Angelman, síndrome de Williams, síndrome de West, Cri-du-chat,
Cornélia de Lange, Prader-Willi e distrofia muscular de Duschene.
Na prática clínica temos comprovado o que indicam todos os
estudos de autismo, a maioria das pessoas com autismo apresenta al-
gum grau de deficiência intelectual.
Existe também uma associação importante entre autismo e
alguns transtornos mentais, principalmente TOC (transtorno obses-
101
sivo compulsivo), TDAH e transtornos de humor. Embora a associa-
ção com transtorno de humor seja frequente em indivíduos de todo o
espectro autista, a maioria de nossos pacientes que apresentam TOC,
TDAH e depressão unipolar são crianças e jovens com síndrome de
Asperger ou autismo de alto grau de funcionalidade.
O Diagnóstico
102
7
INTERVENÇÃO PRECOCE
103
Temos assistido a polêmicas apaixonadas sobre o desafio da in-
clusão de crianças com autismo na rede regular de ensino. Achamos
que esse é um dilema falso que se coloca para as famílias de crianças
com autismo: elas têm direito à escola regular e a um atendimento
terapêutico especializado, inclusive no que diz respeito à educação.
Raríssimas são as crianças autistas que poderão se desenvol-
ver apenas com o recurso da rede regular de ensino. A própria escola
regular necessita de apoio para atender às especificidades da criança
autista. A escola regular nunca vai substituir as organizações espe-
cializadas em seus objetivos de trabalhar as dificuldades básicas do
autismo, estimular a comunicação social, verbal e não verbal, su-
perar os desafios específicos das desmodulações sensoriais, ensinar
habilidades da vida prática e dominar os desafios comportamentais.
E mesmo no que diz respeito ao aprendizado dos conteúdos acadê-
micos, essas crianças precisam, por seu estilo cognitivo, de reforço e
acompanhamento especializado, para que tenham maiores chances
de sucesso na escola.
Para que a criança autista tenha chance não apenas de ser in-
cluída, mas de permanecer, com sucesso, na rede regular de ensino, é
necessário o desenvolvimento de parcerias entre a equipe de especia-
listas que atende a criança, a escola e, principalmente, a família.
Como disse no capítulo relativo ao diagnóstico, o envolvimento
dos pais é, na nossa opinião, o mais forte aliado com que a criança
com autismo pode contar para seu desenvolvimento. Infelizmente, é
difícil o diagnóstico precoce e temos visto, com muita frequência, fa-
mílias que, mesmo sabendo das dificuldades do filho, tentam de toda
forma evitar o diagnóstico. Parece que, para essas famílias, é o diag-
nóstico que vai retirar sua criança do rol dos “normais” e incluí-la nas
estatísticas das pessoas com deficiência.
Temos, com muito cuidado, informado aos pais dos nossos pe-
quenos pacientes a importância do acompanhamento dos irmãos. É
com relativa frequência que identificamos nessas crianças sinais de
autismo. Infelizmente, mesmo nesses casos, não é raro o adiamento de
104
uma avaliação rigorosa e precoce e, com ela, a chance de uma inter-
venção mais eficaz.
Acompanhamos a luta heroica de muitas famílias em busca
de ajuda para os filhos autistas. Mas testemunhamos também muita
dor e desespero, ligados ao diagnóstico do autismo. Existem casos,
inclusive, de famílias que se recusam a aceitar que o tão sonhado
filho não tenha saído à sua imagem e semelhança. De tudo, fica uma
certeza. Os familiares também são diferentes entre si, mas todos pre-
cisam muito de apoio nessa caminhada. Os grupos de mútua aju-
da são importantes, pois proporcionam aos pais a possibilidade de
aprender, uns com os outros, estratégias de superação dos próprios
dramas pessoais, enquanto enfrentam os desafios concretos de criar
uma criança com autismo.
Como todo programa de intervenção precoce, o nosso
também possui um referencial teórico que lhe dá consistência e
orientação: somos discípulos dos teóricos desenvolvimentistas e,
nesse sentido, buscamos compreender os desvios e as características
do autismo, tendo como base o desenvolvimento das crianças típi-
cas. O contrário disso é também uma realidade, o entendimento do
autismo tem jogado novas luzes na compreensão dos processos do
desenvolvimento infantil.
Dentro dessa perspectiva, entendemos que, antes do surgimento
dos sinais clássicos do autismo, aparecem falhas nos marcos do desen-
volvimento, notadamente nos precursores não verbais da comunicação.
Todos sabemos dos determinantes biológicos e genéticos do au-
tismo. Mas acreditamos, firmemente, nas possibilidades epigenéticas,
na influência de um ambiente apropriado que possa fazer frente a esse
determinismo biológico. Se é verdade que a criança normal nasce com
predisposição inata de buscar, no ambiente, os fatores que vão ajudá-
-la no desenvolvimento de sua inteligência social; se é verdade, ain-
da, que das trocas mútuas entre o bebê e a mãe irão surgir o contágio
emocional, a imitação e a atenção compartilhada, das quais emergirão
a linguagem e as brincadeiras simbólicas, é daí que temos de partir.
105
Tudo leva a crer que ao déficit biológico inicial se somam, no
caso do autismo, os prejuízos de uma interação social precária, conse-
quente a esse déficit. Dessa forma é que se produzem os sinais clássi-
cos do autismo.
Apostamos na possibilidade de que, aos primeiros sinais da
deficiência inata da criança para buscar estímulos socialmente rele-
vantes, possamos juntar uma intervenção precoce e intensiva, a fim de
minimizar os sintomas da fase seguinte. Essa é a nossa aposta. Uma
aposta na neuroplasticidade e maior neurogênese do cérebro nessa
fase da vida.
Segundo os principais autores desenvolvimentistas, o autis-
mo resulta de uma falha biológica que afeta todo o sistema pré-lin-
guístico que habilita o bebê para a formação de sua subjetividade,
responsividade social e emocional, desenvolvimento da intersubje-
tividade e linguagem. Essas deficiências seriam a base dos déficits
cognitivos posteriores.
O objetivo central da intervenção precoce é, pois, atuar nesses
mesmos precursores, tentando refazer os caminhos neurais que não se
desenvolveram espontaneamente.
Nosso programa de intervenção precoce conta com uma
equipe multiprofissional composta de pediatra e psiquiatra da in-
fância e da adolescência, fonoaudiólogas, terapeutas ocupacionais,
psicólogos e pedagogos. As crianças são distribuídas em salas de seis
a oito e recebem atendimento individual e em grupo. A ênfase é dada
no desenvolvimento das competências comunicacionais e na regu-
lação emocional.
Todas as crianças recebem duas horas diárias de estímulo à co-
municação social. A estimulação ocorre de forma espontânea e semies-
truturada, através de brincadeiras, imitações, músicas, softwares educa-
tivos e vídeos infantis.
Como os bebês autistas apresentam déficits na capacidade de
imitação que prejudicam o estabelecimento da conexão emocional,
nosso programa, como muitos outros, utiliza-se da modelagem com-
106
portamental e da imitação, no sentido de facilitar o desenvolvimento
da sincronia emocional.
A regulação emocional é buscada através de adaptações no am-
biente, mudanças no tom de voz dos terapeutas, de forma a não so-
brecarregar ou subestimular as crianças com autismo que apresentam
desmodulações sensoriais. Muitas das crises comportamentais apresen-
tadas por essas crianças são consequentes a sobrecargas de estímulos do
ambiente ou, ao contrário disso, de tentativas de se autorregular senso-
rialmente. Através de “dietas sensoriais”, técnicas de integração sensorial,
técnicas cognitivo-comportamentais e terapia medicamentosa (quando
necessário), muito pode ser feito para ajudar as crianças a se regular
emocionalmente, tornando-as mais disponíveis para o aprendizado.
É muito importante que seja permitido à criança, às vezes, sair
da sala ou usar outros meios a seu alcance para evitar uma desregu-
lação ou sobrecarga emocional. Deve ser ensinado a ela como pedir
ajuda para sua própria regulação, assim como a utilizar meios de recu-
peração, quando de um episódio de desregulação maior.
Embora ainda exista muito preconceito por parte de alguns
pais e profissionais com relação a medicamentos, eles muitas vezes são
fundamentais para melhorar a atenção da criança, reduzir a hiperati-
vidade e labilidade emocional, medidas necessárias para maximizar o
efeito das intervenções terapêuticas.
Às famílias das crianças inseridas em nosso programa são
oferecidos os serviços de psicoeducação, reuniões periódicas com a
equipe terapêutica, terapia de grupo, assistência social e terapia breve
focada nos desafios do autismo.
São objetivos do programa de intervenção precoce da Casa
da Esperança:
107
4. Treino para o uso de gestos instrumentais.
5. Treino de atividades de vida diária.
6. Desenvolvimento da capacidade de regulação emocional.
7. Desenvolvimento de relações humanas significativas.
8. Desenvolvimento das competências comunicacionais e uso
de símbolos em ambiente naturais.
108
8
O MODELO SCERTS
109
O SCERTS, na realidade, é um trabalho de equipe, em que a
expertise de vários profissionais é somada ao conhecimento da famí-
lia para ajudar a criança a se desenvolver no maior número possível
de ambientes.
De acordo com o manual SCERTS (PRIZANT et al., 2006), o
foco do modelo são crianças do pré-escolar e ensino fundamental. No
entanto, muitos dos princípios lá constantes podem ser adotados para
jovens e adultos. O currículo é centrado no desenvolvimento de habi-
lidades que, normalmente, ocorrem dos oito meses aos 10 anos de ida-
de, mas todos sabemos que muitas pessoas com autismo continuam a
apresentar déficits desenvolvimentais até a idade adulta.
Comunicação Social
110
estratégia não funcionar (por exemplo, fala), a criança possa mu-
dar para outra (gestos, imagens, diferentes formas de comunicação
aumentativa e alternativa). Um alto nível de competência comuni-
cativa é definido pela flexibilidade da criança para usar diferentes
meios de comunicação.
Inclusão Escolar
Suportes Transacionais
111
Em uma sala de aula inclusiva, esses apoios podem consistir em
suportes interpessoais (por exemplo, ajustes no estilo comunicativo)
e suporte na aprendizagem (por exemplo, modificações ambientais e
curriculares). A implementação desses tipos de apoio individualizado
dentro das rotinas naturais e atividades de sala de aula ajuda a pro-
mover um ambiente inclusivo, propício ao desenvolvimento da regu-
lação mútua e da autorregulação, componentes essenciais do modelo
SCERTS. A capacidade de regulação emocional permite à criança,
tonar-se um membro mais ativo e participante do ambiente escolar.
Fazer da criança com autismo um membro ativo das atividades e roti-
nas escolares amplia, por sua vez, as possibilidades de aprendizagem.
Muitos dos suportes transacionais implementados pelos parceiros
(professores e colegas), sejam eles acomodações ambientais (redução
de estímulos) ou adaptações (suportes visuais), vão beneficiar todos os
alunos de uma sala de aula inclusiva.
O modelo SCERTS fornece um metodologia para o desenvol-
vimento de atividades sociais nos mais diversos ambientes, desde os
semiestruturados aos mais naturais. As prioridades de qualquer pro-
grama de educação para crianças com autismo deve ser, no entanto,
o desenvolvimento de habilidades funcionais na comunicação social
e regulação emocional. A família e suas prioridades devem ser con-
templadas na fixação dos objetivos e das metas educacionais e estes
devem sempre estar adequados ao nível de desenvolvimento da crian-
ça atendida. Se não incluirmos a família no processo, não vamos obter
êxito no empreendimento educacional, pois é na condição de familiar
que a criança com autismo vai participar da maioria das situações de
aprendizagem natural ao longo da vida.
As interações das crianças com autismo com outras sem ne-
cessidades especiais são vistas como uma parte essencial do apoio à
comunicação e do controle emocional no modelo SCERTS. Em con-
textos naturais de aprendizagem, existem inúmeras oportunidades
para desenvolver habilidades de comunicação funcional e social, as-
sim como de resolução de problemas. Essas oportunidades são fun-
112
damentais, ainda, para ajudar crianças típicas e outros parceiros a se
tornar pessoas mais sensíveis e habilidosas para desenvolver relações
com crianças com diferenças de desenvolvimento. A educação inclu-
siva é, portanto, uma oportunidade de propiciar o desenvolvimento de
habilidades sociais e de comunicação para todas as pessoas envolvidas
no processo.
O modelo SCERTS prevê a participação de familiares e de uma
equipe multiprofissional no desenvolvimento de atividades e estraté-
gias, por acreditarmos que essa é a configuração que melhor se adequa
às necessidades das crianças com autismo. O modelo é destinado a
todas as crianças com autismo. Não acreditamos, portanto, que ne-
nhuma criança esteja despreparada para participar do processo e ne-
8 cessite de um acompanhamento individual para adquirir prontidão
para isso. Não há evidências de que a aquisição de competências de
prontidão dessa forma seja um pré-requisito para o aprendizado e de-
senvolvimento de crianças com transtornos do espectro do autismo.
As metas nos domínios da regulação emocional devem ser definidas
e os apoios necessários fornecidos a partir do início do programa. O
estabelecimento das metas e suportes é que vai promover a atenção, o
envolvimento e a disponibilidade para aprender.
Etapas do Modelo
113
A Busca do Equilíbrio
114
9
DIFERENTES ABORDAGENS
Floortime
115
– Interesse especial pelo mundo das relações humanas.
– Habilidade para se comunicar em duas vias, emocional e
intencionalmente.
– Comunicação complexa, através do desenvolvimento da
habilidade de criar gestos complexos.
– Habilidade para expressar sentimentos e ideias.
– Habilidade para construir uma conexão lógica entre as
ideias e a realidade.
Método TEACCH
116
distinto, sendo elaborado para tirar proveito da força relativa que es-
sas pessoas teriam de processar informações de forma visual. O papel
do professor de um aluno com autismo seria semelhante ao de um
intérprete transcultural, ele traduziria as expectativas de um ambien-
te não autístico para o aluno: “Na verdade, o que tentamos fazer por
eles é o que nós desejaríamos para nós mesmos quando viajássemos
para um país estrangeiro, enquanto tentamos aprender algo da língua
estrangeira [...] ficaríamos muito felizes em ver sinais na nossa própria
língua e ter guias que pudessem nos ajudar” Gary Mesibov.
No método TEACCH, o currículo é individualizado e o am-
biente estruturado de forma a facilitar o planejamento e a execução
das atividades. As informações, frequentemente transmitidas de for-
ma visual, podem ser observadas pelas crianças nas paredes e são to-
madas medidas na organização do espaço para minimizar distrações.
Entre os princípios do método TEACCH estão: investigação
criteriosa das áreas de competência e interesse do aluno, avaliação
constante do processo de aprendizagem, assistência ao aluno para que
ele compreenda o sentido do que lhe está sendo ensinado e colabora-
ção dos pais no processo de ensino. O objetivo central do método é
proporcionar ao aluno condições para que possa se inserir na cultura
não autista, quando adulto.
Programa Son-Rise
117
– Deve-se participar do mundo da criança, imitando-lhe os
movimentos repetitivos e comportamentos como forma de
facilitar o contato e a interação social.
– Consideram-se os pais o recurso mais importante e dura-
douro da criança com autismo.
– É necessário manter uma atitude positiva e amorosa nas
intervenções e expectativas com relação à criança com autismo.
118
de habilidades sociais e de comunicação a pessoas com autismo. A ABA
é, então, uma linha de atuação do comportamentalismo na qual os con-
ceitos teóricos são aplicados a necessidades específicas do autismo.
A terapia comportamental utiliza-se sempre de um processo
constituído de três passos básicos:
PECS
119
ao desenvolvimento da comunicação mais usados para crianças com
autismo. Foi desenvolvido especificamente para esse fim. É um sistema
de ensino que permite à criança com pouca ou nenhuma habilidade
verbal comunicar-se através de figuras. As figuras (imagens ou foto-
grafias) são selecionadas de acordo com o repertório lexical da criança.
Pode ser usado em casa, na sala de aula ou em vários outros ambientes.
O programa começa ensinando a criança a usar uma figu-
ra para conseguir um objeto. Por exemplo, se ela quer uma bolacha,
precisa mostrar a figura da bolacha para o adulto, que responde ime-
diatamente ao pedido. As figuras são guardadas em um livro portátil,
coladas com velcro, para que possam ser facilmente removidas e reco-
locadas. O treinamento completo é feito em seis etapas diferentes, en-
volvendo diferentes interlocutores e contextos, no sentido de garantir
a efetividade da comunicação aprendida.
Aos poucos, a criança vai ampliando o vocabulário até formar
sentenças e ser capaz de expressar, através das figuras, necessidades e
desejos. Apesar do PECS ser baseado em ferramentas visuais, reforços
verbais são um componente do método e a comunicação verbal é bas-
tante encorajada.
120
máximo, situações artificiais. Como natural também são entendidas as
atividades adequadas a cada etapa da vida. Não faz sentido, segundo o
método, ensinarmos a adultos através de jogos infantis.
O objetivo central deve ser tornar o aluno mais independente,
prudutivo e aceito socialmente.
Dessa forma, o método preconiza evitar que sejam ensinadas
às crianças com autismo coisas que não lhes serão úteis na vida.
Um outro aspecto importante do Currículo Funcional Natural
diz respeito aos reforçadores: devem ser usados, sempre, reforçado-
res naturais, que são úteis para a maioria das pessoas. Não deve, por
exemplo, ser oferecido a uma pessoa com autismo um chocolate cada
vez que ela se comporta bem, pois, na vida real, isso não acontece. Um
sorriso, um elogio, além de mais efetivos, são mais naturais.
O ensino deve ser divertido para que haja uma chance maior
do aluno engajar-se, efetivamente, na atividade, e cada atividade ofe-
recida ao aluno deve ser planejada de tal forma que ocasione o menor
número de erros possível, o que também vai fazer com que o aluno se
torne mais confiante na própria capacidade de aprender.
O Currículo Funcional Natural tem, ainda, os seguintes prin-
cípios norteadores:
121
SCERTS
122
10
ABORDAGEM MEDICAMENTOSA
123
Infelizmente, existe grande desinformação e preconceito cer-
cando a psiquiatria, os transtornos mentais e a utilização de psicofár-
macos. Ninguém, em sã consciência, aconselharia uma pessoa com
diabetes a abolir a insulina ou um hipertenso a não usar remédios para
baixar a pressão. Quando o problema é no cérebro, a coisa muda de
figura. Muitas vezes, a falta de tratamento medicamentoso adequado
pode trazer sofrimento para uma pessoa com autismo e sua família.
Nos últimos vinte anos, temos vivenciado muitas histórias de sucesso,
mas, infelizmente, testemunhamos casos de crianças com excelentes
prognósticos, cujos pais, por ignorância e preconceito, deixaram de
tratar e, hoje, não mais conseguem conviver com os filhos dentro de
casa. Às vezes, é doloroso ver como várias famílias embarcam em tra-
tamentos que, sem nenhuma comprovação científica, prometem curas
milagrosas e retardam a instituição de um programa sério, que pode
fazer realmente a diferença na qualidade de vida do paciente.
Existem, no entanto, outras razões por trás da recusa em
medicar uma criança. Uma delas é assumir que o filho tem pro-
blema no desenvolvimento. Há uma enorme recusa em aceitar o
diagnóstico do autismo. Uma vez aceito, os pais insistem para que
digamos que o autismo da criança “é leve”. O uso do medicamento
é mais uma “prova” de que a criança não é normal. Mas é muito
importante que se explique que o medicamento pode, quando bem
indicado, ajudar a equipe terapêutica no tratamento dos problemas
específicos do autismo.
Um pai me disse, certa vez, que aceitava o filho do jeito que ele
era e que não iria lhe dar medicamento, pois não queria colocá-lo numa
camisa de força. É importante destacar que esse não é o papel do psi-
cofármaco. Não queremos arrancar nenhuma subjetividade da criança
com autismo, muito pelo contrário, o que queremos, muitas vezes, com
a medicação é livrar a criança de penosos rituais e comportamentos
compulsivos, ajudando-a a ter mais controle sobre si mesma.
O psiquiatra da infância e da adolescência dispõe de conhe-
cimento sobre as drogas que podem minimizar os problemas que
124
atrapalhem ou impeçam o aprendizado, o desenvolvimento e o con-
vívio da criança com autismo com seus pares. Claro que ele também
conhece os efeitos colaterais previsíveis de cada medicação e como
qualquer médico, de qualquer especialidade, vai sempre fazer um
balanço da relação custo e benefício ao prescrever um medicamento.
É saudável quando se estabelece uma relação de confiança entre o
médico e a família e quando o saber médico pode ser disponibilizado
para a criança ou o adulto com autismo que necessita realmente des-
se recurso.
Muitas crianças que tratamos, seguramente, não estariam in-
cluídas na escola regular se não tivessem controlado a agitação, hipe-
ratividade e agressividade. Muitos adultos não estariam convivendo
com as famílias se não existissem medicamentos capazes de reduzir
seus ataques de fúria e agressividade. Muitas crianças e adultos teriam
os sofrimentos agravados por seus tiques bizarros e complexos, que
foram aliviados pela terapia medicamentosa.
Achamos importante destacar um último ponto. Os medica-
mentos atualmente disponíveis não atuam sobre o autismo como um
todo. São destinados a sintomas-alvo e a avaliação de sua resolutividade
deve se dar em cima da avaliação dos sintomas.
Byrna Siegel, em O mundo da criança com autismo (2008),
elenca cinco critérios que devem ser usados na decisão sobre o uso
de psicofármacos:
125
Se a resposta a uma ou mais dessas questões for positiva, deve-
mos então iniciar uma prova terapêutica. É importante que o médico
diga aos pais exatamente o que se espera de efeito daquele medica-
mento, para que possam ajudar na avaliação da eficácia terapêutica.
Feitas estas considerações iniciais, passamos a elencar alguns
sintomas, comuns em pacientes com autismo, e os medicamentos que
comprovadamente têm se mostrado úteis na redução do problema.
126
aripriprazol. Estudos menores, demonstram a eficácia desses medica-
mentos em comportamentos disruptivos em indivíduos com autismo
(MCDOUGLE et al., 2002; STTIGLER et al., 2004).
O haloperidol e a tioridazina também têm sido largamente
utilizados para minimizar a auto- e heteroagressão em pessoas com
autismo e principalmente o haloperidol tem sido objeto de rigorosos
estudos para esse fim (ANDERSON et al., 1989; PERRY et al., 1989).
As propriedades farmacológicas dos neurolépticos tanto tradi-
cionais, como o haldol e a tioridazina, como os atípicos, a risperidona,
são derivadas principalmente da capacidade desses fármacos de regu-
lar a ação da dopamina. Essa capacidade de regulação, entretanto, é
responsável pelos efeitos colaterais e indesejáveis desses medicamentos.
(PALERMO; CURATOLO, 2004).
Discinesias
127
A carbamazepina é um medicamento anticonvulsivante que
pode ser bastante útil no tratamento de crianças que, embora não sen-
do hiperativas, tenham crises explosivas de agressividade. Traz, no en-
tanto, o inconveniente de necessitar de um monitoramento rigoroso
através de exames de sangue, em função de apresentar riscos de supri-
mir a capacidade do organismo de produzir determinadas células do
sangue (agranulocitose).
Embora se trate de um fármaco muito estudado no uso em
crianças com autismo, o resultado das pesquisas com o naltrexone são,
no entanto, bastante controversos. Na nossa prática, ele tem sido útil
em alguns casos de autoagressividade refratária, mas o efeito não cos-
tuma ser muito duradouro.
Mais usado em adultos, o lítio tem sua indicação em pessoas
com autismo que costumam apresentar explosões maníacas, de di-
fícil controle. Tal como o tegretol, o lítio exige monitoramento dos
níveis sanguíneos.
Já a trazodona pode ser útil em alguns casos de comportamento
autolesivo de difícil controle.
128
Comportamentos Ritualísticos
Estereotipias Motoras
129
devido às terapias, ocorre de fato uma modificação do comportamen-
to, podemos pensar em reduzir ou descontinuar o medicamento.
Alguns fármacos requerem a realização periódica de exames
de sangue para dosar a quantidade disponível no organismo. Isso é
necessário porque há uma grande diferença entre a velocidade de me-
tabolismo e o armazenamento dos fármacos de indivíduo para indi-
víduo. Outros medicamentos exigem que sejam feitos exames perío-
dicos como eletroencefalograma ou eletrocardiograma, em função de
possíveis efeitos colaterais.
Sabemos muito pouco sobre autismo, no nível molecular e neu-
ronal. Os avanços nesse sentido mostram-se insuficientes para que tenha-
mos medicamentos capazes de provocar mudanças efetivas e duradouras.
Conclusão
130
11
AS TEORIAS COGNITIVAS DO AUTISMO
Teoria da Mente
131
das outras pessoas e, em consequência, surgiriam dificuldades sociais,
comunicativas e de imaginação.
O termo teoria é usado porque os estados mentais não podem
ser observados. Podem ser apenas inferidos.
A maioria das crianças já possui uma teoria da mente operante,
ou seja, já é capaz de atribuir a si mesma ou aos outros desejos, cren-
ças ou intenções no terceiro ano de vida. Nessa idade, ela já consegue
distinguir um estado físico de um estado mental, bem como realidade
da fantasia e, por isso, brinca de faz de conta.
Podemos captar estados mentais através de indícios que os outros
nos fornecem pela expressão facial, tom de voz, jeito de olhar e gestos.
Já no primeiro ano de vida, a criança típica se dá conta de de-
terminados estados mentais alheios, como a atenção. Quando a crian-
ça aponta para mostrar um objeto e espera que o parceiro se volte
para o objeto que está mostrando, ela está atribuindo à outra pessoa a
capacidade de prestar atenção e está usando um artifício para focalizar
a atenção do outro. O apontar protodeclarativo (apontar apenas para
chamar a atenção) seria um precursor da Teoria da Mente.
Em torno do terceiro ano de vida, as crianças já demonstram,
através de ações, saber que as pessoas possuem representações men-
tais da realidade, representações que, embora invisíveis, são reais e
podem fazer com que reajam de maneiras diferentes a determina-
das condições.
Michael Rutter (apud FRITH, 2009), em artigo de 1983, fala
de um jovem paciente autista que: “Se queixava de não poder ler os
pensamentos dos demais, lhe parecia que as outras pessoas possuíam
um sentido especial que lhes permitia ler e prever suas respostas e
sentimentos. Ele sabia disso porque elas conseguiam não se molestar
entre si, enquanto ele sempre dava patadas, sem dar-se conta do que
estava fazendo ou dizendo para que a outra pessoa ficasse enfadada
e desgostosa”.
A maioria das crianças com autismo apresenta sério retardo
na aquisição da Teoria da Mente. Como vimos nos capítulos sobre os
132
primeiros anos de vida de crianças com autismo, a ausência da aten-
ção compartilhada, do apontar protodeclarativo e da brincadeira de
faz de conta é grande preditora do desenvolvimento do autismo.
Uta Frith compara a dificuldade de mentalização das pessoas
autistas com o que acontece com os daltônicos, que se dão conta de
que os outros veem um mundo cheio de cores que eles não podem
perceber. Por isso, muitos chamam essa dificuldade dos autistas de
cegueira da mente. Tão estranho como é para a maioria de nós con-
ceber a cegueira da mente, é para os autistas imaginar o que é ler os
pensamentos alheios.
Hoje, inúmeras pesquisas comprovam a hipótese da Teoria
da Mente. Os primeiros trabalhos sobre o assunto foram realizados
por Frith, Baron-Cohen e Alan Leslie (FRITH, 2009), na década
de 1980. Partiram do pressuposto de que os bebês nascem com
mecanismos capazes de acumular importantes informações sobre
o mundo, possuem expectativas inatas e desde o início reagem de
forma diferente a pessoas e objetos. Alan Leslie denominou esses
mecanismos inatos de motores do desenvolvimento. A Teoria da
Mente se desenvolveria a partir desses mecanismos e, em sua au-
sência, os bebês apresentariam autismo.
A autora achava que esses mesmos mecanismos eram respon-
sáveis pela compreensão do ato de fingir e, por isso, crianças com
autismo também não conseguiam brincar de faz de conta.
O cérebro da criança típica seria capaz de criar cópias da reali-
dade, representações das pessoas e das coisas. Essas representações leva-
riam o mundo para dentro da mente da criança.
No segundo ano de vida, ocorreria um mecanismo fantástico,
um salto no desenvolvimento, as crianças criariam representações do
que os outros estão querendo lhe comunicar. Através de um mecanis-
mo também inato, a mente, agora, iria desacoplar essas representações
da realidade. Elas não seriam mais apenas cópias da realidade, mas
unidades independentes que poderiam se unir aos desejos, aos pensa-
mentos, às lembranças.
133
Através do mecanismo de desacoplamento, podemos brin-
car com as representações das coisas na imaginação e compreender
quando os outros estão fazendo a mesma coisa. Uma criança, no
segundo ano de vida, acha engraçado quando alguém faz de conta
que um pente é um celular e compreende que se pode fingir que um
boneco é uma pessoa.
No autismo, uma falha no mecanismo de desacoplamento im-
pediria a pessoa de compreender os conceitos sobre os estados mentais.
134
bolinha onde ela deixou, ou seja, no cesto. As crianças com autismo,
da mesma idade, irão responder, em 80% dos casos, que Sally vai pro-
curar a bolinha na caixa, pois vão levar em consideração o que elas
sabem, e elas viram a bolinha ser colocada na caixa. São incapazes de
levar em consideração a perspectiva de Sally, de que ela não viu a boli-
nha ser trocada de lugar. Quando a criança acerta a resposta é porque
ela se coloca no lugar de Sally, portanto, é capaz de identificar a falsa
crença da boneca, a de que a bolinha estava no cesto.
Reconhecimento do Eu
Ponha uma marca na testa da criança e coloque-a na frente do
espelho. As crianças menores de 18 meses tocarão na marca do espe-
lho. Os mais velhos tocarão na própria testa. Elas já se reconhecem na
imagem do espelho.
O Reconhecimento do Outro
Ofereça dois tipos de lanche à criança, por exemplo, uma maçã
e um biscoito e diga-lhe para escolher o que ela quer. Depois que a
criança escolher, deixe que ela observe você provando os dois lanches.
Demonstre prazer pelo que ela recusou e repulsa pelo que ela prefe-
riu. Em seguida, peça que ela escolha um lanche para você. Antes dos
dezoito meses, elas costumam oferecer o que elas gostam. As maiores
oferecem o lanche pelo qual você demonstrou preferência. Elas já sa-
bem que o seu gosto pode ser diferente do dela.
Baron-Cohen fez uma experiência na qual tentou provar que
as pessoas autistas são comportamentalistas. O comportamentalismo
é um ramo da ciência psicológica que tenta explicar o comportamento
sem recorrer aos estados mentais, sejam eles conscientes ou incons-
cientes. Para isso ele utilizou os desenhos abaixo.
Participaram da experiência os mesmos sujeitos que haviam
participado do experimento de Sally e Anne: crianças normais, com
135
autismo e com síndrome de Down. Eram colocadas duas tarefas para
os participantes. Primeiro, as crianças tinham de ordenar os desenhos
para formar uma história. Depois, teriam de contar a história com as
próprias palavras.
Se o déficit da Teoria da Mente fosse a dificuldade básica do
autismo, as crianças com autismo teriam dificuldade apenas com as
histórias de caráter mentalista e não com as histórias mecânicas e con-
dutuais. O resultado foi que as crianças normais ou com síndrome de
Down superaram os autistas nas histórias mentalistas, mas tiveram
um desempenho inferior nas histórias mecânicas e um desempenho
semelhante nas tarefas comportamentais. Baron-Cohen concluiu que
as crianças autistas eram melhores físicos que os outros, podiam ser
comportamentalistas como os demais, mas não eram bons psicólogos.
História mecânica
História comportamental
História mentalista
136
Histórias da Teresa
Emoção
Aos 3 anos de idade, as crianças são capazes de entender que
determinados eventos podem causar emoções nas outras pessoas.
Meu sobrinho Bento, por exemplo, tem muito medo de cachorro.
Temos em casa muitos cachorros e Teresa os adora, principalmente
Luna, a pastora-alemã que vive dentro de casa. Quando Tetê vê a Luna
perto do Bento e o percebe mais retraído, diz: “É melhor tirar a Luna
de perto, o Bento está com medo”, embora ela saiba que a cadela é
muito dócil e não é preciso ter medo dela.
Crença
Por volta de 4 anos, a criança é capaz de “ler a mente” do outro
também em situações que envolvem uma falsa crença, ou seja, crian-
ças de 4 anos podem prever desejos e crenças. Teresa sabe que o papai
e a mamãe adoram ser “escolhidos” por ela. Então, quando o papai lhe
pergunta: “Você é a minha menina?”, ela diz: “Não, eu sou da mamãe”.
Papai faz cara de frustrado. Ela sorri e o consola: “Eu sou da mamãe e
do papai, dos dois”.
Faz de Conta
Por volta de 5 anos, as crianças normais são capazes brincar de
faz de conta. Teresa “lê” seu primeiro livro. Olha o elefante e diz: “Ele
está muito triste”. Eu pergunto por quê. “Ele está sozinho, a mãe dele
foi trabalhar”.
Às vezes usa a escova de cabelo como microfone para cantar.
Mas sabe o que é uma escova e um microfone também.
137
Eu e não Eu
A Teoria da Mente permite que, gradativamente, a criança
possa se aperceber das diferenças entre o eu e o não eu, a consta-
tar que as pessoas podem pensar de uma forma muito diferente
delas mesmas, a perceber as coisas da perspectiva dos outros e a
entender que os objetivos das outras pessoas podem ser muito di-
ferentes dos dela. A Teoria da Mente vai, aos poucos, capacitando
as crianças para cuidar de si mesmas, defender os próprios interes-
ses, negociar com irmãos e coleguinhas, brincar, implicar, mentir,
cooperar e competir.
É muito importante diferenciar Teoria da Mente de empatia.
Empatia é sentir com o outro. Ser contagiado pelo estado emocional
do outro. O desenvolvimento da empatia é muito mais precoce do que
o da Teoria da Mente. Já encontramos empatia antes que surjam, in-
clusive, os precursores da Teoria da Mente, como a atenção compar-
tilhada. Bebês com dez semanas de vida já reagem adequadamente a
expressões faciais e estados emocionais. Pessoas com autismo podem
desenvolver empatia, pelo menos, no que diz respeito a emoções pri-
márias (tristeza, felicidade, raiva e medo), embora tenham dificuldade
com a Teoria da Mente. Os psicopatas, no entanto, possuem Teoria da
Mente, mas não desenvolvem empatia.
138
manter a atenção em informações necessárias para completar uma
tarefa, fazer planos, inibir as reações impulsivas, organizar as ações e
monitorar-lhes os resultados.
As funções executivas são constituídas de três componentes
principais: a capacidade de inibição, a memória de trabalho e a habili-
dade de gerar novas estratégias.
Elas são fundamentais em duas situações: quando não pode-
mos deixar que um processo ou uma ação sejam guiados automatica-
mente e quando estamos diante de um novo desafio, ou seja, quando
não temos nenhuma resposta pronta para o desafio em questão.
As funções executivas têm um papel importante na aquisição
e no emprego das habilidades sociais. Para entendermos os processos
mentais alheios, temos de deslocar a nossa atenção dos nossos próprios
processos mentais. Isso exige teoria da mente e controle da atenção.
139
Os autistas, mesmo os que possuem elevada capacidade inte-
lectual, apresentam déficits executivos.
Especula-se que as distintas partes do sistema executivo
acham-se situadas em diferentes regiões dos lobos frontais.
Ações repetitivas seriam consequências naturais de estímulos
externos e para elas não seria necessário um controle executivo. Cons-
tituem resultados das atividades de módulos inteligentes que se ati-
vam automaticamente ante um estímulo. Os pensamentos repetitivos
e preocupações também são ativados por um estímulo acidental e não
podem parar sem um controle executivo superior. A perseveração,
bastante comum em pessoas com autismo, poderia ser consequência
da falta de um supervisor, com poder de anular a atividade dos módu-
los responsáveis por respostas automáticas.
140
Em Busca da Unidade
141
As três teorias psicológicas do autismo tentam esclarecer, cada
uma, diferentes aspectos do autismo: a Teoria da Mente explica os défi-
cits sociais e comunicativos, quando afirma que autistas carecem da ca-
pacidade de atribuir de maneira automática e intuitiva estados mentais
às demais pessoas. A Teoria da Coerência Central Fraca explica o jeito
de ser do autista, inclusive as virtudes da mente autista, através do modo
de processamento centrado em detalhes. Por fim, a Teoria do Déficits
das Funções Executivas pressupõe a falta, nas pessoas autistas, de um
controle de ordem superior da ação e da atenção, o que justificaria as
condutas estereotipadas e os interesses restritos dessas pessoas autistas.
Precisamos das três teorias juntas para explicar o fenômeno do autismo.
O “eu consciente de si mesmo” seria, para Uta Frith, o elo que
falta para unir as três teorias. Ele seria superior a todos os outros
eus. Teria uma visão panorâmica de todo o funcionamento cerebral.
Seria consciente de si mesmo, porque o cérebro possui a capacidade
de mentalização, ou seja, uma Teoria da Mente. Também teria acesso
a todas as informações de forma integrada, porque o cérebro possui
um mecanismo de coerência central, e exerceria e delegaria controles,
porque o cérebro tem funções executivas.
Esse último eu estaria acima de todos os outros eus. A visão
aérea permitiria que ele se interconectasse com os outros eus cons-
cientes de si mesmo, das outras pessoas. Segundo Frith, as pessoas
com autismo não possuiriam esse último eu consciente de si mesmo.
Mas, para ela, isso não é necessariamente uma tragédia, uma
vez que, mesmo que “o eu consciente de si mesmo” esteja dormindo
nos autistas, os outros eus executivos podem ser muito produtivos
e autodisciplinados e aprender com o tempo a controlar impulsos,
funcionando bem nos autistas. No entanto, mesmo nos casos de bom
funcionamento, pode haver problemas, pois as informações recebi-
das nem sempre estão suficientemente integradas a outros signifi-
cados. Os eus executivos não possuem boa perspectiva geral nem
conversam com os eus conscientes de si mesmo das outras pessoas,
para tomar decisões.
142
Algumas vezes, como em uma organização sem líder, colegia-
da, os eus podem entrar em conflito, e do desequilíbrio de forças, um
sobressai, na forma de um talento especial que ninguém controla.
A autora assegura que os autistas podem desenvolver conheci-
mentos de si mesmos através de mecanismos compensatórios. Porém,
mesmo nesses casos vai haver um certo egocentrismo, pela falta de
contato com os outros “eus conscientes de si mesmos”.
Uta Frith cita autobiografias de autistas riquíssimas em deta-
lhes sobre os próprios sentimentos e sensações, todavia omissas quan-
to ao impacto das experiências na vida das outras pessoas.
É muito interessante a ideia do “eu consciente de si mesmo”. Con-
sidero, no entanto, muito importante no trabalho de Uta Frith sua visão
positiva do autismo, seu respeito a essa diferença radical do cérebro e da
mente humana. Ela afirma que se é verdade que o autismo é uma disfun-
ção neurológica, também é verdade que ela pode ser compensada.
Para Uta Frith, o autismo está mais próximo da surdez e da
cegueira do que da timidez. Essa forma de encarar o problema é usada
por ela como um apelo aos pais e educadores de autistas. Imagine edu-
car uma criança cega sem conhecer-lhe a cegueira, reclamando dela
cada vez que levasse um tombo. Seguramente, seria uma tragédia e
um enorme desrespeito.
A partir do conhecimento dos déficits específicos das pessoas
autistas, podemos formular programas para ajudá-las a viver me-
lhor. A dificuldade de mentalização pode ser compensada através
de informações claras e de complexidades adequadas ao nível de
compreensão de cada pessoa atendida. É possível adquirir um bom
conhecimento racional sobre os outros, capaz de compensar a difi-
culdade de mentalização. Muitas pessoas com Asperger encontram,
sozinhas, esse caminho.
É desejável que busquemos ajudar as pessoas autistas a com-
pensar seus déficits executivos através de ambientes estruturados e
previsíveis. Agendas, lembretes, esquemas visuais, rotinas represen-
tam instrumentos fundamentais para isso.
143
Talvez, no entanto, não seja possível nem desejável tentar com-
pensar o déficit da coerência central. O mundo de particularidades
dos autistas, o processamento especializado em detalhes parecem ser
o que lhes garante um jeito diferente de ser no mundo, do qual surgem
muitos talentos e habilidades especiais.
144
12
O AUTISMO COMO EXTREMO
DO CÉREBRO MASCULINO
145
permitir à mãe “adivinhar” as necessidades do filho, facilita, pelo con-
tágio emocional, o desenvolvimento das habilidades sociais da criança.
Já o cérebro masculino é especialista em sistematizar, ou seja,
em analisar, explorar e construir sistemas.
Um bom sistematizador descobre, intuitivamente, como as coi-
sas funcionam, e delas extrai as regras que governam o comportamento
dos sistemas. Descobrir as relações de causa e efeito permite que se pos-
sa fazer uma previsão do comportamento da maioria dos seres inanima-
dos. Essa capacidade torna-se, no entanto, praticamente inútil quando
tentamos utilizá-la para entender as relações humanas: o comportamen-
to e as emoções das pessoas não costumam obedecer a regras fixas.
Embora o meio natural de compreender e prever a natureza
dos eventos e dos objetos seja a sistematização, o meio natural de com-
preender as pessoas é a empatia. A sistematização requer distancia-
mento para monitorar informações e determinar fatores que as façam
variar. Já a empatia requer aproximação e envolvimento. Talvez por
isso, as capacidades empática e de sistematização possuam bases neu-
rais distintas.
Simon Baron-Cohen afirma existirem três tipos básicos de cérebro:
146
vida e a capacidade empática, reduzida. Esses indivíduos
podem ser muito talentosos como sistematizadores, mas
estariam cegos para a mentalização. Teriam autismo ou sín-
drome de Asperger.
2. E >> S – indivíduos com cérebro extremamente feminino.
Seriam pessoas com grande capacidade empática, mas ce-
gos para sistemas.
O Cérebro Masculino
Empatia
Ser empático é sintonizar espontaneamente os sentimentos do
outro, inverter papel com ele. Não é apenas reconhecer os sentimentos
primários de raiva, dor ou medo, mas sentir a atmosfera emocional que
envolve a pessoa com quem estamos nos relacionando. Pessoas mais em-
páticas costumam ser mais observadoras com relação à linguagem dos
olhos e da voz humana, que costumam funcionar como verdadeiras ja-
nelas da mente. A empatia nos impede de ferir sentimentos, uma vez que
permite que abandonemos, pelo menos momentaneamente, nossas pró-
prias certezas e ideias para sintonizar o mundo de quem está conosco.
Pessoas mais empáticas conseguem conversar melhor com as
outras, pois a empatia lhes permite entender pontos de vista diferentes.
Quando não conseguimos ouvir verdadeiramente o outro, não conse-
guimos conversar. Existem pessoas que, embora loquazes, não dialogam.
Quando em algum encontro uma só pessoa fala a maioria do tempo,
podem estar acontecendo muitas coisas, tais como conferência, desaba-
fo, doutrinação, mas certamente não está havendo um diálogo. Numa
conversa de verdade, você está atento ao tempo e ao desejo do outro.
147
A empatia é a base do companheirismo e da compaixão. Ofere-
ce uma estrutura para o desenvolvimento da ética nas relações. Embo-
ra possamos seguir códigos morais, adotando a lógica, esta não conse-
gue ser suficiente nas relações interpessoais. A lógica e a inteligência,
sem compaixão, podem levar a atitudes muito autoritárias.
A empatia tem dois elementos principais: o primeiro compo-
nente é cognitivo, que corresponde à compreensão dos sentimentos
do outro e à capacidade de perceber sua perspectiva. É o que costuma-
mos chamar de Teoria da Mente.
O segundo é o componente afetivo, que compreende a capaci-
dade de dar uma resposta apropriada ao estado emocional do outro.
A compaixão é esse tipo de empatia: responde-se emocionalmente à
aflição do outro, enquanto se sente o desejo de diminuir a dor alheia.
148
homens, que, por sua vez, superam o desempenho obtido por pessoas
com autismo e Asperger.
No dia a dia, as mulheres costumam olhar mais nos olhos das
pessoas dos que os homens, e as pessoas com autismo, na maioria ho-
mens, costumam olhar ainda menos. As meninas aprendem a falar
antes dos meninos e desenvolvem mais rapidamente o vocabulário,
e as crianças autistas costumam apresentar um importante atraso na
aquisição da linguagem. As mulheres superam os homens em relação
à quantidade de conversas informais e no pragmatismo da linguagem
e este é, precisamente, o aspecto mais comprometido na fala das pes-
soas com autismo.
Em testes-padrão para medir a Teoria da Mente, quando se
deve imaginar os pensamentos e sentimentos das outras pessoas, as
mulheres também se saem bem melhor que os homens. Todos sabe-
mos que os autistas têm desempenho precário nessa área. Por fim, as
mulheres apresentam pontuação superior aos homens nos questio-
nários que avaliam estilos empáticos de relacionamento, tais como
o Questionário de Amizade e Relacionamento, e os adultos com As-
perger, como seria de esperar, se saem ainda pior nesses testes que os
homens sem autismo.
Capacidade de Sistematização
149
têm uma pontuação maior ainda. O mesmo ocorre com o Teste das
Figuras Encaixadas, de atenção aos detalhes, e com o quociente de
autismo (QA).
Baron-Cohen chama a atenção para detalhes somáticos, como o
comprimento dos dedos. Homens costumam ter o dedo anular maior
que o indicador e os autistas costumam apresentar essa diferença de for-
ma ainda mais acentuada. Essa característica seria explicada pelo nível
de testosterona a que o feto estaria exposto durante a gestação. Os autis-
tas também costumam entrar mais cedo na puberdade, o que poderia
também ser explicado por um aumento no nível de testosterona. Final-
mente, entre os familiares de autistas é muito comum a existência de
pessoas com talentos especiais para matemática, física e engenharia em
relação às ciências humanas, o que poderia sugerir que o estilo cogniti-
vo extremamente masculino seja, em grande parte, herdado.
150
Aos vinte meses, as meninas já respondem com mais empa-
tia ao sentimento alheio, manifestando maior reciprocidade social e
emocional. Aos 3 anos as meninas já estão à frente no que diz respeito
à capacidade de mentalização. Aos 7, elas já reconhecem com mais
facilidade o que é adequado ou inadequado a determinados lugares e
situações sociais.
Mulheres tendem a escolher os parceiros com base nas quali-
dades pessoais e os homens, nas características físicas. A maioria das
pessoas com personalidade antissocial é do sexo masculino. Em cri-
mes envolvendo assassinato, a participação de homens é de 30 a 40
vezes maior do que a de mulheres (DALY; WILSON, 1988)
Entre macacos, os machos reconhecem rapidamente seu lugar
no sistema. Quando dois machos encontram algo valioso, alimento,
abrigo ou uma companheira, rapidamente sabem se devem pegar ou
deixar para o outro. Dois primatas do sexo masculino, quando encon-
tram um objeto de seu desejo, se encaram. Às vezes, só isso é suficiente
para determinar com quem fica o objeto. Outras vezes, tem início o
combate. Atitudes ameaçadoras, olhadas de cima a baixo até que um
dos dois desista. Entre homens essa hierarquia de dominação também
é sempre mais clara, desde os primeiros anos escolares.
Na infância e adolescência, as táticas para subir na escala so-
cial costumam ser diferentes entre os sexos: os meninos ridicularizam
e atormentam fisicamente a vítima na frente dos outros. As garotas
dominantes simplesmente ignoram os comentários e sugestões das
outras a quem querem imprimir status de inferioridade ou espalham
boatos maliciosos.
151
a menor graça em bater papo socialmente. Quando discutem, essas
pessoas gostam de impor seu ponto de vista. Ligam-se intensamente
a detalhes e, para decifrar sistemas, podem ficar completamente cegas
às mentes alheias. Geralmente, têm autismo ou síndrome de Asperger.
Desde o início o autismo intrigou os cientistas, por parecer ser
um tipo especial de inteligência.
Sempre se soube que 25% das pessoas com autismo tinham in-
teligência normal ou superior. Mas a partir da década de 1990, quan-
do muitas crianças passaram a receber o diagnóstico de síndrome de
Asperger, começou a ficar claro que essa proporção era muito maior.
As crianças com Asperger, no entanto, por conta de dificulda-
des de interação social, costumam apresentar muitos problemas na
idade escolar. Boa parte se sente infeliz na escola e percebe que difi-
cilmente consegue fazer amigos. Muitos deles são vítimas de bullying.
Têm grande dificuldade de ler a mente e de se colocar no lugar do
outro. Costumam, por isso, magoar frequentemente as pessoas, mas
não costumam gostar de fazer isso. Pelo contrário, quando desco-
brem que magoaram alguém, ficam chocados, sem entender como
isso aconteceu.
O cérebro extremamente masculino, no entanto, não se com-
põe apenas de dificuldades. Não raro, encontram-se no autismo ta-
lentos pouco comuns. Muitos se sentem atraídos por computadores.
Computadores são sistemas fechados, por isso mesmo previsíveis e
controláveis. Ao contrário dos sentimentos e ideias, os sistemas fe-
chados são finitos, exatos, previsíveis. Pessoas com Asperger podem
ser excepcionalmente talentosas na música, na matemática e na física.
O grande problema, para uma pessoa com um cérebro extre-
mamente masculino, serão os relacionamentos humanos, com suas
infinitas possibilidades. Adultos com Asperger esforçam-se para na-
vegar nesses mares confusos. Constroem tabelas mentais com re-
gras de relacionamento social. Mas nenhum livro de etiqueta social
pode dar conta dos detalhes sutis da vida cotidiana. E o que acontece
espontaneamente, para a maioria, acaba custando grandes esforços
152
para essas pessoas. Isso os deixa exaustos. Pessoas com Asperger,
quando chegam a casa, não gostam de receber ninguém. Depois de
um dia de esforço social, precisam de solidão e previsibilidade para
recarregar as baterias.
Autistas adoram dizer a verdade e gostariam muito que todos
fossem assim. Para eles, é praticamente incompreensível como a ver-
dade e a sinceridade podem magoar e fazer sofrer.
153
13
NEUROCIÊNCIA SOCIAL
O Cérebro Social
155
e ser influenciados por aqueles com quem nos relacionamos. O resulta-
do dessa interinfluência é um verdadeiro contágio emocional.
Quanto mais forte nossa ligação com outra pessoa, mais poten-
te a mútua influência. Nossas interações funcionam como verdadeiros
termostatos reguladores do cérebro. As trocas mais potentes ocorrem
com aqueles com os quais passamos a maior parte do tempo.
Os sentimentos resultantes das interações produzem os hor-
mônios que regulam todo o nosso corpo. Dessa forma, os relaciona-
mentos moldam não só a mente humana, mas o corpo, a biologia.
Relacionamentos e suas emoções podem, por exemplo, ativar e
desativar genes, promovendo saúde e bem-estar ou, ao contrário, pro-
duzindo tristeza e doenças. Na realidade, somos todos pequenos deuses,
criando pessoas e mundos, ao redor, à nossa imagem e semelhança.
Neurociência Social
156
Como dissemos anteriormente, nós, os humanos, nos dife-
renciamos das outras espécies, principalmente, em função do nos-
so cérebro social, que é a soma dos mecanismos neurais responsá-
veis pelos pensamentos e sentimentos a respeito das pessoas e dos
relacionamentos.
Um fato curioso é que todos os órgãos do ser humano têm suas
atividades reguladas com base em sinais internos do corpo. O cérebro
social, entretanto, é regulado por fatores externos ao organismo, quem
o regula, de fato, são os nossos relacionamentos. O cérebro social é mol-
dado pelas relações sociais. São nossas experiências que vão esculpindo
o cérebro social, definindo a forma, o número e o caminho das ligações
sinápticas. Isso ocorre devido à neuroplasticidade.
A Amígdala
157
A via secundária é o mecanismo através do qual somos “con-
tagiados” pelas emoções dos outros. Ela atua sem que estejamos cons-
cientes, com uma velocidade impressionante.
A via principal é consciente. A via secundária não. A nossa
vida social é governada pelo intercâmbio dessas duas vias.
Wi-Fi Neural
158
No nível inconsciente, estamos em constante diálogo com
quem interagimos. Nossos sentimentos e movimentos estão sintoni-
zados com os dessas pessoas.
Instinto de Compaixão
159
Hoje sabemos que nosso cérebro foi predefinido para a com-
paixão. Ver ou sentir nos prepara para agir. Os neurônios espelho tor-
nam interpessoal a ligação entre sentir e agir. O contágio emocional
faz mais do que disseminar sentimentos, ele prepara automaticamente
o cérebro para tomar a decisão mais adequada ao sentimento do outro.
Infelizmente, a revolução tecnológica, que tantas conquistas
trouxe para a humanidade, tem tornado, por outro lado, as relações
humanas cada dia mais virtuais. Para que ocorra contágio emocio-
nal, empatia, compaixão, precisamos de contatos reais. Nosso cére-
bro social é particularmente sensível a pistas socialmente relevantes,
mas elas são fornecidas principalmente por faces e vozes humanas, no
contato cara a cara, olho a olho.
As Janelas da Alma
160
Localização Topográfica Estratégica
161
às outras pessoas. É essa região que é ativada quando olha-
mos o retrato de alguém que amamos, conhecemos alguém
atraente ou nos sentimos injustiçados.
• As células fusiformes são o segredo da rapidez na intuição
social: antes de conhecermos o que está na nossa frente, já
sentimos se gostamos ou não daquilo.
162
Neurociência Social e Autismo
163
Os neurônios espelho (NE) haviam sido descobertos, no início
da década, por Giacomo Rizzolatti e seus colegas da Universidade de
Parma, na Itália. Como dissemos anteriormente, eles são um tipo es-
pecial de neurônios que refletem dentro de nós o mundo exterior. Isso
acontece porque os neurônios espelho nos possibilitam sentir ime-
diatamente uma ação desempenhada por uma pessoa à nossa frente,
através da ativação de neurônios motores.
Meltzoff e Moore (1977), da Universidade de Washington,
constatou que, quando mostramos a língua a um recém-nascido, ele
faz o mesmo. Como ele não vê a própria língua, é incapaz de usar o fe-
edback visual para aprender a fazer isso. A criança também aprende a
falar imitando os adultos e para isso seu cérebro tem de transformar os
sinais auditivos nos centros da audição, localizados no lobo temporal,
em conteúdos verbais fornecidos pelo córtex motor. É provável que os
neurônios espelho estejam envolvidos nisso.
Os neurônios espelho permitem, ainda, saber o que realmente
os outros estão achando e sentindo a nosso respeito. Eles são respon-
sáveis por grande parte de nossa inteligência social. Muitos estudio-
sos acreditam que a maioria das dificuldades encontradas nas pessoas
com autismo poderia ser explicada por uma deficiência no sistema de
neurônios espelho.
As primeiras pesquisas com neurônios espelho em crianças
com autismo foram realizadas analisando uma família de ondas cere-
brais denominadas ondas MU, através de eletroencefalogramas. Essas
ondas são, normalmente, bloqueadas todas as vezes que o indivíduo
faz movimentos musculares intencionais, como abrir e fechar as mãos.
Foi observado, em indivíduos normais, que tal bloqueio também ocor-
re quando o indivíduo observa outra pessoa fazer o mesmo movimen-
to. Essa seria uma evidência funcional da ação dos neurônios espelho.
Em pesquisa realizada com crianças com autismo, de alto grau
de funcionalidade, ficou constatado que o bloqueio das ondas MU so-
mente ocorria quando as crianças realizavam elas próprias os movi-
mentos, não ocorrendo quando estavam no papel de observadoras.
164
Ou seja, havia um problema claro no sistema de neurônios espelho
das crianças com autismo.
Um outro experimento muito parecido, realizado pouco de-
pois, envolveu dez crianças com autismo e dez crianças normais da
mesma idade e sexo. No grupo controle (crianças normais) foi verifi-
cado que havia a supressão das ondas MU quando os indivíduos mo-
viam as mãos ou assistiam a um vídeo de uma mão se movendo. Nas
crianças autistas só houve a supressão das ondas MU quando movi-
mentavam as próprias mãos. Mais uma vez ficou comprovada a difi-
culdade das crianças com autismo de sentir as ações de outras pessoas
como se fossem suas, quer estivessem assistindo às ações pessoalmente
ou através de vídeos.
Outros pesquisadores encontraram os mesmos resultados uti-
lizando diferentes técnicas de monitoramento:
165
Estudos de Neuroimagem
166
funcional apontam a ausência da área seletiva de voz (ASV)
no autismo. Um estudo recente com RMF mostrou que a área
seletiva de voz em adultos normais se localiza bilateralmente
ao longo da margem superior do sulco temporal superior.
167
As epilepsias do lobo temporal que atingem muitas crianças
com autismo poderiam explicar, pelo menos em parte, as distorções
do mapa topográfico emocional em pessoas com autismo. Especula-
-se, inclusive, que muitos ataques epilépticos podem passar desper-
cebidos em crianças com autismo. Saraivadas aleatórias de impulsos
nervosos teriam o poder de embaralhar as conexões entre o córtex
visual e a amígdala.
As comprovações de que existem alterações no cérebro social
dos autistas podem nos ajudar a compreender muitas das dificuldades
apresentadas por essas pessoas. A descoberta, por exemplo, de que
existe uma percepção anormal de voz em pessoas com autismo, as-
sim como os estudos que demonstram a não ativação da área facial
do giro fusiforme durante a percepção facial podem explicar por que
os indivíduos autistas possuem dificuldade de se guiar por estímulos
socialmente significativos.
A consequência mais importante, no entanto, da neurociên-
cia social aplicada ao autismo é a perspectiva de novos e mais efica-
zes enfoques terapêuticos, capazes de fazer com que pessoas autistas
percebam melhor estímulos sociais.
168
14
A CASA DA ESPERANÇA
Um Pouco de História
169
Novos desafios, porém, nos cutucavam. De todos os lugares do
Brasil e de muitos outros países chegavam novas crianças. Os trata-
mentos que haviam se mostrado eficazes não se aplicavam a todos os
casos, o que exigiu de nós novas pesquisas. E do mundo, além dos mu-
ros da Casa da Esperança, chegava o clamor de crianças com autismo
criadas em cárceres privados, relatos de tratamentos desumanos e de-
salentadoras notícias de recursos subitamente subtraídos pelo poder
público, o que comprometia seriamente a continuidade do trabalho.
Nada disso abateu nosso ânimo, porque era preciso não apenas
continuar, mas aprofundar e ampliar o trabalho, de modo que mais e mais
pessoas com autismo e suas famílias tivessem uma vida melhor. Foi assim
que conseguimos o credenciamento do SUS, o que nos deu suporte finan-
ceiro para garantir a manutenção e ampliação de nosso empreendimento.
Foi assim que, tendo em vista o aprofundamento do conhecimento sobre
autismo, despertamos o interesse e o respeito de grandes profissionais e
organizações pela Casa da Esperança, como Ami Klin, então coordena-
dor do Programa de Autismo da Universidade de Yale, e promovemos
congressos, jornadas, além de publicarmos livros e trabalhos científicos.
Hoje, além da sede de Fortaleza, que atende 400 pessoas com
autismo em regime intensivo, de quatro ou oito horas por dia, e realiza
mais de mil procedimentos ambulatoriais diariamente, estamos com
uma nova sede em Ananindeua, no Pará, que atende cerca de cem
crianças através de credenciamento pelo Sistema Único de Saúde.
O nosso desafio inicial transformou-se, nestes dezoito anos,
numa enorme rede de parceiros, ideias, cérebros, corações, vidas hu-
manas colocando todo o seu potencial a serviço das pessoas com au-
tismo. Para nossa alegria, a genética e a neurociência social aplicada
apontam perspectivas promissoras nessa luta.
Já não estamos sozinhos. Rompemos o autismo social. Parti-
cipamos de um grande e vigoroso movimento mundial de luta pela
saúde, educação e dignidade de pessoas autistas.
Este é o trabalho de minha vida, mas não é trabalho para uma
vida apenas, mas para muitas vidas, bem mais importantes e nobres
170
que a minha. Vidas que se consagram à tarefa de construir, a cada dia,
caminhos transitáveis e seguros entre pessoas autistas e não autistas.
171
inclui avaliação, estimulação e orientação relacionadas ao desenvolvimento.
Graças ao credenciamento do SUS, a grande maioria dos procedimentos
realizados pela organização pode ser feita de forma pública e gratuita.
O NAS recebe pacientes de todo o país, em busca de diagnóstico e
tratamento. Nele, são realizados procedimentos de avaliação e diagnóstico,
acompanhamento intensivo por equipe multiprofissional e acompanha-
mento ambulatorial especializado para aplicação de testes para psicodiag-
nóstico, terapia individual e em grupo, atendimento a alterações motoras.
O acompanhamento intensivo por equipe multiprofissional espe-
cializada é o principal diferencial do serviço oferecido pela Casa da Es-
perança. Esse serviço é prestado através de três setores especializados e
destinados a pessoas com necessidades muito específicas: circuito de es-
timulação neurossensorial, oficinas terapêuticas e vivências terapêuticas.
172
- Salas de desenvolvimento adaptativo – para crianças com
transtornos do espectro do autismo associados a proble-
mas comportamentais e/ou dificuldades graves no desen-
volvimento adaptativo. São salas de passagem, que objeti-
vam a aquisição de habilidades adapatativas com vistas à
inclusão nos demais serviços da organização. As crianças
aqui incluídas recebem atendimento de toda a equipe mul-
tiprofissional com ênfase em integração sensorial e terapia
cognitivo-comportamental.
- Salas de estimulação neuropsicomotora – para crianças em
idade pré-escolar que possuem deficiência motora impor-
tante associada aos transtornos do espectro do autismo. A
exemplo das outras salas, nessas as crianças também recebem
assistência multiprofissional, mas a ênfase, aqui, é dada à as-
sistência fisioterápica e terapia ocupacional. Algumas dessas
crianças apresentam transtornos degenerativos ou síndrome
de Rett e o objetivo para além da reabilitação é a manutenção
da qualidade de vida e o retardo na progressão dos sintomas
degenerativos: perda de movimentos práxicos etc.
Oficinas Terapêuticas
173
ponsabilidade, e nossos rapazes com autismo têm demonstrado a
competência necessária para sua realização. Temos também alguns
ex-alunos trabalhando na parte administrativa e, como auxiliares,
em salas de atendimento.
Graças às atividades das oficinas e à legislação que obriga as
empresas a destinar uma cota de suas vagas para trabalhadores com
deficiência, tem sido possível encontrar colocações para alguns dos
nossos jovens no mercado de trabalho.
Vivências Terapêuticas
174
– Promover a competência comunicacional, a regulação emo-
cional das pessoas autistas através de apoio transacional, de
modo a facilitar o processo de inclusão.
– Organizar e disponibilizar recursos terapêuticos multidiscipli-
nares, serviços pedagógicos e de acessibilidade com vistas à
redução e eliminação das barreiras à aprendizagem como for-
ma de viabilizar o acesso, a permanência e a progressão dos
alunos com TEA na rede regular de ensino.
– Garantir às crianças e aos jovens com autismo e outros dis-
túrbios do desenvolvimento infantil participação em ativida-
des de arte e cultura como forma de assegurar-lhes acesso aos
bens culturais de sua comunidade.
– Realizar atividades de conscientização dos profissionais da
educação, alunos e familiares sobre as características do autis-
mo e a importância da educação inclusiva no ensino regular
para pessoas autistas.
A Importância da Inclusão
175
vida à margem das relações sociais. Crianças autistas, embora tenham
uma deficiência de base neurológica no que costumamos denominar
cérebro social, necessitam, como quaisquer crianças, de estímulos sen-
soriais, afetivos, cognitivos, emocionais e sociais para se desenvolver.
Essas experiências precoces ajudam os circuitos cerebrais a modelar-se
e remodelar-se devido à maior plasticidade e neurogênese do cérebro
infantil. A precocidade do diagnóstico e da intervenção é fundamen-
tal no caso do autismo. Para Yuri, foi recomendada imediata inclusão
na escola regular, e no contraturno, intensivo processo de estimulação
neurossensorial com ênfase em fonoaudiologia, integração sensorial e
terapia cognitivo-comportamental. Na escola municipal Edite Braga, ele
viveu as primeiras experiências educativas. Hoje, é aluno da professora
Teresa, na escola regular, e da professora Danielle, no atendimento edu-
cacional especializado da Casa da Esperança. Com 10 anos de idade,
nem de longe lembra o menino que chegou à Casa da Esperança: fala de
forma fluente, adora computadores, frequenta o quarto ano da mesma
escola. Tem tudo para ser um adulto independente e feliz. O exemplo
dele soma-se a outros casos bem-sucedidos que a Casa da Esperança
compartilha com escolas municipais, como a 15 de Outubro, a João
Paulo II e outras. Aposto na inclusão. Crianças autistas são sujeitos de
direitos e necessitam, para desenvolver-se, de famílias e de escolas aco-
lhedoras e inclusivas. Como têm necessidades muito específicas, preci-
sam receber no contraturno atendimentos terapêuticos especializados.
Só unindo esforços de educadores, terapeutas e familiares podemos
ajudá-las a superar seus limites e aprender com as próprias experiências
que vale a pena pertencer à humanidade. Assim como pais de autistas
geralmente nada sabem do problema até ter seus próprios filhos, a esco-
la municipal Edite Braga e outras que citei não estavam preparadas para
responder a todos os desafios de ensinar estudantes com autismo. Mas
estão de parabéns por serem pioneiras nesse processo, por terem dado
a mão a esses meninos e tê-los deixado ensinar a colegas e professores
como conviver e aprender com o autismo. Ao abrirem suas portas, mu-
daram, drasticamente, o destino dessas crianças.
176
15
PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS
177
cos ou desenhar vistas panorâmicas que observaram, por exemplo, em
uma única viagem de carro ou de avião.
Darold Treffer (apud Tammet, 2007), grande estudioso da síndro-
me de Savant, em seu livro Extraordinary people, descreve um homem
cego que possuía uma impressionante capacidade de calcular: “Quando
lhe perguntaram quantos grãos de milho haveria em qualquer uma das 64
caixas, com 1 na primeira, 2 na segunda, 4 na terceira, 8 na quarta e assim
por diante, ele deu as respostas para a décima quarta (8.192), para a déci-
ma oitava (131.072) e para a vigésima quarta (8.388.608) instantaneamen-
te, e deu a cifra para a quadragésima oitava caixa (140.737.488.355.328)
em seis segundos. Ele também disse corretamente o total das 64 caixas
(18.446.7444.073.709.551.616) em 45 segundos”.
A síndrome de Savant é uma condição humana bastante as-
sociada ao autismo, a maioria dos savants é autista. Pessoas com essa
síndrome apresentam sempre, paradoxalmente, algum talento extraordi-
nário associado a uma limitação intelectual importante. As habilidades
savants mais comuns são inevitavelmente acompanhadas de memória
prodigiosa e manifestam-se através de desempenhos excepcionais na
música, nas artes ou na matemática e mecânica.
Tenho conhecido pessoas extraordinárias com essa condição.
É o caso de Mateus, um belo menino com Asperger e Savant que, des-
de 4 anos de idade, reproduz qualquer desenho ou paisagem depois de
vê-la uma única vez. Assim como Mateus, temos na Casa da Esperan-
ça muitos artistas plásticos excepcionais.
Há um paciente, dono da voz mais bonita que já conheci,
que não consegue cantar em público, pois apresenta uma gravíssima
dificuldade para interagir socialmente. De sua voz maviosa, quase
não saem palavras, mas brotam canções capazes de emocionar e
impressionar o mais exigente dos ouvintes. Meu sonho é que algum
produtor o descubra e ele possa, através de um estúdio, encantar
plateias distantes.
Outra habilidade bastante comum entre os savants são os cál-
culos de calendários. Já tive muitos pacientes com essa habilidade.
178
Eles são capazes de dizer em que dia da semana vai cair qualquer data
passada ou futura.
Daniel Tammet descreve inclusive que foi essa habilidade que o
ajudou a entrar em sintonia imediata com Kim Peek, o autista que ser-
viu de inspiração para compor o personagem interpretado por Dustin
Hoffman em Rain man:
“Kim segurou meu braço e ficou bem perto de mim. ‘Diga a
data do seu nascimento’. Eu disse 31 de janeiro de 1979. ‘Você fará 65
anos num domingo’, respondeu Kim. Assenti com a cabeça e perguntei
sua data de nascimento: ‘11 de novembro de 1951’, respondeu. Dei um
amplo sorriso: ‘Você nasceu num domingo!’ O rosto de Kim se ilumi-
nou e senti que havíamos nos conectado”.
Mas nem sempre esse talento comum serve de ponte entre os
autistas savants. Já houve inclusive um caso engraçado, na Casa da Es-
perança, de um senhor de 50 anos com autismo que possuía essa ha-
bilidade. Quando lhe informei que o nosso artista Tiago de Sandes e
outros jovens que frequentavam a Casa possuíam o mesmo talento, ele
levantou-se, enraivecido, e disse que isso só podia ser um caso de plágio.
O senhor mora sozinho, no interior do estado do Ceará, e julgava-se até
aquele momento a única pessoa capaz de realizar tal prodígio.
Conheci um garoto, quando iniciava o atendimento a crianças
com autismo, de apenas 6 anos de idade, capaz de realizar, de cabeça,
qualquer cálculo que lhe fosse solicitado.
Uma característica intrigante dessas pessoas é que seus talen-
tos normalmente parecem brotar do nada, não recebendo nenhuma
influência do ambiente.
A síndrome de savant ocorre de quatro a seis vezes mais em
homens do que em mulheres. Entre as teorias que tentam explicar os
talentos savants, uma afirma que eles são consequência de uma ten-
tativa do hemisfério direito do cérebro de compensar alguma lesão do
hemisfério esquerdo. Estudos com neuroimagens reforçam essa teo-
ria. Uma pesquisa de Bruce Miller, da Universidade da Califórnia, por
exemplo, mostrou idosos que desenvolveram habilidades savants de-
179
pois de passarem a sofrer da doença de Alzheimer. Todas essas pessoas
apresentavam danos no lado esquerdo do cérebro.
Em pesquisa recente, Geschwid e Galaburda demonstraram
que, no desenvolvimento do feto humano, o hemisfério esquerdo do
cérebro completa sua formação depois do hemisfério direito. O he-
misfério esquerdo é, portanto, durante mais tempo, exposto a qual-
quer tipo de dano.
Uma outra hipótese é de que a própria testosterona em níveis
muito altos pode ser neurotóxica. Essa poderia ser uma explicação
para o fato de que o autismo, a síndrome de Savant, a dislexia e a hipe-
ratividade sejam bem mais frequentes em homens que em mulheres.
Seja qual for a explicação, o fato é que essas pessoas dão um
colorido especial à nossa espécie.
Conheço um grande artista chamado Jobson Maia. Autista,
durante toda a infância Jobson foi um garoto bastante comprome-
tido. Não falava e não parecia compreender quase nada do mundo
ao redor. Seu único interesse funcional era ouvir músicas do cantor
Roberto Carlos. Um belo dia enquanto esperava o pai no trabalho,
viu pela primeira vez na vida um piano e começou a tocá-lo. Aos 12
anos de idade, Jobson começou a cantar, imitando a voz de Roberto
Carlos. Depois começou a falar como se fosse o artista e, aos poucos,
descobriu sua própria voz e diferenciou-se do Rei. Jobson possui uma
memória extraordinária, sabe tudo sobre Roberto Carlos e imita-o
com perfeição. Hoje ganha a vida fazendo shows, imitando o ídolo,
mas sabe que é Jobson Maia, artista e autista, e foi nessa condição que
compôs sua mais bela canção, oferecida a Roberto, numa tentativa de
ajudá-lo a superar a perda da amada Maria Rita. Jobson, sem dúvida,
é uma pessoa extraordinária.
Um dos seres humanos mais fantásticos que já conheci chama-
-se Tiago de Sandes. Tiago é cantor, tecladista, escritor, desenhista e
apresenta ainda grande habilidade em cálculos matemáticos. Quando
conheci Tiago, todas essas habilidades eram tidas como persevera-
ções, parte do padrão repetitivo de atividades que caracteriza o au-
180
tismo. Características que precisavam, segundo alguns terapeutas, ser
superadas para que Tiago pudesse sair do mundo do autismo.
Nunca vou me esquecer de nosso primeiro encontro. Junto
com a mãe, Tiago veio até mim para ser avaliado e tão logo me foi
apresentado passou a falar longamente de seus conhecimentos sobre a
história da música popular brasileira. Ele não conseguia parar e eu, de
me impressionar com a quantidade de informações que aquele garo-
to havia acumulado. Quando iniciou a falar da bossa-nova, descrevia
conversas entre os compositores, biografias e sabia de cor a discografia
dos principais participantes do movimento.
Em determinado instante, sua mãe lhe disse:
— Meu filho, a Fátima não quer saber de bossa-nova, ela quer
conhecer você. Saia do seu “quarto”. Fale sobre você mesmo.
Tiago ficou um pouco nervoso, fez algumas estereotipias e dis-
se de forma enfática:
— Eu não posso. Eu não consigo.
Perguntei-lhe, então, por que não conseguia parar. Ele me disse:
— A minha memória, minha memória me persegue.
Perguntei como ele definia sua memória, ouvindo uma respos-
ta contundente, inesquecível:
— A minha memória é a minha alma.
Nada me restava fazer a não ser chegar cada vez mais perto de
sua alma. Nossa terapia foi ouvir Tiago. Ouvi-lo da maneira como ele
mais gosta de se expressar, cantando.
Toda a nossa organização passou a ser uma plateia para ele. No
início, ele ditava as regras:
— Sentem-se, senhores, eu quero cantar “Maluco beleza”, de
Raul Seixas.
Ouvíamos todos em silêncio. O que era bom é que, enquanto
cantava, Tiago também estava dando para as outras crianças e jovens
com autismo um curso prático de formação de plateia. Quando termi-
nava uma música, dizia:
— Agora, aplaudam. Mais alto. Mais forte.
181
E quando sua alma se sentia plena, reconhecida, ele se curvava,
agradecido.
No início, Tiago escolhia o repertório e a duração dos shows.
Ele tem pais maravilhosos que são, de fato, sua equipe de produção.
Em casa, eles providenciavam os mínimos detalhes para que nada fal-
tasse no momento das apresentações. Aos poucos, Tiago foi aceitando
interferências, parcerias, bandas no seu acompanhamento. Por fim,
já cantava a pedido e continuava os shows embevecido com nossos
gritos de “mais um, mais um”.
Hoje, Tiago de Sandes faz shows em todo o país, a maioria deles
para ajudar entidades ligadas ao autismo.
Para quem conhece Tiago hoje, pode soar ridículo que seus
talentos já possam ter sido vistos, um dia, como sintomas, persevera-
ções. Tiago não está mais conosco na Casa da Esperança, não precisa
mais de nós. Mas precisaremos, sempre, de seu exemplo, a nos ensinar
humildade e respeito às diferentes expressões da alma humana, parti-
cularmente dessa parcela da humanidade que, por falta de uma com-
preensão maior, ainda denominamos autista. Foi com ele que aprendi
que por trás de um padrão repetivivo de atividades está quase sempre,
à espreita, uma alma querendo ser revelada.
182
16
AUTISMO E FAMÍLIA
183
Temos assistido, inclusive, a uma verdadeira inversão de pa-
péis, quando algumas teorias bizarras colocam as crianças com au-
tismo como causadoras de inúmeros transtornos no seio familiar
e há, ainda hoje, quem defenda, por razões opostas, o mesmo que
Bettelheim: o isolamento das crianças com autismo em instituições,
para que as famílias possam levar vidas “normais”, longe das esquisi-
tices e idiossincrasias dos autistas.
Felizmente, o avanço na compreensão do autismo e dos di-
reitos humanos das pessoas com deficiência tem combatido essas
distorções. Gradativamente assistimos à adoção de medidas para
garantir aos autistas e suas famílias o apoio e a proteção a que têm
direito. Atualmente, é indefensável, para qualquer cientista de boa-
-fé, o afastamento compulsório e permanente da pessoa com autis-
mo da família.
A grande maioria das abordagens sérias para o tratamento do
autismo reconhece a importância da família como lugar de acolhi-
mento, proteção e modelagem social do comportamento, fundamen-
tais para fazer florescer, nas pessoas com autismo, relações humanas
dotadas de significado. Ainda não foi inventado nenhum lugar melhor
para aprender a amar e ser amado do que a família.
A maioria dos programas que, comprovadamente, ajudam no
desenvolvimento das crianças com autismo reconhece que são os pais
os maiores especialistas nos filhos e preconiza sua participação na exe-
cução das atividades de reabilitação da criança.
184
Grande parte das atividades em muitos programas destinados a
crianças com autismo deve ser realizada em casa pelos pais, diariamen-
te. Existem programas que preveem muitas horas de trabalho diário,
o que exige, com frequência, que um dos pais, normalmente a mãe, se
afaste das atividades laborais para empenhar-se na recuperação do filho.
No século passado, a família passou por uma verdadeira revo-
lução. Com a inserção da mulher no mercado de trabalho e a luta pela
ampliação dos direitos femininos, a mulher passou a dividir, em igual-
dade com os homens, a responsabilidade pela manutenção da família.
Hoje, praticamente todas as famílias contam com a renda do trabalho
feminino no orçamento familiar, o que tem garantido uma melhoria
da renda familiar, do status feminino na família e uma maior indepen-
dência e autoestima das mulheres.
Todos sabemos, no entanto, que a divisão do trabalho domés-
tico ainda não ocorre com a mesma equidade e rapidez com que a
mulher tem galgado postos no mercado de trabalho. Ainda são as mu-
lheres as maiores responsáveis pelas tarefas do lar. Ainda são as mu-
lheres a maioria dos que frequentam reuniões de pais e mestres e as
responsáveis pelos cuidados com os filhos pequenos. Temos assistido
ainda a um grande crescimento do número de famílias chefiadas por
mulheres e compostas, apenas, por mulheres e crianças.
Diante dessa realidade, quais são os desafios enfrentados por
pais de crianças com deficiência e, mais especificamente, por pais e
mães de crianças com autismo?
Os Desafios Familiares
185
No entanto, os filhos não vêm ao mundo para satisfazer nossas
expectativas e todos eles, de uma forma ou de outra, ao seguir o pró-
prio caminho, desafiam nossos sonhos.
Pais que colocam nos filhos todas as expectativas para a pró-
pria realização costumam ficar frustrados e, às vezes, tentam cobrar
dos filhos “a conta” do investimento que fizeram em sua formação.
O ideal seria que, quando engravidássemos, estivéssemos realmente
dispostos a dar uma chance à vida de prosseguir seu caminho, e nos
reservássemos o nobre papel de favorecer o acolhimento e o caminho
de mais um membro da família humana.
Talvez, se tentássemos nós mesmos realizar nossos sonhos
como indivíduos tivéssemos uma “conta” menor para apresentar a
nossos filhos. E pudéssemos ajudá-los, em seus caminhos, a superar
os próprios desafios.
O Impacto do Diagnóstico
186
Os bebês autistas costumam ser bebês-modelo e, quietinhos,
guardam para nós as surpresas e os desafios que só aos poucos reve-
lam. Vez por outra, nos assustamos quando não se aninham em nos-
sos braços, mas logo nos tranquilizamos com sua agilidade motora ou
independência. Como numa dança, as crianças autistas se alternam,
na nossa frente, com a tão sonhada criança normal e esse é, geral-
mente, um tempo confuso, em que à apreensão e ao medo se juntam
conselhos traquilizadores de médicos e familiares que nos acalmam
o coração: “Fique tranquila, mãe, a sua criança vai falar. Cada crian-
ça tem seu tempo. Você não deve comparar seu filho com ninguém.
Ele é único”. E é mesmo. Infelizmente, nessa espera, perdemos, quase
sempre, um tempo precioso e deixamos de investir precocemente em
nossos filhos.
Mas, mais cedo ou mais tarde, vem o diagnóstico. Esse mo-
mento costuma ser marcante, de dor e de desespero. Se a maioria
dos profissionais soubesse como nós pais precisamos de apoio nessa
hora, talvez tivesse outra postura no momento do diagnóstico. Po-
deriam, desde o início, eliciar em nós a força e a grandeza, que todos
possuímos e de que muitas vezes nem sequer suspeitamos. Pois é de
força e grandeza que vamos precisar para lutar por nossos filhos, por
seus direitos, por sua humanidade.
O Luto
187
ninguém de ajuda e carinho, de compreensão e acolhimento. É muito
importante que se possa garantir apoio social e psicológico, para que
os pais consigam vivenciar e superar esse momento.
A condição humana é precária. A vida é fugaz e frágil. Todos
agimos como se fôssemos viver para sempre. Mas ficamos velhos,
morremos. Ficamos doentes. Dependemos uns dos outros. Para isso
estamos aqui, para cuidar e receber cuidados. Às vezes, a gente es-
quece isso. O autismo do nosso filho nos joga na cara nossa impo-
tência e fragilidade.
Os Primeiros Passos
Uma vez li num livro escrito para pais de autistas, de que não
me lembro o título, quando estava começando minha jornada: “Há um
tempo para chorar e um tempo para seguir em frente”. Demorei para
entender que a primeira fase era pré-requisito para a segunda. Mas, de
fato, o sofrimento, o contato com a própria fragilidade e desamparo,
paradoxalmente, nos unem a pessoas que nem sequer enxergávamos,
nos fazem conhecer melhor nossa humanidade e podem nos colocar
em contato com a própria força, compaixão, solidariedade e capacidade
de amar. Superado o luto inicial, nunca mais seremos os mesmos. Nos-
sos filhos com autismo vão nos segurar pela mão e nos levar a lugares e
pessoas de cuja existência não suspeitávamos.
Dificuldades Iniciais
188
pessoas do país, são pobres e não correspondem ao padrão socioeco-
nômico descrito por Kanner.
Os pais iniciam, geralmente, uma verdadeira via-crúcis em
busca de atendimento e muitas crianças ficam sem a assistência
essencial nessa fase da vida, que pode mudar-lhes drasticamente
o prognóstico.
As escolas, mesmo em tempos de inclusão obrigatória, encon-
tram artifícios para não incluir crianças com autismo. Não há vagas,
dizem algumas. Não temos condições, explicam outras. Muitas mães
deixam os empregos nessa época e ficam à disposição dos filhos, levan-
do-os para as terapias disponíveis e ficando cada dia mais longe dos
próprios sonhos de realização pessoal e profissional. Mas as crianças
com autismo não podem ser responsabilizadas pela falta de assistência
a que estão submetidas elas próprias e suas famílias.
Estudiosos como Buscáglia (1993) e Glat (2004) chamam a
atenção para a perda de identidade de todos os membros da família
de uma pessoa com deficiência, é comum que se diga, por exemplo, a
mãe do menino autista, o irmão daquele menino que grita etc. O pre-
conceito se estende, “generosamente”, para todos os membros do clã.
A família passa por transformações importantes na autoimagem e na
maneira como é vista pelos outros.
É comum que a vida afetiva e sexual dos casais sofra mudan-
ças nessa fase. Às vezes o casamento naufraga em meio a um jogo de
culpas. É preciso, desde o início, que as famílias sejam ajudadas para
que não se sintam menores. É fundamental que sejam incentivadas
e apoiadas para viver o mais normalmente possível. As crianças com
autismo, como quaisquer outras, se beneficiam de famílias estáveis
e amorosas.
Passado o período de luto simbólico, a grande maioria das fa-
mílias que conheço e, justiça seja feita, a grande maioria das mães que
conheço se transforma. Viram verdadeiras guerreiras e lutam com
unhas e dentes para encontrar o melhor e o mais adequado tratamento
para os filhos.
189
Algumas poucas, no entanto, “desistem” do filho com autismo,
deixam de acreditar em seu potencial e passam a investir nos outros filhos
“sadios”. Já conheci uma mãe que internou o filho num hospital psiqui-
átrico e nunca mais voltou. Soube de uma criança com autismo que foi
adotada, aos 2 anos de idade, e devolvida para o abrigo, tão logo come-
çou a apresentar as características do transtorno. Conheci muitos autistas
criados em cárceres privados, um deles passou vinte e um anos acorrenta-
do num ambiente minúsculo, onde comia, defecava e dormia, como um
cão raivoso. Mas já conheci famílias que adotaram autistas, sabendo do
diagnóstico. Um deles, inclusive, é meu lindo neto, Luiz Eduardo, hoje já
com 7 anos de idade, cinco dos quais em nossa companhia.
Quando meu filho Gustavo e minha nora Tatiana resolveram
adotar Luiz Eduardo, fiquei apreensiva, confesso. Nossa família já ha-
via passado por muitos desafios, e tive dúvidas se o Gustavo estava
realmente preparado, consciente, para o passo que ia dar.
Passados cinco anos, não tenho mais dúvida. Eles sabiam o que
estavam fazendo. Os três formam uma linda família. Luiz Eduardo
não poderia ter encontrado pais melhores, e eles, cada dia que passa,
ficam mais encantados com cada conquista do filho. O Dudu ainda se
comunica pouco verbalmente, mas vem se tornando muito eloquente
nos gestos. Ele aprendeu, por exemplo, a dizer que ama a vovó e pede
para o pai dar um tempo, sempre que este tenta levá-lo de minha casa
antes que ele, realmente, esteja com vontade de ir embora.
Isolamento
190
As crianças com autismo e suas famílias têm direito e devem
ser incentivadas a participar de todos os serviços disponíveis em sua
comunidade. Nós, os pais, não estávamos preparados para receber fi-
lhos com autismo e fomos aprendendo, com eles, na convivência. A
inclusão das pessoas com autismo só vai acontecer, também, com a
presença deles, com seu jeito de ser, modificando pessoas, quebrando
paradigmas e forçando a sociedade a se reconhecer plural.
Na Casa da Esperança, temos um programa específico de aten-
ção a familiares de pessoas com autismo, o Núcleo de Atendimento à
Família (NAF). Nele são garantidas, aos pais, assistência psicológica e
social, individual e em grupo. Testemunhamos muitas transformações
de mães que conseguem superar o papel de vítima e tocar a vida com
firmeza e coragem.
As famílias são incentivadas a participar dos cursos e treina-
mentos realizados na organização. Para elas, são programadas rodas
de conversa, exibição de filmes e atividades de lazer. Algumas das
mães, inclusive, se organizaram numa cooperativa, A Casa Encan-
tada, e hoje vendem seus produtos e dividem, entre si, os lucros do
trabalho coletivo.
Muitas mães de crianças com autismo são funcionárias da
nossa organização. Assim como eu e minhas duas noras, uma admi-
nistradora e outra assistente social, existem mães enfermeiras, educa-
dora física, professoras e terapeutas. Mas, no geral, o que é incentivado
e apoiado no NAF é que as mães de pessoas com autismo possam viver
seus outros papéis. Que possam ser esposas ou não, profissionais ou
não, mas que o autismo não lhes tire a possibilidade de decidir o rumo
da própria vida.
As terapias na Casa da Esperança são realizadas pela equipe
terapêutica. Em casa, acreditamos, as pessoas autistas e não autistas
precisam, e muito, é de uma família.
Estudos embasam nossa prática de oferecer terapia em grupo
para pais de crianças com autismo. A participação da família, nesses
grupos, favorece a aceitação do problema, facilita a compreensão e o
191
envolvimento dos familiares no tratamento do filho e, principalmente,
permite o resgate da esperança e alegria de viver.
O NAF é dirigido há alguns anos por minha nora Sônia, assis-
tente social e mãe de uma moça com síndrome de Rett, a Allana. Nun-
ca vi, em todos estes anos, a Sônia chorar ou se lamentar, uma única
vez, pela existência da Allana. Ela a leva para todos os lugares, e Allana
parece uma princesa, no trono, quando entra sorridente, em sua ca-
deira de rodas, para participar das festas e dos eventos familiares.
Claro que todas nós, mães de pessoas com autismo, nos de-
batemos ciclicamente com emoções conflitantes. Muitas vezes me
peguei melancólica, em viagens ao exterior, visitando lugares ou vi-
vendo experiências que sei nunca vou poder compartilhar com meus
dois filhos autistas. Às vezes, quando assisto ao nascimento de um
neto ou vejo um filho não autista realizando uma conquista impor-
tante, me pego pensando se essas realizações não fazem falta na vida
de Giordano e Pablo. Mas logo vejo que eles já conquistaram muitas
coisas, são verdadeiros heróis, superando diariamente barreiras bio-
lógicas e sociais.
192
explicitem seu jeito de ser, tem sido um grande espaço de organização
e apoio também para pais de pessoas com autismo.
Na internet, no dia a dia e na luta política, muitos pais têm
transformado dor em esperança e ampliado os espaços sociais, ainda
tão exíguos para os cidadãos com autismo.
A minha própria família é uma família de autistas e militantes
da causa do autismo.
Uma vez, vi a mãe de um jovem com autismo dizer que gostaria de
encontrar uma instituição para colocar o filho autista quando ela estivesse
mais velha. Ela me disse que não gostaria que o filho normal tivesse de
carregar para o resto da vida uma carga tão pesada quanto cuidar do irmão
com autismo. Eu nunca considerei Giordano e Pablo como estorvos.
Espero de coração que quando eu não estiver mais entre os vi-
vos, eles continuem tendo uma casa, uma família, um lar. Não me sin-
to culpada por meus outros filhos assumirem responsabilidades pelos
irmãos com autismo. Sinto-me orgulhosa deles, por serem coerentes
com a própria história. Sempre vou amá-los, quaisquer que sejam suas
escolhas, mais vou admirá-los mais ainda sempre que escolherem a
grandeza ao sucesso. Para isso criamos uma família. Para amarmos,
sermos amados e nos protegermos uns aos outros.
O autismo nos deu uma causa e um sentido na vida. E, como
13
na música do Arnaldo Antunes, a vida que vai à deriva é a nossa con-
dução. Mas não seguimos à toa!
193
sejavam ter. As expectativas e atitudes dos pais, as discrepâncias entre o
que esperavam dos filhos numa idade particular e seu desenvolvimento
atual causam mais estresse e angústia que as complexidades práticas da
convivência com uma pessoa autista.
Uma certa quantidade de dor é normal, até os pais se ajustarem
ao fato de que aquilo que esperavam não vai se materializar. Mas a dor
pela criança normal fantasiada e irremediavelmente perdida deve ser
separada da percepção da criança que realmente têm: a criança autista
que precisa de adultos cuidadosos e que pode obter um relacionamento
muito significativo com as pessoas que cuidam dela se lhe for dada a
oportunidade. Imputar continuamente ao autismo da criança a origem
de toda a dor é prejudicial tanto para os pais como para a criança e
impede o desenvolvimento de uma aceitação e de um relacionamento
autêntico entre eles. Em consideração a eles próprios e a suas crianças,
conclamo os pais a fazerem mudanças radicais em suas opiniões sobre o
que o autismo significa.
Convido vocês a olhar para nosso autismo e para o seu luto sob
a nossa perspectiva.
O autismo não é um apêndice.
O autismo não é algo que uma pessoa tenha, ou uma concha na
qual ela esteja presa. Não há nenhuma criança normal escondida por
trás do autismo. O autismo é um jeito de ser, é pervasivo, colore toda
experiência, toda sensação, percepção, pensamento, emoção e encontro,
todos os aspectos da existência. Não é possível separar o autismo da pes-
soa. E se o fosse, a pessoa que você encontraria não seria a mesma de
antes da separação.
Isso é importante, então tire um momento para considerar que o
autismo é um jeito de ser. Não é possível separar a pessoa do autismo.
Por conseguinte, quando os pais dizem: “Gostaria que meu filho não
tivesse autismo”, o que eles realmente estão dizendo é: “Gostaria que meu
filho autista não existisse, e eu tivesse uma criança diferente em seu lugar”.
Leia isso novamente. Isso é o que ouvimos quando vocês lamen-
tam por nossa existência. É o que percebemos quando vocês falam de
194
suas mais fortes esperanças e sonhos para nós: que seu maior desejo é
que, um dia, nós deixemos de ser, e que, de dentro de nós, surja outra
pessoa que vocês possam amar.
Autismo não é uma parede impenetrável.
Você tenta falar com o filho autista e ele não responde. Ele não o
vê. Você não consegue alcançá-lo. Não há adentramento. É a coisa mais
difícil de lidar, não é? O único fato é que isso não é verdade.
Veja novamente: você tenta falar como pai de uma criança,
usando seu próprio entendimento sobre o que é uma criança normal,
usando seus próprios sentimentos sobre relacionamentos. E a criança
não responde de uma forma que você possa reconhecer.
Isso não significa que a criança esteja totalmente incapacitada
para se relacionar. Só significa que você está assumindo um sistema
compartilhado, um entendimento compartilhado de sinais e significa-
ções do qual a criança em questão não participa.
É como se você tentasse ter uma conversa íntima com uma pes-
soa que não compreende sua língua. É óbvio que a pessoa não vai enten-
der o que você está falando; não vai responder da forma que você espera.
Ela pode, até mesmo, achar confusa e desprazerosa toda a interação.
Dá mais trabalho se comunicar com uma pessoa cuja linguagem
não é a nossa. E o autismo vai mais fundo do que a linguagem e a cul-
tura. Os autistas são estrangeiros em quaisquer sociedades. Você vai ter
de abrir mão de toda a sua apropriação de significados compartilhados.
Você vai ter de aprender a voltar a níveis mais básicos, sobre os quais
provavelmente nunca tenha pensado, vai ter de abandonar a certeza de
estar em seu próprio território familiar de conhecimento, do qual você
está a serviço, e deixar seu filho lhe ensinar um pouco da linguagem de
seu mundo.
Sim, isso dá mais trabalho que falar com uma pessoa não autis-
ta. Mas pode ser feito — a não ser que as pessoas não autistas estejam
muito mais limitadas que nós em sua capacidade de se relacionar. Le-
vamos a vida inteira fazendo isso. Cada um de nós que aprende a falar
com vocês, cada um de nós que funciona bem na sua sociedade, cada
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um de nós que consegue alcançar e fazer um contato com vocês está ope-
rando em um território estranho, fazendo contato com seres alienígenas.
Passamos a vida inteira fazendo isso. E, então, vocês vêm nos dizer que
não podemos falar.
Autismo não é morte.
Certo, o autismo não é o que muitos pais esperam e para o que
se preparam quando sonham com a chegada de uma criança. O que es-
peram é uma criança que pareça com eles, que pertença a seu mundo e
fale com eles sem um treinamento intensivo para um contato alienígena.
Até mesmo quando têm uma criança com outros distúrbios diferentes do
autismo, os pais esperam falar com ela, de um modo que pareça normal
para eles. Na maioria dos casos, considerando uma variedade de distúr-
bios, é possível formar o tipo de laço que os pais almejam.
Não se perde uma criança para o autismo. Perde-se uma crian-
ça porque a que se esperou nunca chegou a existir. Isso não é culpa da
criança autista que, realmente, existe e não deve ser o nosso fardo. Pre-
cisamos e merecemos famílias que possam nos ver e nos valorizar por
nós mesmos, e não famílias que têm uma visão obscurecida de nós, por
fantasmas de uma criança que nunca viveu. Chore por seus próprios
sonhos perdidos, se você precisa. Mas não chore por nós. Estamos vivos.
Somos reais. Estamos aqui, esperando por você.
É o que acho que as associações sobre autismo devem ser: sem
lamentações sobre o que nunca houve, mas com explorações sobre o
que o autismo realmente é. Precisamos de você. Precisamos de sua aju-
da e entendimento. Seu mundo não está aberto para nós e não con-
seguiremos se não tivermos um forte apoio. Sim, o que vem com o
autismo é uma tragédia: não pelo que somos, mas pelas coisas que
acontecem conosco. Fique triste com isso, se quiser ficar triste com al-
guma coisa! Melhor que ficar triste com isso é ficar louco com isso — e
então faça alguma coisa. A tragédia não é porque estamos aqui, mas
porque o seu mundo não tem lugar para nós. Como poderia ser de
outra forma, se nossos próprios pais ainda se lamentam por nos terem
trazido para este mundo?
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Olhe alguma vez para o seu filho autista e tire um momento
para dizer para si mesmo quem aquela criança não é. Pense: “Esta
não é a criança que eu sonhei e planejei. Não é a criança que espe-
rei durante todos aqueles meses de gravidez e todas aquelas horas de
sofrimento. Não é a criança para quem fiz planos de dividir todas as
minhas experiências. Aquela criança nunca veio. Esta não é aquela
criança”. Então vá fazer de seu luto não importa o que — mas comece
a deixar as coisas acontecerem.
Depois que você começar a deixar as coisas acontecerem, volte
e olhe para seu filho autista novamente: “Esta criança não é a que eu
esperava e planejava. Esta é uma criança alienígena que caiu em mi-
nha vida por acidente. Não sei quem é essa criança ou o que ela vai ser.
Mas sei que é uma criança naufragada num mundo estranho, sem pais
com formas apropriadas para protegê-la. Essa criança precisa de alguém
para cuidar dela, para ensiná-la, interpretá-la e para defendê-la. Mas
como essa criança alienígena caiu na minha vida, esse trabalho é meu,
se eu quiser”.
Se essa busca te excita, então nos acompanhe na resistência e na
determinação, na esperança e na alegria. A aventura de uma vida está
toda diante de você.
(Artigo de Jim Sinclair publicado na revista Nossa Voz [vo-
lume 1, número 3, de 1993], da Rede Internacional de Autismo /
Autism Network International. É uma mostra, que prazerosamente
traduzimos, do discurso de Jim, um autista asperger, na Conferên-
cia Internacional de Autismo em Toronto, evento dirigido principal-
mente aos pais.)
197
17
O PODER DO AMOR
199
mas fui tomada de uma súbita emoção e disse sem titubear: “Minha
filha chegou, chame o pai dela”. Alexandre veio para a sala, recebeu a
criança comigo e, como se houvéssemos combinado, disse: “É a nossa
filha, não é?”.
A menina era morena, linda, um pouco pequena para a idade,
mas não tive dúvida desde o momento em que a vi: era a filha que eu
tinha esperado desde sempre.
Faz três anos e seis meses que isso aconteceu. Começamos tudo
outra vez. Com um mês que nossa filha estava conosco, ela já sorria,
brincava e tentava falar. Três meses depois, quando se tornou, oficial-
mente, nossa filha, ensaiou dizer seu nome completo.
Hoje, ela está com 6 anos. É uma menina linda, inteligente, sa-
bida, com uma linguagem absolutamente adequada para idade. Fre-
quenta desde 3 anos a escola regular, tem muitas amigas, é uma crian-
ça muito saudável, amorosa e feliz.
Nossa filha não era autista. Tinha um problema que mimetiza
o autismo, transtorno reativo da infância. Mas foi o seu “autismo” que
a trouxe até nós.
Houve um tempo em que eu duvidei da qualidade do meu
amor. Achava que ele devia ter algum componente estranho, capaz de
causar autismo em dois dos meus filhos.
A única verdade é que eu ainda tinha muito para aprender so-
bre autismo e sobre o poder do amor. E ainda tenho. Mas, finalmente,
sou mãe de uma menina e agora sei que meu amor é de ótima quali-
dade e que, como qualquer amor de mãe, é capaz de operar milagres.
Não foi por acaso que escolhi esta importante história de mi-
nha vida para terminar este livro. É uma história de encontro. Foi de
um inesperado encontro entre os misteriosos mundos do amor e do
autismo que nasceu uma forte e bela princesa, a minha filha Maria
Teresa Dourado da Costa e Silva. Agora, minha família está completa.
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Esta obra foi composta em Minion Pro,
processada em fotolito e impressa em papel pólen linha d’água 80g.
Impressão e acabamento na Premius Editora,
em Fortaleza-CE, março de 2012.